Pontos de Encontro

MUIFÁ
VERSOS CHINESES

Francisco de Carvalho e Rego*

DUAS PALAVRAS

que de mais remotohá da poesia chinesa encontra-secompilado e seleccionado por Confúcio no célebre Shi Jing (Cânon das Odes).

Curiosíssimo cancioneiro, o ShiJing, onde se encontram hinos, velhas canções, cânticos religiosos, etc., mostra-nos os primeiros passos da poesia deste imenso país, passos mal amparados, mas que, sem dúvida, nos preparam para a recepção da poesia da dinastia Tang, a mais brilhante e admirável de todas.

Não fugindo à regra geral, os Chineses, como os outros povos, começaram por exprimir os seus pensamentos elevados em poesia.

Claro é que além das poesias compiladas no Shi Jing, outras há que figuram dispersas e são atribuídas a trovadores dessa época a que chamam clássica.

Todas as poesias desta primeira época estavam ligadas à música, como é lógico, e eram cantadas na Corte.

Traduzido para várias línguas, o Shi Jing tem merecidoa admiração de tantos quantos têm tido a venturade poder apreciá-lo.

Ora não resta dúvida sobre que o Shi Jing é confuso e que diferem as versões que têm sido apresentadas ao público, devendo-se muito à fantasia dos tradutores.

A poesia dessa época não tinha feição definida, nem regras que a governassem, carecendo, portanto, de ordenação, disciplina, etc.

Mas assim foi vivendo, com mais ou menos brilho, numa infância pobre e em puberdade pouco ou nada melhorada, até que na dinastia Tang nos aparecem os grandes poetas da China a assentá-la em sólidos alicerces, a darem-lhe feição própria em perfeitas linhas arquitectónicas, construindo o edifício que convinha à maturidade alcançada.

Foi Li Bo, ou Li Tai Bo, considerado o mais brilhante de todos os poetas chineses, o construtor desse sólido edifício que o tempo não conseguiu derruir e que ainda hoje se mostra como Templo sagrado, inviolável.

Viveu este admirável poeta, prova-velmente de 699 a 762, durante a dinastia Tang e supõe-se que fosse ainda aparentado, por descendência em nona geração, com a Família Imperial.

Nascido em remota parte do Império, junto à província de Sichuan, desde pequeno mostrou-se Li Bo com inclinação extraordinária para a poesia, revelando conhecimentos literários que o tomaram considerado prodígio para os seus tenros dez anos de idade.

Crescendo, de tal modo se impôs pelos seus conhecimentos e pela beleza das suas composições poéticas, que, levado à Corte, aí foi considerado como um dos génios imortais que, banido das regiões celestes, tivesse baixado à terra.

Foi, durante algum tempo, protegido pelo Imperador Xuan Zong, merecendo os favores da Corte e vivendo em relativa opulência.

Mas os génios, modo geral, não são favorecidos pela sorte e, assim, tendo caído no desagrado da concubina predilecta do Imperador, foi banido da Corte, perdendo, deste modo, a esperança de alcançar qualquer posição oficial, que lhe garantisse o futuro.

Como todos os Chineses, e especialmente os poetas, Li Bo era grande admirador da Natureza e, assim, resolveu viajar de terra em terra, cantando sempre as belezas da Natureza e mostrando-se admirador da Música.

Mas tinha o seu fraco o grande poeta que não só apreciava a Natureza e a Música como era apreciador de bons vinhos, de que tantas vezes abusava e que não deixou de cantar em suas poesias.

Espírito irrequieto, deixou-se envolver em intrigas políticas e foi desterrado para uma região muito distante, onde produziu grande parte da sua admirável obra.

Quando a velhice, porém, acalmou o seu feitio irrequieto, foi perdoado e, regressando, acabou seus dias em Dangdu, próximo de Nanjing, sob a protecção de Li Yang Peng.

Quase a par de Li B o temos de considerar Du Fu, que viveu de 712 a 770, filho de uma alta dignidade da dinastia Tang.

Para os Chineses, cabe a Du Fu o segundo lugar na galeria dos grandes poetas, havendo, porém, críticos que o colocam a par de Li Bo, ou até acima deste sob certos aspectos.

Favorecido pelo Imperador, ocupou um lugar de destaque na Corte, onde sempre viveu, sem conflitos nem aborrecimentos, que o seu génio não sabia criar.

Nas composições poéticas, conhecidas por "Os sete caracteres Pai Lu", é este poeta considerado o mais distinto de todos os poetas da dinastia Tang, senão o mais distinto de todos os poetas chineses.

Ora, como estes poetas, ocupam lugar de destaque, na Galeria dos Génios da poesia chinesa, Hang Chong, Li Duan, Li Shang Yin, Meng Xiao, Han Yu, Yu Liang Shi, Lin Yu Xi, Qu Yan e outros que na mesma época, ou em épocas diferentes, concorreram para o seu engrandecimento.

Sobre as grandes dificuldades encontradas na poesia chinesa deve referir-se o constante emprego de expressões alegóricas ou metafóricas, a referência a factos históricos, a usos e costumes antigos e mesmo a lendas, que já se perderam com a bruma do tempo. Sendo rimada, essa poesia apresenta-se quase sempre estranha e confusa, por não haver respeito pelas regras da sintaxe, ou pelo emprego de palavras que se destinam apenas à rima.

Estas características mostram-nos as dificuldades com que lutam os tradutores.

Ora, havendo que considerar na língua chinesa os diferentes tons necessários à pronúncia, para distinguir certos vocábulos, a poesia chinesa é essencialmente musical e de imperfeita tradução rigorosa, porque há sempre perda de beleza.

Tendo ainda em consideração que a língua chinesa é monossilábica e que a cada monossílabo corresponde uma palavra, facilmente se vê que a técnica da poesia chinesa não pode, de modo algum, ser respeitada numa tradução, tanto mais que há a considerar os tempos dos verbos, emprego de preposições, etc., o que pode fazer de um verso em chinês de sete sílabas (sete palavras) um verso de vinte sílabas, ou mais, na tradução.

Em face do que fica dito, não pode o leitor esperar encontrar traduções absolutamente correctas nas poesias chinesas que lhe apresento.

Mas, além disso,

EU NÃO SOU POETA

E, porque não sou poeta, procurei conservar a essência que pertence aos poetas chineses, não cuidando da forma que, quando apareça correcta (se é que aparece), foi espontânea, por acaso.

Procurei apenas que na leitura das poesias, que se seguem, houvesse música que agradasse ao ouvido.

Se o consegui, dou-me por satisfeito.

Devo dizer que as duas últimas poesias deste trabalho são da autoria da poetisa Peng Sam, da actualidade, professora numa Universidade Chinesa.

Aqui quero deixar, antes de terminar estas palavras, os meus agradecimentos ao meu querido amigo e distinto letrado Leonel Yeong (Yang You Gun) pelo auxílio que me prestou nas traduções das poesias que apresento ao leitor, e sem o qual não me teria sido possível realizar o trabalho.

Fevereiro de 1951.

LIBO

O REGRESSO NA PRIMAVERA

Delicada, como as linhas do jade cintilante,

Cresce a relva de Yan em direcção aos Céus.

O Inverno atrasou seu doce crescimento.

E tu, e tu, quando vens tu?

Amoreiras de Chin entrelaçam seus ramos

Vergados, verdejantes, cobertos de folhagem.

Esperam que recolham seus saborosos frutos.

E eu espero, eu espero as penas, que virão.

Chegaste Primavera? E chegará contigo

O doce pensamento de regressar ao lar!...

Em ti, a esperança nasce; não trazes amargura:

Meu pobre coração rejuvenescerá.

Não me conhece a brisa suave do Nascente,

E sopra, atravessando o tule dos cortinados.

Indica-te o caminho, que deverás seguir.

Já não é indeciso seu débil respirar.

E porque não regressas com a Primavera,

Que se nos vem mostrar imensamente bela?

OVELHO PAVILHÃO

Onde outrora os antigos disseram o adeus da

despedida,

A mágoa viverá nas coisas e nas almas.

Onde outrora os convivas se separaram, a Lua

brilha

E torrentes de luz brilham nas alturas.

As flores do lago desabrocham na radiosa

Primavera;

Os bambuais cantam nocturnos outonais:

Onde o Passado e o Presente se encontram

Unidos no meu canto, nesta poesia eterna.

Se por ali vagueias, em busca da magia,

Das ervas, dos rebentos mimosos e rosados,

Dos cálamos dispersos, que afastam o demónio,

Tu nada encontrarás, que vá além do nada.

E, se nos procurarmos no pôr-do-sol da vida,

Eu ultrapassarei, montado em Dragão Branco,

As rochas, que brilharem batidas pelo Sol,

Para encontrar amor em teu ebúrneo seio.

OS CORVOS QUE

GRASNAM DE NOITE

Através de densas nuvens de poeira,

Regressam negros corvos, muito tarde,

E vão, de ramo em ramo, em seu grasnar,

Em busca de seus queridos companheiros.

A esposa, solitária, vai tecendo

Os tapetes de seda e os brocados.

O tule dos cortinados lhe parece

A névoa, que lhe ensombra o pensamento,

E o grasnar, palavras do Destino,

Palavras de sofrer, de maldição.

A lançadeira pára, ela recorda

Aquele que lhe é caro e está ausente.

Suas lágrimas tristes bem confessam

Que sente desolado o triste lar.

A GRUTA DE DONGSHAN

Há que tempos não vejo a gruta de Dongshan!...

E quantas vezes já as rosas de canela

Floriram ao romper da mágica manhã?!...

Suas nuvens de prata perpassam invisíveis,

A encobrir os Deuses, que descem à mansão

De encanto e de beleza, de aroma e perfeição.

O OUTONO DA VIDA

Que amarguras e cuidados eu passei

Para ter meu cabelo tão grisalho!

Puro espelho da vida, que reflecte

A causa das nevadas outonais.

A ESCADA DA DESILUSÃO

(Escada interior que conduzia as favoritas aos aposentos do Imperador)

O tapete de orvalho, que cobre a escadaria,

Humedece os sapatos de seda, em nossos pés.

Brilha a pálida Lua, através dos cortinados,

Que descem, portadores de atroz desilusão.

O CAMINHO DA ALMA

Perguntas-me que faz minha alma pelo espaço?

Sorrindo, eu não respondo, por não poder fazê-lo.

Qual flor do pessegueiro, levada pela corrente,

Eleva-se a um Mundo distante dos teus sonhos.

A LUA BRILHA

Ao ver brilhar os raios do luar,

Vejo a neve cair na escuridão.

De olhos no Céu, encaro a Lua clara,

Repleta de memórias do meu lar.

O PASSEIO DE BARCO

O rio é claro e a Lua do Outono é tão brilhante,

Que, ao colhermos do lago as brancas flores

[ das noivas,]

Protestam, em murmúrio, as plantas aquáticas,

Corand o ante a passagem do barco irreverente.

J I N LING

Oh reinos que vos erguestes e tombastes,

Uns após outros, em negro turbilhão!

Eu canto-vos, fantasmas do passado,

Eu canto-vos, oh reinos, em silêncio.

O pequeno jardim, que nos ficou,

É menor que um canteiro desses tempos.

E são maiores, em número, estes montes,

Que lembram as alturas de Loyang.

As flores, que os Wus plantaram, com carinho,

Dentro das altas torres e muralhas;

As sedas e brocados, com que os Jins

Adornavam as salas dos palácios,

Tudo deixou de ter amor humano,

Tudo morreu com o correr do Tempo,

Que tudo transportou para o Nascente,

Por entre as ondas do revolto Oceano.

HANG CHONG

O CANTO DA PRINCESA ZHE PU

Como as aves evitam a gélida nortada,

Assim nossos parentes evitaram

A nossa união, tão desejada,

Com auxílio dos clãs, que se odiavam,

Apesar do amor, que nos unia.

E eu ter-te-ia seguido, mas os ódios

Cortaram as raízes, afastaram

A possibilidade desejada.

E este mundo, repleto de infortúnio,

Despedaçou meu pobre coração.

Chorei por ti e, por três longos anos,

Vivi em mágoa e dor, qual fénix enlutada.

E veio, então, a morte pôr termo ao meu sofrer,

Trazer sossego e paz à alma perturbada.

E junto à lousa fria, à minha sepultura,

Tu vens carpir a dor de grande sofrimento,

Enquanto, por momentos, meu espírito

[ acalmado ]

Regressa para ver-te e para te dizer:

Tão cedo, novamente, atroz separação

Não deixe que escutar possamos nossas vozes,

Já que os corpos não podem amar-se e

[ encontrar-se,]

Unam-se as almas para todo o sempre,

Vivam unidas para a Eternidade.

© Ilustração de Qin Wei Xun

LI DUAN

DESEJO

Levantei os cortinados e a Lua Nova surgiu.

Para adorá-la, desci do Templo da Fantasia.

Não deve minha oração ser escutada pelos

[ homens.]

Como desfaz a ilusão, a noite pálida e fria!...

LI SHANG YIN

ESPERANÇA

A aurora é límpida e não há brisa que agite o

[ orvalho.]

E eu acordo sozinho, á janela em que me

[ debrucei.]

Por entre as aromáticas flores, canta o

[ verdelhão,]

Se não é para mim, para quem será esta

[ Primavera feliz?]

MENG XIAO

NÃO ME DEIXES

Porque partes, assim, — amor tão caro —

Se tenho em minhas mãos as tuas vestes?

Para onde diriges teu olhar?

Não lastimo que venhas cedo ou tarde,

Pois apenas é mágoa que haja alguém

Que ocupe, em teu amor, o meu lugar.

DU FU

MÚSICA CELESTIAL

Quando soam as flautas em Chin Cheng,

É perturbada a luz do dia claro.

Vai com as nuvens, com a brisa suave,

O som, que se difunde pelos ares.

Não podem ser ouvidos os seus ecos,

Que ascendem às mansões celestiais.

É música dos Céus, pertence aos Deuses,

Não pode ser escutada por mortais.

HANYU

RUÍNA

Espelha-se a Lua plácida no pátio,

Mostrando as pobres pétalas caídas

Das flores das bravas pereiras descuidadas.

Falam as pedras dum feliz passado;

Eu contemplo os degraus puídos, gastos,

Batidos pelas brisas agitadas.

ANÓNIMO

O SONHO DO AMANTE

Não deixes sobre as plantas do jardim,

Os mágicos cantores, os rouxinóis,

Cantando, alegres, o nascer do dia.

Seu canto interrompeu o meu sonhar,

Quando tinha apertado, entre meus braços,

O meu amor, que para mim sorria.

YU LIANG SHI

OS MONTES DA PRIMAVERA

Oh Montes da Primavera!

Oh Montes da Primavera!

Vós ofereceis tais prazeres!...

Prazer puro, que me deixa Esquecido da noite escura,

Que sobre as coisas caminha.

Na água, onde molho as mãos,

Mergulha a Lua sozinha.

E o perfume das flores

Passa às vestes, que me cobrem.

Mas, com tanta inspiração,

Porque não tenho coragem

De cantar, como eu quisera,

Esta sublime paisagem?

Quero partir, mas não posso!

Sinto-me preso à beleza

De tudo aquilo que vejo,

Sinto-me preso ao desejo

De cantar tanta alegria,

De cantar a Natureza.

De onde vem o repicar

De tanto sino festivo?

De onde vem o repicar?

Das torres, que não se vêem,

Das torres, que se esconderam

Na profunda água do mar.

LIN YU XI

JUNTO À PONTE DE CHUCHIO

Os raios do Sol poente,

Junto à ponte de Chuchio,

Com revérberos dourados,

Cobrem a velha passagem,

Aquecem as flores bravias,

Vestem tudo de brocados.

As andorinhas, que outrora

Esvoaçavam, contornando

Os palácios orgulhosos,

Circundam velhas cabanas,

Que não trazem à memória

Esses tempos tão saudosos.

QU YAN

NEVE SOBRE AS MONTANHAS DE ZHONGNAN

Os picos das montanhas de Zhongnan,

Desenham suas formas de encantar,

Em silhueta ténue e diáfana,

Criada pela aurora matutina.

Flutuam entre nuvens alterosas,

Cobertos pela neve branca e fria.

Ameaçando o firmamento imenso,

Em tons claros, alegres e brilhantes,

Surgem ao longe as mágicas florestas,

Que estendem sossegadas, quietamente,

Sobre a cidade, há pouco despertada,

As frias e molhadas mãos da noite.

ANÓNIMO

CANÇÃO DO ENTERRO DA FLOR

Murcham as flores, as flores que são levadas,

Já desbotadas, através dos Céus,

Envelhecidas, sem aroma e graça,

Como não sendo criação de Deus.

E quem se importa com o seu destino?

E quem se importa com a sua dor?

Do pavilhão primaveril, suspensas,

Brancas filandras de apagado alvor,

Lembram as almas dessas flores errantes.

Juntas aos pares em inocente amor.

Os amentilhos húmidos, caindo

Sobre o biombo de brocado fino,

Lembram murmúrios do Além distante,

Anunciantes de cruel destino.

Pobre donzela, que lamenta e chora

O desbotar da alegre Primavera,

Não abrigando, no seu peito virgem,

A chama ardente duma só quimera,

Sai do seu quarto, triste, pesarosa,

Sobre um tapete de flores caídas;

E, comparando as sinas, os destinos,

Vê como as duas sortes são parecidas.

Têm luxúria as lindas flores do ulmeiro,

Restos do viço da estação florida;

Voam as flores do frágil pessegueiro,

Da ameixeira, as flores caem sem vida.

Mas, ao passar o ano, o pessegueiro

Volta a florir, e florirá também

A ameixeira. A Primavera volta,

Voltando as flores que a Primavera tem.

E a donzela, onde estará? Quem sabe

Onde estará essa viçosa flor?

Vem o Inverno. As frágeis andorinhas

Fogem aos dias tristes, encobertos,

Mas as florinhas caem, secas, murchas,

Leva-as o vento a lugares desertos.

E sobre os ramos secos, o Tu Chuan,

Deixando traços de vermelho sangue,

Silencioso, abandonado e triste,

Espera o momento de cair exangue.

Pobre donzela, encarando, triste,

As flores, que o vento arremessou ao chão,

Recolhe-as todas numa cova humilde,

Cobre de luto o próprio coração.

Volta ao seu quarto, cai atordoada

No leito puro, que o Inverno gela.

Ouve o Destino rir à gargalhada;

Ouve o bater da chuva na janela.

"Ah! Porque sofro?" — diz a infeliz

"Porque detesto e amo a Primavera?

Porque me foge inesperadamente,

Porqu e não dura quanto eu quisera.

Na derradeira noite da estação,

Ouvi cantares de sofrimento e dores.

Eram lamentos de almas oprimidas,

Dos passarinhos, das mimosas flores.

Ah! Se eu tivesse duas asas longas,

Todas cobertas de purpúrio véu,

Acompanhava as flores, que o vento leva,

Indo com elas repousar no Céu.

Pobres florinhas! Com uma pá de terra,

Foi-se a beleza, foi-se o aroma e cor.

Choram os campos de tristeza imensa,

E chora o Céu de comoção e dor.

Eu vos enterro, antes que nos charcos

Vossa pureza seja maculada;

Antes que os ventos do rigor do Inverno,

Cubram os campos de cruel nevada.

E qual será a alma benfazeja,

Que me prepare a triste sepultura,

Quando, cansada do viver terreno,

Ascenda ao Céu, imaculada e pura?"

E com as flores partiu a Primavera,

E a donzela, triste envelheceu,

Sem a frescura da estação das flores,

Sem o encanto, a graça, que perdeu. .................................... ....................................

Caem as flores, e a donzela frágil

Com elas cai na escuridão da morte.

Choram os campos seu cruel destino,

E chora o Céu a sua triste sorte.

PENG SAM

O BARQUINHO DE PAPEL

(A minha mãe)

Quando a bordo de um barco navegava,

Aproveitava as folhas de papel,

Para fazer barquinhos, que lançava

Às águas profundas e revoltas.

Alguns eram trazidos pelo vento,

Que os vinha colocar em minhas mãos;

Outros eram molhados pelas ondas,

Desfeitos pela força das correntes.

Mas nunca desisti, continuei sempre

A fazer os barquinhos de papel,

Na esperança de que um deles alcançasse

O destino, que eu tinha em pensamento.

Querida mãe! Se em sonhos te aparecer

Um ligeiro barquinho de papel,

Ele é feito com lágrimas, que choro;

Leva-te o meu amor, minha tristeza.

CONSOLAÇÃO

Sonhei, um dia, que vivia só,

E que, no mundo imenso, abandonada,

Não tinha quem quisesse acompanhar-me.

Acordei suspirando e, nesse dia,

Invadiu-me tristeza tão profunda,

Que chorei de pesar, de dor imensa:

Pesar dos que não têm companheiro,

E dor pelos que vivem isolados.

Sonhei, um dia, que vivia só,

E que, no mundo imenso, abandonada,

Não tinha quem quisesse acompanhar-me.

Senti-me tão diferente, ao comparar-me

Àqueles que, vivendo em alegria,

Não pensam no valor de um companheiro,

Que me julguei abandonada e triste,

Sem o amor dos que me rodeavam.

Quando, mais tarde, te contei meu sonho,

Sentada junto a ti, oh minha mãe,

Vi que choravas, como eu também choro.

E ao Criador, que nos juntou às duas,

Dirigimos as nossas orações

De adoração, de imensa gratidão:

Tu por me teres a mim junta, a teu lado,

E eu por sentir-te ao pé do coração.

Reproduzido de: REGO, Francisco de Carvalho e, Mui Fá: Flor da Ameixieira, Macau, Imprensa Nacional, 1951.

* Escritor e jornalista. Colaborou (alguma vez sob o pseudónimo Francisco Penajóia) em vários jornais e revistas, entre elas a "Renascimento", como seu redactor. Publicou poesias, trabalhos de índole literária e obras sobre Macau e China, de que se destacam Da Virtude da Mulher Chinesa, O Caso do Tesouro do Templo de Á-Má, Cartas da China, Macau e Lendas e Contos da Velha China.

desde a p. 241
até a p.