Pontos de Encontro

MINHA RELAÇÃO COM A POESIA CHINESA

Haroldo de Campos*

I —INTRODUÇÃO

Desde o ano de 1952, com a publicação do primeiro número da revista-livro Noigandres, Augusto de Campos, Décio Pignatari e eu empreendemos um movimento de sistemática renovação, teórica e prática, da poesia brasileira, que culminou no lançamento, em Dezembro de 1956, da "Poesia Concreta". Um dos pontos fundamentais de nosso programa era o "método ideogrâmico de compor", desenvolvido por Ezra Pound, a partir do ensaio de Ernest Fenollosa, por ele editado, sobre os caracteres da escrita chinesa (os kanjis japoneses) como instrumento para a poesia (ver, a propósito, a antologia por mim organizada, ldeograma/Lógica. Poesia. Linguagem, publicada em 1994, em 3a edição, pela EDUSP; meu ensaio de abertura, ldeograma, Anagrama, Diagrama: Uma Leitura de Fenollosa, está sendo, aliás, vertido para o japonês pelo semioticista Prof. Isamu Taniguchi).

Nesse sentido, ocorreu uma feliz coincidência. No mesmo ano de 1956, menos de um mês antes do lançamento público da Poesia Concreta (no Brasil e no plano internacional), fundou-se em São Paulo a "Aliança Cultural Brasil-Japão", presidida por Guilherme de Almeida, um remanescente moderado da Semana Modernista de 1922, grande amigo de Oswald de Andrade.

Eu estava interessado em conhecer melhor a natureza e os mecanismos da escrita ideográfica e aproveitei a oportunidade para, com minha mulher Carmen de Paula Arruda Campos, especializada em Desenho Científico, matricular-me no Curso de Japonês promovido pela Instituição recém-constituída. Foi o que fizemos, Carmen como a aluna n° 74, eu como o aluno n° 73, no ano de 1957— membros os dois de uma turma frequentada majoritariamente por descendentes de japoneses. Havia, no entanto, uma peculiaridade: o senseisan era o Prof. José Sant'Anna do Carmo, um baiano de Feira de Santana, que aprendera o idioma como professor de. crianças em Marília, estado de São Paulo, e que publicara uma útil e pioneira Gramática Nipo-Brasileira em 1940 (revista e ampliada em 1948).

Dedicado à língua nipônica desde 1925, o Prof. Sant'Anna do Carmo adquirira fluente domínio do japonês falado e escrito, sendo tratado com admiração e surpresa na imprensa paulista (lembro-me de uma reportagem da "Folha da Manhã", de 23.03.58, Autodidata baiano transmite em São Paulo os seus conhecimentos da língua japonesa). Tomei-me amigo do sensei baiano e, como meu interesse principal estava no kanji (para cujo desenho, aliás, minha mulher mostrava-se mais apta do que eu...) — interesse que aborrecia nossos jovens colegas de origem japonesa, empenhados em adquirir rapidamente conhecimentos da língua falada, para uso coloquial com os pais e avós — acabei por pedir ao professor que me desse aulas particulares.

Durante cerca de dois anos tivemos sessões matinais de estudo, aos domingos, em seu apartamento da rua Fortunato, no bairro de Santa Cecília. Foi então que comecei a fazer as minhas primeiras traduções de poemas do tipo haicai, publicando-os no Suplemento Literário de "O Estado de São Paulo" (30.08.54 e 25.07.64), bem como no hoje desaparecido "Correio Paulistano" (página Invenção, mantida pelo grupo de poetas concretos, em 01.05.60 e 19.06.60). Recolhi, depois, esses trabalhos em meu livro A Arte no Horizonte do Provável (São Paulo, Perspectiva, 1969), sob os títulos "Haicai: homenagem à síntese" e "Visualidade e concisão na poesia japonesa".

Em minhas transcriações de poesia japonesa, como também nas incursões que fiz na poesia clássica chinesa, a partir de textos bilingues (cf. A Arte no Horizonte do Provável), procurei valer-me das sugestões de Fenollosa e Pound, porém não indiscriminadamente. Adotei a ressalva proposta pelo tradutor norte-americano W. McNaughton (revista "Delos", Austin, (1) 1968): "Uma palavra em chinês é escrita por meio de um ideógrafo, que, por vezes, pode ser analisado, para vivificar ou intensificar o sentido aceito." Manter esse horizonte semântico, à maneira de pano de fundo, foi a baliza que adotei.

Assim, não me restringi à tradução servil, nem me rendi ao beletrismo acadêmico-morigerador, que verte o poema de partida numa língua literária obsoleta, tributária de uma estética de inclinação passadista, ultrapassada pelo estágio atual da poesia brasileira, desde a revolução modernista de 1922.

No que diz respeito, mais propriamente, à poesia chinesa (clássica), embora eu nunca tivesse podido estudar regularmente o idioma, procurei autodidaticamente enfronhar-me nele, com o auxílio de gramáticas e dicionários, fixando-me em especial na língua escrita, característica dessa poesia, quase um "idioleto" reservado para uso de poetas. Foram-me particularmente úteis livros como, por exemplo: FORREST, R. A., The Chinese Language, London, Faber and Faber, 1958; HERDAN, Gustav, The Structuralist Approach to Chinese Grammar and Vocabulary, The Hague, Mouton, 1964; LIU, James J. Y., The Art of Chinese Poetry, The University of Chicago, 1962; JAKOBSON, Roman, Le Dessin Prosodique dans le Vers Regulier Chinois, "Change", Paris, (2) 1969; TSCHAUER, Eduàrd Horst von, Chinesische Gedichte in Deutscher Sprache: Probleme der Uebersetzungskunst, in STÖRUNG, H. J. (org.), Das Problem des Uebersetzens, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1963; MATHEWS, R. H., Chinese-English Dictionary, Cambridge, Mass., Harvard University, 1963; WIEGER, L., Chinese Characters, New York, Dover Publications, 1965; assim também numerosas traduções, para diversas línguas, de poesia chinesa, várias delas em edições bilingues, providas de estudos críticos e comentários. Uma já nutrida estante de trabalhos na área tem-me servido de apoio, desde que me dispus a seguir, com os subsídios e cautelas que me pareceram adequados, o exemplo tutelar de Ezra Pound, para o fim de "re-inventar" em português textos poéticos da magna tradição chinesa.

Ao trabalho mais relevante que publiquei a respeito, dei um título provocativo: A Quadratura do Círculo (1969). Inclui nele a recriação das Odes 20,42,72 e 93 da Antologia Clássica definida por Confúcio (Shi Jing ou Cânon das Odes); acrescentei, a essa amostragem, a versão de um poema do Imperador Han Wu Di, dedicado à dama Li Furen (este último, extraí-o de uma Anthology of Chinese Poetry, bilingue, organizada por Shi Min, impressa em Hong Kong, por mim adquirida numa livraria do bairro chinês de San Francisco, em 1966). Essas traduções, com o ensaio que as precedia, foram publicadas em meu livro A Arte no Horizonte do Provável, já citado.

Antes desse trabalho, eu havia divulgado através do Suplemento Literário de "O Estado de São Paulo", 04.01.64, Três Poemas Chineses, compreendendo uma composição da Parte II (Shiao Ya / Elegantiae Minores) do Cânon das Odes (" Senhor do Machado da Luz") e dois poemas de Li Tai Po:**

    
    SENHOR DO MACHADO DA LUZ 
    Ki Fu
    
    Corações cortados, 
    nós — garras e caninos
    do rei, —
    por que nos lançastes em desgraça
    General? 
    sem teto, sem destino. 
    
    Corações sangrados, 
    nós — guardas e colmilhos
    do rei, —
    por que nos lançastes em desdita
    General? 
    sem fundo, sem fim. 
    
    General
    sem tino e sem ouvido
    que fizeste? 
    O cadáver das mães
    sem filhos
    cozinha. 
    
    NOITE, SILÊNCIO, PENSAMENTO
    Li Tai Po
    
    Leito
    Lúcida lua 
    Alumbra
    
    Uma dúvida: 
    Geia na 
    Terra escura? 
    
    Cabeça alta 
    Olho na 
    Lua prata
    
    Cabeça caída 
    Mente na 
    Terra antiga
    
    IMPROVISO
    Li TaiPo
    
    Nuvens
    são
    cambraias
    
    Pétalas
    tuas
    faces
    
    Brisa
    que farfalha 
    nas varandas 
    altas
    
    Cristaliza 
    orvalho 
    diamantes 
    de água
    
    Se não posso 
    vê-la
    nos píncaros 
    de jade

sob a lua

ei-la

no pavilhão

de j aspe

Em 1971, como parte de um estudo dedicado ao estilo barroco na acepção trans-temporal do conceito — Uma Arquitextura do Barroco, reconfigurei em português um poema de Li Shang Yin, o Gôngora e/ou Mallarmé chinês, da dinastia Tang tardia. Esse trabalho encontra-se em meu livro A Operação do Texto, São Paulo, Perspectiva, 1976. Outro poema do mesmo virtuosístico autor foi por mim "trans-criado" no corpo de um ensaio dedicado à abordagem lacaniana da linguagem, Barrocolúdio: Transa Chim?, "Isso / Despensa Freudiana", Belo Horizonte, (1) Verão 1989.

Em minha coletânea de poemas A Educação dos Cinco Sentidos, São Paulo, Brasiliense, 1985, estampei, na seção "Transluminuras", uma versão de características singulares, espacializada e entremeada por alguns ideogramas do texto original, do célebre poema de Li Tai Po, no qual o poeta se descreve bebendo e dialogando com sua sombra e a Lua. Dei-lhe um título neológico: Litaipoema...

LITAIPOEMA

entre flores 花間: uma jarra de vinho

solitário bebendo sem convivas

erguer a copa à lua lunescente 明月

lua e sombra: somos três agora

(mas a lua é sóbria

e em vão

a sombra me arremeda)

um instante sombra e lua: celebremos

a alegria volátil primavera!

canto e a lua 月 se evola

danço e a somba影 se alvoroça

despertos o prazer nos unia

ébrios separamos os caminhos

nós de água 水結 nunca mais reatáveis?

já nos veremos pela Via Láctea 雲漢

Finalmente, em 08.04.88, no Folhetim n° 583 da "Folha de São Paulo", publiquei Três Versões do Impossível, estudo acompanhado da transposição criativa ao vernáculo de três poemas de Wang Wei, dos quais reproduzem-se dois:

NA MONTANHA

Wang Wei

nas águas do Ching afloram pedras brancas

debaixo do céu frio raras folhas rubras

trilha da montanha sem gota de chuva

o azul do vazio molha nossas roupas

山中

空山天荆

翠路寒溪

濕元紅白

人無葉石

衣雨稀出

O REFÚGIO DOS CERVOS

Wang Wei

montanha vazia não se vê ninguém

ouvir só se ouve um alguém de ecos

raios do poente filtram na espessura

um reflexo ainda luz no musgo verde

鹿柴

復返但空

照景聞山

青入人不

苔深語見

上林響人

Atualmente, preparo uma recolha bilingue de todas as minhas "trans-criações" de poesia clássica chinesa (algumas inéditas) para uma edição aos cuidados do poeta e tipógrafo artesanal mineiro Guilherme Mansur, de Ouro Preto.

II — A QUADRATURA DO CíRCULO

1. PREMISSA

Já se disse que traduzir poesia chinesa para um idioma ocidental seria algo tão impossível como a quadratura do círculo (Siegfried Behrsing, citado por W. McNaughton, Ezra Pound et la Littérature Chinoise). É da essência mesma da tradução de poesia o estatuto da impossibilidade. Para quem aborda a arte de traduzir poesia sob a categoria da criação, essa superlativação das dificuldades que lhe são intrínsecas só pode acrescer-lhe, na medida proporcional, o fascínio.

2. PROJETO

Propus-me "reimaginar" (prefiro esta palavra, no caso, ao conceito usual de "traduzir") em português cinco poemas chineses, de acordo com o seguinte método: a) exame do texto original, com auxílio de uma versão intermediária (literal ou não); b) estudo dos principais ideogramas, segundo o método poundiano de hiperetimologia (detectar neles, sempre que couber, o casulo metafórico original e desvelá-lo poeticamente). Para esta fase "b", servi-me do Chinese-English Dictionary, de R. H. Mathews, Harvard University Press, e de Chinese Characters, de L. Wieger, S. J., Dover Publications, além das obras de Vaccari, Pictorial Chinese-Japanese Characters e Standard Kanji, C. E. Tuttle Co.

Adotei como objetivo das traduções:1) valorizar o aspecto visual da tradução do poema ideográfico num idioma ocidental, replicando assim a certos efeitos do original que geralmente se perdem nas versões; é evidente que tomei liberdades quanto ao projeto visual do poema, tirando partido dos recursos tipográficos da poesia nova, como por exemplo o uso sistemático da caixa-baixa e a espacialização, externa ou interna ao texto;2) manter a síntese, a extrema concisão e a ambiguidade de uma linguagem regida não pela lógica aristotélica, mas por uma "lógica da analogia" ou "lógica da dualidade correlativa" (Chang Tung Sun, A Chinese Philosopher's Theory of Knowledge), pois os caracteres ideográficos são um instrumento congenial para o "pensamento relacional" (Chu Yu Kuang, lnterplay Between Language and Thought in Chinese); 3) procurar reproduzir o esquema paralelístico e os efeitos de correspondência léxica da arte poética chinesa clássica (cf. Chu Yu Kuang, op. cit.; E. H. von Tscharner, Chinesische Gedichte in Deutscher Sprache; Roman Jakobson, Poesie der Grammatik und Grammatik der Poesie e Le Dessin Prosodique ou le Principe Modulaire dans le Vers Régulier Chinois).

3. PERCURSO

Os 4 primeiros poemas a seguir apresentados pertencem ao Shi Jing, o Cânon das Odes. Foram traduzidos por Ezra Pound em The Classic Anthology Defined by Confucius. Em minhas traduções deixei-me inspirar pelas técnicas paralelísticas da poesia medieval portuguesa, ancorando assim a novidade do meu esquema numa tradição sempre viva e estimulante.1 Incluí também, livremente, epígrafes e subtítulos (a exemplo de Pound e mesmo de outros tradutores, não tão inovadores, mas que nelas encontravam semelhanças com topoi da poesia ocidental clássica).

Da "Ode 20" há uma tradução de H. A. Giles com o título Desperate (Shi Min, An Anthology of Chinese Poetry from the Chou to T'ang Dynasties). A tradução de Pound começa com estes dois versos: "Oh soldier, or captain, / Seven plums on the high bough." L. S. Dembo (The Confucian Odes of Ezra Pound) comenta:"Não se trata do mero anúncio da disponibilidade de alguém para o casamento. É um grito de desespero, no qual a moça identifica a si mesma, sua vida, com ameixas numa árvore, e é de certo modo envolvida na ordem da natureza. O pathos é pessoal, mas sugere algo que o transcende." Extraí a epígrafe de Salvatore Quasimodo.

A "Ode 42" é o poema que Pound traduziu sob o título The Appointment Mnqué, e ao qual ele dá um tratamento que lembra a linha laforguiana de poemas como o seu próprio Portrait d'une Femme ou o eliotiano La Figlia che Piange. A jovem simples dessa lírica de ambiência campesina é transfigurada por Ezra Pound através de um soberbo epíteto: "Lady of azure thought." Em minha tradução procurei ficar mais perto do texto original, reproduzido e comentado por L. S. Dembo, sem renunciar, no entanto, ao clima de "encantamento" da versão poundiana. E. Pound, com sua imaginação etimológica, extraiu o azure thought do ideograma ching***ou tsing (n° 1154 do Dicionário de Mathews), que é formado pela justaposição dos signos para "azul" e "lutar" (duas mãos puxando em diferentes direções). Naturalmente um sóbrio sinólogo como L. S. Dembo pode traduzir impassivelmente esse ideógrafo por quiet (Mathews dá quiet, peaceful). Não o poeta Pound, cuja mente está cheia de formas e cores, à espera de imantação. No composto "azul-serena", procurei reter, nas pegadas de E. Pound, a força visual do ideograma original, sem porém sofisticar demasiadamente a personagem feminina da Ode.

Pound traduza "Ode 72" com o título Taedium. Chamei-a cantar de amiga e acrescentei-lhe uma epígrafe provençal ses vezer (sem ver). Von Tscharner, além da tradução literal dessa Ode, reproduz e comenta as versões de Victor von Strauss, Vincenz Hundhausen e Friedrich Rueckert, das quais a melhor é a do segundo, pela economia de palavras e rigor paralelístico. O original compõe-se de 3 segmentos de 3 linhas, cada uma das quais compreende 4 ideogramas. Ao todo, 36 ideogramas. Minha tradução tem o mesmo número de palavras.

"At the great gate to the East" é o primeiro verso da "Ode 93" na versão poundiana. Through Eastern Gates é o título do mesmo poema na tradução de L. Crammer-Byng (apud Shi Min, op. cit.). Exemplo de aplicação do método de E. Pound, mesmo onde Pound deixa de aplicá-lo:

Gray scarf and a plain silk gown I take delight in one alone.

No meu texto, a expressão "I take delight" ("tenho prazer"), ou, como quer L. C.-Byng:"She... gave me the only joy I knew" ("Ela me deu a única alegria que eu jamais conheci"), está vertida por uma imagem concreta de júbilo:"tambor e címbalos". Tirei-a do ideograma n° 4129 de Mathews, lo****, significando: happy, pleased, to laugh, joy. Compõe-se das pictografias de "tambor" e "címbalos" sobre um suporte (cf. Lição Etimológica n° 88-C, de L. Wieger, op. cit.). "Tremer de beleza": L. C.-Byng traduz este passo por "She fills my heart with ecstasy" ("Ela enche meu coração de êxtase"); E. P. praticamente repete o refrão da estança anterior ("I take delight with one alone"), o que não corresponde ao original,onde ambas as linhas só têm um ideograma em comum (uma partícula indicadora de propósito ou expletiva, — Mathews, n° 3960). A análise revela que o ideograma traduzido por "encher de êxtase" compõe-se do radical n° 38, um pictograma simples que representa uma "mulher", e, ao lado, um pictograma complexo, onde estão representados uma "boca" e um "homem que inclina sua cabeça para trás", como para gritar (cf. L. Wieger, Lição Etimológica n° 61-A); Mathews traduz este último pictograma por "clamoroso", "clamar" (n° 7201), e o conjunto de ambos por "dar prazer", "entreter", "rejubilar" ou simplesmente "prazer" (n° 7647). A imagem visual de uma "mulher" que faz alguém "inclinar sua cabeça para trás como para gritar", somada à conotação "júbilo", fez-me pensar no verso de Guido Cavalcanti (uma pedra-de-toque poundiana): "E fa di clarità l'aer tremare" ("E faz, com sua claridade, o ar tremer"), que pode ser melhor compreendido através destes dois outros:"Là dove questa bella donna appare /... Sento che 'l suo valor mi fa tremare" ("Lá onde esta bela aparece /... Sinto que o seu valor [graça, beleza] me faz tremer"). Daí a solução que adotei em meu texto.

Finalmente, o poema que Han Wu Di dedicou a uma dama chamada Li Furen, e ao qual eu dei uma epígrafe extraída de Marvell (To his Coy Mistress), foi vertido para o inglês por Arthur Waley. Reproduzo esta versão, que tem uma bela solução aliterativa:

Is it or isn't it?

I stand and look.

The swish, shish of a silk skirt.

How slow she comes!

Minha tradução propõe um desenho frásico à Cummings, quase concreto. As "plumas" estão no ideograma para to flutter, to run to andfro (pian, Mathews, n° 5249).

4. PRECEITO

"Os problemas que se colocam ao tradutor de poesia chinesa assentam-se parte em conhecimentos empíricos, parte em intuições. Suas soluções, correspondentemente, devem originar-se tanto do conhecimento empírico quanto do intuitivo. Visto que a intuição tem um papel tão relevante na apreensão da poesia chinesa; considerando, ainda, a multiplicidade e a complexidade dos problemas da tradução em geral, para cuja solução sempre é possível se contribuir de alguma forma, aqui também o mais livre poeta-recriador (Nachdichter) tem seus direitos assegurados, junto aos tradutores propriamente ditos (literais)" — E. H. von Tscharner, inspirado nos conselhos de Goethe sobre a arte do traduzir.

5. POEMAS (SHI JING)

ODE 20

UN LAMENTO D 'AMORE SENZA AMORE

ameixas maduras

ameixas maduras 

              

só sete       

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na rama curva   

amado, amigo  

                

é hora      

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é hora      

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

ameixas vermelhas

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só sete       

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

              

na rama esbelta 

amigo, amado  

                

agora         

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

                

agora         

lang=EN-US style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

ameixa nenhuma  

              

na rama nua     

style='font-size:12.0pt;font-family:宋体'>

amado, amado  

                

o tempo passado

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amigo, amigo  

                

o tempo perdido

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ODE 42

moça bela

azul-serena

polpa de cedro

junto ao muro das armas

junto à esquina erma

a espero e não vejo

(desespero ando a esmo)

moça linda

azul-tranquila

sopro de seda

deu-me um junco vermelho

(vermelho e brilha menos

do que a sua beleza)

traz-me do campo

talos claros

verde-raros

louvar? louvara

primeiro a dela

beleza cara

ODE 72

CANTAR DE AMIGA (SES VEZER)

colhia-me ramos verdes

um dia sem vê-lo:

— três janeiros!

colhia-me ramos de ouro

um dia sem vê-lo:

— três outonos!

colhia-me ramos tenros

um dia e não vê-lo:

— três anos inteiros!

ODE 93

moças como nuvem

na porta este

como nuvem e este

coração resiste

lenço de seda cinza

veste de seda simples

só ela para mim

(tambor e címbalos!)

existe

moças como junco

no portão de ameias

como junco e junto

o coração desdenha

pano de cor garança

veste de seda branca

só ela me deixa

(vermelho-garança)

tremer de beleza

III - UMA ARQUITEXTURA DO BARROCO (EXCERTOS)

Li Shang Yin (812?-858 d. C.) é um poeta da dinastia Tang tardia. James Y. Liu, em The Art of Chinese Poetry, compara-o a Mallarmé, por sua linguagem oblíqua e alusiva (para James Liu, que é um scholar de gosto acadêmico, Mallarmé é um "poeta menor", cuja poesia lida com palavras e não com a vida...). O poema que aqui traduzo, dado por "notoriamente obscuro", é objeto de um comentário minucioso de parte de J. Y. Liu, que elucida os seus vários níveis, no plano ideogrâmico e também no sonoro (este, nesta composição, revela-se particularmente importante).

No primeiro verso, o adjetivo "difícil" é usado em dois sentidos: exprime a dificuldade material de os dois enamorados se encontrarem e aquela outra, ainda maior, de se separarem, uma vez conseguido o encontro. No segundo verso, há uma alusão à quadra do ano e, ainda, uma imagem através da qual o poeta exprime a sua incapacidade de deter o curso dos acontecimentos. A seguir, o belíssimo terceiro verso, que tira partido das homofonias existentes, no original, entre a palavra "morte" e a palavra "fio de seda", ambas pronunciadas como si, embora em tonalidades diferentes. Na tradução, procurei captar o efeito com o jogo paronomástico entre "seda" e "se obsedam". "Fio" é o produto do "bicho-da-seda" e também o próprio "fio" da vida; na convenção poética chinesa (regida pelo "artifício da alusão textual, da citação velada", cf. D. Lattimore), tanto a idéia de "amor imperecível" como a de "infinita tristeza" se associam nesse verso. Na quarta linha, há um efeito em torno de "cinzas" (hui): este mesmo ideograma, associado ao de "coração", lê-se hui xin, com o sentido cumulativo de "desespero". Isto explica a justaposição direta de "coração e cinzas", na tradução, prolongando com uma imagem concreta a comparação entre a lâmpada (vela) que se extingue e lágrimas que correm.2

Os dois últimos versos, antes do dístico final, têm o cunho de carpe diem: o poeta imagina a amada em solidão, temendo pela fugacidade de sua estéril beleza diante do espelho e à luz da lua. Há aqui uma alusão a um outro poema de Li Shang Yin, escrito para uma religiosa taoísta, no qual o poeta se refere à lenda da rainha Zhang E, que roubara o exilir da imortalidade e fugira para a lua, onde vivia em perpétua solitude, punida por seu próprio delito. No dístico ou envoi, menções ao monte Peng, morada dos imortais, e ao pássaro azul, mensageiro celeste na simbólica taoísta. Reproduzo abaixo o original chinês, seguido de uma transcriação fônica e de uma tradução literal (interlinear) por J. Y. Liu:

無題

相見時難别亦難

東風無力百花殘

春蠶到死絲方盡

蠟炬成灰淚始乾

暁镜但愁雲鬢改

夜吟應覺月光寒

蓬山此去無多路

青鳥殷勢爲探看

WU TI

NO TITLE

Xiang jian shi nan bie yi nan

Mutual see time hard part also hard

Dong feng wu li bai hua can

East wind no power hundred flowers wither

Chun can dao si si fang jin

Spring silkworm reach death silk only end

La ju chen hui lei shi gan

Wax torch become ashes tears only dry

Xiao jing dan chou yun bin gai

Morning mirror but grieve cloudy hair change

Ye yin ying jue yue guang han

Night recite should feel moon light cold

Pengshan ci qu wu duo lu

P'eng Mountain here from not much way

Qingniao yinqin wei tan kan

Blue Bird diligently for enquire see

SEM TÍTULO

Li Shang Yin

Vê-la é difícil. Não vê-la, mais difícil.

Que pode o vento este contra as flores cadentes?

Bichos-da-seda se obsedam até a morte com

[seu fio.]

A lâmpada se extingue em lágrimas: coração e cinzas.

No espelho, seu temor: o toucado de nuvem.

À noite, seu tremor: os friúmes da lua.

Não é longe, daqui ao Monte Peng:

Aveazul, olho-azougue, fala-lhe de mim.

IV — LI TAI PO

青山橫比郭

从白水繞東城

此地一爲别

孤蓬萬里征

落日故人情

揮手自茲去

蕭蕭班馬鳴3

verde montanha através norte muralha

branca água ao redor leste cidade

este lugar uma vez fazer separação

só relva áspera dez mil milhas viagem

flutuante nuvem viajante ânimo

poente sol velho amigo sentimento

sacudir mão de aqui ir

nitrir nitrir4 partindo cavalo relinchar

montanha verdeazul além da torre norte

água clara em redor da cidade este

aqui afinal nos separamos:

milhas e milhas através da relva seca nuvens voláteis: o ânimo de quem viaja o adeus sol-posto a um velho amigo mãos ondulando na partida ao ríspido nitrido dos cavalos.

Parte II extraída de: CAMPOS, Haroldo de,

A Arte no Horizonte do Provável, São Paulo, Perspectiva, 1969, pp. 121-7.

Parte III extraída de: CAMPOS, Haroldo de, A Operação do Texto, São Paulo, Perspectiva, 1976, pp. 141-2, 146.

NOTAS

**Shiao Ya — Xiaoya; Li Tai Po — Li Tai Bo ou Li Bo; Ki Fu — Ji Fu.

*** Ching —jing.

**** Lo-- le.

1. Assim procedendo, segui, sem o saber, a regra que depois vi formulada por W. McNaughton (loc. cit.): "O tradutor deve tentar encontrar uma forma básica, fundada em sua própria língua e literatura, que seja apta a preservar ou refletir a forma básica do poema chinês."

2. Curiosamente, James Y. Liu (cujo livro, embora utilíssimo, reflete a cada passo as limitações interpretativas de um gosto poético ultrapassado) considera o aspecto visual do ideograma um mero "prazer estético adicional", sem se dar conta do mecanismo peculiar da "função poética" (como um analista ocidental, que minimizasse os jogos "anagramáticos" vislumbrados por Saussure).

3. O texto chinês está disposto à maneira ocidental, devendo ser lido da esquerda para a direita, no sentido horizontal.

4. Nitrir / nitrir = xiao/xiao = som onomatopaico.

* Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Professor Titular (Semiótica da Literatura) do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUCSP até 1989. Poeta, tradutor e ensaísta, com dezenas de livros, artigos e ensaios publicados. Foi um dos lançadores, em 1956, do movimento brasileiro e internacional da Poesia Concreta. Director da colecção SIGNOS da Editora Perspectiva. São Paulo.

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