Intervenção

Palavras do Presidente do ICM, Jorge Morbey, na Sessão de Encerramento das 'Jornadas de Reflexão sobre a Cultura em Macau. Diagnóstico. Alternativas' (3 de Julho de 1988).

Chegam hoje ao seu termo os trabalhos das I Jornadas de Reflexão sobre a Cultura em Macau, levadas a cabo no âmbito da Comunidade Chinesa do Território.

Em Macau, como por todo o Mundo, vai despertando o interesse pelas questões ligadas ao desenvolvimento cultural. Este movimento vai contando com a adesão de audiências que progressivamente se alargam e se interessam pelo debate das questões culturais e no encontro de soluções para o Sector da Cultura.

Afirmei nas palavras que proferi, ao iniciar as funções que desempenho no Instituto Cultural de Macau, que desde a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais realizada em Veneza, em 1970, o fenómeno mais importante da política cultural tem consistido no alargamento do seu campo de acção, quer na ordem interna dos Estados, quer na esfera internacional. Esta tendência tem-se mantido sem alteração após a realização da MUNDIACULT, em Agosto de 1982, na cidade do México.

Num mundo onde os recursos económicos são cada vez mais escassos e onde a segurança diminui assustadoramente, o movimento cultural tem vindo a desenvolver-se e a expandir-se. As instituições sociais - de base territorial, de defesa de interesses de classe, com fins lucrativos, etc. - vêm descobrindo uma dimensão cultural na sua actividade que vai dando corpo a uma política cultural da Sociedade, para além da política cultural do Estado.

A evolução mais recente no mundo fundamenta a esperança de que num futuro não muito distante se confira prioridade à Cultura, colocando-a no centro da vida do Estado e da Sociedade, como foi normal acontecer em outras épocas da História da humanidade.

O mundo dos nossos dias oferece um quadro social em que, novamente, as razões culturais estão na génese dos conflitos e das alianças. Por essa razão, o cultural e o social convergem cada vez mais.

É na prioridade à Cultura que se encontrarão os principais parâmetros dos modelos de desenvolvimento, quando a economia e a política se tornam assustadoramente instáveis.

É, outra vez, na cultura que se encontra a chave da mudança e o principal horizonte terreno da libertação do homem, quando é visível uma vontade generalizada de recriar o mundo e de promover a reidentificação humana face a esse mesmo mundo novo.

O mundo em que vivemos balança entre o sonho de um novo renascimento e o pesadelo de uma guerra de extermínio, ou seja, entre a inteligência dos renascimentos culturais e o suicídio militar ou económico. E é intuitivo que quanto mais ameaçada está a paz, mais valioso parece tornar-se o mundo e, em consequência, mais empenho se coloca na defesa do património cultural mundial.

Volvidos pouco mais de três anos, mantém-se actual, em termos universais, o quadro que então se traçou.

No caso de Macau, a década de 80 registou um desenvolvimento cultural assinalável e sem precedentes e que é devido, sem dúvida, ao estatuto político e legal que o Governo entendeu reconhecer à Cultura e que se traduziu na criação do Instituto Cultural de Macau, em 1982, na definição anual de linhas de Política para o Sector e na afectação de recursos financeiros do próprio Estado que passaram a atingir níveis equiparáveis aos dos países mais desenvolvidos, a partir de 1987.

Território caracterizado pela existência de duas comunidades distintas e autónomas do ponto de vista sócio-cultural, separadas pela evidência da barreira linguística e que, coabitando o mesmo espaço territorial exíguo não encurtaram a distância cultural em que, fisicamente, a geografia colocou a China e Portugal, com escassas áreas de interesse comum na criação e expressão artística e cultural, as questões da Cultura em Macau assumem características complexas e ímpares no Mundo.

À entrada da última década que antecede o terceiro milénio, aprazada que está a transferência da Administração de Macau — de Portugal para a R. P. China — para o final do penúltimo ano do nosso século, determinada pela vontade política dos dois Estados e expressa na Declaração Conjunta, recai sobre a população de Macau o desafio de preparar o futuro e de para ele encontrar as melhores soluções no âmbito das questões que se colocam face à transição.

Não se trata de tarefa fácil tendo em conta que a maioria da população que é chinesa, e que tem tido uma escassa intervenção na Administração de Macau, terá de fornecer a maior parte dos quadros da Administração da futura Região Administrativa Especial.

Torna-se por isso de premente urgência e necessidade dar corpo à orientação recentemente produzida por Sua Excelência o Governador visando a implementação de medidas que favoreçam a acelerada integração nos quadros da Administração de Macau de chineses e de portugueses, na primeira linha dos quais hão-de estar os macaenses, que tenham por projecto de vida servir Macau para além da transição e aos quais, para além dos requisitos técnico-profissionais exigíveis em cada caso, há-de ser necessário que sejam bilingues nas formas orais e escritas do chinês e do português.

A Administração de Macau iniciou recentemente um esforço apreciável neste sentido, através de alguns dos seus Serviços, que não pode abrandar e que certamente vai começar a traduzir-se na progressiva substituição dos quadros ao seu serviço que não reunam as condições indispensáveis para assegurar o seu funcionamento durante e após a transição.

Face à complexidade dos problemas que se suscitam não se vê que outro caminho mais seguro possa a Administração seguir que não seja o de dar voz aos próprios administrados.

Como não pode deixar de ser, a nossa preocupação centrou-se, por dever de ofício, no Sector que nos está confiado: a Cultura.

Por isso que se tenham procurado criar as condições para que se abrisse um amplo debate que permitisse uma reflexão profunda e o mais extensa possível sobre as questões da Cultura em Macau, quer em termos de fazer o seu diagnóstico, quer na perspectiva de se apontarem alternativas.

Empenhou-se neste projecto o Instituto Cultural de Macau que se reservou o papel de entidade apoiante e que escrupulosamente respeitou a completa independência dos organizadores, dos intervenientes e da condução dos trabalhos que hoje terminam.

Não se impuseram ou sequer sugeriram quaisquer restrições. Partiu-se da regra base de que ninguém nem nenhuma ideia poderiam ser excluídos. Pelo contrário, procurou-se estimular a participação daqueles que têm assumido atitudes mais críticas em relação à Política de Cultura do Governo e ao modo como o ICM a tem vindo a executar.

Entre a Comunidade Chinesa de Macau a ideia foi entendida no seu real alcance, tendo sido possível a reunião de cerca de centena e meia de cidadãos que deram o seu contributo e que consta da documentação final destas Jornadas.

O mesmo, infelizmente, não sucedeu, até agora, entre a Comunidade Portuguesa. Se se aceitarem como representativas dela as opiniões dos cidadãos que intervieram nas reuniões embrionárias do que poderia ter sido, e poderá vir a ser a secção portuguesa das Jornadas de Reflexão sobre a Cultura em Macau, há-de concluir-se que a maioria não desejou que prosseguissem.

Vemos nisso um sinal de mau augúrio para o futuro da Cultura Portuguesa em Macau. Temos afirmado que a Cultura não está isenta das regras do mercado e que, por isso, não haverá produção e consumo de Cultura Portuguesa onde não houver produtores e consumidores dela.

Os portugueses com trinta anos ou mais têm sido espectadores impotentes da morte progressiva a que foi condenada a Cultura Portuguesa na Índia onde, durante séculos, se estruturou e floresceu uma poderosa Comunidade de Cultura Indo-Portuguesa.

Dir-se-á que aí se poderão assacar as responsabilidades ao Poder Político que governava Portugal durante a década de 60 que não soube ou não quis entender a função substantiva da Cultura face à função adjectiva da Política.

Em Macau, o quadro político definido pelos Estados Chinês e Português no âmbito da Declaração Conjunta, fornece condições que propiciam a permanência de uma Comunidade de Cultura Portuguesa para além da transição.

Desta feita, a decisão política acertada que faltou no exemplo antes citado só será eficaz, se permanecerem condições económicas e sociais com origem em Macau que associem interesses da China e de Portugal e se constituam no pólo aglutinador da futura Comunidade de Cultura Portuguesa de Macau.

Desejaríamos sinceramente que o futuro venha a desfazer qualquer sombrio prognóstico sobre a presença cultural portuguesa em Macau e que as culturas em presença se possam ir entrelaçando e enriquecendo reciprocamente, em reforço da identidade cultural autónoma de Macau.

Assim, a China e Portugal ficarão culturalmente mais ricos e mais valioso será o Património Cultural Universal.

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