Linguística

ESTUDOS COMPARATIVOS INTERCULTURAIS DE RECEPÇÃO

Ziva Ben-Porat*

De acordo com o narrador da Utopia, de Thomas More: "Hábitos e instituições diferentes produzem ideias e atitudes bastante diferentes", e continua ilustrando esta afirmação com a descrição da primeira visita de pessoas que desconheciam os hábitos da capital utopiana:

"[...] quando os Anemolianos, que viviam longe e tinham pouco contacto com os Utopianos, viram que todas as pessoas usavam as mesmas roupas grosseiras, tomaram por certo que estes não tinham mais nada. Eles próprios, sendo um povo mais orgulhoso do que inteligente, decidiram vestir-se de forma esplendorosa como se fossem deuses por forma a deslumbar os pobres Utopianos com o esplendor das suas vestes. [...] Uma vez que na sua terra eram nobres, os embaixadores usavam mantos tecidos a ouro, anéis de ouro nos dedos, barretes ornamentados com correntes de ouro, pérolas e outras jóias, ou seja, cobertos com todas aquelas coisas que entre os Utopianos eram consideradas características de escravatura, sinais de castigo, ou brinquedos de crianças. Era ver como se sentiam importantes quando comparavam as suas vestes com as dos Utopianos, [...] Era engraçado pensar quão longe estavam de criar a impressão que queriam causar, uma vez que aos olhos dos Utopianos, excepto para aqueles que já tinham visitado outros estados, esta pompa e esplendor eram vergonhosos. Os Utopianos saudavam as pessoas de baixo estrato social de forma respeitável e não prestavam qualquer atenção aos próprios embaixadores, por parecer que se vestiam como escravos com as suas correntes de ouro."1

Este famoso excerto é sem dúvida um exemplo perfeito da incompreensão intercultural explicitamente expresso e analisado. Este excerto também pode ser lido como um exemplo de príncipios cognitivos universais de comunicação.

A frase-chave deste excerto é: "tomaram por certo", o que, traduzindo em termos de terminologia cognitiva, significa que os Anemolianos tinham um esquema cognitivo no qual poderiam traçar a informação perceptual. Mesmo se o esquema acabar por ser inválido, tendo em conta a situação, e resultar num comportamento insensato, não se pode considerar ser um sinal de estupidez, nem o autor afirma que o é.

Quando o narrador descreve os Anemolianos como estúpidos, estabelece um contraste com o orgulho, não com a sabedoria, e deixa claro que o seu alvo de crítica não é tanto a sua incompreensão dos Utopianos mas sim os seus valores e hábitos errados. De facto, em termos de diálogo cultural e desafiando a intenção satírica, os Utopianos também têm esquemas cognitivos, os quais, sob as mesmas circunstâncias em termos de diferenças culturais, acabam por ser mal aplicados. Apesar da mensagem didáctica de que "o hábito não faz o monge" e a exposição satírica do estilo de vestir europeu, o facto é que os Utopianos cumprimentam as pessoas erradas.

Na verdade, os Utopianos querem cumprimentar sempre os embaixadores não mostrando respeito pelos seus servos, tal como os Anemolianos querem impressionar os Utopianos e não ofendê-los ou embaraçá-los. Não admira, pois, que em breve, logo que tanto os Anemolianos como os Utopianos mudam os seus padrões de comportamento, a incompreensão desaparece.

Com base nesta análise, gostaria de apresentar a minha tese: num diálogo real (na presença de ambos os interlocutores) a verdadeira incompreensão cultural constitui apenas um obstáculo temporário fácil de eliminar em termos de uma boa base de comunicação.

Cognitivamente as verdadeiras incom-preensões culturais são simples casos de má interpretação de informação, com origem em enciclopédias diferentes.

É material autêntico para uma comédia tanto em literatura como na vida real, desde que não se tornem instrumentos de grandes manipulações de poder, onde uma das partes abusa da ignorância da outra ou lhes impõe as suas conceptualizações.

Tendo em conta que a leitura e a inter-pretação são, no melhor dos casos, diálogos deficientes (um diálogo conduzido na ausência de um dos participantes e mediado por um texto escrito) seria prudente assumir que a leitura de textos constituiria um obstáculo ainda mais sério num esquema de comunicação bem sucedido. Devido à ausência do autor, que é neste caso o emissor codificado através do texto literário, o leitor é incapaz de detectar acepções erradas e verificar a validade de um determinado tipo de interpretação. Contudo, e precisamente porque a ausência do autor é comum a todas as situações de leitura, as diferenças culturais não constituem qualquer tipo de problemas interpretativos.

Em geral, a reciprocidade entre texto e receptor pode ser descrita em termos de interacção entre apresentações textuais — cuja intenção é elicitar do receptor uma determinada resposta (por exemplo, conceber Hamlet como uma figura trágica), e os modelos cognitivos que estão envolvidos no seu processo. Há quatro tipos de modelos cognitivos: informação linguística; conceitos culturais (os vários atributos de um conceito tal como água, a cor púrpura, ou o Outono por exemplo, e as suas funções culturais concomitantes); estruturas intertextuais (de acordo com a terminologia de Eco): conhecimento da directiva pragmática sob a forma da indicação de um género tal como a ficção científica ou um poema lírico, o conhecimento de uma determinada data histórica, imagens literátias, etc.; e estruturas ideológicas sob a forma de convicções políticas, normas estéticas, etc.

Em termos do processo de leitura não há uma verdadeira diferença entre problemas hermenêuticos causados pelo repertório heterogéneo de uma cultura — da qual um escritor pode ou não estar consciente — e aqueles criados pelo encontro inesperado de dois repertórios culturais. Um leitor poderia activar um modelo cognitivo errado devido a um determinado número de razões, sendo a ignorância cultural, dentro de todas as probabilidades, a menos importante. Se o leitor tiver consciência da presença dos códigos de uma outra cultura poderá ter mais cuidado nas suas conjecturas. A desconsideração de potenciais diferenças culturais é quase sempre mais o resultado de motivação psico-ideológica do que falta de conhecimento. Um estudo comparativo intercultural da recepção de vários leitores de um determinado texto seria, creio eu, uma forma excelente de estudar tanto os universos cognitivos do processo de interpretação e as particularidades das diferenças culturais do próprio texto.

Gostaria de ilustrar os meus argumentos teóricos e metodológicos apresentando os resultados de dois desses estudos. O primeiro centra-se na resposta de leitores reais da seguinte descrição:

"[...] um puro beduino com a sua tez castanho escura, tão seca quanto as areias da Península Arábica, a sua típica curvartura semítica do nariz como o bico de um falcão."2

Anton Shammas, um poeta contem-porâneo, romancista, professor de literatura na Universidade de Michigão, israelo-palestiniano, publicou na revista "Politika" um ensaio intitulado In the Capering Light of Odessa on the Yarkon3 no qual ele usa o poema para provar o argumento que a hegemónica cultura israelita tem sido, é e será sempre desdenhosa relativamente à região na qual se encontra e à sua cultura.

No contexto deste manifesto ensaio político, Shammas menciona o "beduino puro, a sua tez castanho escura tão seca/ Quanto as areias da Península Arábica" como o ponto no qual "algumas luzes vermelhas começaram a tremeluzir" (p. 15), o "típico nariz semítico" como o iniciador de alguns "pensamentos pecaminosos sobre o anti-semitismo judaico" (idem, ibidem).

A minha recepção inicial do poema em geral, e desta citação em particular, foi muito diferente. Eu li o excerto como uma representação do beduino nativo, o herói romântico das minhas histórias de criança, que era alguém com o deserto e os seus nobres animais: o cavalo árabe e o falcão. Obviamente que o meu repertório de estereótipos, os seus atributos pertinentes e o seu estatuto cultural tal como os de Shammas, inclui pelo menos dois esquemas (modelos cognitivos) de interpretar o nariz semítico: o semítico (ou mesmo mediterrânico) com uma conotação positiva4 e o anti-semítico com uma conotação negativa tanto na sua cultura árabe como na minha, a judaica. Como é óbvio cada um de nós escolheu estimular um esquema diferente — aquele que seria menos provável de ser escolhido em termos das nossas experiências culturais.

Tentando compreender o que é que controla o mecanismo de escolha, e em particular o papel das diferenças culturais em si, perguntei aos participantes desta experiência5 leitor-receptor, para responderem no final à seguinte questão: "De que forma é que os 'finos lábios' e o 'curvo nariz semítico' do califa se encaixam na vossa interpretação político-ideológica do poema?"

Alguns dos participantes menos experientes, incluindo a maior parte dos árabes, não viu nada de peculiar na descrição do califa. Na sua interpretação inicial do poema eles ou incluíram o nariz semítico nas suas paráfrases ou ignoraram-no completamente. Quando se lhes pediu especificamente para o comentar, disseram apenas que o califa é apresentado como um beduino típico.

A maior parte dos participantes, contudo, partilhava da noção de que o nariz semítico não é uma descrição inocente tal como se fosse apresentado com um nariz largo, direito ou bonito (se é que alguma destas designações é inocente num outro contexto) mas que estimula um estereótipo. Se o repertório de estereótipos do receptor incluir mais do que um que possa ser estimulado no contexto, então a escolha é ideológica. Desta forma, os receptores que pertençam à esquerda sionista (cujos interesses acabam por ser melhor servidos não lendo o poema em termos racistas) escolhem os estereótipos positivos quando os conhecem. Os dados dos participantes relativos à idade e ao local da sua escolaridade foram particularmente importantes para determinar a provável eficácia dos estereótipos positivos.

Quando o repertório não oferece quaisquer alternativas, a manipulação ideológica substitui a escolha ideológica. Contudo, a manipulação ideológica também acaba por ficar limitada pelo contexto. Um receptor que consegue tratar a imagem estimulando somente o estereótipo semítico-árabe, pode tratá-la de várias outras formas. Escolher um valor cultural apropriado é um desses mecanismos. É possível utilizar os estereótipos de forma positiva; assim os que precisavam de um califa encantador e poderoso escreveram: o nariz pode estar relacionado com o poder e o orgulho através da sua comparação com o bico de uma ave de rapina. É também possível usá-lo de forma negativa invocando um outro código cultural: a noção de que o estereótipo em si está errado, uma vez que retira ao indivíduo a sua individualidade. Os receptores cujos interesses serviam esta perspectiva utilizaram esta estratégia.

De igual modo, um receptor que tem acesso somente a estereótipos anti-semíticos (i. e. antijudaicos) tem que os estimular por forma a interpretar o texto e, não podendo negar os seus atributos negativos, consegue controlar o seu significado. A manipulação ideológica também funciona através da atribuição de funções. Nesta experiência o uso de estereótipos anti-semíticos foi explicado em termos de duas funções contraditórias: desumanizar e deslegitimar os árabes por um lado, e mostrar, por outro, que árabes e judeus são semelhantes e portanto tudo o que é bom ou mau no califa é atribuível também aos judeus. Neste caso, como com os restantes participantes judaicos, aqueles que pertencem à extrema direita fizeram as mesmas escolhas e executaram as mesmas manipulações do que aqueles que pertencem à esquerda não-sionista.

Aparentemente ambos precisam de ler o poema na sua vertente racista, contudo um grupo aclama-o devido às suas alegadas ideias, enquanto que o outro usa a mesma interpretação para os condenar. Os árabes politicamente conscientes também usaram a opção racista quando tiveram essa hipótese. Tal como já referi, somente com os receptores menos experientes, tanto entre os árabes como entre os judeus, a escolha recaiu em esquemas que reflectem diferenças culturais.6

O meu segundo exemplo é o resultado de uma experiência pessoal e não de uma experiência enquanto tal. Contudo, e tendo em conta que engloba um diálogo deficiente (i. e. a minha interpretação de um determinado texto) e também um pleno diálogo (o autor estava presente e respondeu à minha leitura), parece-me que pode ser usada para consubstanciar as minhas teorias no que diz respeito à relativa pouca importância das diferenças culturais nas interpretações literárias.

Em Maio de 1995 eu participei num diálogo cultural tripartido, cujos participantes eram escritores israelitas (judeus e árabes), palestinianos e alemães. Eu funcionei como moderadora numa sessão na qual o poeta palestiniano Sami Al-Kilani leu o poema que transcrevo com uma tradução minha e que foi aceite pelo autor.

SAUDAÇÕES DO NAKEB

Sami Al-Kilani

A caravana do deserto avança sobre os lábios

[da tua ferida

As bossas choram de calor ardente

Os cascos gemem de dor

Da errância tsumud7 arrancas

Kassida8 atrás de kassida

O cameleiro enche o peito

De paciência

Da tua dolorosa ferida

A sombra espande-se sobre as suas cabeças

Iluminando a sua cabeça escaldante

O calor escaldante do Nakeb9

Cameleiro, diz aos nossos

Que nós caímos vergastados debaixo do fogo

[do inferno

Sobre a chama da areia

No seio do Nakeb

Caímos como se fôssemos sementes eternas

Sementes que não ficarão sedentas, mesmo

Se a seca se apoderar das areias do Nakeb

Cameleiro, diz aos nossos

Que o corpo não é carne e osso

Através do qual a dor se espalha como aves de rapina

Nós propagamo-nos como se fôssemos camadas

[finas de aço

Avermelhado pelas brasas incandescentes da areia

Por baixo e por cima

Despejando-lhes

Aos pares, a três, aos milhares

Torrentes de orvalho

Torrentes do Nakeb

Cameleiro, dirige-te aos nossos

E regressa nos teus camelos com as imagens

Derrama as suas gotas de orvalho sobre a

[desolação do deserto

Para que se possa encher de erva

E cobrir de flores

Que possamos abraçar.

Descascaremos cebolas nos olhos do inimigo10

Quebraremos a espada do inimigo

E erguiremos o estandarte do Nakeb

Cameleiro, aquele é o nosso acampamento

A sua cabeça ergue-se como uma montanha

[cheia de esperança e glória

Ocultando a vista do cárcere e dos carcereiros

Humilhando-os

Vem ter connosco e desfaz-te das penosas

Pilhas de imagens

Em troca das quais nós ofereceremos pedras preciosas

Transportando o emblema do Nakeb

Cameleiro, dirige-te a Zoia

Arranca das suas faces e olhos primaveris

Um beijo

Que passe como uma maravilhosa brisa

Nada mais doce existe

Vem, devagar

O fardo é leve e o seu preço alto

Aperfeiçoa a aridez do deserto

Enche a desolação de generosidade

E o sorriso vai encher...

Os céus do Nakeb.

Ao ler o poema pela primeira vez li-o como um manifesto texto ideológico no qual a recuperação do deserto é um objectivo e um emblema de uma luta nacional pela independência. Da mesma forma interpretei a terra ressequida do Negev como o receptor da primeira estrofe. Visualizei a ferida sob a forma de uma terra ferida e cheia de fissuras — uma imagem comum do Negev na cultura israelita. Interpretei a "errância tsumud" como um oásis e a caravana como parte integral de um deserto estereotipado. A contradição entre as conotações positivas do estereótipo romântico e o sofrimento atribuído no poema aos habitantes do deserto foi fácil de resolver. São, melhor dizendo, representantes de uma outra cultura, uma cultura que encara o deserto não como a sua herança natural com a qual se tem que aprender a lutar, mas um inimigo contra o qual se deve declarar guerra. Consequentemente, estes novos habitantes são simultaneamente colonos que cultivam a terra e soldados conquistadores. Esta dupla identidade motiva a combinação destes dois campos semânticos opostos, por um lado o ardente e doloroso campo de batalha, e por outro o jardim florido onde corre uma brisa húmida. Isto explica a transformação das faíscas semeadas em sementes que conseguem suportar a seca e o aço em camadas transformado em torrentes de orvalho. A última vitória do colono sobre o deserto encontra expressão na substituição do riso na estrofe final pelos gritos e gemidos da abertura.

Esta leitura do poema não é de forma alguma o resultado de um processo esmerado de interpretar cada elemento semântico por forma a que possa ser cuidadosamente ligado aos outros. Também não foi o resultado de um esforço de adivinhar o que é que o escritor poderia querer dizer. Foi uma primeira recepção baseada no estímulo de modelos literários e outros culturais, estruturas cognitivas que funcionaram como hipóteses organizacionais.

A cultura israelita hebraica fornece pelo menos três modelos nos quais as várias imagens do poema se podem enquadrar no processo de interpretação.

1. A TERRA SECA COMO UMA PESSOA SEDENTA

Provavelmente a imagem mais popular que prevalece nas canções populares e que consiste na apresentação do Negev como uma pessoa sedenta implorando água ("Já ouviste dizer como no Negev/ A terra que confina com os céus/ Cada torrão de terra está sempre a implorar/ Por favor, dêem-nos água!// Água, água!/ Dêem-nos água! Quando ansiamos por água;/ Temos sede, quem nos matará a sede?/ Quem nos dará água?").

2. A TRANSFORMAÇÃO

Numa imagem paralela a terra seca torna-se num bonito jardim e os grãos de areia em flores a florir sem a laboriosa intervenção dos pioneiros. A transformação do deserto acontece de forma miraculosa: os pioneiros executam a dança nacional (Horah) e "De súbito, milhares de flores florescem cobrindo a face do deserto".

A forma miraculosa como o deserto floresceu, tal como a imagem da água que de súbito corre nos leitos secos dos rios é uma imagem antiga. Já na Bíblia hebraica esta imagem está simbolicamente relacionada com um renascimento nacional. Não surpreende, pois, que a seguinte selecção de versículos bíblicos se tivesse tomado uma música popular no Israel de hoje: "A terra selvagem e seca rejubilará/ O deserto rejubilará e florirá;/ Florirá abundantemente como o açafrão,/ E rejubilará de alegria e cantará (Isaías, 35, 1)/ Porque as águas irrompirão a terra seca e fluirão no deserto" (idem, v. 6).

3. O DESERTO COMO INIMIGO

Outra imagem frequente é a da guerra entre o deserto e o colono. Dominando o discurso político do período dos pioneiros, as metáforas militares de conquista da desolação invadem também o discurso literário. Uma canção popular dos anos 30 conta a história da construção de uma estrada sobre as dunas de areia nestes termos: "O campo escaldante está quente/ A mão sangra;/ Desta forma/ O homem luta com a terra estéril."

A facilidade com que a estrutura cultural sionista poderia absorver este poema, embora tivesse sido escrito por um poeta palestiniano cuja atitude relativamente ao deserto, creio, deve ter sido bem diferente, levou-me a concluir que o poema foi um produto de interacção cultural. Eu presumi que o poeta tivesse assimilado os modelos hebraicos e escreveu um poema político utilizando um Negev simbólico, um calor simbólico, e uma seca e um sofrimento simbólicos. Enganei-me. Kinali não foi educado em Israel e a sua relação com a literatura israelita era algo limitada. Ao contrário dos poemas hebraicos que eu citei, este é um poema seu; político não por virtude de um discurso hegemónico mas por virtude da situação, do facto de que a sua experiência foi a da sua geração, a do seu povo.

Na sua reação à minha leitura, o poeta lembrou-me que o campo de detenção onde esteve prisioneiro quando o poema foi escrito se localizava numa parte desoladora do Negev; que não havia água; que o efeito rejuvenescedor da brisa ao anoitecer era uma realidade e não uma metáfora. Sem negar a mensagem política do poema, Kilani insistiu na potencial identificação simbólica do fresco deserto a florir com alívio pessoal, com uma visão de paz e de felicidade.

Tendo este factor em consideração foi possível visualizar o verso "os lábios da tua ferida" sob a forma de lábios ressequidos; interpretar o uso da segunda pessoa como sendo o poeta a dirigir-se a si próprio; relacionar este recurso poético tradicional com outras tradições da poesia árabe (que eu conheço na sua expressão medieval através do poeta hebraico Al-Andalouse) — o lamento do amante no exílio, por exemplo. A activação de um dos atributos fixos deste género temático — a descrição do anoitecer como se fosse um camelo a espreguiçar-se — permitiram-me relacionar a primeira estrofe com a informação biográfica de que o poema foi escrito ao anoitecer quando o poeta olhava o céu.

Todos estes elementos formaram parte das várias formas de recepção iniciais dos palestinianos e dos árabes israelitas, tendo-se tornado parte da minha leitura numa fase posterior do diálogo entre mim, o poeta e outros leitores. Evidentemente, mesmo sabendo que o poema tinha sido escrito quando o poeta esteve detido num campo prisional no Negev, eu escolhi — inconscientemente — ignorar as opções interpretativas, relacionando os elementos textuais com a experiência individual de um prisioneiro que expressa a sua dor e as suas saudades. Eu precisava da reprovação do poeta para me abrir os olhos para outras hipóteses. Mais do que nunca estava preparada para ouvir a voz do autor por ser um diálogo intercultural. De outra forma eu teria mantido a posição, frequente no Ocidente, que uma vez que o poema se torna texto o seu autor é somente mais um dos seus leitores.

Serão as diferenças culturais responsáveis pela minha miopia inicial?

Não propriamente. Tal como demonstra o meu primeiro exemplo, a interpretação do nariz semítico tanto como um atributo positivo de identidade racial, ou como caricatura malévola, tem pouco a ver com as diferenças culturais. Tal como na referida experiência os leitores estavam motivados pelas suas necessidades psico-ideológicas ao escolher um traço cultural em particular de um repertório mais vasto, assim também eu fui motivada nesta ocasião. O texto permitiu uma leitura que sublinhou as semelhanças entre o poeta e eu própria. O acesso mais fácil que eu tenho aos meus traços culturais deveria ter sido, no meu caso particular, compensado pela minha experiência na crítica literária e pela informação disponível. Mas isso não aconteceu.

Este estudo comparativo intercultural da recepção dos leitores revela então alguns universos de leitura e de interpretação.

O intertexto ideológico (ou seja, a visão biologicamente induzida do mundo e a sua relação com o mesmo, bem como os interesses subjectivos ulteriores conhecidos e desconhecidos) é a estrutura interpretativa mais importante. Isto é evidente na presença da tematização ideológica já num estádio inicial do processo de leitura, e, mais significativo ainda, nas interpretações desses elementos que estão abertos a escolhas e manipulações ideológicas. Sempre que é dada uma hipótese de escolha hermenêutica a um leitor (i. e. o contexto permite a escolha de mais do que um significado de um elemento polissémico [intersubjectivo] codificado) esta é feita pela estrutura cognitiva ideológica intertextual. Os conceitos culturais são importantes, embora subjugados tanto às estruturas ideológicas como às hermenêuticas. As estruturas polissémicas parecem ser mais importantes do que claramente definidas, porque fornecem ao leitor opções que este pode escolher. Um diálogo literário intercultural alarga o campo polissémico de um texto. Quanto a isso, tal como na forma de interpretação, não é diferente de outros diálogos deficientes.

Comunicação apresentada no Encontro Internacional "

Diálogo Cultural e Dificuldades de Entendimento",

organizado pelo Instituto Cultural de Macau, DEIP,

e realizado em Macau em Outubro de 1995.

Tradução do original inglês por Custódio Martins;

revisão de Júlio Nogueira.

NOTAS

1. MORE, Thomas, Utopia, trad. H. S. V. Ogden, 1949, publicada em The Norton Anthology of English Literature, rev. ed., New York: W. W. Norton, 1968.

2. Esta descrição surge no poema "Direcções" pelo poeta israelita Moshe Dor. Foi publicado a 23 de Novembro de 1990 no suplemento literário do diário israelita com maior número de vendas, "Yediot Achronot". O estudo comparativo da recepção estava relacionado com o poema no geral, e está descrito na íntegra na minha comunicação "Cognitive Poetics and the Experimental Study of Literature in Literary Pragmatics", apresentada no Congresso FILIM em Brasília em Agosto de 1993, e disponível nas Actas. A tradução para o inglês é minha.

3. SHAMMAS, Anton, In the Capering Light of Odessa on the Yarkon, "Politika", Set. 1991, pp. 14-17. Todas as citações foram traduzidas por mim. A referência às páginas é dada no texto. A cidade russa de Odessa no Mar Negro era um importante centro de actividades literárias judaico, hebraico e sionista no virar do século. O Yarkon é um pequeno rio em Telavive. A combinação simboliza a alegada orientação leste-europeia do movimento sionista e do estado de Israel. "Politika" é órgão literário da esquerda sionista.

4. A origem "oriental' ou colonial deste estereótipo não o torna, só por si, um elemento meramente do discurso colonial. As coisas eram mais complicadas para os escritores judaicos que o usavam, uma vez que pertenciam a um grupo minoritário sob a mesma regra estrangeira do que os Beduínos e tentavam tornar-se nativos... Eu também afirmaria que o nariz semítico tinha uma conotação positiva nos países mediterrânicos antes do desenvolvimento do discurso colonial. Para o provar posso citar imagens verbais e visuais de aristocratas romanos e de magnatas italianos da Renascença.

5.200 pessoas participaram na experiência. 62 questionários dos alunos do primeiro ano da Faculdade de Letras ainda estão a ser analizados. Os restantes consistem dos seguintes grupos: 73 alunos da escola secundária dos kibbutzim (todos de origem judaica); 42 alunos da escola secundária que pertencem ao movimento juvenil judaico-árabe (13 declararam ser israelitas de ascendência judaica; 29 identificaram-se como árabes, israelitas de origem cristã ou descendentes de casamentos mistos); 11 consultores do mesmo movimento juvenil (7 judeus, 4 árabes); 11 licenciados que participaram no seminário no qual este trabalho teve início. A origem dos participantes explica a elevada disparidade na sua distribuição política. Também é importante referir que a noção de direita e esquerda pode significar coisas diferentes tanto na comunidade árabe como na comunidade judaica. O fosso entre a esquerda palestiniana e a esquerda sionista, que é o tema central do artigo de Shamman, é também proeminente nas respostas.

6. Uma perfeita compreensão desta imagem e do seu papel em estimular um estereótipo e a reacção em cadeia ideologicamente controlada por este estímulo requer um estudo cognitivo genuíno. É necessário descobrir quão saliente é o nariz semítico enquanto atributo de um determinado estereótipo. Será que pessoas pertencentes a uma mesma comunidade cultural, como os participantes (ou os próprios participantes), reagiriam da mesma forma ao retrato Nobre Renascentista de nariz semítico? Quando é que os judeus estimulariam a sua estrutura anti-semítica noutros contextos que não a apresentação caricaturada de um judeu? Como é que os árabes reagem a esta característica em vários contextos descritivos? Estes são exemplos do problema que o estudo cognitivo do conceito estereotipado procura responder. Este estudo ainda não está terminado.

7. Tsumud em árabe: sobrevivência relacionada com a resistência ligada à terra.

8. Kassida é um termo da poesia árabe: um poema intencional; um longo poema métrico com um prólogo; uma carta escrita em rima. Durante as longas viagens da caravana estes longos poemas eram cantados pelo cameleiro.

9. Nakeb é o nome árabe para o extremo sul de Israel; em hebraico é Negev.

10. Provérbio do folclore palestiniano usado em resposta a um desafio.

* Doutora em Literatura Comparada pela Universidade de Berkeley, dirige o Instituto Porter da Universidade de Telavive.

desde a p. 47
até a p.