Pontos de Encontro

O LIVRO DOS CANTARES
INTRODUÇÃO DE CARLOS MORAIS JOSÉ

Joaquim A. de Jesus Guerra*

"Os Trezentos Poemas podem ser resumidos numa frase: 'Sem maus pensamentos'."

Confúcio, in Analectos.

Aescrita chinesa conheceu um longo e moroso desenvol-vimento, que terá atravessado quatro milénios, desde os primeiros caracteres de características zoomórficas, remetidos pela arqueologia contemporânea ao V milénio a. C., até à organização estatal e "definitiva" que se processou nos quatrocentos anos que antecederam e precederam o início da era cristã.

Na China, tal como em outras civilizações, existiu desde tempos imemoriais uma tradição oral, que se transmitiu de geração em geração, composta de mitos, histórias, poemas e canções. O Livro dos Cantares surge como uma primeira recolha e selecção de canções. Mas para compreendermos o contexto em que se edita este livro temos de recuar, até ao ano 551 a. C., no qual nasceu o sábio Kong Fu Zi, mais tarde latinizado pelos ocidentais para Confúcio.

Reinava então a dinastia Zhou (1111-249 a. C.), com a qual a sociedade chinesa conheceu profundas modificações, a nível social e cultural. De facto, é neste período que se formam conceitos de governação e de concepção do mundo e do lugar do Homem cujo alcance está longe de se ter esgotado nos nossos dias. E para isso muito terá contribuído o desempenho de Confúcio.

Quando derrotaram os Shangs (1751-1112 a. C.) e se viram no controlo de vastas áreas territoriais e uma enorme população, os fundadores da dinastia Zhou compreenderam que havia a necessidade de estabelecer uma nova ordem e maneira de pensar que acompanhasse as mudanças operadas ao nível do aparelho de Estado e que se desejavam imprimir à própria sociedade. Assim justificavam o seu mandato.

Weng Zi Zhan descreve deste modo o novo pensamento dos Zhous: "O destino do Homem não depende da existência de uma alma antes e depois da morte ou do capricho de uma força espiritual, mas na excelência das suas palavras e dos seus actos". Significativamente, o conceito chave para compreender o controlo da existência humana passa a ser a virtude, isto é, a partir de agora cada sujeito não vive à sombra de um destino traçado e conjurado por seres espirituais, mas à luz das suas decisões se enveredar pela via da virtude. E, é claro, depreende-se nesta doutrina do "Mandato do Céu" um conteúdo político flagrante: "Então, os Zhous sentenciaram que os Shangs, apesar de terem recebido mandato para governar, tinham falhado porque não cumpriram os seus deveres. O seu mandato passou para os fundadores de Zhou por causa da sua virtude. O futuro da Casa de Zhou dependia da virtude dos seus governantes vindouros".1

O pensamento chinês afastava-se assim de um determinismo feiticista para entrar decisivamente no domínio do Homem e da sua capacidade de decidir a existência, resguardado das intenções dos espíritos. É precisamente esse o sentido que se vai encontrar na diferente atitude face aos ritos. Zhan descreve a diferença citando precisamente uma passagem do Livro dos Ritos: "Os Shangs honravam os espíritos, serviam-nos e colocavam-nos acima das cerimónias... Os Zhous honram as cerimónias e valorizam a atribuição de favores. Servem os espíritos e respeitam-nos, mas mantendo-os a uma certa distância".2

O pensamento dos primeiros Zhou prepara assim o terreno às doutrinas confucionistas que só viriam a surgir meio milénio mais tarde. Segundo conta Sima Jian,3 foi o próprio Confúcio quem fez uma selecção de trezentas e cinco canções, de entre mais de três mil, de acordo com um critério de "virtude moral". E, ainda segundo o historiador, "durante a época de Confúcio a Casa de Zhou tinha decaído, os antigos ritos e músicas foram esquecidos, e muitas canções e documentos tinham desaparecido".4 Terá o Sábio sentido a necessidade de recolher antigas tradições, documentos, poemas e ritos, antes de serem apagadas pelo desleixo habitual com que em épocas conturbadas os homens tratam a memória. No entanto, as recolhas de Confúcio não deixaram de varrer o que foi por ele considerado menos interessante ou pouco conforme às suas ideias. A fiarmo-nos em Sima Jian, as canções seriam mais três mil e Confúcio rejeitou "as que eram repetitivas e reteve as que tinham valor moral".5 Tal como fez com o Livro dos Cantares (Shi Jing)**, Confúcio organizou outras compilações que ficaram conhecidas como obras canónicas, a saber, O Livro das Mutações (Yi Ching), o Livro dos Ritos (Li Chi), o Livro dos Documentos (Shu Ching). Estes livros, juntamente com os Anais da Primavera e Outono (Chun Qiu), o único que se crê de facto escrito por Confúcio, constituem um pentateuco onde se encontra reunida a base da cultura clássica chinesa.

Aliás, não é pacífica a própria atribuição da edição do Livro dos Cantares a Confúcio. James Legge, que o verteu para inglês no século passado, recusa-se a atribuir ao sábio a paternidade da obra. Baseia-se o missionário inglês no facto dessa referência só se encontrar num escrito elaborado quatro séculos depois da morte de Confúcio, precisamente no citado livro de Sima Jian. O padre Guerra refuta a opinião de Legge, no prefácio à sua tradução para português.6

Existe um número confortável de autores que remete a compilação um pouco mais para trás no tempo, para os primeiros séculos de vida da dinastia Zhou. No entanto, o esforço de Confúcio para a sua divulgação foi de tal modo notável que acabou por lhe ser atribuída a edição.

E a História acabaria por provar como não fora em vão o trabalho de Confúcio. O Livro dos Cantares conseguiu resistir à Grande Queima de Livros que o imperador Shi Huang Di, o homem que conseguiu unificar a China, promoveu durante o seu reinado (213a. C.). Uma vez mais é Sima Jian quem relata uma interessante conversa no fim da qual o imperador sancionou a destruição de praticamente todos os livros existentes. A cena passa-se durante uma recepção oferecida por Shi Huang Di a setenta letrados, no palácio de Xianyang. Um deles, de nome Zhou, tomou a palavra e louvou o imperador pelas suas conquistas, terminando com um elogio ao seu poder e virtude. O seu discurso agradou ao imperador mas logo outro se levanta e contrapõe vários argumentos, defendendo a atribuição de feudos a membros mais jovens da casa real ou a ministros meritórios. Na sequência da refutação desta tese, o ministro Li Si avançou com a proposta de se queimarem os livros antigos. Sigamos o seu raciocínio: "Agora estes letrados só aprendem do conhecimento antigo, desprezando o novo, e utilizam o seu saber para se oporem ao nosso comando e confundirem os cabeças-negras (assim era referido o povo durante a dinastia Qin). (...) Antigamente, quando o mundo, mergulhado no caos e na desordem, não podia ser unificado, os diferentes estados ergueram-se e usaram argumentos do passado para condenar o presente, usando uma retórica vazia para tapar e confundir as verdadeiras questões e empregando o seu conhecimento para se oporem ao que tinha sido estabelecido pela autoridade. Agora Sua Majestade conquistou todo o mundo, distinguiu entre o branco e o preto e estabeleceu padrões unificados. No entanto, estes letrados opinativos juntam-se para difamar as leis e julgam cada novo decreto de acordo com a sua própria escola de pensamento, opondo-se-lhe secretamente no seu coração enquanto o discutem abertamente nas ruas. Gabam o soberano para conseguir fama, avançam com estranhos argumentos para ganharem distinções e incitam a multidão ao espalharem rumores. Se isto não for proibido, sofrerá o prestígio do soberano e facções surgirão entre os seus súbitos. Melhor é acabar de vez com isto!

"Humildemente proponho que todos os registos históricos, à excepção dos de Qin, sejam queimados. Se alguém que não for um letrado da corte se atrever a guardar canções antigas, registos históricos ou escritos das cem escolas, estes devem ser confiscados e queimados pelo governador da província ou pelo comandante do exército. Os que durante uma conversa se atreverem a citar uma canção ou registos antigos devem ser publicamente executados; os que usarem precedentes antigos para se oporem à nova ordem verão as suas famílias serem destruídas e do mesmo modo deverão ser tratados os oficiais que tenham conhecimento destes casos e não os denunciem.

Caligrafia de U Kuok Wang

"Se trinta dias da proclamação desta ordem os proprietários destes livros ainda não os tiverem destruído, as suas faces deverão ser tatuadas e con-denados a trabalhos forçados na Grande Muralha. Os únicos livros que não pre-cisam de ser destruídos são os que se referem à Medicina, Divinação e Agricultura".7 O imperador concordou com Li Si e as suas propostas foram aprovadas.

O resultado foi uma das maiores destruições de livros que a História já conheceu, entre os quais o Livro dos Cantares. Contudo, o esforço desenvolvido por Confúcio deu os seus frutos porque as canções sobreviveram na memória dos homens, tendo mais tarde sido reescritas exactamente na sua forma original.

Compreende-se o zelo de Li Si e a sua sanha contra o antigo saber e o Livro dos Cantares muito especialmente. Vejamos, por exemplo, o que diz um prefácio escrito no século V a. C. por um discípulo de Confúcio conhecido pelo nome de Zi Xia: "Nada se compara ao Livro dos Cantares no erigir de padrões que distinguem o mal do bem, o Céu da Terra, e no apelo que faz a espíritos e deuses".

Contudo, o Livro dos Cantares não se esgota nos conselhos morais que proporciona. O próprio Confúcio o apresentava como um exemplo de retórica, na medida em que o poeta deve também saber exprimir os seus pensamentos de forma elegante e convincente.

De um ponto de vista formal, o Livro dos Cantares é escrito em versos de quatro sílabas, a mais arcaica forma de versificação chinesa, na qual a rima se verifica na última sílaba de cada verso. Em termos literários esta recolha de poemas foi sempre considerada como exemplarmente perfeita, sendo numerosos os comentadores que, ao longo dos séculos, lhe têm acrescentado prefácios e tecido considerações explicativas. Alguns destes prefácios, muitas vezes de carácter puramente pedagógico e explicativo, encontram-se traduzidos em inglês. O padre Joaquim Guerra também traduziu dois destes prefácios, que considerou mais significativos.

Enquanto colectânea de canções, o Livro dos Cantares surge-nos como um testemunho precioso de uma das mais antigas literaturas do mundo e repositório primeiro de uma maneira de encarar o mundo que ainda hoje estende a sua influência a muitos milhões de pessoas, apesar de todas as vissicitudes que teve de enfrentar ao longo da História.

AS ESTRELINHAS

Lindas são as estrelinhas:

Três a cinco, no Nascente.

Em campanha, à noite e ao frio,

Ou dia e noite no Paço:

Que destinos tão diversos!

Lindas são as estrelinhas

Do Orionte e Sete-estrelo.

De serviço, à noite e ao frio,

Ou em colchas e edredons:

Que destinos bem diversos!

A BARCA DE CIPRESTE

Voga a barca de cipreste,

Flutuando na corrente.

Já não consigo dormir,

Por não sei que mal latente.

Não é que o vinho me falte,

Para bem me divertir.

Não é geleira o meu peito,

Que se possa derreter!

Pode a gente ter irmãos

Com quem não pode contar;

Pois se vai queixar-se a eles,

Só encontra indignação.

Meu coração não é pedra,

Que se possa deslocar

Nem meu peito é uma esteira,

P'ra se poder enrolar.

Procedi com correcção;

Não me podem criticar.

Minhas máguas me entristecem:

Detestada da ralé,

Tenho tido muitas penas

E sofrido assaz de insultos.

Eu, na cama, penso nisso,

E a bater no peito acordo.

Põe-se o Sol e brilha a Lua.

Porque à vez se hão-de ocultar?

Minha alma triste parece

Roupa que está por lavar!

Penso a-sós, porém não posso

Bater asas e avoar.

AS ANDORINHAS

As andorinhas voando,

No tanque roçam a asa.

À Princesa, de tornada,

Até longe a acompanhei.

Quando não mais a avistei,

Qual nuvem dei em chorar.

As andorinhas voando,

Sobem e descem no ar.

À Princesa, de tomada

Segui longe, a acompanhá-la.

E como deixei de a ver,

Fiquei parada, a chorar.

As andorinhas voando,

Os seus chilreios espalham.

Tornava a Dona à familia,

E longe ao Sul a segui.

Quando eu já mais a não vi,

Estalou-me o coraçã zo.

Medianeira, a Dona Dyõw (Tu)!

O seu peito era um abismo:

Sempre afável e bondosa

E aplicada à perfeição.

Seu amor ao ex-marido

Para mim era lição.

O MODELO

O modelo! o verdadeiro!

Feito exemplo para todos!

Chegado é o sol a pino

Além em frente no alto.

Perfeito Chefe, Ele impõe-se,

E no Paço actua à grande.

Tem uma força de tigre:

P'ra ele as rédeas são fios!

Co'aflauta na mão esquerda.

Na direita o seu pendão:

Encarnado a banho de ocre.

Dá-lhe as honras o Senhor.

Dá-se no monte a aveleira,

E nas várzeas o alcaçuz.

P'ra quem vai meu pensamento?

P'ra o Bel-Homem do Poente

Esse Homem por excelência

Que nasceu no Ocidente!

A CONSORTE DO PRÍNCIPE

Eis a consorte do Príncipe!

Com os seus jades no gancho,

Toda alegre e elegante:

Como os montes, como os rios!

Condizer deve a aparência

Co'a pessoa e com o título.

Ser princesa e sem alinho,

Isso podia lá ser?!

Oh! que brilho! que frescor!

Tem nas penas de faisão!

Seu cabelo é uma nuvem.

Ela desdenha o postiço.

Mas as jóias do chapéu

Mais o gancho de marfim

Tudo serve a dar realce.

A aparência tem do Céu;

É mesmo imagem de Deus!

Que brancura e limpidez

Na maneira de mostrar-se!

Vestida de fina tela,

Cingida por um cordão,

Nesse ar puro de Princesa,

Quando o rosto ela levanta,

De tal forma é o ascendente

Que os olhos do povo enleva

LEVA UMA SENHORA NO CARRO

Uma senhora no carro,

Com ares de flor-efémera,

Agitando a um lado e outro

As belas jóias do cinto.

Essa distinta Senhora

É mesmo bela e brilhante.

A Senhora que o acompanha

Tem ares da flor da malva.

À maneira que se move.

As suas jóias cintilam.

De tão distinta Senhora

A boa fama não morre.

A PLANTA RASTEIRA DO PRADO

Planta rasteira do prado

Que orvalhada ela recebe!

Uma pessoa perfeita

Basta um encontro fortuito

Logo as medidas nos enche.

Planta rasteira do prado

Rega-a muita marezia.

Uma pessoa perfeita

Basta um encontro fortuito

P'ra nos darmos logo bem.

LINDO ESQUILO

Lindo esquilo! lindo esquilo!

Não me comas o meu milho!

Em três idades contigo,

De mim saber não quiseste.

Em breve eu te vou deixar:

Eu vou p'ra a Terra do Bem,

Para a Terra, sim, do Bem

Onde enfim terei meu Lar.

Lindo esquilo! lindo esquilo!

Não me comas o meu trigo!

Em três idades contigo

Tu não foste bom comigo.

Chega a hora de deixar-te

Que eu vou p'ra Pátria do Bem,

P'ra Pátria do Bem eu vou,

Lá terei o que é devido.

Lindo esquilo! lindo esquilo!

Não me comas os renovos!

Em três idades contigo

Não soubeste agradecer-me.

Vem a hora de deixar-te:

P'ra o País vou da Alegria,

Do meu bem, sim, o País,

P'ra onde estou chamada há muito.

P ELE DE ANHO

Pele de anho, e mangas de onça!

De nós ele se enriquece.

Mais ninguém ele haverá

Que olhe pelos cidadãos?

Mangas de onça e pele de anho!

Que em extremo nos explora.

Ninguém mesmo ele haverá

Que amigo seja do povo?

A AMEIXEIRA

As flores da ameixeira

Não se estadeiam de tímidas.

De toda a gente do mundo

Como irmãos é que não há.

No duro luto da morte

São irmãos que mais consolam:

De monte em vale isolados

Os irmãos se vão buscar.

O planalto busca a alvéola.

Os irmãos, numa emergência

Cada qual tem seus amigos

Que só sabem suspirar.

Irmãos bulham entre muros.

Quando os atacam de fora,

Cada um dos bons amigos

Só promete, não ajuda.

Luto e discórdias passadas.

Quando tudo é paz e calma,

Só irmãos não basta ser,

Melhor é sermos amigos.

Prestes sejam ricos pratos

E as bebidas de um banquete.

Se os irmãos lá se encontrarem,

Então, sim, reina a alegria!

Mãe e filhos bem unidos

São acordes musicais!

União fraterna boa

Será paz alegre e pura.

P'ra ordenares o teu lar,

E alegrar mulher e filhos,

Isto estuda, isto examina

E diz lá se não 'stá certo.

O POTRO BRANCO

Um potro branco, branquinho

Foi pastar no meu quintal.

Vou prendê-lo co'uma corda

Toda a parte da manhã.

Quem se diz ser o seu dono

Em folias anda longe.

Um potro branco, branquinho

Foi-me às folhas das ervilhas.

Vou prendê-lo co'uma corda

Pela tarde toda inteira.

Quem se diz ser o seu dono

Divertido anda com hóspedes.

O potro branco, branquinho

Pensou consigo, indignado:

"Belos duques e marqueses

Dão-se ao gozo sem limites!

Cuida tu de vaguear;

Olha só que não te vejam".

O potro branco, branquinho

Lá no fundo, ora, do vale,

Co'um feixe vive de feno!

Busque o homem ser perfeito;

Não se cubra de oiro e jade,

Antes mude o coração!

A PRIMEIRA LUA

Gela forte à Lua-Um

E o meu peito se confrange.

As más línguas entre o povo

Vão crescendo mais e mais.

Cada vez estou mais só,

Aumentando-me a tristeza.

Esta mágua da minha alma

Faz-me até ficar doente.

Meus Pais, que a vida me deram,

Terá sido p'ra meu mal?

Porque é que antes não nasci,

Nem ao mundo vim mais tarde?

Da boca as boas palavras,

E também da boca as más.

De ponto sobre a tristeza

Pela troça que me fazem.

Ai! que triste desamparo!

Que tamanha desventura!

Ver este povo sem culpa

Feitos todos uns escravos!

Que infelizes todos nós!

E onde iremos por remédio?

Anda o corvo a buscar poiso,

Mas no telhado de quem?

Olham, olham mata adentro,

Buscam lenha para o fogo.

'Stá em risco agora o povo,

Só vê nuvens lá no céu.

Mas, em finda a tirania,

Ficarão sem força os maus.

O Senhor do Céu Augusto

Alguém pode detestar?!

Tapa o monte os baixos, dizem;

O cabeço encobre os túmulos.

As calúnias dessa gente

Porque não se lhes põe cobro?

Vão pedir aos anciãos

Para os sonhos explicarem.

Todos dizem que são bênção.

Sabem lá se é corvo ou corva?!

Por mais alto que o céu esteja,

Mesmo assim nos inclinamos;

E co'a terra tão espessa

Nela andamos aos passinhos.

Estas vozes de lamento

Razão funda lhes assiste.

Esses homens eu lamento

Tão injustos com os fracos.

Olha além nesses socalcos,

Como crescem os renovos!

Que me vexem dia a dia,

Mas vencer-me é que não podem!

Mais modesto me queriam,

Mais modesto me queriam,

P'ra passar por incapaz!

Por rival eles me tomam,

Mas não chegam para mim!

Triste está meu coração

Qual se um nó tivesse dentro.

O Governo de hoje em dia

É cruel e sem razão.

Um facho que foi aceso

Porque hão-de eles apagá-lo?

A brilhante Casa Tjó (Tró)

Arruinando-a está Paov-Dzes (Palcé)

Trago sempre o fim na mente!

E lá vem a chuva incómoda.

Carregados 'stão os carros,

E não lhes põem fueiros.

Se o excesso for ao chão,

Terão demão que pedir.

Se os esforços não faltarem

Que também as rodas querem,

E o cocheiro for atento,

Não irá ao chão a carga.

Vencerás grandes perigos

Nem sequer dantes pensados.

À vista os peixes no tanque,

Não se sentem à-vontade.

Mesmo lá no fundo da água

Inda bem se podem ver.

De alma triste, eu penso aflita

Nesse tirano do Estado.

Os bons vinhos não lhes faltam,

Nem os pratos mais gostosos,

Para quantos os apoiam,

Quanto mais para os parentes.

Penso então como estou só

E mais a pena me invade.

A vil gente ora tem casa,

A ralé é que prospera.

Feliz o povo não é,

Com tantos males do Céu.

Os ricos podem passar;

Pobre do pobre e sem filhos!

SENHOR DE SI

Um porte senhor de si

Sinal é de ter virtude.

Há um porvérbio que diz:

"Não há Sábio sem senão".

Os dislates do povinho

São males de condição;

As parvoíces dos Sábios

Falhas são do seu saber.

Não há como ser um Homem

Que em toda a parte se impõe.

A virtude que se sente

Tem por si toda a Nação.

Grandes planos p'ra cumprir

E oportuna informação

Junto a um porte reflectido,

Eis o modelo p'ra o Povo.

P'lo que respeita ao presente,

Reina o caos no Governo:

A virtude está por baixo

Por excessos que há no vinho.

Bem que gostes da indulgência,

Tens que olhar às consequências.

Volta já aos Reis Antigos

E honra as suas sábias Leis.

Frouxo mando Deus não preza.

Qual a água duma fonte:

Não se agite e é toda morta.

Erguer cedo e dormir tarde,

Regar o pátio e varrê-lo

P'ra que o Povo tome exemplo.

Cuidar carros e cavalos,

Arcos, setas, e mais armas

Contra as incursões dos Joq (Ju)

E assustar os Maen (Men) rebeldes.

Exercita a tua gente,

Olha ao teu dever de Príncipe.

P'ra evitar os imprevistos

Tem sentido no que dizes.

Atende bem ao teu porte,

Nada seja reprovável.

Nódoa no branco da maça

É possível esfregá-la;

Caída mancha na fala,

Nada resta que fazer.

Não sejas fácil em falas,

Nem à toa digas nunca:

"Minha língua ninguém tolhe!"

As palavras não se somem:

Não há fala sem resposta,

Nem amor que não se pague.

Se inda mais que aos teus amigos

Os filhos do Povo ajudas,

Aos teus herdeiros a fio

Hão-de os povos respeitar.

A Príncipe teu amigo

Mostra um ar condescendente,

Pois falhas tem quem é novo.

Não tenhas tu de corar

Perante as fendas do quarto;

Não pretendas que não vêem:

Quem é que ali te descobre?

O chegar das Almas Santas

Não se pode pressentir,

Muito menos desprezar.

No exercício da virtude

Sejas são e bem aceite.

Sê perfeito no que fazes,

Nada falhe no teu porte.

Quem não usurpa nem lesa

P'ra modelo falta pouco.

Atirou-me alguém um pêssego;

Uma ameixa eu lhe joguei.

O petiz de carrapichos

Bem mostrava ser menino.

Pau macio e maleável

Até co'um fio se dobra.

Homem bom e respeitoso

Na virtude está fundado.

Eis aí um homem sábio:

As palavras que lhe digo

Docilmente as vai cumprir

Mas se o homem for um parvo,

Diz ainda que eu me engano.

Cada qual pensa a seu modo.

Ai! pobres destes meninos

Que o bem do mal não distinguem.

Pela mão não é que os levo;

P'ra o serviço eu lhes aponto,

Sem lhes dar ordens na cara.

Mas se ainda não percebem,

Pela orelha então os levo:

Mesmo com filhos nos braços!

Tão cheia a gente de si...

Cedo o soube, e fá-lo tarde?!

Como brilha o céu do estio!

Minha vida é que eu não gozo.

Ao ver-te assim tão tapado,

Meu coração se confrange.

Quantas vezes eu te ensino;

Mas tu ouves mui de longe

Nem me tomas por teu Mestre

Mas na conta de tirano.

Talvez inda não percebas;

Mas já andas nos setenta!

Ai! pobre deste meu filho!

Eu te ensino as velhas máximas:

Ouve e segue os meus conselhos

Que nunca te há-de pesar.

Os males vindos de Deus Arruínam a Nação.

O escarmento não está longe!

Não se engana ao Deus do Céu:

Contrariar o Seu Poder

Só aumenta o mal ao Povo.

Reproduzido de: O Livro dos Cantares, trad. e notas pelo Padre Joaquim A. de Jesus Guerra, S. J., ed. rev., Macau, Instituto Cultural, Aidan Publicities and Printing, 1990.

NOTAS

**Cânon das Odes.

1. ZHAN Weng Zi, A Source Book in Chinese Philosophy, Princeton, University Press, 1963, p. 1.

2. Idem, ibidem.

3. Sima Jian é considerado o maior historiador da China. Nasceu em 145 a. C. e morreu entre 86 e 74 a. C. Reinava a dinastia Han.

4. JIAN Sima, Records of the Historian, Hong Kong, The Commercial Press, 1974, p. 21.

5. Id., p. 22.

6. O Livro dos Cantares, tradução de Joaquim A. de Jesus Guerra, Macau, I. C. M, Aidan Publicities and Printing, 1990.

7. JIAN Sima, op. cit., p. XIV.

* Ingressou na Companhia de Jesus em 1925, tendo terminado o curso de Filosofia. Ordenou-se em Xangai, onde concluiu o curso de Teologia. Com dezenas de anos de residência na China, foi considerado em vida o maior sinólogo português, tendo traduzido e comentado os principais clássicos chineses. Publicou, entre outros, Quadras de Lu e Relação Auxiliar, Quadrivolume de Confúcio, As Obras de Mâncio, O Livro das Mutações, Escrituras Selectas. O Chinês Alfabético em Plano Nacional e um Sistema Novo de Leitura de Caracteres, Dicionário Chinês-Português de Análíse Semântica Universal.

desde a p. 251
até a p.