Religião e Cultura

CAMILO PESSANHA SINOLOGO NOT

Danilo Barreiros*

"S inologia" significa "estudo do que diz respeito à China", seja História, Geografia, Arte, Filosofia, Literatura, usos e costumes, etc.

Por "Sinólogo" entende-se "perito em Sinologia".

Que Camilo Pessanha tinha um profundo conhecimento da civilização chinesa comprova-se pelo impressionante estudo que serviu de prefácio ao Esboço Crítico da Civilização Chinesa (Morais Palha, Macau, 1912), em que o Poeta critica a corrupção, a devassidão, o crime e o castigo, num comentário duro e implacável semelhante ao ingente ressoar de um gigantesco gongo.

Que conhecia a fundo a História da China temos a confirmá-lo o facto de, a convite do Governador Arnaldo de Novais, ter ensinado no Instituto Comercial, anexado ao Liceu de Macau em 7 de Outubro de 1903, o que implica o reconhecimento da sua competência para o exercício desse cargo.

Camilo Pessanha com o Letrado Chinês. Reproduzido do artigo de António Osório de Castro, publicado no "Diário Popular", 7 Set. 1967.

Do próprio José Vicente Jorge, com quem convivemos desde 1935 até à data da sua morte, em Lisboa, em 22 de Novembro de 1948, colhemos informações que nos permitem concluir ter o Poeta um profundo conhecimento teórico da língua chinesa, na sua estrutura geral e um apreciável manejo da língua falada, na sua modalidade simples e vulgar e que, quanto à língua escrita, aprendeu um razoável número de caracteres todavia não suficiente para traduzir, sem auxílio, textos eruditos, pelo que recorria à cooperação de peritos competentes, como sucedera com as Elegias, as composições em prosa e outras traduções nunca publicadas e cujo paradeiro se ignora.

Essas conclusões todavia não abrangem oGuo Wen Kao Fu Shu, livro de leituras chinesas para uso escolar, em cujo 3° volume surge o nome de Camilo Pessanha em parceria com o de José Jorge.

É evidente que José Vicente Jorge, Chefe da Repartição do Expediente Síniço, Vice-Cônsul, Intérprete Tradutor no Consulado de Xangai, Secretário Intérprete Tradutor da Nossa Legação em Pequim, no tempo do Império, "sempre apreciado pela sua competência e merecido honrosos louvores" (José de Carvalho e Rego, no "Notícias de Macau", 10/11/1968), escolhido para secretariar o diplomata que representou Portugal nos funerais do Imperador Guang Xu, em 1909, tradutor e anotador do Xin Du Ben, novo método de leitura adoptado para o ensino de chinês em escolas de Macau, não necessitava de modo algum da cooperação de Pessanha para traduzir o 3° volume duma obra de que já traduzira os dois primeiros.

António Dias Miguel afirma, no seu primoroso estudo sobre o Poeta, baseado em informações unânimes e categóricas de "conhecedores do assunto", que "as traduções das elegias chinesas, só por adorno de penas de pavão lhe podem ser atribuídas", o que é injusto e provém de "informadores" despeitados, invejosos, poetas frustrados que até negavam qualquer valor poético a Pessanha, o único verdadeiro simbolista da literatura portuguesa e, em absoluto, um dos maiores intérpretes do simbolismo europeu, na opinião de Bárbara Spaggiari (O Simbolismo na Obra de Camilo Pessanha, Amadora, Biblioteca Breve, 1982).

Na realidade, a intervenção de Camilo Pessanha na tradução das Elegias Chinesas foi a que deixámos relatada e verificou-se nas condições que nos foram confirmadas por José Vicente Jorge.

Mas a sua intervenção no Guo Wen Kao Fu Shu limitou-se a ter acompanhado José Vicente Jorge na preparação do livro que, àmedida que o ia traduzindo, explicava ao Poeta a significação dos caracteres chineses que aquele ainda não conhecia, a maneira de extrair dos seus agrupamentos frases com sentido, como, por exemplo, que ming ji pega-chamar-cantar-felicidade = o canto da pega é de bom agouro; ya ming xiong corvo-chamar-cantar-infelicidade = o canto do corvo anuncia desgraça.

Na verdade, esse livro serviu para José Vicente Jorge desenvolver os conhecimentos de língua sínica de Pessanha, em lições escutadas com muita atenção e proveito. Por isso o Mestre, num gesto de amizade, o fez figurar como co-autor do livro, o que muito desvaneceu o Poeta, tudo conforme me esclareceu José Vicente Jorge. Deste modo, a dedicatória de Pessanha a D. Ana de Castro Osório transcrita à ti. 87 da muito valiȯsa compilação de Maria José de Lencastre (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984), em que o poeta classifica a tradução como "pobre tentativa de uma obra que, na sua especialidade, seria necessário fazer-se melhor para honra da velha pátria", com flagrante falsa modéstia pois que assumira a co-autoria como se fosse verdadeira, enquadra-se numa das manifestações de exagerado culto de si próprio, que por vezes manifestava, como nos informou Armando Boaventura, em 20 de Outubro de 1954, repetindo o que já escrevera no "Século Ilustrado", em 2 de Agosto de 1952: que essas "crises" o levavam "ao longo da Rua do Arsenal e do Ouro, noite velha e de regresso ao hotel", a parar "para recitar os seus versos, que ecoavam no silêncio da madrugada como... arcadas de violoncelo...", perguntando depois numa voz cantante "e, depois disto, onde está Camões, onde ficaAntero?...".

Camilo Pessanha quis, apenas, "deslumbrar" a sua excelente amiga, convencendo-a de que sabia chinês a ponto de colaborar naquela produção...

A decisão da publicação integral das Elegias Chinesas, conforme a original,enriquecidas numa adenda às "notas" da autoria do Dr. Jin Guo Ping, mui ilustre professor no Departamento de Português da Universidade de Línguas Estrangeiras de Beijing, é do maior mérito a que muito me honra associar-me.

Efectivamente essa tradução, impregnada do encanto da poesia de Pessanha, só pode ser devidamente apreciada por quem conheça as duas línguas, pelo confronto entre os textos chinês e português, como na primeira publicação.

Se Camilo Pessanha entendeu dever publicá-las com os dois textos, datas, local e dedicatórias, João de Castro Osório procedeu mal em publicá-las na revista "Descobrimento" completamente amputadas, sem o notável prefácio e os referidos elementos, e sem pelo menos identificar a fonte onde as colhera, ao arrepio de todos os cânones da deontologia literária.

António Valdemar ("Diário de Notícias", 7 de Setembro de 1967) critica asperamente esse sistemático procedimento não só em relação às Elegias como também à Clepsidra, também dizendo ("Diário de Notícias", 30 de Setembro, 1982) que João de Castro Osório "se julgava com o exclusivo de Camilo Pessanha" como se tratasse de um morgadio. Do mesmo modo o nosso estimado amigo Pedro da Silveira, um dos mais devotados apreciadores da obra do Poeta, condena tais "omissões", ("Vértice", Coimbra, Abril de 1959), assim como Alfredo Margarido, num admirável estudo ("Persona", (11-2)) denuncia e fustiga os "deslizes" de João de Castro Osório, que considera injustificáveis.

Quanto à supressão das "dedicatórias", que finalmente acabou por reproduzir nas páginas 537 e 538 da edição de 1969 da Clepsidra, a "justificação" de João de Castro Osório não colhe e é injusta ao dizer que os focados nas dedicatórias, de que só exclui Venceslau de Morais, jamais fizeram a diligência mais simples para que fosse facilitada a Camilo Pessanha a realização do que projectara, ou seja, publicar "com vastidão as obras (o) que considerava o dever da última parte da sua vida".

Ora se Camilo Pessanha assim o desejasse não lhe faltaria dinheiro e tipografias para realizar esse projecto.

Por outro lado, aquela "justificação" de João de Castro Osório é flagrantemente contraditória em relação a um dos visados, Carlos Amaro, com as apreciações que se lêem, sobre esse amigo do Poeta, em diversas passagens da referida edição, mormente à página 23.

Quanto à omissão dos textos chineses, também falece de razão porque poderia recorrer à edição fac-similada para obviar a falta de caracteres chineses nas nossas tipografias e de compositores que os soubessem utilizar.

João de Castro Osório também se preocupava em demasia com a atribuição de primazia de publicação dos poemas de Pessanha que, em grande parte, já tinham sido dados a lume muito antes de terem chegado ao seu conhecimento...

Ora o que interessa fundamentalmente é Camilo Pessanha e a sua maravilhosa poesia o que se sobrepõe a estéreis discussões determinadas por vaidades pessoais, o que plenamente se aplica à obra de todos os grandes artistas que, pelo seu Génio, "se vão de lei da morte libertando".

Mas todo o trabalho honesto de investigação e apreciação da obra de Pessanha, já efectuado e a realizar, é de louvar e indispensável ad perpetuam rei memoriam. Para finalizar, é de justiça reconhecer que João de Castro Osório, ainda que com algumas falhas, contribuiu grandemente para o conhecimento e difusão da obra e personalidade de Camilo Pessanha, quanto mais não fosse por despertar em muita gente interesse por esse maravilhoso poeta.

* Advogado, professor e escritor. Residiu em Macau entre 1931 e 1946, onde colaborou nos periódicos "A Voz de Macau", "Boletim Eclesiástico", "Renascimento" (sendo um de seus fundadores), etc. Para além da inúmera obra de ficção, dedicou-se ao estudo da porcelana chinesa, do dialecto macaense, de Venceslau de Morais e de Camilo Pessanha.

desde a p. 209
até a p.