Linguística

Uma celebração do Japão da Era de Meiji: O Japão por Dentro de Ladislau Batalha

Jorge Dias

Ladislau Batalha foi professor do ensino liceal e publicista. Nasceu em Lisboa, em 2 de Agosto de 1856, e morreu em Arruda dos Vinhos, em 26 de Novembro de 1939. Não possuía qualquer curso. Familiarizou-se com muitas línguas antigas e modernas, para o que concorreram as suas viagens de Junho de 1876 até 1887. Essas viagens foram empreendidas em precárias condições, pois para as custear exerceu as mais variadas profissões, como tripulante de navios, como o baleeiro Platena em que percorreu os mares boreais e o Atlântico. Visitou as principais cidades dos Estados Unidos. Esteve no Hawaii, no Japão, na China, em Ceilão e Cabo Verde, onde permaneceu algum tempo em serviço no consulado francês. Nos Estados Unidos foi gravador em vidro e em S. Tomé foi oficial da Curadoria dos indivíduos sujeitos à tutela pública. Foi taxidermista no sertão de Nano (África) com o explorador e naturalista José de Oliveira Anchieta e marinheiro de Nagasaki até Colombo. Em todos os pontos percorridos dedicou-se a estudos linguísticos e etnográficos. Militou no Partido Socialista, fazendo parte dos seus corpos gerentes. Propagou as suas ideias políticas em conferências, folhetos e livros, preconizou a adopção do registo civil obrigatório, defendeu a viabilidade dos fornos crematórios e trabalhou pelo desenvolvimento da instrução nas classes operárias. Foi deputado na legislatura de 1919, pelo círculo do Porto, e sócio da Sociedade Astronómica de Paris e da Sociedade Etnográfica de Tóquio. Foi um polígrafo. Escreveu romances, livros de filologia (sobre as línguas da África), obras de história e literatura teatral. Nos domínios da Biografia e Autobiografia escreveu: Gomes Leal na Intimidade, Teófilo Braga (Apontamentos Biográficos, e Memórias e Aventuras (Reminiscências Autobiográficas). Entre os seus livros de viagens contam--se: Através do Reino Unido, O Japão por Dentro, A Rússia por Dentro, Angola (Ensaio de Corografia), Costumes Angolanos e O Continente Negro. Escreveu ainda algumas obras de carácter político. Colaborou num grande número de jornais de Portugal e do estrangeiro. "Foi ele que recolheu, na sua pobre casa, no último quartel da vida, o poeta Gomes Leal que, semi-louco, vagueava pelas ruas de Lisboa e dormia nos bancos dos jardins públicos." 1

No prefácio de O Japão por dentro, Teófilo Braga aludiu à luta entre a Rússia e o Japão. Estava impressionado com os tremendos combates navais e os duelos de artilharia na Manchúria. Louvou os dois beligerantes: "Russos e japonezes são os dois elementos imprescindíveis da nova civilisação que se inicia." Notou o carácter euro-asiático dos russos, herdeiros do Grão-Khan e dos bizantinos. Referiu-se depois aos nipónicos, em termos ditirâmbicos: "O genio progressivo dos Japonezes, entre a apathia das raças amarelas acha-se notado pelos missionarios portuguezes no seculo XVI, quando pediam para a metropole não padres fervorosos, mas sim instruidos para resistirem à subtil argumentação dos bonzos. O conhecimento d'esse extraordinario povo não é uma curiosidade de occasião; é uma necessidade para quantos se interessam pelos destinos da Civilisação moderna. Obedecendo a esta urgencia é que aparece hoje o livro de Ladislao Batalha, o Japão por Dentro, cheio de novidades e riqueza de informações." 2 Teófilo louvou Batalha: era a seu ver um espírito orientado pelas longas viagens que desde 1876 até então tinha realizado ao serviço de um pensamento científico inspirado pelo génio das aventuras longínquas. Concluíu: "É d'essa raça que deu ao seculo XVI o extraordinario auctor das Peregrinações, o corajoso Fernão Mendes Pinto." E esboçou uma breve biografia de Batalha: "Conheci-o quando elle tinha vinte anos, em 1876, quando deixando a casa paterna partiu para a África fiado nos recursos da sua audácia; esteve em S. Thomé e em Loanda, trabalhou com o naturalista Anchieta e visitou Pretoria. Alongando a area das suas viagens dirigiu-se para os Estados-Unidos, viveu em Boston, em San Francisco, trabalhou na pesca da balêa e na do bacalhau; percorreu o Oriente, Sandwich, Nagazu, e conheceu directamente o Japão, de que hoje fala com conhecimento directo." 3

Segundo Ladislau Batalha, o Japão tinha em 1906 cerca de 46 milhões de habitantes. O livro inicia--se com uma descrição geográfica. O autor expressou logo à entrada a sua admiração perante o rápido desenvolvimento do país. O japonês, embora fosse o produto do cruzamento de variedades etnográficas, era membro de uma raça superior. País montanhoso, o Japão era o jardim do Oriente. Ao referir-se à invasão de Kublai-Khan, reiterou uma opinião de Venceslau de Morais: "Se na boa paz e amizade o japonez é tudo quanto ha de hospitalidade e obséquio, na guerra é o mais aguerrido inimigo que entre as raças humanas existe." 4

O autor referiu-se à contribuição portuguesa para a cultura japonesa, baseando-se nas Cartas do Japão dos Jesuítas. (1549-1566). Evocou Fernão Mendes Pinto e a sua chegada ao Japão. Lamentou, como outros depois dele, a ignorância que grassava em Portugal acerca do Japão: "Não só perdemos a noção e consciencia do papel grandioso que representámos n'esta parte do Oriente, mas nem nos damos á importancia de confessar que a civilisação japoneza nos orgulha por termos sido um dos seus mais eficazes precursores. Influimos mesmo nos destinos históricos do Japão. Esse grande imperio cujos progressos estão assombrando o mundo, foram perturbados na marcha natural da sua evolução pelo pequeno Portugal." 5 Recordou depois a supressão do Cristianismo, a época de isolamento dos Tokugawa e considerou a revolução japonesa de 1868 superior à francesa. Celebrou o triunfo de Mutsuhito sobre o Xogunato: "1868 tornou-se na historia da civilisação humana uma epoca memoravel. Os japonezes contam 1868 como o ponto de partida do seu engrandecimento." Considerou a época singular e memorável. Criara-se um novo sistema de educação, um novo regime hospitalar, modernas vias de comunicação, novos meios de comunicação social e um formidável sistema militar, com um exército rival do da Alemanha e uma esquadra dotada de grandes couraçados. Fora gigantesco o trabalho político empreendido, passando-se do feudalismo a um regime constitucional. Louvou o Rescrito Imperial. Celebrou os oligarcas da Época de Meiji, particularmente Kuroda, Yamagata e sobretudo Hirobumi Ito: "O Japão deve-lhe toda a majestosa transformação por que tem passado, a qual é obra da sua influência, do seu prestigio e da sua diplomacia. (...) A sua influência deve o paiz a sua forma política, a construção das suas maravilhosas esquadras, a Constituição, a declaração do protectorado coreano e mais uma infinidade de melhoramentos. Vivendo só para o Japão e pelo Japão, morrerá abraçado á pátria com quem tanto se afez, que com ella sofre os desgostos e com ella goza as glórias. Ito e Japão formam um todo único. Feliz é qualquer paiz que possue taes dedicações!" 6

A primeira guerra sino-japonesa tornara o Japão o guia da Ásia. Depois de ter sido forçado a abrir os portos pela esquadra do Comodoro Perry e depois de ter sido obrigado a conceder o privilégio de extra-territoriedade aos cidadãos das potências ocidentais, o Japão reagira, adquirindo um formidável poder militar: "A sua esquadra é a única do mundo construída em condições d'homogeneidade, e o seu exército, que já em 1900, ao lado dos contingentes alemães, francezes, russos, italianos e inglezes na China, se lhes mostrou superior, actualmente não receia o confronto com o que possa existir de melhor." 7 No livro é aliás contínuo o louvor das qualidades intelectuais dos japoneses. Tal como Morais, Batalha considerava o Japão um exemplo para Portugal: "Não tem a Europa que lamentar a grandeza daquella nação oriental, nem que a considerar perigo só porque ella nos prejudica com o fanatismo da sua independencia. Bom é antes que admiremos toda a firmeza e solidariedade colectiva da nação japoneza na execução dos seus planos patrióticos. Nós mesmo em Portugal temos muito que aprender no grandioso exemplo de civismo que aquelle povo oferece ao mundo inteiro." 8 Na base do milagre japonês Batalha encontrava o culto do militarismo, levado às mais extremas consequências.

Grande parte do livro é dedicada à análise do sistema de ensino. Além da Universidade de Tóquio, dedica grande atenção a universidades particulares, como a de Doshisha, a de Waseda e a Keyo. Grande espaço é consagrado à carreira de Yukichi Fukuzawa (1835-1901), um polígrafo prolífico, um vulgarizador de Herbert Spencer, autor de livros sobre política, filosofia, educação e vulgarizador de conhecimentos.Vendiam-se então milhões de exmplares das obras de Fukuzawa. Tal se devia, segundo o autor, ao triunfo da escolaridade. Celebrou a febril remodelação japonesa, a elaboração de Códigos, como o Penal e o Criminal. Desdenhou a noção do "perigo amarelo", em voga na Europa do seu tempo.

Ladislau Batalha parecia obcecado pelo poder militar do Japão. Celebrou a repressão dos Boxers, em que tomaram parte tropas nipónicas (1900), como gloriosa. Analisou em pormenor a organização militar nipónica. O Japão assimilara as últimas inovações bélicas da época. As batalhas das guerras franco-prussiana e russo-japonesa caracterizam-se por uma acção violenta do fogo da artilharia, que serve como que de introdução à batalha propriamente dita; a infantaria procurava obter a superioridade do fogo para lançar as suas linhas de atiradores no assalto à baioneta; as reservas, ainda em formações relativamente concentradas, entravam então em linha e davam-lhe a densidade necessária para a luta à arma branca. A cavalaria que havia dado cargas brilhantes na guerra franco-prussiana, não teve uma única acção de vulto na guerra russo-japonesa. Batalha entusiasmou-se com a série de vitórias japonesas e com a derrota do imperialismo czarista. Depois de denunciar a febre do pan-eslavismo e a cobiça do capitalismo europeu, Batalha louvou o imperialismo britânico, que encontrara na Índia terreno propício para a sua "aptidão colonizadora." A voracidade britânica era, a seu ver, superior em qualidade à "voracidade moscovita." E pensava que a vitória sobre a China dera ao Japão supremacia moral sobre aquela.

Ladislau Batalha dedicou longas páginas à literatura japonesa. Referiu-se ao Kojiki, ao Ni- honji, ao Manyoshu e ao Heike Monogatarí. Enalteceu o Genji Monogatarí, o romance clássico japonês. Pensava que a língua japonesa estava destinada a uma expansão extraordinána, com um "futuro auspicioso de domínio e expansão." 9 Tal facto seria favorecido pelo desenvolvimento industrial e comercial, pela influência moral do povo "leader" e sobretudo pela essência do próprio idioma. Recordou Hizakurige, segundo Chamberlain o mais belo romance da moderna literatura japonesa. Mencionou a influência do Budismo e do Xintoísmo. Considerou o japonês uma língua, fácil, sonora, verdadeiramente musical. Quanto à literatura dramática, estabeleceu a distinção entre o Noh e o Kabuki. Citou The Classical Poetry of the Japanese de B. H. Chamberlain. Colocou em relevo a importância da obra de Chikamatsu.

Ladislau Batalha fez algumas previsões audaciosas sobra a expansão da língua nipónica, que se revelaram erróneas. Pensava que a Coreia, a Manchúria e a própria China aceitariam no futuro o japonês como língua literária e comercial, embora esta última nunca abdicasse da sua língua. Mas a Indochina aceitaria o japonês, depois de os franceses terem sido desalojados da Indochina. Afirmou que na Europa de então se difundia o estudo da língua japonesa. Referiu um livro de Leon de Rosny, Premières Notions de Langue Japonaise (Paris, 1884). Cria que os ideogramas chineses permaneceriam no japonês. Apresentou mais uma previsão da futura hegemonia japonesa: "O japonez revela uma tal superioridade de raça, que a vastíssima civilisação europeia de que elle soube em trinta annos apoderar-se, em nada transformou a sua psicologia nem os seus modos de ver: até mesmo os seus costumes pequena alteração sofreram. A sua linguagem não se deixou perverter: apenas se enriqueceu de neologismos. Por outro lado a civilisação do Oriente tem fatalmente de colocar a Europa em segundo ou mesmo terceiro plano, já pelas grandes aptidões do povo que está proclamando a nova hegemonia, já pela superioridade numérica e territorial. A Europa inteira parece apenas uma provinda da Asia." 10

Batalha dedicou grande atenção à actividade económica japonesa. Referiu-se à grande indústria e às indústrias tradicionais como à do saquê, à do papel, à da cerâmica, à da olaria e ao cloisonné. Assinalou a importância da arquitectura de madeira. Descreveu o Horiu-ji, o Kinkaku-ti e outros monumentos, como o Daibutsu. Pensava que o Japão possuía uma civilização própria, orientada no sentido das Belas Artes. Louvou à pintura tradicional, incluindo as das escolas de Tosa e Kano. No domínio da caricatura citou Ho-kusai. Para Batalha, a mais bela das artes japonesas era a do charão. Outras características da cultura do Japão, como a cremação dos cadáveres, foram igualmente louvadas. A importância do jornalismo na Era de Meiji foi depois demonstrada. Outras páginas são consagradas às religiões Japonesas, particularmente ao xintoísmo. Na organização da família predominava então o costume do omiai, o casamento arranjado. Havia, porém, nas cidades japonesas do período, alguns aspectos sombrios: a prostituição estava generalizada.

Batalha concluíu então a sua apologia do Império do Sol Nascente: "O grande centro da futura elaboração humana deslocou-se para o Pacífico. E dali que, vasada em novos moldes a todos nós ainda desconhecidos, ella ha-de espandir-se num arranco generoso até aos estepes da Siberia e ás florestas do Continente Negro." 11 O Japão renascente, em suma, iria empreender a libertação da Ásia.

O livro conclui com uma Bibliografia. Inclui as Cartas do Japão da Ordem dos Jesuítas. Inclui ainda três obras de Venceslau de Morais: Dai-Nippon, Cartas do Japão e O Culto do Chá. Inclui ainda O Japão, de Pedro Gastão Mesnier. (Macau,1874). Mencionava-se ainda uma edição da Peregrinação, de 1711, além da Vida de S. Francisco Xavier de Lucena. Entre os especialistas referidos na lista estavam Chamberlain, Aston e Hans Haas.

O Japão por Dentro estava na Biblioteca de Venceslau de Morais, durante a sua estadia em Tokushima.12 Comum a Morais e a Batalha era o culto do Japão. O que não era comum era o talento: Batalha era um publicista medíocre. O livro expressava aliás um sentimento de admiração, comum a muitos europeus durante o final da Era de Meiji. Essa perspectiva modificara-se totalmente três décadas depois. Um livro como A Volta ao Mundo de Ferreira de Castro, escrito no início da década de 40, manifestava uma sinofilia que contrastava com uma perspectiva reservada em face do Japão.

NOTAS

1 "Batalha, Ladislau," Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, IV, pp.364-365.

2 "Teófilo Braga, como introito" in Ladislau Batalha, O Japão por Dentro — Esboço analitico da civilisação niponica - (Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 2a. edição revista e ampliada pelo autor,1906), p.14.

3 Ibid., pp.15-16.

4 Batalha, O Japão, p.32.

5 Batalha, Ibid., p.37.

6 Batalha, Ibid., p.54.

7 Batalha, Ibid., p.63.

8 Batalha, Ibid., p.86.

9 Batalha, Ibid., p.147.

10 Batalha, Ibid., pp.197-198.

11 Batalha, Ibid., p.421.

12 Ângelo Pereira e Oldemiro César, Os Amores de Wenceslau de Morais (Lisboa, Editorial Labor,1937), p.110. Relatório de Kiichi Kunisawa.

desde a p. 68
até a p.