Atrium

APRESENTAÇÃO

O Director da Revista de Cultura Luís Sá Cunha

Desde o início, aqui na RC, proclamámos a saudável virtude do inconformismo. Ante tantos caminhos a percorrer, por muitos nos aventurámos, deixando tantos outros à saudade da nossa moção intelectual, à ansiedade da nossa vontade de viagem, à impaciência do nosso propósito de realização. Lentamente nos fomos apressando.

Entre outros, nunca nos conformámos com a ausência, aqui na RC, dos temas de Sinologia. Primeiros sinólogos do Mundo, atravessamos os finais deste Século com o doloroso desconforto de não termos nenhum grande sinólogo nos meios culturais portugueses. Com humildade e inquietação confessámos recentemente a nossa pretensão a estimular o entroncamento de um ramo da Sinologia ao vasto movimento da cultura portuguesa do termo do Século XX.

Para auspicioso começo, aqui se articula este Número da RC integralmente dedicado à Poesia, onde se procuram introduzir algumas gerais referências de iniciação à Ars Poetica da China, uma das mais sublimes manifestações do Espírito em todos os tempos da Humanidade.

Os textos, subidos a Sumário, de François Cheng, Li Ching, e Ramón Lay Mazo, contêm suficiente substância introdutória e explicativa da arte poética da China Clássica, iniciando o leitor da língua portuguesa na matéria e dando-lhe um quadro compreensivo da urdidura de um poema e das vias possíveis da sua tradução.

Além do objectivo que estes textos servem, pretendemos sobretudo e de seguida centrar o sumário num campo: o que se cinge, historicamente, ao contacto entre autores e poetas de língua portuguesa e poetas e poemas em língua chinesa. Também nisto parcos, fizémos convocatória dos mais destacados exemplos deste Século.

De Camilo Pessanha, trazemos à estampa as "Elegias Chinesas", que foi traduzindo arrimado ao bondoso bordão de sinólogos amigos, e com as suas notas explicativas. Camilo Pessanha apenas dominava três mil caracteres da escrita chinesa, conhecimento manifestamente insuficiente para uma cabal recriação de um original escrito em chinês.

Publicamo-las agora com a novidade das anotações de Jing Guo Ping, sobre as do autor da "Clepsidra".

Na sequela de Pessanha, idêntico esforço se propôs vinte anos depois o intelectual macaense Francisco Carvalho Rêgo, resultando no livrinho antológico Mui Fá, aqui integralmente publicado.

Recentemente desaparecido, era o Pe. Jesuíta Joaquim de Jesus Guerra o único sinólogo português existente, um dos maiores, e raros, de sempre em Portugal, e mundialmente conceituado. Deve-se-lhe a tradução dos principais livros clássicos da cultura chinesa.

Justamente o trouxemos à colacção, com uma pequena selecção de poemas traduzidos da mais antiga antologia poética da China, o "Livro dos Cantares" ou dos "Cânones".

Também, de língua portuguesa, damos justo lugar selecto ao consagrado Poeta brasileiro Haroldo de Campos, único do universo lusíada que nas últimas décadas se aprofundou na sabedoria da arte poética sínica. Reactualizando uma linha que o sinólogo americano Fenollosa herdou ao jovem e genial poeta Ezra Pound, e que tão marcadamente o influenciou no "Imagismo" e nos altos "Cantos" onde "colaboraram o Céu e a Terra", a Haroldo de Campos se devem as mais belas recriações em língua portuguesa de poemas chineses.

Ficou apenas, e circunstancialmente, ausente deste capítulo, António Graça de Abreu, singular esforço em Portugal, nos mais recentes tempos, na tradução dos clássicos da poesia chinesa, a quem já se devem as antologias de Li Po, Wang Wei e Bai Juyi publicadas pelo ICM.

No resto, e sem deixar de referir o curioso encontro do grande poeta W. H. Auden com Macau, deu-se também lugar de relevo à presença de Macau na poesia portuguesa e chinesa actual, com especial tónica na apresentação de algumas das mais qualificadas vozes poéticas chinesas, pelo também poeta Yao Jing Ming, praticamente desconhecidas da comunidade de língua portuguesa.

Macau, cuja história marcha por ciclos, entrou clara e caracteristicamente, nos anos oitenta, numa nova fase da sua existência. Conhecendo a evolução manifesta surpreendentemente nas artes plásticas em geral, a assinalável concentração de artistas verificada no Território, a convocação de tão qualificadas vozes de poesia — com optimismo e segurança podemos afirmar que está já agora dada substância ao projecto de Macau como "Cidade de Cultura".

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