Cidades Portuárias

As influências mútuas portuguesas e chinesas

Benjamim Videira Pires*

As influências mútuas, entre os povos de diferentes etnias e civilizações, que mais facilmente se propagam, são naturalmente as que se revelam mais úteis e necessárias para a vida material: as relacionadas com o comércio, a tecnologia, as ciências e as artes. Seguem-se, por ordem de importância temporal, os movimentos sócio-políticos e finalmente a religião. Isto não quer dizer que as condições ambientais, sobretudo económicas, constituam a causa do fenómeno religioso, mas apenas que influem nele, externamente.

Faiança luso-chinesa da Fábrica do Rato

Os Portugueses introduziram na China novos produtos alimentícios, porque não comiam tanto arroz, sobretudo o arroz insípido das refeições ordinárias, cozido em banho-maria. Os Chineses devem-nos o milho, o amendoim (hoje, vulgarizadíssimo, tanto puro como em sub-produtos: óleo, bolachas, manteiga, etc.), a batata doce, o inhame, o tomate, a alface, a couve, os agriões (ainda agora chamados "hortaliça de Portugal"), a ocra, a mandioca, frutas como a papaia, a anona, a goiaba, o ananás, várias espécies de feijão, aperitivos como as azeitonas e os achares, e bebidas como o vinho, o café, o leite e seus derivados (queijo e manteiga) e a célebre "galinha portuguesa".

Aos artigos enumerados, teríamos de ajuntar a maçã, o loureiro, o caju, 3 espécies de bananas, a malagueta, o chocolate, o figo, as uvas (que só se dão nas províncias do centro e do norte da China), a hortelã (mint), a cebola, 3 espécies de abóbora, o açafrão (3 espécies), tabaco (2 espécies), melancia, etc.. Alguns produtos trouxemo-los da América e da África.

Nos jardins e hortas de Macau e da Lapa, plantavam-se árvores e arbustos de adorno e ervas medicinais de consumo doméstico, ao passo que os nossos missionários introduziram no Celeste Império especialidades como a chinchona e a ipecuanha. Para o vizinho distrito de Chông-Sán, a necessidade de abastecer Macau obrigou os agricultores cantonenses a cultivarem produtos do gosto dos portugueses, esforço que se foi generalizando a outras áreas da China.

Um aspecto importante das nossas actividades comerciais foi a procura de específicos (três paus, tingili ou tindili, alo macho, sabsana e vokiau ou hoka) e drogas úteis, sendo estudados, logo desde o início, os processos da medicina ocidental. O Dr. Pe. Luís de Almeida, S. J. (que introduziu a medicina e a cirurgia europeias no Japão), comerciou, estudou teologia e foi ordenado sacerdote em Macau. O Pe. Cristóvão Ferreira, S. J., que escreveu livros sobre medicina em japonês, também viveu entre nós. Médicos de Macau assistiram o imperador e a corte de Pequim, diversas vezes. Tornaram-se célebres as "Boticas" ou farmácias do Colégio da Madre de Deus (S. Paulo) e do Hospital de S. Rafael.

Trouxemos do Brasil o rapé, cujo uso originou as artísticas garrafinhas de vidros preciosos e decorados, que os coleccionadores tanto apreciam ainda agora (Luís Gonzaga Gomes possuiu um armário de pau preto, com mais de 300 desses frasquinhos raros, que vendeu, um pouco ao desbarato, antes de falecer).

Também desde Macau se exportaram para o Brasil e a Europa porcelanas, cloisonnés, marfins, lacas, sedas chinesas de Fat-shán e outros tecidos, em grande número. Na Câmara Régia do Mosteiro do Escorial, na Biblioteca da Universidade de Coimbra, em vários museus (Machado de Castro, por exemplo) e igrejas do nosso país e da nação irmã da América do Sul, mas principalmente em casas senhoriais de Vice-Reis, Governadores e outros nobres (estou a lembrar-me da Casa de Vale de Pradinhos, junto a Macedo de Cavaleiros), conservam-se pinturas, telhados (a capela da Senhora do Ó em Sabará, perto de Belo Horizonte, no Brasil), paramentos litúrgicos, jarrões, estatuetas e talha, em estilo perfeitamente chinês.

O impacto do orientalismo, no sistema tradicional de Portugal, mede-se pela influência exercida pela China na cerâmica e nos azulejos portugueses do século XVII. As oficinas do Rato (Lisboa), Viana do Castelo e Caldas da Rainha, nomeadamente, puseram-se a produzir peças "segundo o gosto chinês". Manifesta-se ainda nas jarras de porcelana azul e branca fabricadas em Macau e com o escudo português, nos paramentos litúrgicos e em tantos outros objectos profanos e religiosos. Só este campo e a catalogação de peças, dispersas por todo o mundo português (e não só), daria uma obra monumental.

Para a Europa foram levadas as cadeirinhas ou liteiras e, nos jardins do Ocidente, cultivavam-se açucenas, rosas-chá, junquilhos, peónias (símbolo de riqueza), crisântemos (o emblema imperial do Japão, quando amarelo e de 16 pétalas, lembrando o sol nascente) e as camélias (às quais Lineu deu o nome do jesuíta alemão Camel). As laranjas de casca fina, cultivadas em Tânger, antigamente possessão lusitana, são conhecidas ainda hoje pelo nome de tangerinas (os espanhóis chamam-lhes "mandarinas", certamente devido à sua procedência chinesa) (1).

De Macau, via Malaca e depois Manila, exportávamos ainda, para a Índia e o Ocidente, o chá (pronúncia cantonense da palavra, enquanto thé e tea vem do dialecto fuquinense) de várias qualidades, canela, sagu, cânfora, ruibarbo, tartaruga, coral, leques das Léquias, esteiras, gangas azuis e amarelas, ouro e prata, molhos de rotim, magníficas peças de artilharia (admira-se uma de Bocarro, no castelo de S. Jorge, Lisboa), mosquetes e munições da fundição do Chunambeiro, navios, bordados do Japão, tabaco da Índia (Damão, Nagar Aveli e outras procedências), escravos de Moçambique, gengibre, aguila, calamba, cinamomo ou canela do Ceilão (Sri Lanka), sândalo de Timor, almíscar, nácar das Filipinas (para vidraças), rubis, pérolas, aljôfar, etc.(2).

No memorial para o trono de 1621, Li Chih-tsao recomendou a urgência de artilheiros de Macau, após a primeira derrota da China frente aos Manchus, em 1619. Enviámos, então, 3 canhões e alguns mosquetes, com 30 artilheiros instrutores, que regressaram em 1624. Mosquetes de bambu, à imagem dos nossos, fabricaram-se, por toda a parte, na China, Japão, etc..

Em 1629, uma missão militar chinesa foi enviada a Macau, que forneceu 10 canhões e enviou o capitão Gonçalo Teixeira Correia e outros artilheiros. Acompanhou-os, como intérprete e capelão, o jesuíta Pe. João Rodrigues Tçuzzu. O efeito foi magnífico, pois os Manchus fugiam, somente à notícia da presença dos artilheiros portugueses. Conseguiram-se apenas 20 chineses para a instrução na fundição e manejo das peças.

Gradualmente, o mosquete (niao-chung) e as peças principiaram a fabricar-se: 300 na província de Cantão, em 1630, e 107 em Pequim. O inimigo manchu, porém, também aprendeu a fundir canhões e, em 1640, já possuía 60 e muitos mais depois (1 canhão de cobre custava 20 taéis de prata, enquanto o de ferro custava 9 taéis) (3).

Na tecnologia, podemos citar os trabalhos de engenharia hidráulica que os jesuítas do Padroado Português, Sabatino de Ursis e Miguel Bento, realizaram, este na residência imperial de Verão, Yang Ming Yuan (Jardim da Claridade Loira), fora de Pequim. O português Padre Bento construiu aí uma aldeia em miniatura, com um moinho para moer arroz, ribeiros, cascatas e outros jogos de água que o imperador K'in Lông punha a funcionar, no meio da alegria esfusiante da corte. Acima de tudo, porém, o monarca apreciava o maravilhoso relógio de água, que adornava o patamar da escadaria monumental de Hai Yen Tang. Os doze animais do zodíaco chinês, sucessivamente o rato, o boi, o tigre, a lebre, o dragão, a cobra de água, o cavalo (domesticado pelos Citas), o carneiro, o galo, o cão e o porco, vomitavam água, à vez, durante uma hora. Ao meio-dia, a água jorrava das bocas de todos os bichos, ao mesmo tempo. Esta obra-prima custou bom trabalho ao Pe. Bento... (4).

Os Chineses legaram-nos, desde a dinastia Sung (960-1269), a bússola, o leme axial, os mastros múltiplos, a pólvora e a lorcha, em que introduzimos inovações como o casco ocidental e o aparelho vélico.

A cartografia principiou, na China, com Mateus Ricci e os Jesuítas Portugueses, que viajaram por todo o Império para fazerem os seus mapas a rigor. A famosa identificação do Grão-Cataio com a China também se resolveu definitivamente, por meio da viagem do Irmão Bento de Góis, em 1602-1605, por Agra, Laore, Kabul, Iarcanda e Suchow (extremo da Grande Muralha), onde se encontrou com o candidato jesuíta, enviado por Ricci, João Fernandes ou Ciomim-li.

Houve ainda músicos peritos, como Tomás Pereira, que entretinha o Imperador K'ang-hsi, pelas noites dentro, com serenatas de clavicórdio, e fundidores de canhões, como os Padres jesuítas Adam Schall von Bell e Ferdinand Verbiest.

A ciência matemática e astronómica da Europa (as descobertas de Galileu e de Copérnico) foi levada para a China pelos nossos "Padres da Corte", Dias Jr., Magalhães, Pereira, Mourão, Espinha, etc., Presidentes do Tribunal das Matemáticas, durante mais de 150 anos. Os "Padres da Corte" desempenharam ainda o papel, vital para Macau (única porta de entrada do Cristianismo e da influência europeia nesses tempos), de protectores dos nossos interesses e da sobrevivência política de Macau.

Em 1711, os Jesuítas Portugueses tinham escrito e impresso 42 obras em chinês, figurando entre elas a tradução de Confúcio por Inácio da Costa.

Antes da supressão dos Jesuítas, estes traduziram para o chinês clássico muitos livros do Ocidente, entre os quais a colecção filosófica "Os Conimbricenses" de Pedro da Fonseca e a gramática latina do Pe. Manuel Álvares. O Pe. Álvaro Semedo publicou igualmente um grande dicionário Português-Chinês e Chinês-Português, que o reitor do Seminário de S. José, Dr. Carvalho, no último quartel do século XIX, tratou de mandar para a Sociedade de Geografia, de Lisboa. Onde se encontrará, hoje, esta obra, bem como muitas outras, cujos exemplares xilografados se perderam definitivamente, porque os seus donos, os Jesuítas, foram extintos e as suas bibliotecas delapidadas?

A interpenetração linguística é outro campo que principia a ser investigado pelos especialistas, bem poucos por sinal. O crioulo macaense, que nos séculos XVIII e XIX se falava, a bem dizer, em todas as casas dos portugueses, pelas mulheres e empregados, deixou poucos documentos, esparsos aqui e além, dos quais nunca se fez uma colectânea crítica. A revista Ta-Ssi-Yang-kuo, de Marques Pereira, e mais tarde Francisco Rego e Graciete Batalha, juntaram algumas peças interessantes dessa literatura mestiça. Esta última filóloga estudou e publicou a raiz de mais de 700 vocábulos do velho papiar de Macau. Com o desenvolvimento actual das escolas portuguesas, embora persistam muitas incorrecções fonéticas, gramaticais e sintáticas na conversação e na escrita, que somente um longo estágio universitário, em Portugal, corrige, podemos dizer que o patois local tende a desaparecer.

Temos a lista de cerca de 3.000 termos simples de origem portuguesa, que permanecem ainda em uso, em Malaca. Pode exprimir-se praticamente tudo, com esse vocabulário. Somos mesmo tentados a reconstruir a globalidade da "língua franca" dos nossos séculos de oiro, no Extremo Oriente e no Sueste da Ásia.

Em Macau, a presença de Portugal durou mais tempo; e o crioulo macaense, com termos comuns à Índia, Malásia, Indonésia e Japão, deve ter sido muito mais rico do que as magras relíquias encontradas. Não diz José dos Santos Ferreira o que quer, em prosa e verso, no doce papiá de seus avós?

Não está feita a lista das palavras e expressões portuguesas que entraram na língua chinesa: Na região de Xangai, há trinta; na província de Cantão, muitas mais, naturalmente, por causa do convívio diário das populações até nossos dias, inclusive. Exemplos: pão (min-pao, fông-pao, etc.), tomate, tudo, amigo, adeus. No português, introduziram-se igualmente vocábulos e frases idiomáticas da China: nele, pinga, chá, nomes de comidas típicas e frases como "é não é", "hoje tem feriado". (Não há distinção entre ter e haver; é em vez de sim; "como se chama" (como se diz), etc..

O sistema enumerativo dos nomes dos dias da semana no Extremo Oriente (principalmente na China e Vietname) foi influenciado pelo da língua portuguesa (segunda, terça, quarta-feira, etc.). Para o efeito, consulte-se Li Ching, Arquivo do Centro Cultural Português, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris,1972, vol. IV, pgs.711 ss..

Na matemática e astronomia, houve, entre a China e a Europa, "um encontro de culturas". Da parte dos Jesuítas do Padroado Português do Oriente, os missionários levaram para a China uma matemática superior em geometria e na nova álgebra, bem como a técnica avançada do Ocidente, na manufactura de instrumentos astronómicos. Contudo, não apresentaram uma frente unida na questão dum universo geocêntrico ou heliocêntrico. Enquanto alguns missionários da segunda geração, como o suíço Johann Terrenz Schreck e o boémio Wenceslau Kirwitzer, eram seguidores entusiastas de Copérnico, a notícia da condenação de Galileu, em 1632, mudou esta orientação e restaurou a teoria de Ptolomeu, que Sabatino de Ursis, falecido e sepultado em S. Paulo (Macau), tinha exposto com clareza em chinês, em 1611. Da parte chinesa, os cientistas do velho império tinham, através dos séculos, desenvolvido uma cosmologia e astronomia, que não eram tão atrasadas como alguns Jesuítas pensavam. Mesmo Ricci não compreendeu a teoria fundamentalmente correcta, em contraste com a doutrina aristotélica, de Hsuan Yeh, sobre os corpos celestes flutuando na imensidão do espaço. E Schreck, no seu livro Breve Descrição da Medida dos Céus, que publicou em chinês em 1628, ao explicar a descoberta pelo telescópio das manchas solares, não mencionou que os chineses já conheciam as sombras azuis-escuras no sol, uma dúzia de séculos antes de os Jesuítas encontrarem, em seu proveito, a multidão de dados celestes registados pelos Chineses. Provavelmente este estranho lapso deveu-se ao facto de a sua chegada à China ter coincidido com a decadência cultural da moribunda dinastia Ming, quando as antigas descobertas científicas já não eram tão evidentes. Apesar, porém, destas deficiências de ambas as partes, o encontro dos sábios chineses com os cientistas jesuítas, alcançou notável consenso, em 1635, num monumental acordo de saber científico, projecto conjunto de Hsu Kuang-Chi, Li Chih-Tsao, Li Thien-Ching e os jesuítas Schreck, Schall von Bell, Rho e Longobardi (5).

Observatório de Pequim, de uma gravura feita em Pequim no ano de 1668 (In "Jesuítas Portugueses Astrónomos na China - 1583-1805", Francisco Rodrigues, Porto,1925).

O aspecto biológico-sanguíneo da miscigenação (e só esse) foi estudado, julgamos que competentemente, pelo Dr. Almerindo Lessa, em "A História e os Homens da Primeira República Democrática do Oriente" (Macau, Imprensa Nacional,1974). No folheto "Os Macaenses", o Pe. Manuel Teixeira demonstra, à sociedade, como a mistura de sangues e os casamentos entre portugueses e mulheres orientais, sobretudo chinesas, principiaram logo nos inícios seiscentistas de Macau. Os casamentos de homens chineses com mulheres brancas ou mestiças euro-asiáticas, são raríssimos, ainda hoje, quando os preconceitos raciais vão desaparecendo, por toda a parte.

Os cristãos chineses, baptizados em Macau, na proparóquia de Na. Sra. do Amparo, incorporavam-se voluntariamente na sociedade portuguesa, principalmente quando ocupavam cargos oficiais, como os centenares de jurubaças ou intérpretes.

Por isso, a expressão "filhos de Macau" abrangia, já então, logicamente, todos os cidadãos nascidos em Macau, quer fossem portugueses, quer chineses. Assim, na relação dos 61 mártires da embaixada ao Japão, em 1640, enumeram-se expressamente quatro "Chinas filhos de Machao", Pero Vaz, Miguel de Araújo, Domingos da Cunha e Domingos Fernandes. Não temos, hoje, também milhares de chineses de raça que se integraram completamente na sociedade portuguesa e enviam os seus filhos às escolas e universidades lusitanas?

Cada vez em maior número, agora que já não existe o serviço militar compulsivo, os chineses de Macau aprendem a nossa língua (assim nós lhes fornecêssemos os meios melhores e mais modernos para a dominarem) e se nacionalizam portugueses (cerca de 100.000). Portanto, a designação "filhos de Macau" abrangeu sempre todos os habitantes aqui nascidos, de etnia portuguesa, mestiça ou chinesa, que falassem a língua de Camões, fossem cristãos ou estivessem mais ou menos integrados na comunidade lusitana. O grande pintor P.e Simão Xavier da Cunha, por exemplo, era um chinês puro, de nome Wu Li ou Wu Yu-shán (1632-1718). E muitos outros, como ele. Ontem e hoje (6).

A arquitectura de Macau representa uma mistura dos estilos oriental e ocidental. As velhas casas de chá, na Rua Nova de El-Rei (hoje, Cinco de Outubro), as antigas casas de penhores, em forma de fortalezas, os hotéis de fumadores de ópio, à beira do Porto Interior, e as moradias tipicamente chinesas coexistem pacificamente com as formas urbanas essencialmente mediterrânicas, não racionalizadas, com largos ou praças, quintais de árvores europeias, átrios e travessas, calçadas e escadarias quebra-costas, que nos lembram Lisboa ou o Porto. Infelizmente, hoje desenvolve-se, na Cidade e nas Ilhas, uma pressa e um americanismo incaracterísticos.

Se o português colonizou Macau e as Ilhas e estabeleceu núcleos activos em Xangai, Cantão e Fuchau, também o povoamento do Brasil, no tempo de D. João VI, e por iniciativa do Conde de Linhares, por volta de 1816, se fez por meio dos chineses. Eles introduziram, no Jardim Botânico e na ex-fazenda dos Jesuítas Santa Cruz, do Rio de Janeiro, a cultura do chá. As plantações ocupavam muitos acres de um morro cheio de pedras, semelhante ao habitat da planta na China, os caminhos eram ladeados de laranjeiras e rosais e havia sebes de lindas flores. Além disso, o rei havia feito construir portões chineses e cabanas para os cultivadores, "de modo que a China de Santa Cruz era realmente um delicioso passeio". O desenhista alemão Rugendas, Maria Graham no Diário de uma Viagem ao Brasil (1821-1823) e o aguarelista Tomás Ender (1817-1818) conservaram-nos imagens e testemunhos coloridos dessa colonização, que terminou com a morte dos fundadores e a oposição dos ingleses, provavelmente por temerem a concorrência às exportações de Ceilão (Sri Lanka) (7).

Recordemos a significativa frase de Edgar Quinet: "Os Lusíadas são o poema da aliança do Ocidente com o Oriente". Camões, "o artista mais completo do Renascimento" da Europa, sagrou a presença e convivência de Portugal com o mundo cultural da China, combinando o conceito épico e trágico da vida - o ponto de contraste mais singular das artes chinesa e ocidental - com o lirismo e o misticismo da harmonia do homem com a natureza. "A influência mais substancial que recebemos da literatura ocidental - escreveu Junichiro Tanizaki - foi a libertação do amor". Se a China não tem, como nós, epopeia, é rica de romance e teatro, que exprimem, à mesma, a totalidade da vida. A poesia oriental queda-se na calma clássica, porque a poesia não passa de um momento de êxtase. Morre, quando arrastada por um quilómetro de epopeia. A canção "Sôbolos rios" foi composta após o naufrágio de Camões nos "baixos" ou parcéis do Mar da China. É dos momentos mais místicos de Camões.

Mas não posso deixar de acrescentar mais um apontamento sobre as influências mútuas, chinesa e portuguesa, nos domínios do vestuário ou costura e dos jogos ou divertimentos, embora constituam igualmente cada qual um assunto vastíssimo.

Ana Maria Amaro, numa das suas excelentes monografias, Três jogos populares de Macau - Chonca, Talu, Bafá, mostra-nos como o "talu" é a portuguesa "bilharda", introduzida aqui pelos Jesuítas em 1712 e que durou até ao século XX. Ainda em nossos dias, vemos as crianças chinesas jogar a "macaca" (t'io feikei) e o butze ou triol (pó-chi), de feições bem lusitanas. Os "papagaios", lançados dos terraços, do baldio do Monte e de outros largos, ao vento meigo do Outono, é outro ponto comum de júbilo para as crianças de Portugal e da China.

Quanto ao vestuário, conhecemos a evolução da "cheong-sám" ou cabaia comprida, tão do gosto de Eça de Queiroz, e do "quipao", sob a influência do corte estrangeiro (Paris e Nova Iorque), desde os tempos do imperador K'ien-Lông (1786-1795). Por outro lado, parece-me que a "tuen-sám" (cabaia curta ou calcinhas) contribuiu para o actual uso e abuso das "jeans" e outras calças entre as mulheres, embora haja uma mini-saia, estilo também "jean", tanto no formato como no pano. Escusado será sublinhar que todas estas influências se ampliaram imenso, por meio dos actuais meios de comunicação social (8).

As cartas de jogar, provavelmente de origem indiana, foram levadas pelos árabes para a Península Ibérica, no fim da Idade Média, e espalharam-se pela Europa. Os portugueses trouxeram-nas para o Japão e a China, como se documenta até na vida de S. Francisco Xavier.

Os jogos com elas mais difundidos entre nós são a bisca, a sueca, o burro e a canasta. Em Macau joga-se, hoje, muito o bridge e o pokere, nos casinos, o baccarat e o trente-et-quarante. Há mais de 300 modalidades, algumas especiais da Cidade do Nome de Deus.

O ma-jong (pardal), talvez inventado na dinastia Sung, chegou a Portugal há mais de 50 anos e introduzimos nele algumas variantes (maravilhas, flores, etc.).

Um grosso volume não bastaria para estudar, com suficiente profundidade, todas as influências mútuas das culturas ocidental e chinesa, através de Macau. A religiosa foi notável, embora não espectacular, como indicámos já. As outras, nomeadamente a das doutrinas sócio-políticas, com o tempo, sobretudo depois da irrupção das nações protestantes e da França, como o seu mercantilismo e "filosofismo" revolucionários, modificaram por completo o regime tradicional da velha China. Não vamos desenvolver este ponto, historiando a evolução do Celeste Império, desde a era dos autocratas manchus e a rígida burocracia confucionista, até à revolta T'ai P'eng (a maior guerra civil da história, 1850-1864), ao Movimento de 4 de Maio (1919) e ao Comunismo Agrário de Mao-tsé Tung. Isso não foi realizado por nosso intermédio, embora nestas 3 últimas revoltas haja elementos do Ocidente.

Da velha civilização chinesa, dos períodos áureos das dinastias Chou, Hon, T'ang e Ming, o que resta hoje na China? Os magníficos objectos de arte dos seus museus (Pequim e Taipei, principalmente, além de outros, disseminados pelo Mundo), os monumentos nacionais, o vastíssimo território, mais sujeito do que nunca à autoridade central, a língua (escrita, principalmente), a literatura (com ênfase no que é crítica social e de costumes), o justo orgulho da grandeza histórica do passado ou nacionalismo, a unidade da família com a veneração dos antepassados e, acima de tudo, o Povo Chinês, não no sentido comunista de "massa anónima e irresponsável", mas como um quarto da humanidade actual, mais de um bilião de pessoas humanas, livres, conscientes e dotadas de qualidades extraordinárias, capazes de renovar não somente a sua Pátria mas de ajudar enormemente o progresso do Mundo (9).

Texto publicado no livro do autor «Os extremos conciliam-se", com o título "Influências mútuas sino-lusas e luso-chinesas", pág.91, Ed. ICM. Além do título foram introduzidas algumas, pequenas, alterações e correcções.

NOTAS

(1) José Frèches, Arts Asiatiques mis au gout Européen: Le cas Portugais, em "Arquivos do Centro Cultural Português", Paris, 1976, vol. X, ps. 493-505. No norte de Portugal e na Galiza, a camélia e a mimosa dominam os parques e os jardins. No campo da arte (tapetes, talha e azulejos, sobretudo), consultem-se: Nuno de Castro, — A Porcelana Chinesa e os Brazões do Império, Civilização, Porto; Helder Carita e Homem Cardoso - Oriente e Ocidente nos Interiores em Portugal, Civil., Porto, 1986; François et Nicole Hervouet, Yves Bruneau, - La Porcelaine des Compagnies des Indes à décor occidental, Flammarion, Paris, 1986; Tesouros Artísticos de Portugal, ed. das Selecções do Reader's Digest, 1976, passim.

(2) J. M. Braga, Macau e a China, em "Religião e Pátria", 1958, N° 15, ps. 343-5. Idem, Hong Kong and Macau — A record of good fellowship. Hong Kong, revised ed., 1960. p. 67 ss..

(3) B. Videira Pires, A viagem de comércio Macau-Manila nos séculos XVI-XIX, Macau, Imprensa Nacional, 1970, ps. 29 e 92; 2a ed. em 1987, pelos Serviço de Marinha, Macau; Idem, Arquivos de Macau, vol. l, 1982, p. 235; Videira Pires, Macau e o Brasil em Jornal de Macau, 6 de Dezembro de 1982, p. 2; Albert Chan, The Glory and Fall of the Ming Dynasty, Univ. of Oklahoma Press, Norman,1982, ps. 52-65; 345-7; Enciclopédia VERBO, vol. 5, palavra "China", cols, 295-6.

(4) Jésuites de l'Assistance de France, 1957, N.° 4.

(5) Pasquale D'Elia, S. J., Galileo in China, Cambridge, Mass., ps. 28-32; J. Needham, Chinese Astronomy and the Jesuit Mission; An Encounter of Cultures, ps. 2-3,8-11. Veja-se F. A. Rouleau, S. J., numa resenha de Ciência e Civilização na China, vol. lll, Mathematics and the Sciences of the Heavens and the Earth, por J. Needham, Cambridge, 1959, in Archivum Historicum, S. J., XXX,1961, ps. 299-303; Francisco Rodrigues, Jesuítas Astrónomos na China, Lisboa, 1935.

(6) Benjamim Videira Pires, S. J., Embaixada Mártir, Macau, 1965, p. 92; Pe. Manuel Teixeira,- Prelúdio de Macau, III -Miscigenação luso-chinesa, em "Boletim Eclesiásfico", n° 718, Julho-Agosto 86, p. 84.

(7) Ana Maria Amaro, título da obra no texto, ed. do Inst. Cultural de Macau, 1984. ps. 8, 63-4,67; A evolução do Qipao, em "Gazeta Macaense", 19-5-84, p. 4.

(8) Werner Eichborn, Chinese Civilization, Praeger Pubes, N. Y., ps. 323-332.

(9) Veja-se Carlos Francisco Moura, em "Boletim do Instituto Luís de Camões", vol. Vll, 1973, N.° 2, ps. 185-191.

* Lic. em Literatura portuguesa e Filosofia (Univ. Lisboa); orientalista e investigador da história portuguesa no Oriente e da Missão Jesuítica na Ásia; Governador da Internacional Association of Historians of Asia.

desde a p. 84
até a p.