Linguística

INTERCÂMBIO CULTURAL SINO-OCIDENTAL REFLECTIDO NAS POESIAS DAS DINASTIAS MING E QING SOBRE MACAU

Zhang Wenqin*

Grande quantidade de materiais referentes aos vínculos da China com o exterior encontram-se na imensidão dos antigos documentos chineses; o mesmo acontece com a poesia, importante parte da cultura clássica chinesa.

As relações directas da China com o Ocidente tiveram início com a vinda dos portugueses para o Oriente. Entre o 32. ° e 36. ° anos de Jiajing (1553-1557), quando os portugueses passaram a residir em Macau, esta localidade tornou-se naturalmente uma vitrina de suma importância para os contactos e o intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente, durante as dinastias Ming e Qing.

A partir de 1989, venho a dedicar-me ao estudo das poesias clássicas de Macau, com o apoio do Instituto Cultural de Macau. Tomando as poesias referentes a Macau, escritas pelos residentes locais ou pelos que por aqui passaram, como um aspecto da história e da cultura de Macau, concluí em 1992, o estudo Anotações das Poesias de Macau, tomo "Ming" e "Qing" (inédito). No presente ensaio, pretendo fazer uma breve apresentação crítica a este respeito, baseado nas obras poéticas e outros documentos das dinastias Ming e Qing que reflictam o intercâmbio cultural sino-ocidental.

A língua constitui o mais importante meio para os contactos da humanidade e um pré-requisito para a concretização do intercâmbio entre as culturas das diferentes nações. Ao pisar a terra de Macau, os poetas do continente chinês estranhavam muito a língua dos ocidentais. Chen Yan Yu, de Hai Yan (actual cidade de Chao Zhou, da província de Guangdong), que veio a Macau em meados do século XVII, dizia: "Todos os residentes forasteiros falam línguas de pássaros."1 Quando chegou pela primeira vez a Macau no 31. ° ano de Kangxi (1692), o poeta-bonzo Ji Shan, da Escola Ling Nan, fez semelhantes descrições: "Seguindo os forasteiros nas suas feiras, enche-me os ouvidos uma língua de cuco misturada com a chinesa."2 "Língua de cuco" é outra forma de dizer "língua de pássaros". Devido aos preconceitos, os eruditos das dinastias feudais chinesas, na sua maioria, desprezavam as línguas estrangeiras, considerando-as inferiores e qualificando-as de línguas de pássaros.

Tais preconceitos formavam uma séria barreira ao intercâmbio linguístico e cultural entre a China e o Ocidente e impediam tremendamente os esforços dos que pretendiam aprender as línguas de outras nações. O famoso pintor e poeta chinês, Wu Yu Shan, que cursava o Colégio de São Paulo em Macau entre o 19. ° e 21. ° ano de Kangxi (1680-1682), descrevia assim a arduidade com que aprendia o Latim:"Ante a candeia, cada um fala a língua da sua terra, um do Ocidente, e outro do Oriente. Não se entendendo um ao outro, passam a recorrer à pena para se comunicarem. Eu escrevo o meu ideograma chinês em forma de mosca, e ele escreve as suas letras como patas de pássaro; lemos demoradamente as linhas ora horizontais ora verticais."3 Após as aulas nocturnas, Wu Yu Shan ainda conversava com um frade europeu junto a uma candeia, a fim de aprender o latim. Os dois falavam em chinês e língua ocidental; quando não conseguiam comunicar-se, passavam a recorrer à pena. Um escrevia em latim da esquerda para direita, e o outro escrevia em chinês de cima para baixo, com o que as conversas prolongavam-se. Com admirável força de vontade, Wu Yu Shan superou todas as dificuldades e concluiu o curso, tornando-se um firme jesuíta chinês com ricos conhecimentos. Na velhice, ele dominou perfeitamente o latim.

No 52. ° ano de Qianlong (1788), o jovem poeta Li Xia Ling, de Xiangshan, Guangdong, visitou Macau onde, quando passeava, uma engraçada criança europeia dirigiu-se a ele. Desse encontro tece o seguinte comentário:"Fiquei envergonhado por não ser Hao Long, sem conseguir entender coisa tão difícil. Não tendo estudado a língua dos selvagens, eu pretendia respondê-la, mas a língua não me obedecia. Um marinheiro que passava ajudou-me a interpretar o que ela dizia."4 "Língua dos selvagens" era uma expressão depreciativa usada pelos literatos do Centro da China para indicar a língua das minorias nacionais das zonas fronteiriças do Sul do País. Segundo a tradição, durante a dinastia Jin do Leste, Hao Long servia como ajudante nos assuntos das minorias nacionais do Sul, no Quartel-General de Heng Wen, e escrevia poesias em dialectos locais. Aqui, o jovem poeta envergonhava-se de não ter o talento de Hao Long e não entender nada do que a criança dizia. Felizmente, um marinheiro chinês prestou-se a servir como intérprete, salvando-o do apuro, de forma que a conversa pôde prosseguir. Após esse encontro, o poeta compôs a poesia intitulada "Criança Estrangeira" que, apesar do preconceito da época, deixou fixada a amável figura de uma criança europeia, bonita, dinâmica, inteligente e bem educada, assim como um episódio dos contactos amistosos entre os povos da China e de Portugal.

A criança estrangeira (fan chu), descrita por Li Xia Ling, devia ter chegado com os pais a Macau há pouco tempo, pois ainda não falava chinês. Quando visitava Macau pela segunda vez, no 36. ° ano de Kangxi (1697), o bonzo-poeta Ji Shan escreveu a poesia "Hospedado no Mosteiro Budista da Seita Esotérica, Escrevo para os Senhores de Dong Lin". Um de seus versos dizia: "Residindo aqui por muito tempo, passam as crianças europeias a dominar perfeitamente a língua chinesa."5O poeta Cai Ying Yuan, de Xiangshan, que visitou Macau no 7. ° ano de Daoguang (1827), dizia no Prefácio à prosa intitulada "Ouvindo Música Tocada por uma Rapariga Europeia": "Conduzido por um 'yizhe', fui visitar a casa de uma família estrangeira. Subi a escada, fui recebido com cortesia pela dona da casa. Seus filhos, tanto meninos como meninas, igualmente bonitos, falavam chinês."6 Disso se depreende que, durante as dinastias Ming e Qing, viviam em Macau muitas crianças estrangeiras, aqui nascidas ou residentes há certo tempo, que falavam chinês. Para aprender uma outra língua, as crianças têm maior facilidade que os adultos.

O "marinheiro", referido na poesia de Li Xia Ling, conheceu a língua europeia na sua carreira, e servia ocasionalmente como intérprete entre chineses e estrangeiros. E existiam em Macau, durante as dinastias Ming e Qing, tongshi ou tongyi, oficialmente autorizados para servir como intérpretes nas negociações comerciais entre chineses e ocidentais. Ao visitar Macau, o grande dramaturgo Tang Xian Zu, da dinastia Ming, deixou-nos duas poesias, ambas intituladas "Ouvindo o Yizhe de Xiangshan".7 O "yizhe de Xiangshan" nas poesias aqui referidas e o yizhe da poesia de Cai Ying Yuan eram os mesmos intérpretes. Não só os yizhe como a língua portuguesa, misturada com o dialecto de Guangdong que eles usavam, merecem hoje um estudo ainda mais aprofundado.

A introdução da música ocidental na China, através de Macau e dos padres ocidentais na Corte de Pequim, constitui um dos mais importantes aspectos do intercâmbio cultural sino-ocidental nas dinastias Ming e Qing. No tomo V da obra História dos Contactos entre a China e o Ocidente, o Professor Fang Hao, baseado em documentos tanto chineses como ocidentais, estudou este tema.8 Nos últimos anos, o Professor Yin Fa Lu, da Universidade de Pequim, publicou uma série de ensaios a este respeito.9 Os materiais das poesias de Macau, compostas durante a dinastia Qing, preencheram algumas lacunas desses documentos.

O governador Wu Xing Zuo, de Guangdong e Guangxi, que visitou Macau pela primeira vez por volta do 21. ° ano de Kangxi (1682), escreveu a poesia "Templo de São Paulo", em que dizia: "Sentado demoradamente, esqueci-me de voltar; Ouvindo música de órgão, penso em Bo Ya."10 É muito conhecida entre os chineses a história de Bo Ya e Zhong Zi Qi que se tornaram íntimos amigos por intermédio da música do guqin — um instrumento de cordas da Antiguidade na China. E desta vez, a inesquecível música que detinha o poeta vinha do órgão europeu que acompanhava a oração e outros serviços religiosos na Igreja de São Paulo. No 57. ° ano de Kangxi (1718), o poeta Liang Di, de Xinhui, escreveu o longo poema "Órgão Europeu" em que descreve este instrumento musical: "Toca-se nos andares superiores da Igreja de São Paulo, para ser ouvido a centenas de lis de distância." O amigo dele, General Lang Yi Fu, inspecionou Macau e gostou muito da música do órgão europeu. Tendo voltado à terra natal, reproduziu este instrumento que mostrou ter boa qualidade de som e pensou em oferecê-lo ao imperador. O poeta considerava que o órgão podia ser incluído nos instrumentos de música erudita e usado nas cerimónias oficiais da China.11 Este comportamento e perspicácia merecem ser registados na história do intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente.

Se os literatos e mandarins chineses que visitavam Macau durante o reinado de Kangxi ouviram música tocada pelos frades nos órgãos das igrejas, os que por aqui viajaram durante os reinados de Jiaqing (1796-1820) e Daoguang (1821-1850) já podiam ouvi-la tocada por raparigas europeias em outros lugares. Ao visitar Macau no 21. ° ano de Jiaqing (1816), outro poeta, Zhong Qi Shao, também de Xinhui, dizia na oitava das suas poesias referentes a Macau: "Belas como flores, raparigas dançam acompanhadas da música de órgão."12 Através destes versos, podemos imaginar como as belas raparigas europeias, magnificamente vestidas, dançavam ao ritmo do órgão tocado por uma companheira.

Naquela altura, o órgão, que se limitava ao uso nas igrejas, passou paulatinamente a ser encontrado também em casas de famílias europeias que residiam em Macau. No mesmo ano em que Zhong Qi Shao visitou Macau, Tang Yi Fen, incumbido pelo governador Ran Yuan, de Jian Xi, chegou a Macau para deter o fugitivo Zhu Mao Li. Na 78.a de suas poesias, "Reminiscências aos 70 anos de Idade", acha-se uma nota que diz: "O órgão é constituído de fios metálicos dentro de uma grande caixa, em cima da qual estão alinhadas mais de dez teclas; quando se tocam as teclas, surge o som; quando as largam, elas voltam ao mesmo nível. Para perseguir o criminoso Zhu, tive a oportunidade de visitar as casas dos estrangeiros onde uma estrangeira executou uma melodia para mim."13 Para escrever a história do distrito de Xiangshan (Heong Sam U Tchi), Cai Ying Yuan e outros foram investigar em Macau e, conduzidos por um tongshi (intérprete), visitaram casas de europeus. Na nota da poesia "Ouvindo Música Tocada por Rapariga Europeia", ele dizia: "A dona de casa estrangeira manda a filha cumprimentar-nos e tocar órgão. Esta, galantemente vestida de seda fina como asa de cigarra e ornamentada com jóias, toca graciosa e ligeiramente, e só pára quando os visitantes saem." A segunda metade da poesia diz: "A música estrangeira sempre se caracteriza por seu vigor, destaca-se por perniciosidade e violência, e carece de mansidão e elegância; cheia de sons de ferro, esta música destrói o espírito e amolece a força de vontade. Temos os sons justos como os tocados nos palácios de Ming e Qing, sendo os mandarins a autoridade e os mercadores, súbditos. Que os eruditos chineses apreciem as elegantes músicas clássicas, sem deixar as artes estranhas degradar o nosso povo."14 Cai Ying Yuan, por um lado, enaltecia entusiasticamente a incomparável fineza do órgão europeu e a belíssima música por ele produzida e, por outro, considerava-a como uma arte estranha que amolece o espírito do povo, colocando-a em diametral oposição às músicas clássicas chinesas. Esta visão de Cai é inteiramente contrária à de Liang Di acima mencionada. Este facto demonstra, em certo sentido, que numa atmosfera abafada, nas vésperas da Guerra do Ópio, uma parte bastante grande dos literatos feudais perderam a coragem de aprender a avançada cultura do Ocidente.

Também no tomo V da obra História dos Contactos entre a China e o Ocidente, o Professor Fan Hao estudou a introdução da pintura ocidental na China. Quanto aos materiais históricos aparecidos na poesia, destacam-se as duas poesias "Inscrições na Pintura Ocidental", do famoso poeta Chen Gong Yi, durante o reinado de Kangxi. A primeira: "A técnica de pintura do Ocidente contraria à natural, como se vêem coisas na névoa e no fumo, sem conseguir enxergar o natural. Parece a cena em que Shao Wong diverte o imperador Wu da dinastia Han, contemplando a Senhora Li através da cortina." E a segunda: "Formada com fios cruzados, a pintura aparece nos quatro lados, deixando o centro vazio. Como se imitam as obras caligráficas das dinastias Jin e Tang, o espírito aparece justamente onde não há tinta."15 No momento da introdução da pintura ocidental na China, o poeta achava-a, por um lado, difícil de compreender e, por outro, apreciava-a sob o tradicional critério "transmissão do espírito onde não há tinta", utilizado para avaliar a pintura e a caligrafia chinesas. Trata-se de uma crítica meio apreciativa e meio depreciativa.

Durante o reinado de Jiaqing, a compreensão da pintura ocidental pelos chineses elevou-se a uma nova altura. Na poesia "Contemplando as Pinturas Europeias Coleccionadas pelo General Huang", Li Xia Ling dizia: "Ante os dez quadros europeus do General, vejo de novo as paisagens visitadas. O beco do Matapau está ladeado de barracas, além do Istmo de Lótus é a llha Verde. Belas mulheres no fino relvado anunciam um banquete primaveril; Sob o poente com brisa flutuam os barcos; O perfil das árvores reflecte-se nas águas, levando-me de volta aos sonhos de vinte anos atrás."16 Em chinês, a pintura europeia era também chamada de pintura de vidro. Ian Kuong Ian e Tcheong U Lan diziam: "Quanto às suas outras artes, há a de pinturas europeias... Existem pinturas em papel, pinturas em couro, pinturas em toda a espécie de objectos de vidro... Olhando para os andares, terraços, palácios, casas, pessoas e objectos dessas pinturas, a uns dez passos de distância, se as portas desses edifícios estiverem abertas, poderão contar-se os degraus de seus andares que são completamente semelhantes aos das nossas grandes moradias. Nas figuras humanas, as sobrancelhas e os olhos são ainda mais naturais."17 A poesia de Li Xia Ling foi escrita no 9. ° ano de Jiaqing (1804). O General Huang, isto é, Huang Biao, então hospedado em Xiangshan, era famoso comandante da Marinha da dinastia Qing e íntimo amigo do poeta. Todas as dez pinturas europeias coleccionadas por Huang Biao tinham por tema as paisagens de Macau. Nelas, podia-se ver as barracas das margens do mar onde moravam escravos pretos; mulheres europeias galantemente vestidas que, pisando o fino relvado, iam participar de um banquete em plena primavera; barcos que flutuavam no mar sob o sol poente e uma suave brisa. A colecção de quadros europeus de Huang Biao demonstra que tal colecção já era uma moda entre os mandarins e literatos da Escola Ling Nan. A diferença entre a frase "na névoa e no fumo sem conseguir enxergar o natural", de Chen Gong Yi, e a "o perfil das árvores reflecte-se nas águas", de Li Xia Ling, revela uma mudança: os mandarins e literatos chineses passaram de "não compreender" a "aceitar" a pintura europeia.

Quanto ao intercâmbio da cultura material, as descrições mais frequentes nas poesias de Macau são de relógios e canóculos.

A introdução do relógio que dá horas teve início em fins da dinastia Ming, com Mateus Ricci e outros jesuítas. Um grande relógio, então raramente visto no Extremo Oriente, instalado no campanário da Igreja de São Paulo, tal como o órgão no interior, atraía a atenção de muita gente. No 30. ° ano de Kangxi (1691), o Superindendente da Alfândega de Guangdong, Gong Xiang Ling, escreveu uma prosa intitulada "Missão no Rio das Pérolas" em que dizia: "Um grande relógio ladeado por imortais voadores com gestos de tocá-lo, soa de tempo a tempo devido às suas máquinas. Dobra uma vez no início da madrugada e 12 vezes ao meio-dia, volta a dobrar uma vez no início da tarde e 12 vezes à meia-noite. E assim sem parar todos os dias."18Na referida poesia "Hospedado no Mosteiro Budista da Seita Esotérica, Escrevo para os Senhores de Dong Lin", o bonzo-poeta Ji Shan dizia: "O som do relógio mistura-se com o do órgão",19 que indica que o grande relógio soa regularmente, dando as 12 horas.

Segundo o estudioso sueco Andrew Ljungsted, que viveu em Macau em princípios do século xvII, as inscrições na principal roda dentada (engrenagem) indicam que o enorme relógio "foi um presente de Luís XIV a este seminário dos jesuítas".20 Foi em 1687, isto é, 26. ° ano de Kangxi, que o Rei Luís XIV enviou Joaquim Bouvet, João Francisco Gerbillon e outros três jesuítas franceses à China. O relógio devia ter sido trazido por eles nessa viagem.

Muito provavelmente, este era o relógio-padrão que dava horas em Macau durante a dinastia Qing. Nos primeiros anos de Qianlong, Ian Koung Ian residiu durante longo tempo em Macau como seu primeiro prefeito, tendo oportunidade de ouvir e apreciar o agradável som do relógio, devido ao que escreveu a poesia "Batida do Relógio pela Madrugada": "Vem de longe o som do sino do templo, Que é ouvido, por um momento, no meio do sossego. A Lua soberana mergulha no mar profundo. As nuvens arrefecem pelas colinas. Na quinta vigia, entre a escuridão e a claridade, são imprecisas as dez mil formas. Experimentemos perguntar aos padres estrangeiros. Talvez saibam explicar isto."21 Na hora da quinta vigia, isto é, pela madrugada, o poeta ouve os espaçados e profundos sons do enorme relógio que, no silêncio absoluto, um, dois... calmos, mergulham com o fresco luar no mar e desaparecem, acompanhados de nuvens frias, nas montanhas remotas. No momento da substituição da noite pelo dia, o universo parece tudo e nada, o que desperta infinitas imaginações do poeta, levando-o a indagar qual é o segredo disso. De facto, o som do relógio de madrugada no Mosteiro de São Paulo era um dos atractivos de Macau, pelo que um mandarim da Dinastia Celeste, como Ian Kuong Ian, não deixava de estar encantado.

Quanto ao canóculo ("vidro de mil lis"), Zhang Qu, que ocupava o cargo de Justiça-mor de Guangdong entre o 10. ° e 13. ° ano de Yongzheng (1732-1735), dizia: "Com o canóculo, vêem-se nitidamente as correntes metálicas dos sinos no campanário a dezenas de lis de distância, e até os traços dos ideogramas."22

Na última das seis poesias intituladas "Macau", compostas no 28. ° ano de Kangxi (1689), Qu Da Jun dizia: "Com o vento de Maio, despede-se da praia, lançando carne e arroz no mar; Leva-se o canóculo para ver a mil lis de distância, e bússola para determinar a rota."23Aproveitando o vento sueste do início do Verão, o barco parte de Macau rumo ao Japão. Na cerimónia da partida, homenageia-se o Templo da Barra e lança-se carne e arroz para confortar as almas perdidas dos náufragos, o que evidencia tratar-se de um barco chinês. Diferente de outros barcos chineses, este levava um canóculo, além da bússola. Supõe-se que, entre os barcos chineses de então, só os de Macau levavam canóculo.

Ao visitar Macau, os poetas chineses gostavam de ver longe com canóculo. Na terceira das suas poesias que tinha o título de "Visita ao Amigo Cai Tong Hou", o famoso pintor da Escola Ling Nan durante os reinados de Yongzheng e Qianlong, dizia: "O murmúrio das ondas paira na Praia Grande, bloqueada pela Porta da Cruz, pedi o canóculo a um europeu, para ver as velas do horizonte."24 O poeta fica na Praia Grande e, usando um canóculo emprestado de um europeu, consegue ver as velas brancas bem longe, no horizonte. Daqui se sabe que o canóculo era um objecto que os europeus sempre levavam consigo.25 Talvez o poeta passeasse junto com alguns europeus.

Nas "Diversas Poesias sobre Macau", escritas durante o reinado de Qianlong, Li Xia Ling também se referiu ao canóculo: "Acompanhando o som do sino, a Lua sobe ao Templo de São Paulo; Com o vento, ondas surgem na Porta da Cruz. Distraindo-me com o canóculo no pavilhão, abranjo um panorama de mil lis. "26O poeta, hospedado num edifício de estilo europeu, foi à varanda com um canóculo, e contempla distraidamente o mar e as montanhas de longe. Na sexta das suas "Diversas Poesias em Macau", Zhong Qi Shao descreveu semelhantes cenas: "A Porta da Cruz torna-se o limiar, o Porto de Ling Ding aproxima-se do muro; Devido ao canóculo, ultrapasso o mar das Nove llhas."27

Quanto ao intercâmbio religioso, este tinha por conteúdo principal a difusão do catolicismo na China. Com a introdução da religião católica, os mandarins e literatos chineses recorriam à forma da poesia clássica para descrever tal religião que representava a cultura ocidental. Um reduzido número deles, convertidos ao catolicismo, usava a mesma forma literária para expressar sua compreensão e devoção. Trata-se de fenómenos culturais que merecem estudo na história do intercâmbio cultural sino-ocidental. Nos ensaios "Descrições sobre o Catolicismo Aparecidas na Poesia de Macau durante a Dinastia Qing" e "Estudo das Poesias Católicas de Wu Yu Shan", o autor do presente artigo já discutiu e estudou tal tema, baseado nas poesias de Macau e outros documentos,28 o que não vou repetir aqui. O que eu gostaria de acrescentar neste artigo é uma poesia escrita por Tang Xian Zu durante o reinado de Wanli, dinastia Ming, para analisar a compreensão, pelos chineses, da devoção dos navegadores ocidentais a seus santos padroeiros.

No 19. ° ano do reinado de Wanli (1591), dinastia Ming, Tang Xian Zu foi demitido do cargo de titular da homenagem, do Ministério dos Ritos da Corte de Nanquim, por ter criticado a política do imperador, e rebaixado ao cargo de titular dos ritos do distrito de Xuwen. Na ida para o novo cargo, ele visitou Macau, deixando-nos quatro poesias relativas a este local. Uma delas, "Ouvindo Yizhe de Xiangshan", dizia assim: "De Champa a Jiaolanshan, leva-se dez dias; Um barco de doze velas vai e vem rápido; Dá-se um punhado de arroz para determinar se deve parar em Palembang; É frequente colectar especiarias na Montanha das Nove llhas."29

Jiaolanshan era uma localidade muito conhecida pelos chineses da Antiguidade que navegavam ao longo das costas do Sueste Asiático. Fei Xin, membro da comitiva de Zheng He, grande navegador chinês, descreveu Jiaolanshan aonde, "com vento favorável, chega em dez dias e dez noites, depois de partir de Champa". Tendo vários mastros cada um dos quais com várias velas, este barco descrito na poesia era evidentemente um barco europeu, pois os barcos chineses de então só tinham um mastro com uma vela. Entretanto, como os da China, o barco europeu também tinha a bordo seus padroeiros como Jesus, Nossa Senhora e outros santos para homenagear. A expressão "Dá-se um punhado de arroz" procede do Livro das Poesias, aparecido no período da Primavera e do Outono da história chinesa (722-481 antes de nossa era), e significa "dar remuneração ao vidente". E este barco europeu fazia a mesma coisa que os chineses faziam: antes da partida, os navegantes homenageavam os deuses e determinavam a data da partida e a rota segundo a previsão de um vidente. Revelado o resultado da previsão, o barco europeu partia, fazia escala no porto de Palembang, para ir, depois, à Montanha das Nove Ilhas, local situado na actual Malásia, onde compraria âmbar-cinzento e outras especiarias. Da boca de um intérprete (tongshi) chinês, Tang Xian Zu soube que os navegadores europeus também determinavam as suas actividades profissionais por meio de cartomancia. Pode-se dizer tratar do início da compreensão, pelos chineses, do culto dos marinheiros europeus aos seus santos padroeiros.

Nas dinastias Ming e Qing, a China encontrava-se na fase final da sociedade feudal, um período de portas fechadas ao exterior em que não podia haver uma abertura no seu sentido moderno. É verdade que o intercâmbio entre a China e o Ocidente já tinha tido início, mas estava numa escala pequena e com pouca frequência. Os governantes feudais chineses mantinham precaução e tinham medo das forças colonialistas ocidentais, e só abria algumas vitrinas onde se consideravam capazes de controlar, a fim de não deixarem interrompidos tais contactos. Eram vitrinas dessa espécie Macau, onde residiam os portugueses e outros estrangeiros que vinham negociar com a China, e as igrejas ocidentais em Pequim, onde residiam os frades europeus que trabalhavam na Corte chinesa. Devido a tais vitrinas, o intercâmbio cultural sino-ocidental conseguiu continuar.

Nas vésperas da entrada da China no período moderno, a segunda vitrina, isto é, as igrejas ocidentais em Pequim, foi fechada e tomou-se um vestígio da história. Entretanto, Macau continuou e continua, até hoje, a desempenhar o seu papel no intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente. As poesias referentes a Macau durante as dinastias Ming e Qing constituem um reflexo de tal intercâmbio através desta vitrina.

Comunicação apresentada no Encontro Internacional

"Diálogo Cultural e Dificuldades de Entendimento",

organizado pelo Instituto Cultural de Macau, DEIP,

e realizado em Macau em Outubro de 1995.

Tradução do original chinês por Yu Huijuan; revisão de

Fernando Lima.

NOTAS

1. CHEN Yan Yu, Poesias da Montanha de Lótus, 19. °ano de Daoguang, tomo 2, p. 10.

2. SHI Ji Shan, Poesias de Xian Zhi Tang, reeditadas no 25. ° ano de Daoguang, tomo 13, p. 4.

3. WU Yu Shan, Poesias do Mosteiro de São Paulo, confrontadas e anotadas por Fang Hao. Vide ZHOU Kang Xie, Ensaios sobre Wu Yu Shan, Hong-Kong, 1971, p.114.

4. LI Xia Ling, Poesias de Shao Yuan, 19. ° ano de Jiaqing, tomo 1, p. 7.

5. SHI Ji Shan, op. cit., tomo 14, p. 7.

6. CAI Ying Yuan, Poesias do Estúdio Ming Xin, 2. °ano de Tongzhi, tomo 2, p. 15.

7. TANG Xian Zu, Poesia e Prosa, confrontadas por Xu Suo Fang, Xangai, 1982, tomo 1, p. 428.

8. FANG Hao, História dos Contactos entre a China e o Ocidente, Taipé, 1977, pp. 1-22.

9. YIN Fa Lu, Macau e o Intercâmbio Musical entre a China e o Exterior, "Estudos dos Documentos Históricos", Pequim, (5) 1994, pp. 58-62.

10. WU Xing Zuo, Poesias da Aldeia Liu, reinado de Kangxi, p. 37.

11. LIANG Di, Poesias de Mao Shan Tang, reinado de Kangxi, tomo 2, p. 42.

12. ZHONG Qi Shao, Poesias do Pavilhão em que se Ouve Sino, 10. ° ano de Daoguang, tomo 3, p. 20. Nota do texto original: "Ao ser tocada, a caixa de música emite os oito sons. Também se chama Feng Qin [órgão]."

13. TANG Yi Fen, Poesias de Qin Yin Yuan, reinado de Guangxu, tomo 32, p. 22.

14. CAI Ying Yuan, op. cit., pp. 15-7; HUANG Shao Chang; LIU Su Fen, Breve Apresentação das Poesias de Xiangshan, 1937, tomo 8, pp. 209-10. No 29. ° ano de Daoguang (1849), Wei Yuan chegou a Macau e ouviu, no jardim de um oficial local, uma rapariga europeia tocar órgão, deixando a poesia "Ouvindo a Rapariga Europeia Tocar Órgão num Jardim de Macau". Vide WEI Yuan, Obras, reeditadas em 1976, Editora China, tomo 2, p. 739.

15. CHEN Gong Yi, Obras de Du Ying Tang, reeditadas em 1988, Universidade de Zhongshan, p. 260. Sobre as relações de Chen Gong Yi com Macau, Wang Yong Sou enalteceu-o por ter ido a Macau, após a queda da dinastia Ming, junto com Ho Jiang, e ter atravessado o mar para procurar os ministros da dinastia extinta. Vide WANG Yong Sou, Poesias Diversas de Macau, 1918, p. 9.

16. LI Xia Ling, op. cit., tomo 2, p. 29.

17. TCHEONG U Lam; LAN Kuong Ian, Monografia de Macau = Ou Mun Kei Leok, tomo 2, pp. 50-1.

18. WANG Shi Zhen, Conversas em Chi Bei, colecção de prosas da dinastia Qing, tomo 21, p. 12.

19. SHI Ji Shan, op. cit., tomo 14, p. 7.

20. LJUNGSTED, Andrew, An Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China, and ofthe Roman Catholic Church and Mission in China, Boston, 1836, p.18.

21. TCHEONG U Lam; LAN Kuong Ian, op. cit., p. 12.

22. ZHANG Qu, Viagens no Leste de Guangdong, reeditadas em 1990, Guangdong, tomo 2, p. 140. TCHEONG U Lam; LAN Kuong Ian, op. cit., p. 44.

23. QU Da Jun, Poesias de Wong Shan, editadas na dinastia Qing, tomo 9, p. 46.

24. WANG Hou Lai, Poesias de Lu Gang, editadas na dinastia Qing, tomo 4, p. 33.

25. ZHANG Qu, op. cit. Na página 141, lê-se: "O cabo da faca que os estrangeiros sempre levam tem duas camadas: numa delas há uma bússola e, na outra, um canóculo."

26. LI Xia Ling, op. cit., tomo 1, p. 9.

27. ZHONG Qi Shao, op. cit., tomo 3, p. 20.

28. Meu ensaio Macau e a Cultura na História Chinesa, Macau, Fundação Macau, 1995, pp. 178-201,214-47.

29. TANG Xian Zu, op. cit.; YU Ming Tang, Poesias, tomo 6, p. 428.

* Professor associado no Departamento de História da Universidade de Zhongshan.

desde a p. 55
até a p.