Artes

CINDY NG

Fernanda Dias*

Conheci Ng Sio Ieng em 1990, na Oficina de Gravura da Academia de Artes Visuais de Macau. Bartolomeu dos Santos dirigia um workshop que ambas frequentávamos. No fim desse workshop o grupo expôs na Galeria do Arquivo Histórico, juntamente com o Professor, e guardo uma memória bem precisa de uma das gravuras de Cindy: era uma aguatinta feita a partir de um frottage de antigos caracteres chineses. Além de me lembrar insistentemente os trabalhos de Masao Okabe, que Cindy não conhecia, aquela gravura ficou-me na memória pela qualidade fluida que possuem algumas aguatintas, como que "água reflectindo nuvens".

Teria de esperar mais de cinco anos, o tempo que foi necessário para cimentar uma amizade, para presenciar em toda a plenitude o resultado da sua actividade criativa.

Cindy pinta com tinta-da-china sobre papel de arroz: vagas de tinta do negro surdo aos delicados véus de cinza.

Sombrias e severas paisagens, onde o único habitante é a contemplação silenciosa do espectador.

Inscrição dos movimentos da mão, figuração do movimento, esta pintura, que primeiro se nos afigura romântica, na medida em que exprime, ou melhor, regista, nada mais nada menos do que estados de alma, finalmente se revela como uma estrita caligrafia, cantando uma mitologia da qual desertaram todos os mitos.

Rigor sem rigidez, hieratismo sem símbolos, universos desabitados mas não desertos. Torrentes de negro que fluem, e modulam o espaço ao ritmo dos movimentos da mão, largos grafismos, sim, mais próximos da escrita do que de uma abstracção da natureza.

Da primeira pincelada, em múltiplos desenvolvimentos, nasce a poética de cada quadro, paralela ao sopro que o percorre, breve e intenso, semelhante a uma respiração, mancha invasora que se apodera do papel, como um vapor matinal cobre um vasto rio.

Dessa primeira pincelada, surge por vezes um rasto de cor diluída, por vezes desfigurada no âmago da ininterrupta vaga de cinzentos e negros. Ou um movimento de turbilhão que arrasta o todo para um ponto desconhecido, que num vislumbre se nos revela, fixo, para logo se deslocar e sumir.

Cindy Ng. O Deus da Montanha: 1. Tinta-da-china e cor. 85 x 89 cm, 1995.

Universo ao mesmo tempo apaixonado e contemplativo, ao sabor da mobilidade das águas, e da perene inviolabilidade das montanhas. Espessas florestas de matizes de negros, vales imensos. O sol lívido que os ilumina é um sol poético, por vezes opressivo. Os amarelos não são solares, os azuis são diluídos e tempestuosos, os verdes são aquosos de visco e musgo, e o vermelho jamais é o estridente vermelho da festa e celebração, é antes um contido clarão, sempre no limiar de uma harmonia breve de escarlate ou malvas.

Ressonância de um canto telúrico? Mas a terra de Cindy não é uma terra habitada, vivida, desfigurada pelos homens.

Estas montanhas e vales, estas quedas de água, são os intocados arquétipos celestes de que falam os poetas:

"Contemplo serenamente a Montanha do Sul. Anoitece. É tão suave a brisa dos cumes! Um a um os pássaros partiram. É isto a verdadeira, inefável vida."

(Tao Yuan Ming, 365-427, excerto);

"Mil montanhas, nem um só voo de pássaro. Mil atalhos, nem um só rasto humano..."

(Liu Tsung Yun, 773-819, excerto).

Mas, por vezes, cavalos negros de longas crinas esparsas atravessam os céus tempestuosos. São os cavalos celestes de garupas de fumo e cascos de relâmpagos que galopam majestosos, montados por invisíveis deuses. E que cada um vê o que quer, nos Universos de Cindy Ng!

Cindy pinta ouvindo música budista, solos de instrumentos musicais chineses.

Apreende o que procura no instante em que pinta, ou pinta segundo uma paisagem interior, modulada no acto de pintar? Em todo o caso, o jogo desafia o tempo, retendo o momento numa armadilha de papel e tinta. Na árdua busca de aplacar uma antiga aspiração, a da União do ser com o Universo, diriam os espiritualistas.

Mas como situar Cindy na história e na geografia da pintura? Outros mais esclarecidos do que eu, um dia o farão certamente. Ela afirma admirar Pak Tai San Ian, Zhang Dagian, Ka Yao Fok, Antoni Tàpies, Turner.

Se agruparmos os artistas por afinidades espirituais, em vez de influências históricas, poderemos citar Kimura, que se orgulhava de na sua arte resumir o Oriente e o Ocidente, afirmando por vezes: "São diferentes como dia e noite, e as duas faces da mesma realidade".

Revisão de texto por Luís Rebelo.

Cindy Ng. A Torrente da Montanha. Tinta-da-china e cor, 48 x 88 cm, 1995.

Cindy Ng. O Deus da Montanha: X. Tinta-da-china e cor, 92 x 86 cm, 1995.

Cindy Ng. O Deus da Montanha: XXI. Tinta-da-china e cor, 85.5 x 94.5 cm, 1995.

* Foi aluna do professor Bartolomeu dos Santos, com quem aprendeu Gravura em Metal, e fez parte do Grupo S. V. A., dirigido pelo gravador James Wong. Professora no Liceu de Macau, mantém sua actividade de gravadora na Academia de Artes Visuais de Macau.

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até a p.