Intervenção

Viagens Marítimas Portuguesas e Chinesas: Encontros e Desencontros

A. Mesquita Borges*; M. Bairrão Oleiro**

Integrado nas Comemorações dos Descobrimentos Portugueses realizou-se nos dias 21 a 24 de Setembro de 1988, no Porto, o Congresso Internacional "Bartolomeu Dias e a Sua Época".

O referido encontro teve por objectivo aprofundar os estudos sobre a acção de D. João II, no quadro da política de Quatrocentos, tendo o seu desdobramento por simpósios autónomos permitido um envolvimento mais directo e íntimo dos congressistas em áreas como o estudo das navegações, do comércio marítimo nas suas relações com a economia, da espiritualidade e missionação e, bem assim, da sociedade, cultura e mentalidades, temas desenvolvidos por cerca de quinhentos participantes de diversas nacionalidades.

Coincidindo com a abertura do Congresso foi inaugurada, na Casa do Infante, uma Exposição Bibliográfico-Documental, subordinada ao tema "A Rota do Cabo". Momento particularmente importante foi o da apresentação e lançamento das Actas do Seminário "Ciência Náutica e Técnicas de Navegação nos Séculos XV e XVI", edição conjunta do Instituto Cultural e do Centro de Estudos Marítimos de Macau.

As breves palavras de apresentação proferidas pelo Prof. Dr. Luís de Albuquerque, para além de realçarem a importância e mérito daquela iniciativa, no momento em que se comemoram os feitos mais significativos da Expansão Marítima Portuguesa, apelaram para a necessidade de serem promovidas outras actividades, por forma a explorar o potencial de informação ainda não totalmente investigado das Descobertas, em todas as partes do globo pelas quais a gesta portuguesa rasgou Novos Mundos ao Mundo.

Aquelas duas instituições de Macau fizeram-se representar no Congresso, tendo sido apresentado, na ocasião, o texto seguinte.

Mapas chineses de navegação astronómica

A simbólica presença dos representantes de Macau visa divulgar alguns dos resultados do encontro promovido naquele Território pelo Instituto Cultural e pelos Serviços de Marinha, subordinado ao tema "Ciência Náutica e Técnicas de Navegação nos Séculos XV e XVI", bem como apontar algumas das propostas constantes das Conclusões daquele Seminário, em ordem a propiciar futuras reuniões entre especialistas portugueses e chineses, no âmbito da cooperação cultural entre Portugal e a República Popular da China.

O Instituto Cultural e os Serviços de Marinha de Macau organizaram, em Novembro de 1987, um Seminário subordinado ao tema "Ciência Naútica e Técnicas de Navegação nos séculos XV e XVI", o qual reuniu participantes portugueses e chineses.

Este Encontro assumiu, do nosso ponto de vista, uma extraordinária importância, pois tornou possível um primeiro contacto entre especialistas de Portugal e da República Popular da China, que assim puderam não apenas trocar úteis informações sobre o tema em debate, como também delinear perspectivas de colaboração futura.

Os Descobrimentos Portugueses têm sido objecto, desde há muito, de estudos detalhados que se debruçam sobre as suas diversas vertentes; as fontes documentais que permitem alicerçar tais estudos são bem conhecidas e de acesso geralmente fácil, pelo menos para os historiadores ocidentais.

O mesmo, no entanto, não se passa em relação às grandes viagens marítimas chinesas, realizadas no século XV. Raros são os investigadores europeus que a elas têm dedicado a sua atenção, por força da barreira linguística e dificuldade de acesso aos arquivos documentais chineses.

Por tal motivo, as comunicações apresentadas no referido Seminário pelos professores das Universidades de Xangai e Pequim e pelos membros da Academia de Marinha, de Portugal, bem como o debate que se lhes seguiu, revestiram-se de grande interesse, uma vez que foi possível ultrapassar as dificuldades idiomáticas e obter algumas informações sobre as fontes documentais existentes na República Popular da China.

De forma necessariamente sintética, apresentaremos, de seguida, os principais tópicos focados pelos participantes no Encontro.

Uma das comunicações, de autoria chinesa, debruçou-se sobre a principal fonte documental existente para o estudo das relações entre a China e Gaoli (nome por que era conhecida, no séc. XII, a península da Coreia). Trata-se do "Mapa de Gaoli", escrito por Xu Jing, alto funcionário da dinastia Song do Norte, que descreve os hábitos e costumes daquele país, bem como as rotas marítimas seguidas, os conhecimentos náuticos e geográficos e as técnicas de navegação astronómica então utilizadas pelos navegadores chineses.

Segundo o autor da comunicação, é nessa obra que existe a mais antiga referência à utilização da bússola na navegação, sendo este instrumento utilizado apenas quando não era possível determinar a altura do Sol.

A partir do século XII, verificou-se um incremento no tráfego marítimo da China. Efectuaram-se viagens, com intuitos comerciais, ao Japão, Indonésia, Samatra e outras regiões asiáticas, impondo-se, nalguns casos, o afastamento da costa. Verificou-se, então, a necessidade de desenvolver as técnicas de orientação no alto mar.

No entanto, só no séc. XV foi levado a cabo um conjunto de expedições marítimas conduzidas de forma organizada, visando o conhecimento sistemático das regiões situadas a ocidente do Império do Meio.

Sobre essas sete expedições, comandadas pelo almirante Zheng He, incidiu a maioria das comunicações apresentadas pelos participantes chineses.

De acordo com a documentação referida sobre a sequência destas grandes viagens, terá sido a seguinte a cronologia das expedições efectuadas pelas armadas chinesas.

Em 1405, a primeira expedição levou os navios chineses à Indochina, Java, Samatra, Ceilão e Calicut.

Em 1407, aportavam a Cochim, após escala no Sião, no que terá constituído a sua segunda grande viagem.

A terceira expedição, em 1409, parece ter utilizado Malaca como base para se dirigir ao litoral Sudoeste da Índia e novamente ao Ceilão.

Na expedição seguinte, a frota chinesa foi dividida em diferentes grupos: enquanto alguns navios, partindo talvez de Ceilão, exploraram as Maldivas, o Golfo de Bengala e, posteriormente, chegaram a Ormuz, outros visitaram as "Índias Orientais".

Em 1416, novamente a armada de Zheng He se dividiu, tendo parte dos navios seguido para Java, Ryukyu e Bornéu, enquanto os restantes visitaram Adem e Mogadixo, atingindo por fim a costa norte de Mombaça.

As duas últimas expedições percorreram as regiões já conhecidas, tendo inclusivamente atingido Meca.

Em 1433 terminava, no entanto, a última grande expedição marítima chinesa, ao que tudo leva a crer por razões de política interna, dentre as quais era invocado o dispêndio de elevadas quantias de dinheiro, sem a respectiva contrapartida, o que terá forçosamente motivado o abandono daquelas actividades, por determinação do próprio poder imperial.

Estava encerrado, portanto, um período de 28 anos (1405-1433), durante o qual a China conseguiu projectar a sua imagem e poderio para além dos continentais limites geográficos do grande Império do Meio.

Julgamos de interesse estabelecer, neste momento, um paralelismo com o que na mesma época acontecia relativamente às viagens marítimas efectuadas pelos portugueses, em demanda de novos mundos.

Já hoje pode ser afirmado que, no Ocidente e numa perspectiva puramente tecnológica, as grandes viagens de descobrimento teriam sido possíveis logo em começos do século XIV, ou seja, cem anos mais cedo do que efectivamente veio a acontecer; de facto, os grandes inventos na ciência náutica e técnicas de navegação eram já do conhecimento dos portugueses, a avaliar pela convergência de instrumentos náuticos na Península Ibérica, trazidos, sobretudo, por árabes e genoveses.

A conquista de Ceuta, em 1415, constitui, contudo, o início do longo processo de exploração e alargamento territorial além-mar empreendido por Portugal.

As viagens efectuadas pelos navegadores portugueses durante o período em que as armadas chinesas sulcavam os mares orientais, ou seja, durante os anos de 1405 a 1433, são ainda em número reduzido, o que poderá explicar, de certa forma, a fase de desenvolvimento que aquelas ainda conheciam, em termos de motivações, objectivos e infra-estruturas adequadas, conquanto apoiadas pela intervenção directa de D. João I.

São conhecidas algumas dessas viagens, nomea-damente durante o período compreendido entre 1419 e 1433, das quais se destacam as viagens de Diogo de Silves aos Açores, Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo às ilhas da Madeira e Gil Eanes (1a viagem). Como é sabido, no entanto, este navegador só conseguiu dobrar o Cabo Bojador por ocasião da sua 2a viagem, em 1434.

Deve referir-se, contudo, que as viagens de exploração marítima portuguesa conheceram um grande impulso com a conquista daquela cidade do Norte de África, facto que se deveria prolongar até 1421, data presumível do início das tentativas para reconhecimento das terras para além do Cabo Não. Inexplicavelmente, porém, verifica-se um abrandamento naquela progressão até cerca de 1434, para além, naturalmente, da descoberta das ilhas da Madeira e dos Açores, respectivamente em 1419 e 1427.

Existe, portanto, uma "décalage" de cerca de dez anos relativamente ao início das expedições chinesas e portuguesas.

Assim, tendo em conta um total de três viagens (5a, 6a e 7a) efectuadas pelos navegadores chineses entre 1415 e 1433, verifica-se que os portugueses conseguiram realizar o mesmo número de expedições marítimas no mesmo período de tempo.

Após ter sido dobrado o Cabo Bojador, estavam abertas aos portugueses as portas do Atlântico Sul.

Volvidos alguns anos, quando Vasco da Gama, em 1498, chega à Índia, já os grandes navios de Zheng He há muito tinham deixado o Oceano Índico, o que impossibilitou um contacto directo entre os navegadores dos dois países.

Rotas das armadas de Zheng He, da primeira à sétima viagem.

Traçada paralelo das rotas de navegação de Zheng He e das actuais.

No entanto, as dificuldades que os navegadores chineses tiveram de enfrentar ao aventurarem-se em mar aberto, por rotas que lhes eram até então desconhecidas, foram, em alguma medida, semelhantes às que os navegadores portugueses mais tarde encontraram.

Tal como em Portugal, também estas grandes viagens marítimas obrigaram ao aperfeiçoamento da construção naval e da ciência náutica, nomeadamente no que respeita à cartografia e à navegação astronómica. A "Carta Náutica de Zheng He" constitui uma peça importante na evolução da cartografia náutica chinesa, pela quantidade e pormenor de informação nela constante. Por outro lado, obras de autores con-temporâneos, referem em detalhe os diversos instrumentos náuticos utilizados nas frotas de Zheng He, destacando-se a bússola e a "tábua de levar as estrelas", esta última eventualmente na origem das tavoletas da Índia utilizadas pelos portugueses a partir do século XVI.

Não deixa de ser tentador estabelecer os pontos comuns e as diferenças entre essas expedições chinesas e as viagens que os navegadores portugueses haveriam de empreender, alguns anos depois, em sentido inverso. Trata-se de um estudo nunca efectuado e que, obviamente, não cabe neste âmbito.

Os membros da Academia de Marinha, por seu turno, apresentaram comunicações sobre a náutica da época dos Descobrimentos.

A invenção pelos portugueses da navegação astronómica por alturas e os instrumentos naúticos utilizados a bordo das caravelas e naus foram detalhadamente descritos nos trabalhos apresentados no Seminário.

As adaptações necessárias no velame dos navios portugueses face às diferentes condições de navegabilidade no Atlântico, no Índico e no Mar do Sul da China (neste último caso, dando origem à Lorcha) foram também abordadas em pormenor, tal como as várias opções preliminares e fases de planificação por que passou o projecto de construção da réplica da caravela "Bartolomeu Dias".

Finalmente, no domínio da cartografia, foi retido o planisfério dito "de Cantino", como exemplo da influência oriental nos cartógrafos portugueses de inícios do século XVI.

A troca de informações entre os participantes no Seminário, o conhecimento recíproco, ainda que indirecto, de algumas fontes documentais sobre a naútica portuguesa e chinesa, uma primeira aproximação às influências mútuas na cartografia, nos instrumentos náuticos e nas técnicas de construção naval, foram os aspectos mais salientes deste Encontro, cujas conclusões apontam para o interesse em repetir iniciativas deste género.

De facto, a realização de novas iniciativas neste domínio foi uma das recomendações aprovadas pelos participantes no Seminário, realçando-se a ocasião particularmente importante para Portugal neste final de século, em que se comemoram os 500 anos dos Descobrimentos.

Esta inesgotável e ilustre página da história lusíada, pelo que representa de tentação, projecto e aventura, não deixa ainda hoje de constituir motivo para uma reflexão sobre as variadíssimas áreas em que os portugueses foram pioneiros na arte de navegar.

Consideramos importante, a este propósito, a declarada intenção dos investigadores chineses em aprofundar estes conhecimentos, o que naturalmente significa o seu interesse pela temática histórica portuguesa de Quinhentos. A recíproca vontade portuguesa em conhecer mais detalhadamente a história das navegações chinesas, deverá contribuir para um melhor aprofundamento desta faceta da milenária história da China que, como muitas outras, ainda agora começa a desabrochar.

A proposta apresentada nas conclusões do Seminário, no sentido da tradução de textos fundamentais, propiciadores de melhores reuniões, não deixará de ter o adequado acolhimento junto das instituições especialmente vocacionadas para o apoio à investigação que, para tanto, envidarão os esforços necessários à sua recolha, tradução e divulgação.

Aproveitamos a oportunidade para referir, a título de exemplo, algumas das áreas ainda não totalmente investigadas da temática dos Descobrimentos, permitindo-nos fazer eco do que recentemente foi afirmado pelo Prof. Luís de Albuquerque, um dos participantes portugueses naquele Seminário, acerca das muitas coisas que ainda há para estudar, em ordem a um completo aprofundamento da História da Expansão Portuguesa.

Destaca-se, dentre, aquelas, a história da cartografia, porquanto a investigação histórica tem privilegiado as pessoas que fizeram as cartas, mais do que um estudo exaustivo sobre o conteúdo daqueles documentos.

Outra área particularmente carenciada de investigação, é a dos roteiros que foram escritos na época dos Descobrimentos, já que não existe ainda um "corpus" dos roteiros portugueses dos séculos XV, XVI e XVII.

O encontro de culturas e o seu confronto é outro dos temas que ainda não foi estudado, nomeadamente no que concerne às repercussões que aqueles contactos tiveram na sociedade portuguesa. A docu-mentação existente sobre as viagens marítimas, constitui uma fonte de informação que poderia ser objecto de uma leitura antropológica, tentando extrair o seu significado e descobrir do seu contributo para um melhor conhecimento da aventura marítima portuguesa.

Qualquer estudo sobre os Descobrimentos Portugueses poderá ser empreendido, naturalmente, numa perspectiva cultural, política, científica ou técnica, mas certo seria que o seu objectivo ficaria aquém das expectativas. E isto, porque uma abordagem circunscrita apenas a estes aspectos enfermaria logo da exclusão da componente económica, de não menos importância. Na realidade, os estudos já efectuados sobre a economia dos Descobrimentos não esgotam, felizmente, esta interessante questão, a qual, refira-se, foi já objecto de magistrais teses e ensaios.

A diversidade e riqueza de temas ainda em aberto para a pesquisa histórica no âmbito dos Descobrimentos Portugueses, constitui um aliciante para qualquer investigador.

A este propósito, quaisquer iniciativas que visem enriquecer e aprofundar o conhecimento das histórias da China e de Portugal, naquilo que representem em termos de afinidade e convergência de interesses, serão com certeza bem sucedidas, na medida em que, para a sua efectivação, será possível contar com a participação das instituições de Macau, particularmente interessadas em contribuir para o seu bom êxito.

A privilegiada situação geográfica de Macau assume neste contexto, portanto, especial relevância, pois que a equidistância relativamente ao conhecimento que possui dos dois países, confere a este Território a função de centro simultâneamente aglutinador e difusor dos valores culturais em presença.

Ainda que do ponto de vista das relações e contactos marítimos entre portugueses e chineses se tenham verificado desencontros, estamos certos que as mesmas viagens marítimas - portuguesas e chinesas - constituirão hoje tema de encontros entre os dois povos.

* Licenciado em História. Instituto Cultural de Macau

** Licenciado em História. Centro de Estudos Marítimos de Macau

desde a p. 115
até a p.