Portugal e o Oriente

'VOANDO POR CIMA DAS ÁGUAS...'

Celina Veiga de Oliveira*,

A "Nau do Trato " Uma das muitas representações do "Barco Negro", registo do grande impacto que a chegada dos Portugueses teve no Japão de meados do Século XVI. Neste detalhe de um biombo de arte nanban, de seis painéis (Suntory Art Museum, Tóquio) representa-se a "Nau do Trato" no porto de Nagasaqui. Pintura de um artista japonês da famosa escola Kanō (fins do Séc. XVI, princípios do Séc. XVII).

"Seis horas da tarde do dia 25 do oitavo mês do ano onze de Tenmon; um grande barco chegou à praia de Nishimura, na nossa ilha de Tanega, com mais de cem pessoas a bordo. A língua era incompreensível. Entre os tripulantes, um letrado confucionista chinês, chamado Goho. Era chefe da aldeia de Nishimura um tal Oribenojo, que conhecia a escrita chinesa. Encontrou-se com Goho na praia e, com uma cana, escreveu na areia:

- De que país são os homens esquisitos que vêm a bordo?

- São nambam, bárbaros do Sul. Apesar de compreenderem grosseiramente como senhor e vassalo se devem comportar um com o outro, o seu comportamento e maneiras deixam muito a desejar. Assim, quando bebem, bebem muito, mas não usam chávenas. Quando comem, comem com os dedos, sem usar pauzinhos. Apenas seguem as suas emoções e desconhecem a sabedoria do comedimento. Diz-se ainda que, quando os bárbaros chegam a um sítio, imediatamente decidem aí permanecer. A julgar por aquilo que trouxeram, apenas comerciam aquilo que os nativos não têm. São pessoas inofensivas de quem nada temos a temer". 1

Nampo Bunchi, o sacerdote Zen da província de Satsuma (1555-1620), conta-nos assim a chegada dos Portugueses - os nambam, "bárbaros do Sul" - ao Japão ou, mais precisamente, a uma das ilhas do arquipélago, a de Tanegashima, que fica ao largo de Kiushú. A "Teppô-Ki", "Crónica do Mosquete", que foi escrita a pedido do Senhor de Tanegashima, Tanegashima Hisatoki, para perpetuar a memória de seu avô Tokitaka, constitui um precioso elemento de inspiração e consulta legado por aquele sacerdote.

A notícia da chegada ao Japão de tão estranha gente é levada a Tokitaka, senhor da ilha, que enviou doze "batteiras" a remos com o encargo de rebocarem o junco para o porto de Akaoji.

"(...) Havia a bordo dois oficiais nambam. Um deles chamava-se Murashukucha, o outro era Kirishitadamouta. Cada um deles trazia na mão um objecto de cerca de 2 ou 3 shaku de comprimento... "2

Este objecto logo interessou a curiosidade das gentes da ilha que, depois de algumas demonstrações, pareceram querer identificar-se com a sua utilização. Tokitaka mandou então chamar os "bárbaros" à sua presença e disse-lhes:

- "Não posso dizer que conheça bem esse objecto; por isso gostaria de aprender mais sobre ele.

O "Nanban-ji" (Templo dos Bárbaros do Sul) - pintura num leque, da Kanō Motohide, da lgreja dos Jesuítas, construída em Quioto de 1576.

- Se vossa Senhoria deseja aprender, faremos o melhor para lhe ensinar.

- Pensam que serei capaz de dominar o segredo?

- Apenas se conseguir a mente pura e clara, bem como um dos olhos apurado.

- Ter o pensamento claro é o ensinamento dos antigos sábios, e para isso fui ensinado. Se não se seguir o princípio de reflectir acima do céu, as acções e palavras serão contra as próprias opiniões. Para manter o pensamento correcto, aquele de que vós falais não pode ser outro senão este princípio. Mas para ver longe e largo não é suficiente ter apenas um dos olhos apurado. Porque apuram um dos olhos?

- É necessário ver com nitidez. Para ver com nitidez não é suficiente ver amplamente. Para ver as coisas nítidas o olhar deve ser aguçado. O olhar é aguçado apenas para ver nítido e mais longe. Por favor, tente compreender isto.

- Lao-Tse diz que observar um pouco é ver melhor. Será esse o princípio de que estão a falar?" 3

Foi assim que, não só Tokitaka, mas os Japoneses, entraram nos segredos do uso do mosquete, esse antepassado da espingarda, símbolo do avanço tecnológico do Ocidente sobre o Oriente. Este diálogo, entre os "bárbaros" do Sul e o senhor da ilha, iniciou os Japoneses na adopção de novas estratégias militares que contribuíram para pôr termo às sangrentas guerras civis que assolavam o arquipélago nipónico. A unificação do Japão conseguida com Oda Nobunaga e, sobretudo, com Hideyoschi Toyotomi, fica, definitivamente, a dever-se à introdução da espingarda pelos Portugueses no exército japonês.

Em 1543, chegam os Portugueses ao País do Sol Nascente, consequência do desenvolvimento natural das viagens em mar alto, iniciadas mais de um século atrás com a chegada às ilhas atlânticas.

O Portugal Quinhentista vivia a euforia das Descobertas, a revelação de novos continentes; e a entrada no Índico veio destruir a velha tese de Ptolomeu, segundo a qual o "mar Índico era assim como uma alagoa, apartado por muito espaço do nosso mar Oceano Ocidental que pela Etiópia meridional passa; e que entre os dois mares ia uma ourela de terra, por impedimento da qual para dentro, para aquele golfão índico, por nenhum modo nenhuma nau podia passar (...)" - como nos relata Duarte Pacheco Pereira, no seu roteiro "Esmeraldo de Situ Orbis".

Chegados à índia, os Portugueses abriram à Europa as rotas comerciais do Oriente, transformando Lisboa no cais do Mundo. Entre a capital do novo Império e a Índia, centro produtor de especiarias, inicia-se então uma intensa actividade comercial, que a Coroa Portuguesa controlava em exclusivo.

As velas de Portugal cruzavam os mares e aportavam a distantes paragens, por onde iam fundando feitorias destinadas à troca de produtos. Uma corrente comercial de notável dinamismo estabelece-se numa larga faixa geográfica desde as costas ocidentais do Índico à China, passando por Goa, Malaca e o arquipélago das Malucas. O domínio talassocrático dos Portugueses entra na Ásia das Monções...

A China dos Ming havia abandonado a sua política de expansão marítima e nos mares do Oriente não flamejava já o pendão do almirante Cheng Ho. As razões do abandono desta política não se mostram claras, embora a ele não devam ser alheios nem os ataques dos "piratas-anões" (wakos), do arquipélago dos Léquios (Japão), nem a insegurança causada a Norte pelas hordas de mongóis e dos nómadas manchus.

Na "Suma Oriental" de Tomé Pires, redigida em Malaca entre 1513 e 1515, encontramos a primeira referência por- tuguesa ao Japão.

"A ilha do Jampon segundo todos os chins dizem que é maior que a dos Léquios e o Rei mais poderoso e maior e não é dado a mercadoria nem seus naturais é Rei gentio vassalo do Rei da China tratam na China poucas vezes por ser longe e eles não terem Juncos nem serem homens do mar.

Os Léquios em sete oito dias vão a Jampon e levam das ditas mercadorias e resgatam ouro e cobre todo o que vem dos Léquios trazem os Léquios de Jampon e tratam os Léquios com os de Jampon em panos luções e outras mercadorias " 4

O Império do Sol Nascente vivia, então, o difícil período de Sen-goku-jidai - "país em tempo de guerra" - caracterizado por um enfraquecimento do poder pessoal do Imperador e pelas constantes lutas da irrequieta nobreza feudal pela posse de terras e de poder.

Fernão Mendes Pinto, um dos mais eclécticos homens do seu tempo - aventureiro, mercador, soldado, homem do mar, missionário e escritor - que se considera um dos três primeiros portugueses a pôr o pé em Terras do Japão, escreveu na "Peregrinação" - "livro singular, desvairado, excessivo e apaixonante" 5 - páginas de inexcedível exotismo e expressividade sobre a chegada dos Portugueses ao arquipélago nipónico.

Após um grande temporal, "(...) prouve a Nosso Senhor que vimos terra e chegando-nos bem a ela para vermos se dava de si alguma mostra de angra ou porto de bom surgidouro, lhe enxergámos da parte do Sul, quase ao horizonte do mar, um grande fogo, por onde imaginámos que devia de ser povoada de alguma gente que por nosso dinheiro nos prouvesse de água, de que vínhamos faltos. E surgindo nós no rosto da ilha em setenta braças, nos saíram da terra duas almadias pequenas em que vinham seis homens, os quais chegando a bordo, depois de nos fazerem suas salvas e cortesias a seu modo nos perguntaram donde vinha o junco, a que se respondeu que da China, com mercadorias para fazer ali veniaga com eles, se para isso nos dessem licença. Um dos seis nos respondeu que a licença, o nautoquim senhor daquela ilha Tanixumá, a daria de boa vontade se lhe pagássemos os direitos que se costumavam pagar em Japão, que era aquela grande terra que defronte de nós aparecia (...). Não havia ainda bem duas horas que estávamos surtos nesta calheta de Miaygimá, quando o nautoquim, príncipe desta ilha de Tanixumá, se veio ao nosso junco (...) e vendo-nos aos três portugueses, perguntou que gente éramos, porque na diferença de rosto e barbas, entendia que não éramos chins. O capitão cossairo lhe respondeu que éramos de uma terra que se chamava Malaca aonde havia muitos anos tínhamos vindo de outra que se dizia Portugal, cujo rei, segundo nos tinha ouvido algumas vezes, habitava no cabo da grandeza do mundo. Do que o nautoquim fez um grande espanto e disse para os seus que estavam presentes.

- Que me matem, se não são estes os chenchicogis de que está escrito em nossos volumes que, voando por cima das águas, têm senhoriado ao longo delas os habitadores das terras onde Deus criou as riquezas do mundo, pelo que nos cairá em boa sorte se eles vierem a esta nossa com título de boa amizade (...)". 6

Para apoio do seu tráfego comercial com o Japão, os Portugueses instalaram-se nas costas da China e, após algumas vicissitudes e desaires, encontraram em Macau o porto necessário ao desenvolvimento das relações comerciais entre o Império do Meio e o Império do Sol Nascente.

O diálogo nipónico, iniciado na pequena enseada de Nishimura, vai manter-se até 1639, assentando, nas suas linhas essenciais, em dois planos: um económico, outro religioso.

No plano económico, o incremento das relações comerciais promovido pelos Portugueses trouxe a Macau uma época de crescimento e de prosperidade, base do progresso e garantia de conservação da Cidade Mercantil.

No plano religioso, a expansão do cristianismo contribuíu para o estabelecimento de trocas culturais, devido principalmente, à notável obra de missionários jesuítas, cuja entrada no Império Nipónico, em 1549, se deve a S. Francisco Xavier.

A íntima correlação entre o comércio e a religião é explicitada pelo P.e António Vieira na sua "História do Futuro": "Se não houvesse mercadores que fossem procurar os tesouros da terra no Oriente e nas índias Ocidentais, quem transporia para lá os pregadores que levam os tesouros celestes? Os pregadores levam os Evangelhos e os mercadores levam os pregadores".7

Este belo documento iluminado, é a famosa carta de saudação, datada de Abril de 1588, de D. Duarte de Menezes, Vice-Rei da índia, para Toyotomi Hideyoshi, que entretanto decretara a expulsão dos Jesuítas. Foi apresentada pessoalmente por Alexandre Valignano, S. J., em Quioto, em 3 de Março de 1591 (60,6 x 76,4 cms.; Myõhõ, Quioto).

O esquema comercial era, basicamente, o seguinte: dos mares do Sul, traziam os barcos de Macau as célebres especiarias (pimenta, cravo, noz-moscada, canela) e iguarias finas (ninhos de andorinha, barbatanas de tubarão, cogumelos e algas marinhas) tão necessárias à requintada ementa de Cantão; aí eram trocadas pela seda, em rama ou manufacturada, de fina qualidade que, em seguida, ia para os portos do Japão, onde era transaccionada pela prata, "da mui que há em Japão ali mesmo nascida".8

Diz-nos Luís Gonzaga Gomes que "os fabulosos lucros que se alcançavam com essas transacções justificavam, plenamente, todos os riscos de demoradas viagens, através de tormentosos mares, infestados de ousados corsários de todas as raças. Por isso, o comércio com a China e o Japão passou a constituir, de 1550 em diante, um monopólio, sendo o direito para a sua exploração concedido pelo rei de Portugal ou pelo vice-rei da Índia, em seu nome, a um fidalgo que se distinguisse em serviços prestados à coroa ou à nação, com o título de Capitão-Mor das Viagens da China e do Japão que, por brevidade, passou a ser designado, simplesmente, por Capitão-Mor das Viagens do Japão. Este gozava do direito de ceder os seus privilégios a outrem, os quais efectuavam a viagem sem perda de qualquer prerrogativa. Com o tempo, as municipalidades conseguiram, igualmente, a mercê da concessão dessas viagens que eram, porém, postas em almoeda, para se empregar o seu produto na construção de fortificações (...). Mais tarde, essas viagens deixaram de ser concedidas como recompensa ou graça especial do Rei, para serem postas em arrematação pública, dispondo o arrematante do direito de fazer tais viagens por si ou de as ceder a outrem". 9

Nagasáqui, "cidade irmã" de Macau, fundada pelos comerciantes portugueses, depressa se transforma em florescente porto de mar, recebendo os Kurofones - "navios negros" - carregados de produtos e de mercadores. Estes, durante os sete ou oito meses que lá permanecem, "chegam a despender mais de 200.000 ou 300.000 moedas de prata (...)". 10 O P.e Luís Fróis, em 1585, informa de Nagasáqui que a Nau da China "leva deste porto cada ano 500.000 cruzados de prata".

"A cristandade que os Portugueses tinham antigamente neste império do Japão era mui grande e estendida por todo ele com muitos casados com mulheres japoas e já quase feitos naturais e grandiosas igrejas mui custosamente ornadas, e não menos frequentadas de grandíssima copia de cristãos japões desde os Tonos que são os seus Reis até os mais humildes; o que tudo veio a cair e acabar por muitas causas que seria largo referir" - elucida-nos o cronista António Bocarro na sua "Descrição da Cidade do Nome de Deus na China".

Das "muitas causas que seria largo referir", algumas não podem deixar de ser mencionadas, por exemplificarem, de facto, situações e comportamentos determinantes do enfraquecimento da influência portuguesa no Japão. Entre elas, a cobiça das outras nações europeias, desejosas de se substituírem aos Portugueses nas transacções comerciais que estes detinham em exclusivo.

Representação setentista do martírio de Nagasaqui (1597).

João Rodrigues é representado num dos dois padres que se encontram de pé, ao centro, enquanto o Bispo Pedro Martins, como noutras evocações gráficas da tragédia, é posto a presenciar a cena do "camarote" de sua casa (In "Chrónicas de la Apostólica Provincia de San Gregorio", Fr. Juan Francisco de San Antonio, Vol. III, Manila, 1744).

Os Espanhóis, estanciados no "ar-quipélago de S. Lázaro", Filipinas, favorecendo a ida de frades mendicantes, contra as disposições papais que expressamente proibiam outras ordens missionárias no Japão - cujo ministério religioso estava a cargo da Companhia de Jesus -, originaram incidentes prejudiciais às relações luso-nipónicas e desprestigiaram os Portugueses no Japão.

Para além dos Ingleses, que especialmente se distinguiram pela dispersão de intrigas na corte dos Xoguns, os Holandeses empenharam-se com vigor para se apropriarem das rotas lusas, atacando no mar as "naus do trato" idas de Macau e atrevendo-se, em terra, à conquista da Cidade do Nome de Deus. Mal sucedidos nesta última empresa, ocuparam, porém, postos estratégicos no Oriente - o estreito de Malaca e a Formosa - a partir dos quais, com sucessivos constrangimentos, conseguiram isolar o enclave português das suas rotas tradicionais.

Com a morte de Hideyoshi, ocorrida em 1598, chegou ao poder a dinastia Tokugawa que, durante dois séculos, dirigiu os destinos do Império do Sol Nascente. Foi um período longo e difícil para as relações dos estrangeiros no Japão, confrontados com uma política fortemente isolacionista.

Em 1614, um rude golpe atinge os cristãos japoneses: leiasu, o "daifuçama dos missionários", publica o édito de expulsão de todos os missionários católicos. Em 1623, outro édito obriga todos os Portugueses residentes no Japão, a regressar a Macau nas suas galeotas, uma vez terminada a temporada de negócios, podendo os casados levar consigo os filhos, mas obrigando as mulheres e as filhas a permanecer no arquipélago.

Alguns anos mais tarde, levantam-se os camponeses e os cripto-cristãos, em Shimabara, numa rebelião que ficou célebre, contra a tirania dos senhores feudais. Os revoltosos ergueram e seguiram "bandeiras religiosas com inscrições portuguesas como Louvado seja o Santíssimo Sacramento, gritavam os nomes de Jesus, Maria e São Tiago", 11 quando arremetiam contra as tropas dos tiranos.

Esta circunstância serviu de pretexto às autoridades japonesas para acusar os Portugueses de serem os instigadores da revolta. O levantamento popular termina em 1638, não se tendo provado qualquer intervenção portuguesa; mas o "medo neurótico de lemitsu dos efeitos subversivos da propaganda católica" 12 era um facto. A mensagem desta religião do ocidente torna-se um factor de desestabilização para o aparelho político, económico e financeiro do Império nipónico; assim, o xogunato, sentindo-se ameaçado, tem consciência de que era preciso eliminá-la, gerando, a partir de determinado momento, uma reacção anti-cristã que acaba por se converter numa reacção anti-portuguesa.

E, em 1639, um decreto imperial põe termo ao diálogo que três nambans, bárbaros do Sul, amigavelmente tinham iniciado, em 1543, naquela pequena enseada de Nishimura, na ilha de Tanegashima.

"O país está aturdido pelo incessante clamor de falsas religiões.

Quando virá o tempo de pôr em debandada as tribos bárbaras?"

(Date Masamune, 1567-1636) 13

Apesar de serem controversas a identidade dos primeiros europeus que pisaram as praias da "ilha de Jampon" e a data em que isso aconteceu, parece não oferecer qualquer dú-vida que a primazia da chegada coube aos Portugueses. Eram, nessa época, as velas portuguesas que representa-vam o Ocidente nestas paragens.

Os Léquios ou Gores, habitantes das ilhas do arquipélago Ryu-Kyu que actualmente integra o Japão, eram um povo navegador e activo, que comerciava os produtos chineses com o Império nipónico e com outros portos do Extremo Oriente.

"Dizem os malaios à gente de Malaca que entre os portugueses e os léquios não há diferença, somente que os portugueses compram mulheres, o que os Léquios não fazem" - lê-se na "Suma Oriental" de Tomé Pires. Ocupavam os Léquios, antes de os Portugueses terem aportado a Malaca e explorado a costa malaia, o espaço comercial desta vasta região geográfica, trazendo a Malaca ouro, cobre, sedas, almíscar, porcelanas, damascos, além de legumes e cebolas. Todos os anos visitavam Malaca para fazer veniaga com os Portugueses levando, em troca das suas mercadorias, de um a três juncos com muita roupa de Bengala.

Os Portugueses encontravam-se em pleno período de expansão e, naturalmente, procuravam alargar as suas áreas de influência, rendibilizando os investimentos feitos em barcos e equipagens.

Acima: chegada de uma embaixada de portugueses ao Japão (pormenor de biombo nanban).

Abaixo: notavel retrato de Toyotomi Hideyoshi (1536-98), pormenor da bela pintura conservada no Kōdai-ji, Quioto.

Sair de Malaca para o Japão terá sido, talvez, um projecto pensado, que a consolidação da presença na Índia ajudou a executar. Era um ponto de destino que o comércio dos Léquios tinha referenciado aos Portugueses e que estes não deixariam de explorar, como aconteceu.

O estabelecimento das relações comerciais foi o primeiro passo para o desenvolvimento de relações humanísticas mais vastas que, naturalmente, decorreram dos frequentes contactos entre os mercadores portugueses e os nipónicos. Por certo, não sendo os Japoneses homens do mar, segundo o testemunho de Tomé Pires, depunham naqueles que demandavam as suas praias, o comércio com o exterior. Com os intermediários portugueses, oriundos de outra civilização, com diferentes hábitos e costumes, seguiram-se, às trocas comerciais, outras menos mercantilistas. "Os mercadores levaram os pregadores e estes os Evangelhos", como disse Vieira, mas não só os Evangelhos!

Uma nova cultura expressa nas artes e nas letras chegou ao Extremo Oriente; as artes da guerra e a organização dos exércitos receberam, também, a influência das novidades ocidentais. A realidade política japonesa modificou-se: o país, dividido por lutas internas, inicia um processo de unificação após o conhecimento duma nova arma de guerra: o mosquete.

Não fora a chegada dos Portugueses, essa unificação, se não impossível, teria sido porventura tardia.

Ao finalizar este pequeno contributo para a divulgação da presença e influência portuguesa no Japão, entre 1543 e 1639, não quereria deixar de assinalar que o ressurgimento do diálogo luso-nipónico encontrou, em finais do séc. XIX, um foco emergente de inteligência e sensibilidade: Wenceslau de Moraes.

"Cheguei ao Japão, amei-o em transportes de delírio, bebi-o como se bebe um néctar". A sedução do Oriente marcou-lhe o destino: viver o fim da vida em exílio voluntário no país que procurou compreender, pesquisando os segredos e a intimidade da alma japonesa.

Através dos seus escritos, Portugal e os Portugueses puderam conhecer a história, a família, a "delicadeza inata da mulher", 14 as lendas e os deuses, a arte e a literatura, "a florescência das cerejeiras" 15 na Primavera, os campos de chá e o "oceano verde dos arrozais" 16 do Japão, terra que Wenceslau de Moraes amou com a profundidade e o arrebatamento das almas solitárias.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

- Bocarro, António - "Descrição da Cidade do Nome de Deus na China", in Boxer, C. R., "Macau na Época da Restauração".

- Boxer, Charles Ralph - "As Viagens de Japão e os seus Capitães-Mores (1550-1640)" - Escola Tipográfica do Oratório de S. J. Bosco (Salesianos), Macau, 1941.

- Boxer, Charles Ralph - "O Império Colonial Português (1415-1825)" - Edições 70.

- Boxer, Charles Ralph - "The christian century in Japão - 1549-1650"; University of California Press, Berkeley and Los Angeles, and the Cambridge University Press, London,1951.

- Bunchi, Nampo - "Teppô-Ki" - "Crónica do Mosquete" - in "Tanegashima - eatro de História Luso-Nipónica", edição da Biblioteca do Complexo Escolar de Macau, 1988.

- Gomes, Luís Gonzaga -"Os inícios da cidade de Macau" - in "Boletim do Instituto Luís de Camões", volume III, nos. 3 e 4, Macau, 1969.

- Janeira, A. Martins- "Figuras de Silêncio" - "A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de hoje" - Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa, 1981.

- Moraes, Wenceslau de - "A vida japonesa" - Terceira Série de "Cartas do Japão" 1905-1906) - Livraria Chardron de Lello e Irmão-Editores, Porto, 1985.

- Moraes, Wenceslau de - "Relance da Alma Japonesa", 2a edição, 1973, Parceria A. M. Pereira, Lda. Lisboa.

- Pinto, Fernão Mendes - "Peregrinação" - Edição anotada, comemorativa do 4° Centenário da morte de Fernão Mendes Pinto - Col. Livros de Bolso, Europa-América.

- Pires, Benjamim Videira, S. J. "A Embaixada Mártir" 2a edição, Instituto Cultural de Macau, 1988.

Seminário de Azuchi (margem leste do Lago Biwa) fundado por Alexandre Valignano, em 1580; destruído dois anos depois, nos distúrbios sequentes ao assassíniode Oda Nobunaga (In Marc' Antonio Ciappi, Compendio delle heroiche, et Gloriose Attioni et Santa Vita di Papa Greg. XIII...", Roma,1596)

NOTAS FINAIS

1. In "Teppô-Ki" ("Crónica do Mosquete") - Nampo Bunchi; adaptação da tradução inglesa, pág. 27.

2. ldem, pág. 28.

3. Idem, pág. 29.

4. In "Suma Oriental" - omé Pires, págs. 373 e 374.

5. In "Figuras de Silêncio" - Armando Martins Janeira, pág. 211.

6. In "Peregrinação" - Fernão Mendes Pinto, vol. II, pág. 28.

7. Cit. por C. R. Boxer, in o Império Colonial. Português", pág. 81.

8. In "Descrição da Cidade do Nome de Deus na China" - António Bocarro, pág.40.

9. In "Os inícios da cidade de Macau" - L. Gonzaga Gomes, pág. 271.

10. Cit. por C. R. Boxer, in "O Império Colonial Português", pág. 79.

11. In "A Embaixada Mártir" - Benjamim Videira Pires, S. J. pág. 43.

12. Cit. por Benjamim Videira Pires, S. J. in "A Embaixada Mártir", pág. 48.

13. Cit. por A. Martins Janeira, in " Figuras de Silêncio", pág. 56.

14. In "A vida japonesa" - Wenceslau de Moraes.

15. Idem.

16. Idem.

* Licenciada em Historia (Un. Coimbra). Investigadora de temas da História de Portugal no Oriente.

desde a p. 98
até a p.