Pontos de Encontro

A ESCRITA POÉTICA CHINESA

François Cheng*

Biblioteca de Poesia

INTRODUÇÃO

Signos gravados em escamas de tartaruga e ossos de búfalo. Signos inscritos em vasos sagrados e utensílios de bronze.1 Divinatórios ou utilitários, manifestam-se primeiro como traços, símbolos, atitudes fixas, ritmos visualizados. Independente do som e invariável, formando uma unidade em si, cada signo conserva a possibilidade de permanecer soberano e, por isso, de perdurar. É assim, desde a origem, uma escrita que se recusa a ser um simples suporte da língua falada: o seu desenvolvimento é uma longa luta para assegurar quer a sua autonomia quer a sua liberdade de combinação. Desde a origem, esta relação revela-se contraditória, dialéctica, entre os sons representados e a presença física que se aproxima do movimento gestual, entre a exigência da linearidade e o desejo de evasão espacial. Haverá lugar para falar de "desafio insensato" da parte dos Chineses em manter esta "contradição", e isto durante cerca de quarenta séculos? Trata-se, em todo o caso, de uma aventura das mais extraordinárias; pode dizer-se que, através da sua escrita, os Chineses mantiveram uma aposta, aposta singular essa em que os poetas foram os grandes favorecidos.

Graças a esta escrita, um canto inin\-terrupto foi-nos transmitido, com efeito, desde há mais de três mil anos.2 Este canto que, no seu início, estava intimamente ligado à dança sagrada e ao trabalho do campo regulado pelo ritmo das estações, conheceu posteriormente bastantes metamorfoses. Na origem destas metamorfoses, um dos elementos determinantes é justamente esta escrita que engendrou uma linguagem poética profundamente original. Toda a poesia da dinastia Tang é tanto um cântico escrito como uma escrita cantada. Através dos signos, obedecendo completamente a um ritmo primordial, uma palavra explodiu e extravasou para todos os lados o seu acto de significância. Acentuar em primeiro lugar a realidade destes signos, o que são os ideogramas chineses, a sua natureza específica, os seus elos com outras práticas significantes (tais são os objectivos desta Introdução), é já fazer sobressair certos traços essenciais da poesia chinesa.

É costume, quando se fala de caracteres chineses, evocar o seu aspecto figurado. Quem ignora esta escrita imagina-a de imediato como um amontoado de "pequenos rabiscos". É verdade que, no estado mais antigo que nós lhe conhecemos, podemos encontrar um importante número de pictogramas, tais como: sol (⊙, seguidamente estilizado em 日), lua (, estilizado em 月), homem (, estilizado em 人); mas ao lado destes figuram caracteres mais abstractos e que podemos já qualificar como ideogramas, tais como: rei (壬: aquele que liga o céu, a terra e o homem), meio (中: um espaço atravessado ao meio por um traço) e regressar ( estilizado em 反: mão traçando um gesto de retorno sobre si mesma). A partir de um número limitado de caracteres simples, foram criados depois caracteres complexos: estes constituem a maior parte dos ideogramas chineses hoje em uso. Obtém-se um carácter complexo combinando dois caracteres simples; é assim que a palavra claridade 明 é formada por sol 日 B e lua 月. Mas o caso mais comum de um carácter complexo é do tipo "radical + signo fonético", ou seja: um radical feito por um carácter simples (igualmente designado pelo nome de chave, porque é suposto que o radical indique a classe à qual pertence a palavra; o conjunto das palavras chinesas está repartido por 214 ideoclassificadores, quer dizer por 214 chaves: chave da água, chave da madeira, chave do homem, etc.) e uma outra parte feita também por um carácter simples que serve de signo fonético; este, pela sua própria pronúncia, dá a pronúncia da palavra (dito de outro modo, o carácter simples que serve de signo fonético e o carácter complexo de que ele faz parte têm a mesma pronúncia). Citemos, como exemplo, a palavra "companheiro" 伴 que é um carácter complexo: é formada por uma chave, a chave de homem 亻, e por um outro carácter simples 半 que se pronuncia ban e que indica que o carácter complexo "companheiro" se pronuncia igualmente ban. (Isto cria, bem entendido, numerosos casos de homonímia de que precisaremos, mais à frente, as implicações). E de assinalar que a escolha deste carácter simples, que não exerce senão a função de signo fonético, nem sempre é gratuita. No exemplo que acabamos de citar, o carácter simples 半 ban quer dizer "metade"; combinado com a chave de homem, evoca a ideia de "a outra metade" ou de "homem que partilha" e contribui para sublinhar o sentido preciso do carácter complexo 伴 que é "companheiro". Este exemplo leva-nos a constatar um facto importante: se os caracteres simples que procuram "significar por si próprios", impressionam pelo seu aspecto gestual e emblemático, aqui, mesmo quando se trata de um elemento puramente fónico, procura-se ainda ligá-lo a um sentido. Suprimir o gratuito e o arbitrário a todos os níveis de um sistema semiótico fundado numa relação íntima com o real, de modo que não haja ruptura entre os signos e o mundo, e deste modo, entre o homem e o universo, tal parece ser a direcção para a qual tendem desde sempre os Chineses. Esta constatação permite-nos levar mais longe a reflexão sobre a natureza específica dos ideogramas.

Os ideogramas são compostos por traços. Em número muito restrito, estes traços oferecem no entanto combinações extremamente variadas; e o conjunto dos ideogramas apresenta-se como uma combinatória (ou uma transformação) a partir de traços simples, mas já significantes em si mesmos. Por entre os seis ideogramas seguintes (todos, excepto o último, são caracteres simples), o primeiro é composto por um só traço, o último por oito:3

    一  人    大    天     夫     芙
    um homo grande céu homem lótus

O primeiro ideograma é feito com um traço horizontal. Este, sem dúvida, o mais importante de todos os traços de base, pode ser considerado como o "traço inicial" da escrita chinesa. O seu traçado, segundo a interpretação tradicional, é um acto que separa (e une ao mesmo tempo) o céu e a terra. Assim, o carácter 一 quer dizer ao mesmo tempo "um" e "unidade original". Combinando os traços de base e apoiando-se, em muitos casos, nas "ideias" que os sustentam, obtêm-se outros ideogramas. É assim que combinando 一"um" e人"homo", se obtém大"grande", e, do mesmo modo, se obtém 天"céu" acrescentando um traço por cima de 大 "grande". "Transpondo"天"céu" nasce 夫"homem"; e o último carácter 芙, carácter complexo, é uma combinação de "homem" (enquanto signo fonético) e do radical de erva 艹. Traços imbrincados em outros traços, sentidos implicados em outros sentidos. Sob cada signo, o sentido codificado nunca chega a reprimir completamente outros sentidos mais profundos, sempre prontos a emergir; e o conjunto dos signos, formados segundo a exigência do equilíbrio e do ritmo, revelam todo um feixe de "traços" significativos: atitudes, movimentos, contradições rebuscadas, harmonia dos contrários, e, finalmente, modos de ser.

Recordemos que a tradição estabelece um elo entre esta escrita e o sistema adivinhatório chamado ba gua (os "Oito Trigramas"). Este sistema que, ao longo de toda a história da civilização chinesa, não cessou de desempenhar um papel importante, tanto no plano filosófico (ideia de mutação) como na vida corrente (horóscopo, geomancia e outras práticas adivinhatórias), teria sido inventado por Fu Xi, o rei lendário, e aperfeiçoado pelo rei Wen Wang dos Zhou (cerca de mil anos antes da nossa era). Trata-se de um conjunto de figuras cujas relações internas são regidas pelas leis da transformação, segundo os príncipios da alternância yin-yang. Cada figura de base é constituída por três traços sobrepostos, traços contínuos representando o yang e traços descontínuos representando o yin. É assim que a ideia de céu é representada por três traços inteiros ; a terra, por sua vez, por três traços quebrados ; a figura simboliza a água, enquanto a figura simboliza o fogo, etc. Na medida em que os ideogramas são igualmente compostos por traços, em que os sinais são representados até três pelo número de traços correspondentes (一 "um", 二"dois", 三 "três") e em que o carácter shui"água", por exemplo, se escrevia na época arcaica , alguns crêem descobrir um laço de parentesco. Acentuando este laço, constata-se em todo o caso, que os signos ideográficos visam menos copiar o aspecto exterior das coisas do que figurá-las pelos traços essenciais, cujas combinações revelariam a sua essência e os elos secretos que os unem. Pela estrutura equilibrada e como que necessária, que marca cada um deles (eles são todos de dimensão idêntica, possuindo cada um uma arquitectura própria, imutável e harmoniosa), os ideogramas apresentam-se não como marcas impostas arbitrariamente, mas como seres dotados de vontade e de unidade interna. Na China, esta percepção dos signos enquanto unidades vivas é reforçada ainda pelo facto de que cada ideograma é monossilábico e invariável, o que lhe confere uma autonomia e, ao mesmo tempo, uma grande mobilidade quanto à possibilidade de se combinar com outros ideogramas. Na tradição poética chinesa, comparam-se voluntariamente os vinte caracteres que compõem uma quadra pentassilábica a vinte "sábios". A personalidade de cada um e a inter-relação que estabelecem transformam o poema num acto ritual (ou numa cena), onde gestos e símbolos provocam "sentidos" sempre novos.

Um tal sistema de escrita, e a concepção do signo que a suporta, condicionaram na China, todo um conjunto de práticas significantes tais como — além da poesia — a caligrafia, a pintura e os mitos. A influência de uma linguagem concebida não como um sistema denotativo que "descreve" o mundo, mas como uma representação que organiza os elos e provoca actos de significância,4 é aqui decisiva. Não unicamente pelo facto de a escrita servir de veículo a todas estas práticas; ela é, acima de tudo, o modelo que age no processo da sua constituição enquanto sistema. Inspirados pela escrita ideográfica e por ela determinados, poesia, caligrafia, pintura e mitos formam uma rede semiótica complexa e unida ao mesmo tempo: obedecem ao mesmo processo de simbolização e a certas regras de oposição fundamentais. Não se pode tentar isolar a linguagem de uma delas sem nos referirmos aos elos que a unem às outras, e, através disso, a um pensamento estético geral. Na China, as artes não são compartimentadas; um artista dedica-se à tripla prática poesia-caligrafia-pintura como a uma arte completa onde todas as dimensões do seu ser são exploradas: canto linear e sistema espacial, gestos encantatórios e palavras visualizadas. Também nos propomos precisar, nas páginas que se seguem, a relação que a escrita mantém com a caligrafia, a pintura e os mitos e, ao mesmo tempo, cada vez que for necessário, o que é que os poetas daí extraíram na sua tentativa de compor uma linguagem para a sua prática.

Caligrafia

Não é devido a um acaso que, na China, a caligrafia que exalta a beleza visual dos ideogramas se tenha tomado uma arte maior. Ao praticar esta arte, todo o Chinês encontra o ritmo do seu ser profundo e entra em comunhão com os elementos. Através dos traços significantes ele consagra-se-lhe inteiramente. Os seus traços grossos e Os seus traços finos, as suas relações contrastadas ou equilibrantes permitem-lhe exprimir os múltiplos aspectos da sua sensibilidade: força e ternura, entusiasmo e quietude, tensão e harmonia. Ao realizar a unidade de cada carácter, e o equilíbrio entre os caracteres, o calígrafo, exprimindo inteiramente as coisas, atinge a sua própria unidade. Gestos imemoriais e sempre retomados, cuja cadência, como numa dança de espadas, se realiza instantaneamente ao sabor dos traços, traços que se projectam, que se cruzam, que planam ou que mergulham, que ganham sentido e lhe acrescentam outros, codificados, palavras. Com efeito, no que toca à caligrafia, pode falar-se de sentido; porque a sua natureza gestual e rítmica não nos deixa esquecer que ela trabalha com signos. Durante a sua realização, o significado do texto nunca está completamente ausente do espírito do calígrafo. E, também a escolha do texto não é gratuita, nem indiferente.

Os textos preferidos dos calígrafos são sem dúvida os textos poéticos (versos, poemas, prosa poética). Quando um calígrafo aborda um poema, não se limita a um simples acto de cópia. Enquanto caligrafa, ressuscita todo o movimento gestual e todo o poder imaginário dos signos. É a sua maneira própria de penetrar na realidade profunda de cada um deles, de desposar a cadência propriamente física do poema e, ao fim e ao cabo, de o recriar. Um outro tipo de textos, não menos encantatórios, atrai igualmente os calígrafos: os textos sagrados. Através deles, a arte caligráfica restitue aos signos a sua função original, mágica e sagrada. Os monges tauistas vêem a eficácia dos talismãs (ou encantos) que traçam, pela qualidade da sua caligrafia, que assegura uma boa comunicação com o além. Os fiéis budistas crêem poder ganhar alguns méritos copiando textos canónicos; os méritos serão tanto maiores quanto os textos estiverem melhor copiados.

A esta função sagrada dos signos traçados, o poeta não poderia permanecer insensível. Tal como o calígrafo que, no seu acto dinâmico, tem a impressão de ligar os signos ao mundo original, de desencadear um movimento de forças harmoniosas ou contrárias, o poeta não hesita em subtrair qualquer segredo aos génios do universo ao combinar os signos, como nos mostra este verso de Du Fu:

Acabado o poema, deuses e demónios ficam estupefactos!5

Desta convicção ocorre também, durante a composição de um poema, a procura quase mística de uma palavra chave chamada zi yan6 "palavra-olho" que, esclarecendo de uma só vez todo o poema, lhe revelaria o mistério de um mundo escondido. Inúmeras anedotas narram o modo como um poeta se prosterna diante de outro, venerando-o como seu Yi zi shi "senhor de uma palavra", porque este lhe "revelou" a palavra necessária e absolutamente justa que lhe permitiu acabar o poema, e assim, "completar a sua criação".7

Quanto ao aspecto figurado dos caracteres, sem cessar posto em relevo e louvado por uma arte caligráfica que, no decurso do trabalho, faz surgir de múltiplos "estratos" gráficos múltiplos sentidos, o poeta não se priva de tirar partido desse poder evocador. Wang Wei, adepto da espiritualidade Chan (Zen em japonês) descreve numa quadra8 um hibisco prestes a florir. O poeta procura sugerir que, à força de contemplar a árvore, ele acaba por a ela aderir e que vive do "interior" da árvore a experiência do desabrochar. Em vez de utilizar uma linguagem denotativa para explicar esta experiência, contenta-se por, no primeiro verso da quadra, alinhar cinco caracteres:

    木       末       芙     蓉9   花
    ramo extremidade magnólia flores

O verso traduz-se: "Na extremidade dos ramos, flores de magnólia". Um leitor, mesmo ignorando o chinês, pode ser sensível ao aspecto visual destes caracteres cuja sucessão se ajusta ao sentido do verso. Ao ler os caracteres pela sua ordem, tem-se, com efeito, a impressão de assistir ao processo do desabrochar de uma árvore que floresce (1° carácter: uma árvore nua; 2° carácter: algo nasce na copa da árvore;3° carácter: surge um rebento. 艹 sendo o radical erva ou folha; 4° carácter: explosão do botão;5° carácter: uma flor na sua plenitude). Mas por detrás do que é mostrado (aspecto visual) e denotado (sentido normal), um leitor que conheça a língua não deixará de descobrir ainda, através dos ideogramas, uma ideia subtilmente escondida, a do homem que se introduz em espírito dentro da árvore e que participa na sua metamorfose. O terceiro carácter芙contém, com efeito, o elemento 夫"homem", o qual contém o elemento人"homo" (assim, a árvore representada pelos dois primeiros caracteres é, de ora em diante, habitada pela presença do homem). O quarto carácter 蓉 contém o elemento 容"rosto" (o botão rebenta num rosto), o qual contém o elemento口"boca" (o que fala). Enfim, o quinto carácter contém o elemento 化"transformação" (o homem participando na transformação universal). Com uma grande economia de meios, o poeta faz reviver diante dos nossos olhos uma experiência mística, nas suas sucessivas etapas.

Um segundo exemplo mostra o poeta Du Fu usando, em dois versos, um processo caro aos padres tauistas no seu traçado de fórmulas mágicas: processso que consiste em sobrepor palavras (por vezes inventadas) com o mesmo radical (ou chave), como que para acumular um tipo de energia sugerida por este radical. Não sem ironia, porque os versos descrevem a espera angustiante da chuva, numa altura de calor tórrido, espera essa que termina em desilusão (a fórmula mágica não surtiu efeito). O poeta emprega uma série de palavras tendo todas o radical chuva 雨: 雷霆 "trovão-raio", 霹靂"fragor detrovão", 雲"nuvem". Depois, faz aparecer enfima própria palavra chuva雨, palavra já contida emtodas as outras palavras que a anunciam. Promessavã. Porque esta palavra, mal aparece, é seguida pela palavra "nada"無, que termina o verso; ora, esteúltimo tem por radical "fogo"灬. Assim, a malograda chuva é imediatamente absorvida pelo ar abrasador. Os dois versos, acompanhados de uma tradução literal, apresentam-se assim:

    雷霆空霹靂,雲雨竟虛無。10
    Raio trovão em vão resplandecente trovejando
    Nuvem chuva finalmente ilusório nada

O conjunto destas palavras alinhadas, numa certa progressão (nuvens que se acumulam, o trovão que anuncia a chuva, a chuva absorvida pelo fogo) e o contraste que elas provocam, cria um efeito visual surpreendente.

Citemos um último exemplo da utilização dos elementos gráficos pelos poetas. Trata-se da primeira estrofe de um longo poema11 de Zhang Ruo Xu no qual o poeta introduz imediatamente o tema do dualismo entre duas figuras simbólicas: o rio (espaço-tempo, permanência) e a lua (ímpeto de vida, vicissitude):

    春江潮水連海平,海上明月共潮生
    灎灎隨波千萬里,何處春江無明月。

Sem dizer explicitamente o tema, o poeta opõe uma série de palavras que têm água por radical: 江"rio", 水"água", 海"mar", 灎"cintilação", 波"vaga", e uma outra série de palavras contendo a palavra lua 月:月,明 "claridade", 隨"seguir". Entre elas aparece duas vezes a palavra "maré"潮, cujo radical é água, mas que contém também o carácter lua月. Se representarmos as palavras do grupo de rio pelo sinal /, e as do grupo de lua pelo sinal\ e a palavra "maré", que faz parte dos dois, pelo sinal ×, as ocorrências nos quatro versos podem ser representadas do seguinte modo:

A relação de oposição e, ao mesmo tempo, de correlação das duas figuras é sugerida graficamente de modo eficaz.

Pintura

Se o elo entre a caligrafia e a escrita poética parece directo e natural, o que une esta última à pintura não o é menos aos olhos de um Chinês. Na tradição chinesa em que a pintura tem o nome de wu sheng shi (poesia silenciosa), as duas artes elevam-se ao mesmo nível. Numerosos poetas se entregavam à pintura, enquanto que todos os pintores se deveriam dedicar a ser poetas. O exemplo mais ilustre é o de Wang Wei, do início dos Tangs. Inventor da técnica monocromática e precursor da pintura dita "espiritual", era célebre também pela sua poesia. A sua experiência de pintor influenciou muito a sua maneira de organizar os signos na poesia, de tal modo que o poeta Su Dong Po, dos Songs, pôde dizer dele: "Os seus quadros são poemas e os seus poemas são quadros". O que liga em primeiro lugar a poesia à pintura, é justamente a caligrafia. E a manifestação mais marcante desta relação trinitária — que forma a base de uma arte completa — é a tradição que consiste em copiar um poema no espaço branco de um quadro. Antes de precisar o significado desta prática, é preciso sublinhar o facto de que a caligrafia e a pintura são ambas artes do traço, o que tornou possível a sua coabitação.

A arte caligráfica, visando restituir o ritmo primordial e os gestos vitais implicados pelos traços dos caracteres, libertou o artista chinês do cuidado de descrever fielmente o aspecto exterior do mundo físico e suscitou, muito cedo, uma pintura "espiritual" que, mais do que perseguir a semelhança e calcular as proporções geométricas, procura imitar "o acto do Criador" ao fixar as linhas, as formas e os movimentos essenciais da natureza. Procurando a mesma liberdade soberana na execução como a que tem um calígrafo, o pintor serve-se do mesmo pincel que este. Depois de um longo período no decurso do qual ele aprende a desenhar uma grande variedade de elementos da natureza e do mundo humano — o conjunto destes elementos são objecto de um lento processo de simbolização; tornados unidades significantes, eles oferecem ao artista a possibilidade de os organizar segundo certas leis estéticas fundamentais —, como que para aprender "de cor" o universo visível, ele começa a executar obras propriamente ditas. A execução faz-se sem qualquer modelo (porque a obra deve ser uma projecção interior), ela desenvolve-se, tal como a caligrafia,ritmicamente, como se o artista estivesse dominado por uma corrente irresistível. Isto tornou-se possível justamente pelo facto de que todos os elementos pictóricos são desenhados com um traço. Pelo seu ritmo contínuo, os traços permitem ao artista seguir o movimento inaugurado pelo traço inicial.12 O mundo real surge sob o seu pincel, sem que o "sopro vital"13 jamais seja interrompido. Aos olhos do pintor chinês, os traços exprimem, ao mesmo tempo, formas de coisas e pulsões de sonhos; não são apenas simples contornos; pelos seus cheios e pelos seus finos, pelo branco que delimitam, pelo espaço que sugerem, implicam já o volume (nunca fixado) e a luz (sempre mutável). Assim o pintor cria a sua obra atendo-se aos traços, traços que se atraem ou se opõem, traços que incarnam em figuras concebidas e dominadas anteriormente; não copiando ou descrevendo o mundo, mas criando-o, de modo instantâneo e directo, sem acrescentos nem retoques, figuras do real à maneira do Tau.

Para voltar à inscrição de um poema num quadro, vê-se que não há descontinuidade entre os elementos escritos e os elementos pintados, ambos compostos por traços e desenhos feitos pelo mesmo pincel. Estes ideogramas inscritos fazem parte integrante do quadro; não são apercebidos como um simples ornamento ou um comentário projectado de fora. Participando no arranjo do conjunto, as linhas do poema "rompem" verdadeiramente o espaço branco, introduzindo entretanto uma nova dimensão que qualificaremos de temporal na medida em que os versos, segundo uma leitura linear, revelam, para além da imagem espacial, a recordação que o pintor tem da sua apreensão (das suas percepções sucessivas) de uma paisagem dinâmica. O encantamento ritmado, que se desenvolve no tempo, suscita um desmentido à observação que chama "poesia silenciosa" à pintura; eles tornam o espaço verdadeiramente aberto a um tempo vivido, e sem cessar renovado. Ao harmonizar poesia e pintura, o pintor-poeta chinês conseguiu criar um universo completo e orgânico, de quatro dimensões.

Desta simbiose das duas artes decorrem importantes consequências para uma e para a outra. A interpenetração da espacialidade e da temporalidade exerceu uma influência decisiva, por um lado sobre o modo como o poeta concebia um poema (especialmente pela ideia que o poema não habita só um tempo mas também um espaço: não o espaço enquanto forma abstracta, mas um lugar mediúnico, onde signos humanos e coisas significadas se implicam num jogo multidireccional contínuo. Exactamente como num quadro chinês de "perspectiva convencional", que não oferece um ponto de vista fixo e privilegiado e onde o espectador é incessantemente convidado a penetrar nos lugares mostrados ou escondidos, os signos de um poema não se contentam em ser simples intermediários; pela sua organização espacial, eles constituem um mundo de presenças em que é bom ficar e através do qual se pode circular à medida dos encontros e das descobertas), e por outro lado, também é significativo o modo como o pintor dispõe as unidades pictóricas no quadro (simbolização sistemática dos elementos da natureza, elementos transformados em unidades significantes; estruturação destas unidades sobre o duplo eixo de oposição e de correlação, etc.). É neste ponto que as duas artes partilham as mesmas leis fundamentais da estética chinesa, à qual pertence igualmente a caligrafia. Não queremos insistir aqui senão sobre duas noções primordiais, a do sopro rítmico (qi ou qi yun) e a da oposição cheio-vazio (xu shi). A expressão "sopro rítmico" figura na maior parte dos textos de crítica literária e tratados de pintura.14 Segundo a tradição, uma obra autêntica (literária ou artística) deve restabelecer o homem na corrente vital universal, a qual deve circular através da obra e animá-la completamente, donde a importância dada ao ritmo que por vezes tem valor sintáctico. Quanto à oposicão cheio-vazio, trata-se de uma noção fundamental da poesia chinesa.15 Na pintura, ela marca a oposição num quadro, não apenas entre a parte "habitada" e a "não-habitada", mas também no próprio interior da parte pintada em que os elementos desenhados por traços grossos alternam com os elementos de traços finos ou quebrados. Aos olhos de um artista chinês, fazer uma obra (pictórica ou caligráfica) é um exercício espiritual; é para ele uma ocasião de diálogo entre o vísivel e o invísivel, o activo e o passivo, é o aparecimento de um mundo interior, o alargamento sem fim do mundo exterior, regido pela lei dinâmica da transformação. Num quadro, o "vazio" introduz o infinito e o "sopro rítmico" de que o universo está animado. Quebrando os elos ou as oposições artificiais, e assim a "lógica" rígida do desenvolvimento, ele suscita o movimento circular, que mergulha as coisas num processo de devir recíproco: montanha ←→ água, árvore ←→ nuvem, homem ←→ rochedo, etc. Pela presença do vazio, uma espécie de quinta dimensão, o pintor pretende unir o tempo e o espaço, o dentro e o fora e, finalmente, o sujeito (de quem, além disso, procede o verdadeiro vazio) e o mundo. Ora a noção de "vazio-cheio", introduziram-na na poesia os poetas da dinastia Tang (cf. adiante, capítulo I). Ela preside ao modo como eles se servem das palavras "plenas" (verbos e substantivos) e das "palavras vazias" (palavras secundárias tais como pronomes pessoais, preposições, termos de comparação, partículas, etc).16 Pela omissão dos pronomes pessoais e das palavras vazias e pelo reemprego de certas palavras vazias enquanto palavras plenas, o poeta opera uma oposição interna na língua depurada mas livre, cruel mas soberana, que o poeta subjuga para seu uso.

Elementos Míticos

O domínio mítico é, na China, vasto e de uma extrema complexidade. Bastar-nos-á, aqui, indicar os tipos de relações que podem existir entre mito e poesia. O que os liga aos dois é, antes de tudo, e ainda, a escrita; é também a partir desta que começaremos a nossa observação.

Tal como na poesia, a escrita desempenha um papel activo nos mitos. Pela sua especificidade gráfica e fónica, a sua natureza concreta e figurada, as suas aptidões combinatórias, ela contribui por si mesma para criar imagens e figuras com as quais estes se enriquecem. Vimos, a propósito da "caligrafia", que certas práticas religiosas se inspiram na escrita para traçar talismãns ou outras fórmulas mágicas que são muitas vezes derivações gráficas a partir de carácteres já existentes. Do mesmo modo, certas personagens míticas, tal como o Wen kui xing, têm a sua representação composta por um conglomerado de carácteres comprimidos numa figura humana. Todas estas utilizações, directas ou indirectas, denotam da parte dos praticantes uma crença profunda no poder mágico dos carácteres. Para eles, certas estelas que têm inscritas fórmulas mágicas conjuram realmente os maus espíritos. Além disso, em certos templos, especialmente nos dos confucionistas, o objecto que se venera sobre o altar não é nem uma figura nem uma iconografia, mas uma placa onde está inscritoum conjunto de carácteres: 天地君親師"céuterra-rei-pais-mestre". Aos olhos dos adeptos, cada carácter não é apenas uma presença viva, mas também a sua disposição estabelece verdadeiramente o elo filial que os une ao Universo original. A este nível, certos ideogramas são, enquanto unidades vivas, elementos que constituem os mitos, ao mesmo nível que outras figuras e personagens míticas.

A exploração da escrita pelos mitos não se limita apenas ao plano gráfico. Todo um jogo fónico contribui também para criar objectos e figuras de poder mágico. Sabemos que, sendo os carácteres monossilábicos e o número de sílabas em chinês limitado, os casos de homofonia, enquanto se trate de palavras simples, são frequentes. Nas religiões populares, servem-se muito do facto que consiste em fazer corresponder a uma palavra abstracta uma palavra designando um objecto concreto, quando as duas têm a mesma pronúncia. É assim, por exemplo, que o cervo lu, se toma o símbolo da prosperidade, e o morcego fu o da felicidade, pelo simples facto de que as palavras prosperidade e felicidade se pronunciam respectivamente lu e fu. Por vezes, vai-se ao ponto de combinar vários objectos para criar laços com expressões existentes. Assim, na altura de certas festas, põem lado a lado um instrumento de música chamado sheng e jujuba zao zi para exprimir o voto de ter "cedo uma numerosa progenitura", o que em chinês se diz zao sheng zi. Uma multidão de objectos e de animais, dotados de poder mágico, vêm povoar o universo imaginário e alimentam os contos populares. Este processo (espécie de charadas) fundado no trocadilho aplica-se igualmente às personagens míticas.

Citemos o exemplo do deus do trovão: Wen tai shi 聞太師 "O grande mestre que ouve". Por vezes, escreve-se primeiro o carácter do seu nome wen "ouvir" por uma variante 文"traço, escrito" que se pronuncia igualmente wen. Fazendo corresponder, aparentemente de modo arbitário, os dois wen, os fiéis acrescentam ao deus do trovão mais um atributo; ele seria não apenas aquele que ouve, mas também aquele que, ao mesmo tempo, traça e escreve: um olho que ouve ou uma orelha que vê.

Esta utilização engenhosa dos recursos gráficos e fónicos da escrita, nas práticas religiosas, é a mesma que se constata na poesia. Também o poeta explora a possibilidade de suscitar imagens, muitas vezes estranhas e poderosas, a partir de uma aproximação gráfica ou fónica. Mas a relação entre mito e poesia não se limita a isto. Veremos (no capítulo III, Imagens) que, seguindo o modelo da escrita, a poesia chinesa tende a uma simbolização sistemática da natureza a fim de criar um jogo complexo no plano metaforo-metonímico. Esta simbolização generalizada, observa-se também no tauismo e nas religiões populares. Um impressionante número de elementos do cosmos, da natureza e do mundo humano são portadores de sentidos simbólicos; eles tecem uma vasta rede mítica que permite ao espírito humano unir-se, sem entraves, ao conjunto do mundo objectivo. A simbolização poética e a simbolização mítica, entretanto, não são duas vias paralelas, sem relação entre elas; pelo contrário, tendo a mesma origem, apoiam-se uma na outra, interpenetram-se e acabam por se juntar, como dois braços do mesmo rio. A poesia, recolhendo largamente figuras simbólicas aos mitos colectivos, enriquece-os de figuras novas que ela cria ao longo dos tempos. Além disso, poesia e mitos fazem uso do mesmo sistema de correspondências (números, elementos, cores, sons, etc.) proposto pela tradição. A sua relação é a tal ponto íntima que o longo desenvolvimento da própria poesia chinesa deve ser encarado como a lenta constituição de uma mitologia colectiva.

Assim, a poesia faz parte integrante de um conjunto orgânico de sistemas semióticos. Tirando partido da escrita ideográfica (a qual permite o nascimento de uma prosa escrita chamada wen yan, muito afastada da língua falada), a poesia cedo deu origem a uma linguagem específica que se tornará iniciadora para as outras linguagens, mesmo sofrendo as suas influências. Esta interacção entre as diferentes linguagens será uma fonte de enriquecimento para cada uma delas. Ela dará a cada uma delas a possibilidade de se inspirar nas outras e de se libertar dos seus constrangimentos específicos. Resumindo, outra vez ainda, os traços característicos comuns a estas linguagens: simbolização sistemática dos elementos da natureza e do mundo humano, constituição de figuras simbólicas em unidades significantes, estruturação destas unidades segundo certas leis fundamentais estranhas à lógica linear e irreversível, criação de um universo semiótico regido por um movimento circular onde o homem e o mundo se implicam e se prolongam sem cessar.

O que nos propomos estudar aqui é a poesia chinesa clássica enquanto linguagem específica: as suas leis, as suas estruturas e as suas implicações para a semiologia chinesa (e eventualmente, para a semiologia geral). Ao longo desta análise, não negligenciaremos o que possa contribuir para a compreensão desta linguagem; nisto seremos ajudados pela grande tradição chinesa de crítica poética que constituem os inumeráveis shi hua (propósitos sobre a poesia), inaugurada desde a época das Dinastias do Norte e do Sul (séculos IV-VI), e, igualmente, pelos estudos em japonês e em línguas ocidentais. É verdade que a maior parte destes estudos põem o acento tónico nos problemas dos géneros e dos temas, e também sobre o aspecto filológico. Quanto às estruturas da linguagem e à significação das formas, essas fazem parte de um domínio que permanece por explorar.

O corpus de que nos servimos é a poesia da dinastia Tang (séc. VII-IX) que constitui, tanto pela sua fecundidade e variedade, como pelas suas investigações formais, o auge da poesia clássica. Esta poesia é portanto o resultado de uma aventura já muito longa. O Shi Jing (Cânon das Odes), recolha lírica que inaugura a literatura chinesa, contém poemas que se situam para além dos mil anos antes da nossa era. Desde então a poesia chinesa conheceu um desenvolvimento ininterrupto.17 Sob a dinastia dos Tangs, todos os géneros e todas as formas poéticas foram recenseadas e codificadas; elas deviam manter-se, sem sofrer alteração, até ao alvorecer do nosso século. É portanto na poesia dos Tangs que se constatam as tentativas mais conscientes e mais frutuosas, para explorar os limites da linguagem. Durante três séculos,18 graças ao concurso de circunstâncias favoráveis, várias gerações de poetas consagraram-se a uma intensa actividade criadora. O Quan Tang shi (A poesia completa dos Tangs), obra compilada no século XVIII, sob a dinastia dos Qings, não contém menos de cinquenta mil poemas, escritos por mais de dois mil poetas. No que nos diz respeito, limitar -nos-emos à "melhor parte", quer dizer, àqueles que são reconhecidos pela tradição como os mais representativos, àqueles que também apresentam um certo interesse formal.

[...] Observaremos sucessivamente: a relação entre a linguagem corrente e a linguagem poética, a "distância" que esta toma em relação às regras lexicais e sintáticas, as consequências que isto arrasta (os processos passivos); as formas propriamente poéticas, a sua estrutura, a sua significação (os processos activos); e enfim, tentaremos mostrar como, ao apoiar-se numa linguagem específica e ao aproveitar a economia estrutural que ela implica, o poeta explora o seu campo imaginário (as imagens). Ao perseguir um fim prático antes de tudo (o de iniciar à leitura da poesia chinesa), e tendo em conta os obstáculos que a própria língua chinesa constitui, a nossa análise quer-se o menos "abstracta" possível e apoiar-se-á a cada passo em exemplos concretos. A maior parte dos exemplos são tirados da segunda parte [em CHENG, François, L'écriture poétique chinoise: suivi d'une anthologie des poèmes des T'ang, pp. 103-249, não reproduzida aqui] a qual é constituída por uma escolha de poemas classificados segundo o seu género e acompanhados: de uma transcrição fonética,19 de uma tradução palavra a palavra, e de uma tradução interpretada. A propósito de tradução,20 convém precisar que a que nos propomos, visa sobretudo captar e sentir certos cambiantes escondidos nos versos. Quanto à tradução palavra a palavra, útil para o leitor e indispensável para as necessidades da nossa análise, ela não saberia dar senão uma imagem caricatural do poema original; ficar-se-ia com a impressão de uma linguagem desconexa e lacónica, e nada seria realmente traduzido, nem a cadência do verso, nem as implicações sintáticas das palavras, nem sobretudo a natureza ambivalente dos ideogramas e a carga emocional que eles contêm. Num poema, os ideogramas, libertos de elementos acessórios, têm uma presença mais intensa; e as relações aparentes ou implícitas que eles mantêm entre si, orientam o sentido em múltiplas direcções. O que é intraduzível, é, certamente, o que a escrita não pôde transcrever, e também o que ela acrescentou à língua.

Ao afirmar o valor das investigações dos poetas da dinastia Tang, não ignoramos que o corpus aqui tratado não representa senão um estado da língua. Uma contradição parece então surgir: procuramos salientar uma realidade aparentemente bem delimitada, e sabemos no entanto que ela é o resultado de uma prática dinâmica que contém em gérmen todas as virtualidades de uma alteração ou de uma transformação. Esta contradição foi sentida, de certo modo, pelos próprios poetas Tangs. Vemos aí uma prova da significação profunda da poesia clássica chinesa (forma que será estudada no capítulo II). Trata-se essencialmente de um sistema de pensamento dialéctico, fundado na alternância, ou na oposição entre os versos paralelos e os versos não paralelos. No que diz respeito ao paralelismo (de que analisaremos as implicações no II capítulo), podemos desde já afirmar que, pela sua organização espacial interna, ele introduz uma outra ordem na progressão linear da linguagem: uma ordem autónoma, virando-se para si mesma, na qual os signos estão em simetria e se justificam, como que libertos das coacções exteriores e permanecendo fora do tempo. A sua codificação na poesia do início da dinastia Tang reflete, para além de uma concepção dualista da vida, a imensa confiança que os poetas tinham relativamente aos signos. Eles julgavam poder realmente, por seu intermédio, recriar um universo segundo os seus desejos. Mas, por outro lado, esta pretensão era-lhes negada pelo facto de que, no lü shi, os versos paralelos devem obrigatoriamente ser seguidos de versos não paralelos. Estes últimos, que terminam o poema, parecem introduzir de novo no processo do tempo, um tempo aberto, destinado a todas as metamorfoses. Metamorfoseada, a língua de que se serviam os poetas dos Tangs sê-lo-á,21 por causa da usura do tempo, como o mostrará, um milhar de anos mais tarde, cerca de 1920, a morte do wen yan"língua escrita antiga" e a sua substituição pelo bai hua, "língua moderna", que conduzirá a poesia a outras aventuras.

Mas este não é o paradoxo menor da escrita poética chinesa que, apesar da afirmação de uma ordem semiótica e da sua própria negação, conserva a permanência dos signos, signos invariáveis e independentes da diferença fónica, graças aos quais, para além dos séculos, nos foi dada uma poesia, infinitamente "falante", carregada do mesmo poder evocador, de todo o esplendor da sua juventude.

I-OS PROCESSOS PASSIVOS

Sendo o nosso objectivo apreender a poesia chinesa enquanto linguagem específica, observaremos em primeiro lugar a relação que mantém a linguagem poética com a linguagem corrente. Aquilo que impressiona, à primeira vista, é o desvio muito sensível que separa da linguagem corrente as formas mais rebuscadas e inventadas pelos poetas da dinastia Tang. Este desvio, no entanto, não se baseia numa oposição profunda. Os poetas procuraram sobretudo tirar partido de certas virtualidades de uma língua de escrita ideográfica e de estrutura isolante. A sua tarefa foi facilitada pela existência do wen yan, língua essencialmente escrita e de estilo conciso. É portanto em relação à língua falada (tal como nós a conhecemos pela literatura popular) do mesmo modo que pelo wen yan que estará situada a linguagem poética.

No plano lexical e sintáctico, o facto mais importante que preocupa os poetas é, como foi indicado na Introdução, a oposição entre palavras plenas (os substantivos e os dois tipos de verbos: verbos de acção e verbos de qualidade) e as palavras vazias (o conjunto de palavras-utensílio: pronomes pessoais, advérbios, preposições, conjunções, termos de comparação, partículas, etc.). Esta oposição construiu-se a dois níveis. A um nível superficial, trata-se de alternar judiciosamente palavras plenas com palavras vazias, a fim de tomar os versos mais vivos. Mas os poetas não tardam a dar-se conta da importância, na poesia, do ritmo (ligado à noção filosófica do sopro vital) que pode desempenhar o papel de demarcação e de ligação entre as palavras (papel que recorda as palavras vazias na linguagem corrente). Também a um nível mais profundo, procedem a uma redução de palavras vazias (especialmente de pronomes pessoais, preposições, termos de comparação, partículas) não conservando dentre as palavras vazias, senão certos advérbios e conjunções; isto a fim de introduzir na língua uma dimensão em profundidade, justamente a do verdadeiro "vazio".

Em certos casos, os poetas vão ao ponto de substituir uma palavra plena (mais frequentemente um verbo) por uma palavra vazia, sempre com a preocupação de inserir o vazio no pleno, mas agora por substituição. A propósito, assinalemos que mesmo no âmago das palavras plenas, existem outras distinções tais como palavras mortas/ palavras vivas (si zi/huo zi) e palavras estáticas/ palavras dinâmicas (jing zi/dong zi) que marcam a diferença quer entre substantivo e verbo, quer sobretudo entre os dois tipos de verbos: verbos de qualidade (adjectivos) e verbos de acção. Assim aos olhos dos poetas que tentam alcançar a acção secreta das coisas, um verbo pode ter três estados: dinâmico (quando utilizado como verbo de acção), estático (quando utilizado como verbo de qualidade) e enfim vazio (quando substituído por uma palavra vazia).

A continuação deste capítulo será consagrada à observação dos processos pelos quais os poetas tiram da linguagem vulgar certos elementos aí existentes, donde a nossa classificação de processos passivos. Veremos que esta sequência de elipses não provém apenas da estilística. O "vazio" que elas engendram entre os signos e "atrás" dos signos modificam as implicações destes e, assim, a relação entre o homem e o mundo (esta relação é expressa na poética chinesa, pela combinação de dois termos: qing"sentimento interior" e jing"paisagem exterior").

Elipse dos Pronomes Pessoais

Se, no wen yan, a ausência dos pronomes pessoais já é frequente, é preciso notar que ela é mais flagrante na poesia e praticamente total no lü shi (poesia regular).22 Este desejo de evitar tanto quanto possível as três pessoas gramaticais mostra uma escolha consciente; ela dá origem a uma linguagem que situa o sujeito pessoal numa relação particular com os seres e as coisas. Ao apagar-se, ou antes ao fazer "sub-entender" a sua presença, o sujeito interioriza os elementos exteriores. Isto aparece de forma mais evidente nas frases que normalmente comportariam sujeito pessoal e verbo transitivo, e onde um complemento circunstancial de lugar, de tempo, ou mesmo de modo, na ausência de marcas que o determinem, parece constituir o sujeito real.

    Cume do Monte Taça de incenso 
    Haver alto ermita morar 
    Sol crepuscular descer do Monte
    Lua clara subir cume. 

Para os dois últimos versos da quadra, o leitor restabelece a frase "normal": "Ao pôr-do-sol, ele (o ermita) desce da montanha; e sobe ao cume quando a lua se levanta". Mas, quanto mais nos apercebemos sem esforço da intenção do poeta que é a de identificar o ermita aos elementos cósmicos; o sol e a lua já não são simples "complementos de tempo". E o asseio quotidiano do ermita é apresentado, desta feita, como o próprio movimento do cosmos.

    Montanha vazio não aperceber ninguém
    Somente ouvir voz humana ecoar 
    Sol poente penetrar floresta profunda
    Um instante ainda iluminar musgo verde. 

Esta quadra foi composta por Wang Wei, o pintor-poeta adepto do Chan. Ele descreve um passeio na montanha, que é ao mesmo tempo uma experiência espiritual, experiência do vazio e de comunhão com a natureza. Os primeiros versos deveriam interpretar-se assim:"Na montanha vazia não encontro ninguém; só alguns ecos me chegam de vozes de pessoas que passeiam." Mas pela supressão do pronome pessoal e dos elementos locativos, o poeta identifica-se imediatamente à "montanha vazia", que deixa de ser um "complemento de lugar"; de igual modo, no terceiro verso, ele é o raio de sol poente que penetra na floresta. Do ponto de vista do conteúdo, os dois primeiros versos apresentam o poeta como "não vendo" ainda; aos seus ouvidos ressoa o eco de vozes humanas, os dois últimos versos estão centrados no tema da "visão": veja-se o efeito dourado dos raios do poente sobre o musgo verde. Ver significa aqui iluminação e comunhão em profundidade com a essência das coisas. Por outro lado, o poeta recorreu muitas vezes ao processo da omissão do pronome pessoal para descrever as acções em cadeia, onde os gestos humanos são associados aos movimentos da natureza. Citemos ainda os versos seguintes:

    Nuvens brancas voltar contemplar unir
    Raio verde penetrar procurar invisível

Aqui, durante um passeio solitário, o poeta voltou-se para contemplar as nuvens em movimento até que elas se desfazem — e o poeta com elas — num todo indivisível (ideia de comunhão total), avança em direcção ao raio verde que realça a paisagem luxuriante, este toma-se invisível à medida que penetra no seu espaço luminoso (ideia de iluminação no não-ser). Os dois versos terminam com três verbos sucessivos: os dois primeiros verbos de cada verso têm por sujeito o poeta, o último a natureza. Os versos assim compostos sugerem intensamente o processo de fusão do homem e do cosmos.

    Sono primaveril ignorar aurora
    A toda a volta ouvir cantar pássaros... 
    Noite passada: sussurro de vento, de chuva; 
    Pétalas caídas, quem sabe quantas... 

Esta quadra descreve a impressão de uma pessoa que dorme ao acordar numa manhã de primavera (quando a aurora já nasceu): o leitor é convidado a entrar "ao mesmo nível" no estado de consciência da pessoa que dorme (ou antes, no seu estado de semi-consciência, visto que, apenas desperto, tudo está confuso ainda no seu espírito). O verso 1 não coloca o leitor diante de alguém que dorme, mas situa-o ao nível do seu sono, um sono que se confundiria com o próprio sono da primavera. Os outros três versos, sobrepostos, "representam" as três camadas de consciência da pessoa que dorme: presente (chilreios de pássaros), passado (sussurro do vento e da chuva), futuro (pressentimento de uma felicidade demasiado fugidia e o vago desejo de descer ao jardim para contemplar as pétalas juncando o solo). Quando um tradutor inábil, por cuidado de "clareza", usa uma linguagem denotativa, precisando, por exemplo: "quando eu durmo na primavera...", "A toda a minha volta, eu ouço...", "lembro-me que...", "e pergunto-me...", veremos então um autor perfeitamente acordado, saído desse estado de bem-aventurança, prestes a "começar" do exterior as suas sensações.

Os exemplos citados até aqui têm todos um sujeito singular (um "eu" ou um "ele"). Nos poemas que implicam várias pessoas, a ambiguidade devida à ausência de pronomes pessoais nem sempre prejudica a compreensão, mas acrescenta muitas vezes mudanças subtis.

O exemplo que se segue mostra-nos o poeta a fazer uma visita a um ermita (um monge tauista). O poema implica um "eu" e um "tu", sem que estes pronomes jamais sejam utilizados:

    O caminho atravessar vários lugares 
    Musgos tenros perceber traços de tamancos
    Nuvens brancas rodeando ilhota calma
    Ervas campestres fechando porta ociosa

    Chuva passada contemplar cor pinheiros 
    Colina bordejada atingir nascente de ribeira 
    Flores do regato revelar espírito de Chan
    Face a face já fora da palavra

Para chegar ao lugar onde vive o ermita (verso 3 e 4: ilhota rodeada de nuvens, porta fechada por ervas campestres), o visitante atravessa uma paisagem sinuosa inteiramente habitada pela presença do ermita. Não sendo nomeado o "tu", o ermita não é apresentado como um "objecto" de visita, isolado do que o rodeia; e não se nomeando também por um "eu", o poeta funde-se nos elementos da paisagem (torna-se alternadamente musgo, chuva, pinheiros, colina e nascente) que não é outra senão a paisagem interior do ermita. O caminhar material torna-se um caminhar espiritual. Quando finalmente se chega ao fim (mas que fim?) visitante e anfitrião encontram-se numa natureza comum. A expressão "face a face" do último verso é ambígua e dá lugar a múltiplas interpretações: é a união entre o "eu" e o "tu"; ou os dois juntos face ao espírito do Chan (Zen); ou ainda o "eu" em face das flores, estando ausente o anfitrião? De qualquer modo, para o visitante, ter ou não encontrado o ermita, ter conversado com ele ou não, não tem importância, pois que o seu caminho se faz para além da palavra. Nesta linguagem, em que os indicadores "eu" e "tu" estão ausentes, o discurso objectivo coincide com o discurso pessoal. Isto revela, uma vez mais, que a intenção do poeta é interiorizar os elementos exteriores e, assim, suprimir a oposição entre o sujeito e o mundo objectivo.

Citemos enfim um poema de Du Fu que implica várias pessoas. Trata-se do "Segundo envio a meu sobrinho Wu Lang", a quem ele deixa os seus bens. O poeta pede ao seu sobrinho que não plante sebes a oeste do jardim; este acto desorientaria a vizinha do lado oeste, que é uma mulher muito pobre que aí costuma ir colher jujubas para se alimentar. O poema apresenta-se assim:

    Diante cabana abanar jujubeira vizinha do oeste, 
    Sem alimento sem filho uma mulher sozinha
    A que ponto misériaporquê recorrer a isto
    Por causa da vergonha tanto mais ser afável. 

    Desconfiar do anfitrião estranho ainda que inútil
    Plantar sebes mesmo dispersas todavia
                           demasiado real
    Lamentar-se trabalhos-impostos despojada até
                                         aos ossos
    Pensar chamas de guerra lágrimas molhar vestes. 

O poema põe em cena três protagonistas: o poeta (eu), o sobrinho (tu) e a mulher (ela). O termo "protagonista" é impróprio porque, ao omitir os pronomes pessoais, o poeta procura criar justamente uma consciência "intersubjectiva" em que o outro nunca está frente a frente. De verso em verso, o poeta identifica-se a um e outro dos personagens (os versos 3,5 e 7 referem-se a "ela", os versos 4 e 6 a "tu", e o último verso a "eu" ou a "nós"), como se ele possuísse vários pontos de vista ao mesmo tempo. O poema apresenta-se como o debate interior de uma mesma pessoa, através da qual o discurso e a história são incessantemente misturados.

Os poemas que acabámos de analisar fazem parte da poesia dita regular. Seria interessante observar um exemplo de poesia à moda antiga onde se constata por vezes a presença do pronome pessoal da primeira pessoa.

    Por entre as flores uma vasilha de vinho
    Sozinho a beber sem amigos íntimos
    Levantando a taça convidar a lua
    Face à sombra eis três pessoas
    A lua não saber beber
    Um instante acompanhar sombra e lua
    Fruir a vida sem interposições a primavera
    Eu canto e a lua distraída
    Eu danço e a lua levanta-se
    Despertos comungar na alegria
    E ébrios cada um se separar
    Para sempre amarrar laços não-dados
    Se encontrar longínqua Via-Láctea. 

Este poema de Li Bo, de inspiração tauista, chama-se "Bebendo sozinho sob a lua". Apesar da aparente simplicidade do tom, o poeta aborda aqui vários temas: o da ilusão e da realidade, o de si mesmo e do outro, o do apego e do desapego, etc. Sem se deixar enganar pela ilusão, ele inventa os seus companheiros de bebida: a sua sombra e a lua que projecta esta sombra. Através destes seres, por sua vez divididos e interdependentes, o poeta toma consciência do seu próprio ser (verso 6: "o meu corpo") enquanto sujeito actuante (verso 9 e 10:"eu canto e danço"). O seu canto e a sua dança, que encontram eco nos seus companheiros, permitem-lhe apreciar a alegria partilhada. Alegria provisória certamente. E o poeta sonha com a verdadeira união (juntos mas livres —"não-apego") na Via láctea onde luz e sombra se tornarão indistintas. Ao longo do poema, há primeiro um "aparecimento" do "eu" e, na sequência, a sua "fusão" no Todo; isto é justamente vincado pelo emprego do "eu" a meio do poema, quando o sujeito pessoal está ausente nos versos do princípio e do fim.

O conjunto de poemas estudados, na maioria muito curtos, mostraram-nos como, pelo processo da elipse dos pronomes, o homem fala através das coisas. O poeta usa este processo muitas vezes com ingenuidade ou malícia. Citaremos ainda, à mistura, alguns exemplos extraídos de poemas mais longos. Du Fu, durante a revolta de An Lu Shan (em 757), apresentou-se em andrajos diante do imperador no exílio. Para acentuar o contraste entre o estado lamentável ao qual estava reduzido e a solenidade da circunstância, em vez de dizer "calçando pobres sandálias apresento-me diante do imperador", ele diz simplesmente e não sem ironia:

Sandálias de palhas visitar Filho do Céu23

Por outro lado, termina assim um longo poema que descreve o sofrimento em tempo de guerra daqueles que, à força de chorar, nada mais possuem do que os olhos encovados e sem lágrimas:

    Olhos secos então ver ossos
    Céu e Terra ser sem piedade!24

Estes versos, sem sujeito pessoal, extraem a sua força de uma ambiguidade: quem vê? Ou bem que é o poeta que, através dos olhos enxutos dos pobres, vê os seus rostos reduzidos a esqueletos, ou bem que são os olhos dos próprios pobres que enfim vêem o "fundo das coisas": um céu e uma terra sem piedade pelos homens votados à morte. Assiste-se assim a uma cena vista ao mesmo tempo de dentro e de fora. Noutros exemplos ainda, é sempre a comunhão directa com a natureza que os poetas procuram exprimir. Assim, Li Bo, dirigindo-se a um amigo ermita, em vez de dizer "quando eu tardiamente te vier fazer companhia, cavalgaremos um dragão branco no céu azul", escreve:

    Tarde no ano talvez em companhia
    Céu azul cavalgando dragão branco25

O poeta não está no céu azul, mas torna-se um com ele: sonho tauista por excelência. Do mesmo modo, Wei Zhuang quer dizer que não está sozinho na sua barca, mas que ele se torna a barca entre o céu e a água, quando canta:

    Águas primaveris mais esmeraldas que o céu
    Barca pintada ouvindo chuva adormecer26

Elipse da Preposição

A seguir à elipse dos pronomes pessoais já pudemos constatar o efeito da omissão da preposição nos complementos locativos (de lugar, de tempo); os quais, na ausência de palavras tais como: a, sobre, em, etc., aparecem os substantivos de pleno direito ("montanha vazia" em vez de "na montanha vazia"; "musgos tenros" em vez de "sobre os musgos tenros"; "céu primaveril" em vez de "quando dormimos na primavera"), o que lhes permite aparecer como sujeito da frase. Agora, é ao nível do predicado que vamos observar este mesmo efeito. Trata-se essencialmente do caso em que a omissão de preposições do tipo yu, "a", combinada com a omissão do sujeito pessoal, tira ao verbo qualquer indicação de direcção, suscitando assim uma linguagem reversível, em que sujeito e objecto, dentro e fora, se encontram numa relação de reciprocidade.

Reciprocidade fundada na "intersub-jectividade" como nestes versos do poema "Noite de rio primaveril e de lua florida" de Zhang Ruo Xu:

    Quem vogar, esta noite, na sua barca leve
    E onde pois pensar pavilhão sob a lua27

Os versos relatam o drama de dois amantes separados; o segundo verso pode interpretar-se de duas maneiras:

1. Onde está pois aquele que pensa no pavilhão sob a lua?

2. Onde está pois aquela que pensa no seu pavilhão sob a lua?

A ambiguidade desta frase é desejada, pois os amantes separados pensam um no outro, ao mesmo tempo, na noite.

Reciprocidade entre sujeito e objecto, como no dístico seguinte:

Luz de montanha fruir humor das aves

Sombra na lagoa esvaziar coração do homem

Estes dois versos são tirados do poema "Visita ao mosteiro Po shan" de Chang Jian. Este poema foi traduzido muitas vezes em várias línguas ocidentais; e os dois versos, pela sua ambiguidade, deram lugar, como os precedentes, a interpretações muito diversas.28

Vejamos o segundo verso, o verbo "esvaziar" (que significa: atingir a ausência espiritual) não sendo marcado por uma preposição, o verso, nos seus constituintes imediatos, tem pelo menos três acepções:

1. Na sombra da lagoa o coração do homem esvazia-se;

2. A sombra da lagoa esvazia-se no coração do homem;

3. A sombra da lagoa faz esvaziar o coração do homem.

As diferentes estruturas sintácticas, as "árvores" abaixo, mostram melhor o seu aspecto móvel e reversível:

^^ Complementos de Tempo Sendo o chinês uma língua não flexiva, o tempo do verbo é expresso por elementos anexos ao verbo, tais como advérbios, sufixos e, ou partículas modais. Muitas vezes, com a intenção de criar um estado ambíguo, em que o presente e o passado se misturam e onde o sonho se confunde com a realidade, o poeta recorreu quer à omissão dos elementos indicadores de tempo, quer à justaposição de tempos diferentes, o que rompe a lógica linear. Encontramos numerosos exemplos destes nos poetas da dinastia Tang. Entre eles, Li Shang Yin parece ter procurado o mais conscienciosamente possível a ambiguidade dos tempos: tempos do vivido e tempo da evocação, como no-lo mostram estes versos que terminam o poema "A cítara ornada de brocado",30 cujo tema é a vivência de uma paixão:
    Esta paixão poderá ela durar e tornar-se
                  "continuação-lembrança"? 
    Só que nesse tempo (estava-se) já "des-possuído". 
O poeta coloca-se, ao mesmo tempo, no próprio momento (verso 1) em que esta paixão é vivida e no momento (verso 2) em que ele crê reencontrar esta paixão na lembrança, perguntando-se se esta foi realmente vivida. O segundo exemplo é o poema intitulado Ma wei. Este poema evoca o amor infeliz do imperador Xuan Zong: apaixonado pela sua favorita Gui Fei, por quem negligenciou os negócios de Estado. Aquando da revolta de An Lu Shan, na estrada do êxodo, deixou matar a sua favorita pelos soldados em cólera. Depois do drama, o imperador, inconsolável, não parou enquanto não enviou monges tauistas à procura da alma da sua amante, para além dos mares, ao mundo dos imortais: Ⅰ.1. Para além dos mares em vão saber Novas Regiões mudar 2. A outra via não predita esta vida parada Ⅱ. 3. Ainda ouvir tigres-guardas bater sinos de madeira 4. Não mais voltar galo-homem anunciar chegada da aurora Ⅲ. 5. Hoje Seis Armadas em conjunto parar cavalos 6. Na outra noite Duplo Sete rir de Boieiro- -Tecedeira Ⅳ. 7. Porquê pois quatro décadas ser Filho do Céu 8. Não valer nada filho de Lu com Sem Cuidado O poema compõe-se de quatro déticos. Apesar da ausência de pronomes pessoais, pode supor-se que o sujeito é o amante desafortunado, embora certos versos pareçam sugerir igualmente o ponto de vista da amante. O dístico I não comporta nenhuma indicação de tempo; só o verso 2 fala de "esta vida" e de "outra vida". Mas está-se em "esta vida" ou já em "outra", ou então entre ambas? Nada permite precisá-lo. Há uma indicação de lugar no verso 1 ("para além dos mares..."), mas aí, encontramo-nos igualmente diante de uma ambiguidade: encontra-se para além dos mares ou nesta terra? Segundo uma antiga tradição chinesa, a terra seria composta por Nove Regiões, mas estas teriam a sua correspondência para além dos mares num outro mundo, o qual está igualmente dividido em Nove Regiões. De modo que o verso 1 pode interpretar-se de duas maneiras: "Aprende-se em vão que para além dos mares as Nove Regiões mudaram" ou "Para além dos mares onde se encontra, aprende-se que sobre a terra as Nove Regiões mudaram". Para os amantes separados, todas as transformações, aqui ou além, são vãs. Igualmente vã é a sucessão dos dias e das noites. O dístico II exprime a ideia do passar do tempo, mas um tempo indiferenciado. A noite (verso 3) nada mais é que um eco monótono; e o dia (verso 4) não tem mais sentido, quer em "esta vida" ou em "a outra". No meio deste discurso, num tempo impreciso (ou indeciso), o dístico III introduz de modo quase incongruente, os complementos de tempo "hoje" e "a outra noite", que fazem surgir um "presente" à volta do qual se fixa um pensamento obcecante (o verso 5 evoca a cena do homicídio, enquanto o verso 6 fala da noite de amor em que os amantes felizes riem do Boieiro e da Tecedeira, duas estrelas que se encontram nos extremos da Via Láctea e que, segundo a tradição, só podem reunir-se uma vez por ano, na noite do sétimo dia do sétimo mês). Já fizemos notar, a propósito dos pronomes pessoais, que a ausência de shifter31 cria uma linguagem ambígua. Aqui, numa linguagem também inteiramente ambígua, o aparecimento de um shifter (hoje) introduz brutalmente o discurso pessoal e marca fortemente o carácter irredutível do drama humano que não se deixa "absorver" pelo tempo. O último dístico repõe o discurso numa perspectiva objectiva. O Filho do Céu faz eco da interrogação inicial do poema: é-se da terra ou do céu? Se a felicidade nunca foi realizada na terra, foi-o talvez numa vida anterior (o jovem Lu e a sua bem-amada Sem Cuidado viveram felizes oitocentos anos antes, no reinado dos Hans), ou sê-lo-á ainda, mas numa vida ulterior? ^^ Elipse de Termos de Comparação e de Verbos Nos versos que comportam uma comparação, constata-se a ausência não apenas de determinantes conjuntivos (tal, como), mas também de verbos (parecer-se com, evocar)copulativos. Este processo, comparamo-lo nós àquele que consiste em omitir o verbo principal de uma frase. A omissão de termos de comparação não se deve a um simples escrúpulo económico: ao permitir a aproximação "brutal" de dois termos, ela cria entre eles uma relação de tensão e de interacção. Se, além disso, numa frase existencial ou comparativa, o poeta utiliza a inversão, é muitas vezes difícil atribuir a cada um dos termos o estatuto de sujeito ou de objecto; por este processo, que não é apenas uma colocação em equivalência, o poeta religa "organicamente" os factos humanos aos da natureza. Citamos, para ilustrar as nossas afirmações, dois exemplos, um de Li Bo, e outro de Du Fu.
    Nuvem flutuante humor do vagabundo, 
    Sol poente coração do solitário. 
Estes versos são tirados de um poema que descreve uma cena de adeus em que, antes que o viajante monte a cavalo, os dois amigos permanecem um instante ainda numa paisagem crepuscular. A natureza não é mera decoração exterior mas parte participante no drama. A ausência de termos de comparação põe, em cada verso, os dois termos numa relação recíproca. É por isso que o verso 1 tanto se pode ler: "O humor do vagabundo é como a nuvem flutuante", como "A nuvem flutuante tem o humor de um vagabundo". Numa segunda interpretação, a natureza não é unicamente uma "fornecedora de imagens metafóricas", ela está implicada no mesmo drama que o homem. Esta ideia de uma natureza participante é reforçada pelo facto de os dois versos serem paralelos. Os dois elementos da natureza: nuvem flutuante e sol poente, face a face, mantêm uma relação de contiguidade e de oposição. Ambos, planam efectivamente, um momento em conjunto, mas enquanto um se lança no espaço em direcção ao céu, o outro desce em direcção à terra. Conhecem assim as angústias da separação. Esta relação "significante" faz com que eles não sejam apercebidos como simples elementos de comparação. Os quatro termos assim "reunidos" nos dois versos, criam entre eles laços alicerçados numa necessidade interna. O drama do homem é inseparável do da natureza. Tudo se passa como se, pela ausência do predicado, o poeta quisesse ultrapassar o processo metafórico introduzindo aí uma ordem propriamente metonímica.
    Sol-lua aves em cativeiro 
    Céu-terra lentilhas sobre a água32
Nestes versos, a elipse do termo de comparação permite uma dupla leitura, no sentido de que, para o primeiro verso, o primeiro termo de comparação pode ser "sol-lua", ou seja, um "eu" subentendido. O verso pode traduzir-se por: "O sol e a lua são eles próprios como aves em cativeiro" ou por "No tempo que passa (em chinês: sol-lua), eu sou prisioneiro como uma ave em cativeiro". Do mesmo modo, o segundo verso pode ser encarado de duas maneiras: "Entre o céu e a terra, sou como as lentilhas sobre a água" ou "O próprio universo (em chinês: céu-terra) é mutável e incerto como lentilhas sobre a água". Participante do mesmo tipo de investigação, é a omissão do verbo numa frase. Por este processo, o poeta pretende privilegiar certos elementos dando-lhes uma mudança definitiva ou fixando um estado em que os elementos coexistem ao mesmo tempo que se implicam. Mar de esmeralda céu azul noite-noite coração É assim que Li Shang Yin canta o destino da deusa Zhang E, prisioneira na lua. Entre o céu e o mar brilha, todas as noites, este coração amante que sofre. O verso, tal como ele se apresenta em chinês, tem uma força de presença bem maior do que se estivesse acompanhado por uma indicação verbal. Este tipo de versos em que os signos não são suportados a não ser pelo ritmo é difícil de executar. Citamos três outros exemplos entre os mais conhecidos: (1)Canto de galo albergue de palha lua Traço de passos ponte de madeira geadas. (2)Rio sideral outono só pato selvagem Roupas batidas meia-noite mil lareiras acesas33 (3)Cinco lagos três hectares cabana, Dez mil li um único fantasma34 ^^ Emprego de Palavras Vazias em vez de um Verbo Até aqui, observámos como é que, por supressão de certas palavras-vazias, o poeta criou uma espécie de vazio entre as palavras. É preciso assinalar agora um processo particular pelo qual o poeta coloca intencionalmente uma palavra-vazia em vez de uma palavra-plena (geralmente um verbo), afim de, ainda, introduzir no verso o "vazio", mas desta vez "por substituição". Nos exemplos que se seguem, assinalamos as palavras vazias que exercem uma função verbal: (1)Grande idade muitas vezes estrada-caminho Dia tardio de novo monte-rio35 (2) Folhas amarelas sempre vento-chuva Pavilhão verde em si ecos de música36 (3) Países devastados sós serpente-javali Céu-terra ainda tigre-lobo37 (4)Em face da vida vivida que rosto envergonhado Ao fundo da tristeza além disso fim do ano38 (5)Frágil nuvem céu com longínquo Longa noite lua juntamente solidão (6) Bosque antigo nenhum traço vereda Montanha profunda onde pois sino (7)Uma vez deixar Terraço Púrpura sem interposição de nada Deserto Nórdico Sópermanecer Túmulo Azul em direcção a crepúsculo amarelo. A consequência mais imediata destas elipses é a dissolução das coacções sintácticas, reduzidas a algumas regras mínimas. Se os versos de metro mais longo estão mais próximos do wen yan (prosa escrita), os versos curtos, pentassilábicos, observam praticamente apenas duas regras constantes: num sintagma, o determinante precede o determinado; numa frase em que o predicado é um verbo transitivo, respeita-se o esquema S + V + O. Assinalemos aqui o papel primordial que desempenha o ritmo, que marca o reagrupamento das palavras. Entre as palavras, os substantivos e os verbos (verbos de acção e verbos de qualidade) assim como certos advérbios, adquirem uma grande mobilidade combinatória. Os versos pentassilábicos, pela sua concisão, apresentam-se por vezes como uma "oscilação" entre o estado nominal e o estado verbal (certas combinações são previsíveis: antes da cesura, NN, NV, VV, VN; depois da cesura, NVN, NNV, VNV, VNN). Esta oscilação constata-se aliás, em muitos casos, no próprio interior de uma palavra. No caso das palavras invaráveis, a natureza de uma palavra não é assinalada morfologicamente, ainda que na linguagem vulgar o uso lhe atribua uma classe definida. Na construção de uma frase, a natureza de uma palavra é determinada pelos elementos que a rodeiam (preposições, conjunções, partículas, etc.) e a ausência destes elementos, torna a sua identificação muitas vezes difícil. Isto serve a intenção do poeta aos olhos de quem, numa palavra plena, o nominal e o verbal são dois estados virtualmente presentes. É por esta razão que as palavras, de natureza ambivalente e postas em contacto directo, conferem ao verso um devir e uma carga emocional poderosa. ) e de combinação (......) quetentaremos representar pela figura junto.

O aspecto ordenado, aparentemente estático, desta representação não deve fazer-nos esquecer que estamos em presença de uma linguagem dinâmica de que os elementos que a compõem, se implicam uns nos outros. Linguagem dividida que põe em jogo a relação entre o dito e o não dito, a acção e a não-acção e, no fim de contas, o sujeito e o objecto. Para os poetas, só esta linguagem, movida pelo vazio, é capaz de engendrar a palavra onde circula o "sopro", e deste modo, de transcrever o indizível.

É aqui que convém lembrar, uma vez mais, a importância da noção de vazio no pensamento estético chinês. Possuindo a dimensão do vazio, o homem apaga a distância com os elementos exteriores; e a relação secreta que apreende entre as coisas, é a mesma que ele próprio mantém com elas. Em vez de utilizar uma linguagem descritiva, ele procede por "representação interna", deixando as palavras representar completamente os seus "jogos". Num discurso, graças ao vazio, os signos, desembaraçados (até um certo grau) da coacção sintáctica rígida e unidimensional, encontram a sua natureza essencial de ser ao mesmo tempo existências particulares e essências do ser. Implicados no processo do tempo, eles estão portanto como que fora do tempo. Quando o poeta nomeia uma árvore, ela é não só a árvore particular que ele viu, mas também a Árvore na sua essência. Além disso os signos tornam-se multidireccionais nas suas relações com os outros signos; e é através destas relações que transparece o sujeito, ausente e ao mesmo tempo "profundamente presente". Assim, discurso objectivo e discurso pessoal coincidem, formando o dentro e o fora de um mesmo discurso. O que daí resulta, é a linguagem móvel, completamente movida pelo ritmo (que desempenha o mesmo papel que o qi yun "sopro rítmico" na pintura), um ritmo que não se limita ao plano fónico, mas que regula a natureza e o sentido das palavras. Entrando numa festa total, onde dança e música fazem reviver os seus segredos imemoriais, os signos libertam-se da relação codificada e estabelecem entre eles uma livre comunhão. Palavra solta na qual se pode "circular"; a cada momento descobrem-se novas perspectivas. Sem cair no puro jogo, os poetas compuseram poemas muito belos chamados hui wen shi "poemas de leitura dirigida", dos quais são possíveis diferentes leituras a partir de pontos diferentes. O mais simples é um tipo de poemas que se pode ler no sentido normal e no sentido exactamente inverso, a partir do fim:
    Perfume lótus esmeralda água agitar vento
                                           fresco
    Água agitar vento fresco verão jornada longa
    Longa jornada verão fresco vento agitar água
    Fresco vento agitar água esmeralda lótus
                                        perfume. 
Este tipo foi possível justamente devido à redução das regras sintácticas e da ausência de palavras-vazias. As palavras não revelam a sua verdadeira natureza a não ser pelo lugar que ocupam na frase; elas adquirem uma determinada função segundo uma certa ordem; se se inverte esta ordem, elas adquirem uma outra função. No poema acima citado, das palavras colocadas umas a seguir à outras, pode extrair-se, seguindo a leitura normal ou inversa, um sentido muito preciso:
    perfume lótus = lótus perfumados
    lótus perfume = os lótus estão perfumados
    fresco vento = vento fresco
    vento fresco = o vento está fresco
    água agitar = a água que se agita
    vento agitar água = o vento agita a água
E os versos do poema (nos dois sentidos) podem ser traduzidos assim: "Sobre a água de esmeralda, por entre os lótus perfumados, levanta-se um vento fresco / A água agita-se, o vento traz a frescura, a jornada de verão é longa / Longa jornada, o verão está fresco, o vento agita a água / Um vento fresco agita a água, os lótus verdes emanam os seus perfumes". Outros poemas, mais elaborados, constituem verdadeiros labirintos de signos onde, a partir de um ponto qualquer, nos embrenhamos num itinerário diferente que oferece descobertas cheias de surpresas. Contentamo-nos em reproduzir aqui um exemplo; dando ao leitor a oportunidade de aí se perder e se encontrar:
Poesia. © Ilustração de U Kuok Wang

Faça-se uma primeira distinção entre jin ti shi (poesia de estilo moderno), regida por estritas regras de prosódia, e gu ti shi (poesia de estilo antigo), que se assinala pela ausência de coacções, ou na maior parte das vezes, pela deformação intencional dessas mesmas regras. No seio do gu ti shi, duas correntes, uma popular yue fu, outra erudita gu feng, alimentam-se mutuamente. Quanto à poesia de estilo moderno, a sua forma mais importante é o lü shi (oitava regular); é em relação a ele que se definem o jue ju (quadra), considerado como um lü shi amputado, assim como o zhang lü (shi long) que, como o nome indica, é um lü shi prolongado, de múltiplas estrofes. Ao lado destes dois géneros, mencionemos uma forma de poesia cantada, intimamente ligada à música, chamada ci, que se desenvolve no fim da dinastia dos Tangs e que estará em voga na dinastia seguinte, os Songs.

Nesta rede de formas, o lü shi (oitava regular) pode ser tomado como a referência a partir da qual todas as outras ganham sentido. Esta forma que é o resultado dos esforços de vários séculos de buscas não realça apenas os traços específicos de uma língua, mas representa, à sua maneira, uma certa concepção filosófica, essencial aos Chineses. Estamos em presença de um sistema de que os diferentes níveis são feitos de elementos oposicionais internos e cuja progresão obedece a uma lei dialética fundamental. A este respeito, a análise do lü shi oferece, entre outros interesses, o de pôr em evidência o processo pelo qual uma forma cria o sentido. ^^ A) O Lü Shi À primeira vista, o lü shi impressiona pelo seu aspecto "económico". Ele constitui, aos olhos do poeta chinês, uma espécie de "minimum completo". Um lü shi compõe-se de duas quadras e cada quadra de dois dísticos. O dístico é portanto aí a unidade de base. Dos quatros dísticos de um lü shi, o segundo e o terceiro são obrigatoriamente formados por versos paralelos, o primeiro e o último, por versos não paralelos. Este contraste entre os versos paralelos e os versos não paralelos é característico do lü shi, sistema formado por elementos opostos a todos os níveis (fónico, léxical, sintáctico, simbólico, etc). Entre estes níveis estabeleceu-se uma rede de correspondências na qual eles se apoiam e se implicam mutuamente. Começaremos pelo nível fónico observando sucesivamente a cadência, a rima, o contraponto tonal e os efeitos musicais. CADÊNCIA Num lü shi, um verso pode ser pentas-silábico ou heptassilábico; isto quer dizer que um verso é composto ora por cinco, ora por sete carácteres, visto que em chinês cada carácter conta invariavelmente como uma sílaba (e as próprias palavras, em chinês antigo, compõem-se apenas por um único carácter). Na poesia, em que a sílaba é a unidade de base, não há por assim dizer um afastamento entre o nível dos signi-ficantes e o dos significados, tendo cada sílaba sempre um sentido. A cesura encontra-se, num verso pentassilábico, depois da segunda sílaba; e depois da quarta sílaba num verso heptassilábico. De um lado e de outro da cesura, existe assim uma oposição entre os números pares (duas ou quatro sílabas) e os números ímpares (três sílabas), oposição acentuada pela cadência que, facto notável, é jâmbica antes da cesura e trocaica depois (●= sílaba acentuada):
    pentassilábico: ○●/●○●
    heptassilábico: ○●○●/●○●
Este ritmo, em que as sílabas pares e ímpares são alternadamente acentuadas, é feito, de algum modo, de embates. Para utilizar uma imagem, a cesura é como uma parede contra a qual vêm bater as vagas ritmadas: ○●; segue-se um choque ao revés, engendrando um ritmo contrário: ●○●. Esta prosódia contrastiva suscita todo o movimento dinâmico do verso. A respeito da oposição entre números par-ímpar, podemos precisar ainda que ela está subentendida pela ideia do yin (número par) e do yang (número ímpar) cuja alternância, como se sabe, representa para os Chineses o ritmo fundamental do universo. Além da função rítmica que ela estabelece, a cesura tem ainda um papel sintáctico39 ao reagrupar as palavras de um verso em segmentos distintos que se opõem ou mantêm ligações de causa e efeito. No seu poema "Primavera cativa", Du Fu serve-se da cesura para marcar o contraste entre certas imagens:"País destruir / monte-rio permanecer" (o país está destruído, mas rio e monte permanecem);"lamentar tempo / flores verter lágrimas" (lamentando o tempo que foge, até as flores choram). Em compensação, Wang Wei, pela cesura (que sugere o vazio), sublinha os laços subtis que existem entre imagens aparentemente independentes: "Homem repousar / flores de caneleira cair; noite se acalmar / monte primaveril vazio". RIMA No que respeita à rima, uma simples precisão: à excepção do primeiro verso, que pode eventualmente entrar em linha de conta, a rima cai sempre nos versos pares. Isto implica que os versos ímpares não sejam rimados — isto é um traço importante da poesia chinesa — criando assim mais uma oposição estruturada, entre versos pares e versos ímpares. Não há mudança de rima no interior de um lü shi; uma só rima, de verso par em verso par, "percorre" todo o poema. Acrescentemos que, para a rima, o poeta deve escolher uma palavra no tom dito "uniforme", o tom mais unido (e longo) entre os quatro tons que possui o chinês antigo. O que nos leva a abordar um outro ponto importante da poesia chinesa: o contaponto tonal. CONTRAPONTO TONAL Sendo o chinês uma língua de tons, o poeta foi, desde muito cedo, sensível à musicalidade que as combinações tonais introduzem.40 Um lü shi é regido, ao nível fónico, por regras tonais rigorosamente definidas. Por isso, o poeta propõe uma distinção entre o tom "uniforme" (o primeiro dos quatro tons) e os tons "oblíquos" (os três outros tons: tom "ascendente", tom "ascendente e descendente" e o tom "descendente"). Esta distinção baseou-se, em princípio, na diferença entre o primeiro tom, que está unido à sílaba longa, e os outros tons, que são modulados ou de sílaba breve.41 O contraponto tonal prevê, para os lü shi pentassilábicos, esquemas de alternância entre estes dois tipos de tons. O poeta é obrigado a escolher as palavras cujo tom for conforme aos esquemas obrigatórios que são os seguintes: (— representa o tom uniforme e/os tons oblíquos):42 1. Esquema começando por um tom oblíquo: 3. Esquema começando por um tom uniforme: Cada um destes esquemas pode ser tomado como um jogo de signos abstracto e ser objecto de análise no plano numérico ou combinatório. Não esqueçamos, que, quanto a nós, ele está ao serviço da linguagem poética; apenas os factos que nos pareçam pertinentes serão aqui abordados. Tomemos como exemplo o primeiro esquema (1), no qual marcamos duas divisões internas previstas pela prosódia: Aqui, no primeiro dístico, depois da cesura, a oposição entre as duas linhas não é simétrica, mas "reflectida"; para retomar a definição de R. Jakobson,43 a figura da primeira linha encontra o seu reflexo, como num espelho, na da segunda linha. Quanto ao esquema (3), que começa por um tom uniforme, basta, para o obter, inverter a ordem dos dois dísticos que formam o esquema (1), ou dizendo de outra maneira, começar pelo segundo dístico do esquema (1) e terminar pelo primeiro dístico deste. Segundo estas análises, e tendo em conta as coacções impostas pela prosódia, a saber que a cadência de um verso é baseada em grupos de duas sílabas mais uma sílaba isolada, assim como da obrigação para a rima de ser em tom uniforme e de cair num verso par, podemos propor um esquema único44 para representar os quatro esquemas das variantes: Ao rodar no sentido dos ponteiros de um relógio, para encontrar cada um dos esquemas variantes, basta partir de um dado ponto do círculo, como o indicam as setas. Para os esquemas (2) e (4), devem abstrair-se os elementos entre parênteses. Tudo se passa pois como se, sob a rede das sílabas — a sílaba é, lembremo-lo, a unidade base do chinês, simultaneamente fónica e significante —, como que para as contestar, se desenrolasse um movimento inquieto, oscilando entre um pólo estático ou estável (o tom uniforme) e um pólo dinâmico (os tons oblíquos). O contraponto tonal constitui assim o primeiro dos múltiplos níveis do sistema de oposições internas que é o lü shi. EFEITOS MUSICAIS Antes de abordar o aspecto sintático do lü shi, devemos indicar, de modo necessariamente sucinto — sendo de procurar os efeitos musicais essencialmente nas obras da especialidade —, quais os valores fónicos principais explorados pelos poetas. Na escrita chinesa, tendo cada carácter uma pronúncia monossilábica, todas as sílabas são significantes e o conjunto das sílabas é inventariável. Certas sílabas, e, ligadas a elas certas consoantes iniciais e finais, pelas palavras que elas encarnam, tem um poder evocador particular. Para as consoantes iniciais,assinalemos primeiro uma figura fónica chamada shuang sheng na retórica tradicional: um binómio em que os dois elementos são aliterativos, como fen fang "odorante, perfumado"; outros exemplos mostram um emprego particular de certas consoantes que "desencadeiam" toda uma série de palavras com um sentido muito próximo: assim na quadra "Lamento das escadas de jade" de Li Bo,45 que descreve a espera vã de uma mulher, durante a noite, nas suas escadas, em que o poeta utiliza uma sequência de l- que significa sucessivamente: orvalho, lágrimas, frieza, cristal, solidão:
    Yu jie sheng bai lu 
    Ye jiu qin luo wa 
    Que xia shui jing lian
    Ling long wang qiu wa
No que diz respeito às finais, assinalemos igualmente a figura fónica chamada die yun: um binómio cujos elementos rimam entre eles, como pai huai "dar cem passos, hesitar". Num exemplo mais "expressivo", o poeta Li Yu utiliza uma série de -an para reforçar a ideia de obssessão atormentada e de suspiros melancólicos:
    Lian wai yu can can
    Chun yi lan san
    Luo jin bu sheng wu geng gan
    Meng li bu zhi sheng shi ke
    Yi xiang tan huan 46
Os valores fónicos não estão isolados. Muitas vezes, é opondo-se uns aos outros que eles se manifestam. É assim que, para citar um exemplo de final: -an, do qual acabámos de dizer que sugere a melancolia, faz contraste com -ang, que tem uma cambiante triunfal e evoca sentimentos de exaltação; como se -ang, por ter uma abertura maior, tivesse "ultrapassado" a melancolia incarnada por -an. O poeta Han Yu faz contrastar nos versos seguintes a ternura feminina (verso 1 e 2) com o heroísmo viril (verso 3 e 4):
    Ni ni er nü yu 
    En yuan xiang er ru 
    Hua ran bian xuan ang
    Yong shi fu zhan chang!47
Do mesmo modo, a retórica tradicional propõe, para as consoantes iniciais, diferentes oposições: 1. Não aspirada / aspirada: por exemplo, bao (cercar) /pao (fugir). 2. Kai-Kou (sem u prevocálico) / he-kou (com u prevocálico): hai (criança) / huai (trazer ao colo). 3. Jian-yin (não palatizado) / tuan-yin (palatizado): por exemplo, qi (tristeza) / di (cair em gota). Num célebre poema,48 a poeta Li Qing Zhao (1084?-?), inspirando-se nas investigações dos poetas Tangs, faz contrastar estes dois tipos de sons para marcar a sua tristeza ao ouvir a chuva que cai. O efeito que produz a oposição tonal também não escapa à atenção musical do poeta, sobretudo a que fica entre o primeiro tom, o mais igual dos quatro, e o quarto tom, o mais abrupto. Este último, repetido várias vezes, sugere frequentemente o soluço ou uma impressão de sufocação. Du Fu, num poema que compôs a anunciar a paz, fez apelo aos múltiplos recursos fónicos (sons e tons) para exprimir a sua alegria diante da possibilidade de poder regressar ao país natal. O último dístico: "Depois das Gargantas de Ba, atravessarei as Gargantas de Wu, / e descerei em direcção a Hangyang para chegar a Luoyang!" transcreve-se assim:
    Ji cong Baxia chuan Wuxia, 
    Bian xia Hangyang xiang Luoyang! 
O primeiro verso contém uma sequência de palavras no quarto tom (ji, ba) e finais "estreitas" (xia quer dizer gargantas e desfiladeiros), enquanto o segundo é feito quase inteiramente de palavras no primeiro tom e de finais -ang. Os dois versos são além disso paralelos, termo a termo. O contraste entre os sons cria uma aguda impressão de sufocação, seguida de libertação com gritos irreprimíveis. NÍVEL SINTÁCTICO (VERSOS PARALELOS/ VERSOS NÃO PARALELOS) No plano sintáctico, o facto mais importante é a oposiçcão entre os versos paralelos e os verso não paralelos. Já o dissemos, dentre os quatro dísticos que compõe um lü shi, o segundo e o terceiro são obrigatoriamente feitos de versos paralelos; em compensação, o último dístico é obrigatoriamente não paralelo, enquanto que o primeiro é em princípio não paralelo, embora eventualmente, possa ser feito de versos paralelos. Assim, um lü shi apresenta-se segundo a progressão seguinte: não paralelo — paralelo — paralelo — não paralelo. Para apreender o significado desta transformação formal no interior de um lü shi, precisamos de observar, primeiro, o que são, na realidade, os versos paralelos. O paralelismo linguístico ocupa na China um lugar importante tanto na literatura como na vida corrente. Como o testemunham sentenças paralelas inscritas nas colunas dos templos, ou de um lado e de outro na porta da entrada das casas ou das lojas, como o mostra também o uso que deles fazem nos provérbios, nas festas e nas práticas religiosas. Se ele é o reflexo de uma concepção dualista da vida, a sua existência não está menos ligada à natureza específica dos ideogramas. Nos dois versos de um dístico, pode dispor-se termo a termo, de modo absolutamente simétrico, palavras que façam parte do mesmo paradigma gramatical, mas que tenham um sentido oposto (ou complementar), visto que cada palavra, em chinês antigo, é apenas constituída por um carácter. Os dois versos assim apresentados lado a lado oferecem, de um ponto de vista estético, uma certa beleza visual. No capítulo precedente, entre os versos citados, já pudemos observar inúmeros exemplos de versos paralelos. Tal como o seguinte dístico:49
    Luz da montanha / fruir humor das aves 
    Sombra da lagoa / esvaziar coração do homem
onde, entre dois versos, de ponta a ponta, as imagens estão regularmente frente a frente (luz da montanha / sombra da lagoa; humor das aves / coração do homem). Se, como vimos, este dístico oferece múltiplas interpretações, é justamente porque os signos, no seu "frente a frente", mantêm subtis e vivas relações, sem que o poeta tenha de "partir" num ou noutro sentido. Citemos ainda alguns exemplos, todos tirados dos lü shi de Wang Wei, e frequentemente escolhidos para ilustrar a forma do paralelismo:
    Lua clara / entre pinheiros luzir
    Nascente fresca / sobre os rochedos correr
Com estes dois versos entre os quais se estabelece uma correspondência (lua clara ←→ nascente fresca, pinheiros ←→ rochedos, luzir ←→ correr), o poeta cria uma paisagem completa onde luz e sombra (descritas pelo verso 1) respondem ao som e ao tacto (sugeridos pelo verso 2).
    Imenso deserto / fumo solitário direito
    Longo rio / sol poente redondo
Poeta pintor, Wang Wei propõe um quadro ao fazer contrastar diferentes elementos de uma paisagem. O contraste faz-se tanto no interior de cada verso (o deserto que se estende até ao infinito e o fumo que sobe solitário; o rio que corre ao longe e o sol que se fixa um instante) como entre os dois versos (o deserto estático e o rio dinâmico, o fumo que sobe e o sol que desaparece, a linha vertical e o círculo, o negro e o vermelho, etc.).
    Movimento do rio / para além de céu e terra 
    Cor de montanha / entre ser e não-ser50
O poeta introduz aqui a ideia de uma experiência espiritual (do Chan). Entre os dois versos, mais do que contraste, há uma espécie de "superação". Se, no primeiro verso, seguindo o movimento do rio, se alcança o movimento cósmico, permanece-se ainda no reino do espaço; no segundo verso, onde tudo se funde na cor da montanha, passa-se subtilmente do ser ao não ser. Tudo isto, bem entendido, não é dito explicitamente mas significado pelo lugar das palavras umas em relação às outras. Estes três exemplos são extractos de lü shi. Citemos para terminar, uma quadra51 inteiramente feita de versos paralelos, quer dizer, de dois dísticos paralelos (uma quadra, definida, na época dos Tangs, como a metade de um lü shi, talvez formado quer por dois dísticos paralelos, quer ainda por um dístico paralelo e um dístico não paralelo):
    Sol branco / o perfil dos montes desaparece 
    Rio amarelo / até ao mar se precipitar 
    (Se) desejar esgotar / vista de mil li 
    (Então) ainda subir / de um andar
No dístico I (versos 1 e 2), o poeta olha uma paisagem grandiosa (que ele admira do alto de um pavilhão elevado) dos seus dois pólos que, pela sua oposição (montanha-mar, fogo do sol — água do rio, celeste terrestre) e o seu movimento contrário (o sol retirando-se para oeste e o rio correndo para este) provocam no homem um sentimento de exaltação e de dilaceração. O dístico II, sendo ele também paralelo, é diferente do primeiro (a retórica distingue aliás vários tipos de paralelismo) no que ele exprime de ideias ao mesmo tempo opostas (vista de mil li — um andar superior) e contínuas (se desejar... então subir...), porque, para o poeta, se trata de sublinhar, por um lado, o contraste entre o espaço infinito e a presença solitária do homem, por outro, o desejo do homem de superar o mundo dividido ("mil" do verso 3 simboliza múltiplas coisas) e de atingir a sua unidade ("um" do verso 4 simboliza a unidade). Os quatro versos sobrepostos parecem representar visualmente a cena vivida: Esta figura, no entanto, não descreve completamente a realidade de um sistema em que os dois constituintes principais se seguem e se completam. Este desenvolvimento linear e simétrico ao mesmo tempo, talvez seja melhor sugerido por uma outra figura, inspirada na representação tradicional chinesa da mutação yin-yang: Ou para retomar a figura 2, que representa o paralelismo como um sistema que gira sobre si mesmo, pode dizer-se que este sistema é atravessado pelo encadeamento temporal que prefigura a sua explosão:
Su Dong Po, ou Su Shi. © Ilustraçã0 de U Kuok Wang

Caligrafia de Li Bo.

    Li He
    Balada do Kong Hou62

    Seda de Wu plátano de Shu / levantar outono alto 
    Céu vazio de nuvens imóveis / caindo e não
                                       correndo mais
    Deusa do Rio soluçar bambus / Rapariga Branca
                                        lamentar-se 
    Li Ping no País do Meio / tocar no kong hou 

    Monte Kunlun jades quebrar-se / par de fénix
                                     interpelar-se 
    Flores de lótus chorar orvalhos / orquídeas
                                     perfumadas rir
    Doze pórticos por diante / fundir luzes frias
    Vinte e três cordas de sedas / comover
                         Imperador Púrpura

    Nü Wa transformar rochedos / reparar abóbada
                                             celeste
    Pedras fendidas céu rasgado trazer chuva outonal 
    Sonho penetrar Monte sagrado / iniciar os Xamãs
    Peixes envelhecidos levantar vagas / longos
                             dragões dançar

    Wu Zhi fora sono / apoiar-se à caneleira 
    Orvalhos alados obliquamente voar / molhar lebre arrepiada

Este poema tem por tema a interpretação de um músico com um instrumento chamado kong hou. O tema da interpretação musical foi utilizado numerosas vezes por Li He, principalmente nos dois poemas com o título "Cordas mágicas". São poemas de natureza encantatória, que recriam cenas de invocações de feiticeiras xamãs. Aqui, embora as palavras mágicas não estejam ausentes, é sobretudo através das imagens suscitadas pela música que o poeta experimenta representar o poder da criação artística.

À primeira leitura, somos tocados pela abundância das imagens que se seguem como se não houvesse qualquer ligação entre elas. No entanto, um leitor que conheça o sentido de certas metáforas, e alguns sistemas de correspondências (números, elementos, etc.), não tarda em perceber a lógica metonímica que as une. (Já o dissemos mais atrás, o poeta passa sem os elementos narrativos, para se situar imediatamente ao nível da metáfora).

O poema começa pela expressão "seda e plátano", que deriva de "seda e bambu", metáfora que usualmente designa os instrumentos musicais em geral. O verso "transborda" destas imagens — que representam elementos da natureza —, como naturamente, a do outono e a do céu vazio. Este céu vazio — onde as nuvens se imobilizam e que perturba apenas as lágrimas da Deusa da ribeira de Xiang e as Raparigas Brancas: estas últimas são as mulheres do lendário rei Shun (na morte deste, elas choraram sobre o seu túmulo de onde nasceram os bambus) —, sugere primeiro um lugar mítico habitado pela morte. Esta passagem pelo vazio é uma prova necessária. Notemos que no fim do verso 4 o poeta colocou (engenhosamente) o nome do instrumento kong hou, que graficamente pode querer dizer: "o vazio que espera". A ideia de um lugar mítico é confirmada pelo verso 5, o qual, sem transição, introduza imagem do monte Kunlun, cadeia sagrada a oeste da China. Esta montanha é célebre, entre outras, pelos seus jades, donde a imagem de "jades quebrados" (verso 5). Ora, esta imagem é utilisada na linguagem corrente para significar" sacrificar-se pela Beleza" (ou morrer por uma causa justa). A ideia de uma passagem na morte continua pois, mas ela é seguida, no mesmo verso, pela imagem de uma ressurreição sugerida pelo casal de fénix (aves sobrenaturais, que simbolizam o acasalamento e o milagre da vida).

A partir deste ponto, o poema avança apoiando-se a cada etapa em metáforas e figuras extraídas dos diferentes mitos tradicionais: Deusas da ribeira Xiang, Imperador Púrpura (designa tanto o próprio imperador, pois que Li Ping era músico da corte, como um dos Augustos do Céu que reinam sobre a Estrela Púrpura); Nü Wa (figura feminina mítica que teria fundido pedras de cinco cores para reparar um canto do céu danificado pelo demónio Gonggong); xamãs: Wu Zhi (que, depois de uma falta cometida no decurso da sua iniciação para se tornar imortal, foi condenado a ficar na lua e a cortar os ramos da caneleira que aí cresce, o labor do lenhador não conhece nem espera nem fim). Através destas personagens, o poema mostra a relação estabelecida pela música entre os elementos terrestres e os do mundo sobrenatural. Este elo é sugerido além disso pelas redes de correspondências fundadas nos números.

No verso 7, os doze pórticos designam os pórticos do palácio imperial. Mas a imagem "luzes fundidas" (a acção da música ao agir sobre os elementos) que está a seguir, faz pensar nas doze notas da escala musical chinesa, e igualmente nos doze ramos terrestres que reatam assim a imagem inicial da árvore (os doze ramos terrestres têm por correspondentes os dez troncos celestes). Quanto às vinte e três cordas do verso 8, elas estão ligadas à presença de corpos celestes ("Imperador Púrpura" designa o imperador em pessoa e, ao mesmo tempo, a Estrela que tem o mesmo nome; por outro lado, o quarto crescente da lua diz-se em chinês: corda de lua, etc.) e evocam as vinte e oito Mansões-celestes. Entre o número 23 e o número 28, há uma falta. Esta falta é justamente sugerida pelo verso seguinte, em que o poeta fala do lado do céu que falta e da deusa Nü Wa que repara a parte celeste abatida, com as pedras de cinco cores.

Podem pôr-se em evidência — esquematizando muito — sob esta abundância de imagens, os temas seguintes: a criação artística é uma iniciação que comporta algumas provas, provas da morte de que não se pode sair vencedor senão unindo-se ao mundo sobrenatural. A relação procurada com o sobrenatural é de ordem sexual. Vê-se no poema, de um lado, seres sobrenaturais (ou ligados ao sobrenatural) que são figuras femininas: deusas da Xiang, Nü Wa, xamãs; e de outro, seres do sexo masculino: Li Ping o músico, o imperador e Wu Zhi. Esta natureza sexual é sublinhada pelo símbolo fálico que é o instrumento de música, o qual se apresenta sob a forma de árvores: plátano erecto, bambus aprumados, doze ramos terrestres e a caneleira cujos braços crescem incessantemente; sublinhemos também que o próprio nome do músico Li (verso 4) quer dizer ameixeira. A interacção dos dois tipos de seres — femininos e masculinos, sobrenaturais e humanos — regula o ritmo do movimento cósmico. Pelo seu desafio, o artista viola a ordem das regras e arrasta os elementos num processo de metamorfoses: nuvens imóveis, jades quebrados, fénix que cantam, orquídeas que riem, luz fundida, pedras queimadas, chuva de outono (note-se que a imagem da chuva está ligada à das nuvens do verso 2; as duas imagens combinadas significam em chinês, o acto sexual), dragão dançante e lebre arrepiada. Esta última imagem da lebre, aparentemente incongruente e como que extraviada nesta "floresta de símbolos", constitui também ela um símbolo: o da fecundidade e da imortalidade. Com efeito, os mitos que dizem respeito à lua apresentam-na como um lugar onde habitam uma lebre e um sapo, e onde cresce uma caneleira. Ao evocar a lua pelos seres que a habitam, o poeta quer evitar nomeá-la, apresentá-la como lugar longínquo ou uma decoração exterior. Graças ao que, a ambiguidade entre o mundo humano e o mundo sobrenatural é mantida. Wu Zhi e a lebre são seres reais e transfigurados ao mesmo tempo. Se Wu Zhi — que corta a caneleira — e a lebre — que fabrica o elixir da imortalidade — conhecem enfim o extâse e a felicidade, eles não conseguem esquecer a sua condição trágica. A caneleira vai crescer de novo e a lua caminha para o quarto minguante. A própria imortalidade é mortal. A imagem final, da caneleira (árvore sagrada), que se une à imagem inicial, do plátano (árvore terrestre), mostra o processo de sublimação, ao mesmo tempo que o do eterno recomeço.

Uma desordem aparente, uma unidade interna, tal parece este poema de tons encantatórios. Este universo transtornado, estes elementos misturados, são suscitados pela própria linguagem. Pelas imagens metafóricas (seda e plátano, jades quebrados, fénix cantantes, nuvem-chuva, doze pórticos e vinte e três cordas) e as figuras míticas, o poeta mantém a linguagem constantemente no eixo metonímico, sem comentário exterior, como se as imagens se engendrassem a si mesmas. O poema apresenta-se assim como uma sequência ininterrupta de "aparições" de metáforas, aparições que não são senão a actualização de um sistema metonímico constituído. Para utilizar uma imagem, podemos dizer que metáfora e metonímia formam aqui o direito e o avesso de uma única tela.

O poeta é, mais do que aquele que fala, aquele que se deixa falar. Ele aparece como um decifrador ao mesmo tempo que organizador dos mitos acumulados ao longo de milénios. Tudo se passa como se o poeta não pudesse completar o seu próprio mito, sem ter vivido todos os outros mitos. Ao organizá-los, ele transforma-os. Esta passagem subterrânea através dos mitos é para ele uma iniciação.

Li Shang Yin (812-858) viveu pouco depois de Li He. Como este, é célebre pelo modo de manejar as imagens, mas o seu processo é bastante diferente. Cantor da paixão secreta, procede por alusão. Para isso, serve-se de imagens ricas de sentidos simbólicos, como Li He, mas faz mais apelo às astúcias formais (cesura, paralelismo, progressão estrófica, etc.), organizando-as em dois eixos: linear e espacial. Abstendo-se de elementos narrativos e anedóticos,estas imagens apoiam-se em oposições e combinações internas, que esclarecem plenamente o seu conteúdo conotativo.

Pelo seu modo de esgotar todas as virtualidades metonímicas (fónicas, semânticas, iconográficas) que desperta uma imagem, ele junta-se à tradição popular das Seis Dinastias de que já falámos atrás.

Escolhemos, para a nossa análise, um lü shi de Li Shang Yin intitulado: "Cítara ornada de brocado"63

I. 1. Cítara ornada puro acaso / eis cinquenta

ordas

2. Cada corda cada cavalete / desejar anos

floridos

II. 3. Letrado Zhuang sonho matinal / imaginar-sebor

boleta

4. Imperador Wang coração primaveril

/transformar- se du juan

III.5. Mar profundo lua clara / pérolas ter lágrimas

6. Campo azul sol ardente /jades nascer fumados

IV.7. Esta paixão podendo durar / tornar

continuação-lembrança

8. Somente no próprio momento / já

des-possuído.

Este poema, escrito num estilo "lacónico", tem por tema a reminiscência de uma paixão. O primeiro dístico coloca primeiramente o poema num plano de ambiguidade. O poeta liberta o seu tema inicial a partir de um objecto real e lendário ao mesmo tempo. Trata-se de um jin se, um instrumento horizontal de cinquenta cordas. Ora, um jin se, normalmente, só tem vinte e cinco. É verdade que uma lenda conta que originaramente — na alta antiguidade chinesa —, o instrumento possuía efectivamente cinquenta cordas, mas que, durante uma audição, um imperador dos Zhous, não podendo suportar a música tão plangente que uma das suas favoritas tocava, ordenara que se reduzisse o número de cordas a metade. Ao ler o primeiro dístico, não se duvida que o poeta se encontra diante de um objecto real (a lembrança deixada por uma mulher amada?), mas pergunta-se se ele não sonhará, ao mesmo tempo, com um objecto imaginário, através do qual ele poderia identificar-se a um qualquer amante inconsolável da antiguidade. Seja como for, a imagem da cítara permite ao poeta não designar o seu "eu": ela oferece-se como um lugar de metamorfoses. Estas cinquenta cordas evocam talvez os anos que o poeta viveu (certos comentadores supõem que o poeta compôs o poema aos cinquenta anos). Estes anos convergem todavia numa imagem obsediante: uma flor (à qual faz alusão também a imagem do brocado) que não é um simples objecto decorativo, mas sugere um desejo escondido e insatisfeito. É que às imagens das cordas e do cavalete estão ligadas conotações de carácter sexual: na tradição tauista, designa-se o sexo da mulher por "cordas musicais" e o do homem por "coluna de jade" (em chinês, "coluna" e "cavalete" são designados pela mesma palavra). Assim, esta cítara que inaugura o poema de maneira abrupta, pelas suas múltiplas alusões e pelo eco do seu canto, coloca uma série de questões cheias de ambiguidade: Experiência vivida ou sonho? Identificação de si ou desdobramento? Perseguição de um desejo jamais realizado, ou procura do outro sem fim?

Estas questões, o poeta não as colocará nunca de forma explícita. Rompendo o tom oral e narrativo do dístico I, sem transição, ele introduz nos dois dísticos seguintes (II), dísticos paralelos, uma organização espacial dos signos baseada na equivalência reversível (II) e no encadeamento circular (III). Graças a estas estruturas, e sem que seja necessário qualquer comentário, as imagens são significantes por elas próprias, atraindo-se e combinando-se para formar uma rede complexa com a sua lógica interna. Através destas imagens, apreendemos os temas da perseguição de um sonho e de um desejo, de uma paixão vivida ou sonhada, de uma busca através da vida que se transforma ao longo do tempo cíclico que permitirá talvez aos amantes encontrarem-se.

Os dois dísticos articulam-se assim: o dístico II eleva o poema ao plano metafórico e, a partir deste plano, abre-se um "campo metonímico" que o poeta explora no dístico III, dístico ele próprio feito de uma série de imagens que se engendram umas às outras. Vejamos primeiro o sentido simbólico ligado às imagens que aparecem no dístico II:

Letrado Zhuang / borboleta: o filósofo tauista Zhuang Zi, ao acordar de um sonho no qual ele se encontrava transformado em borboleta, pergunta-se se, em todo o caso, foi ele próprio que sonhou ser borboleta ou o contrário, se foi a borboleta que sonhou ter-se tornado Zhuang Zi. (Ele estava acordado enquanto Zhuang Zi ou ele não era senão um ser sonhado por uma borboleta?) O filósofo ilustra aqui a concepção tauista no que diz respeito à ilusão da vida e à identidade dos seres. O imperador Wang du juan : segundo a lenda, o imperador Wang de Shu, inconsolável depois da morte da sua favorita, abandonou o trono e desapareceu. A sua alma ter-se-ia depois tranformado em du juan "cuco", cujo pio se assemelha aos soluços. O cuco, ao cantar, expelia sangue, que por sua vez se transformava em flores de cor vermelho vivo que se encontram por toda a parte no país de Shu e que se chamam justamente flores de du juan (espécie de papoilas). O du juan simboliza assim uma paixão breve que se prolonga sob a forma de metamorfoses. Notemos ainda que para "letrado Zhuang-borboleta" e também para "imperador Wang-cuco", há mudança de sexo: borboleta e flor de cuco têm sempre, na poesia de Li Shang Yin, uma conotação feminina.

Se o poeta se identifica ao letrado Zhuang e ao imperador Wang, estes dois últimos, por sua vez, são postos em equivalência com a borboleta e o cuco. Esta série de "posições em equivalência" é acentuada pela estrutura gramatical das duas frases. Sendo os dois versos paralelos têm uma estrutura idêntica: dois sujeitos animados (A e B) ligados por um verbo. Os dois verbos, "imaginar-se" e "transformar-se", que no uso corrente são verbos transitivos, são tornados aqui "neutros" pela omissão de elementos pós verbais (uma preposição como "a" ou "em", por exemplo). De modo que a progressão da frase, em vez de ser num único sentido: A → B, torna-se reversível: A ←→ B. É assim que o segundo verso, por exemplo, se pode ler "o coração do imperador Wang transforma-se em cuco" ou, inversamente, "um cuco transforma-se no coração do imperador Wang". Através desta astúcia sintáctica, o poeta coloca num plano de reversibilidade os elementos humanos e os da natureza, para significar que, se a sua paixão vivida e o seu desejo insatisfeito se transformaram em outras coisas, ele alimenta a esperança de os encontrar. Por outro lado, como os dois versos são paralelos, "sonho. matinal" e "cuco" estão frente a frente e opõem-se; de um lado, ilusão, esquecimento e indiferença; do outro, desejo carnal, lembrança e paixão trágica. A dilaceração do poeta que representam estes dois pólos inconciliáveis é posta em evidência pela organização formal.

Este dístico, construído à maneira da equivalência, é de natureza metafórica (que subentende uma estrutura metonímica: sonho-borboleta, coração-cuco). Ele estabelece elos de analogia entre diferentes tipos de seres (e entre diferentes reinos): entre o poeta e as duas personagens (Zhuang e Wang), primeiro; depois, entre as personagens e a borboleta e o cuco que são do reino animal. Enfim a imagem do reino animal arrasta a do reino vegetal, representado pela flor. Todos estes elos estabelecidos fazem nascer a ideia de interpermutabilidade e de transformação e abrem um largo campo metonímico, que o poeta explora no dístico seguinte.

Com efeito, o dístico III é composto por uma série de metáforas que têm entre si elos de contiguidade. Os dois versos começam respectivamente pelas imagens do mar e do campo, cuja combinação significa em chinês: transformação.64 Além dos reinos animal e vegetal, a procura do poeta vai ainda mais longe; ela toca o reino mineral, representado pela pérola e pelo jade. Vamos então precisar quais são os mitos contidos nos dois versos.

Verso 5: No mar do sul, nas noites de lua cheia, apareciam sereias; as lágrimas que elas choravam, transformavam-se em pérolas.

Verso 6: No Campo Azul (na actual província de Shensi, célebre pelos seus jades), o sol provoca emanações que dão, quando são olhadas de longe (mas apenas de longe) visões maravilhosas. Um outro mito conta que um velho semeou uns grãos que lhe foram dados por um desconhecido que passou, em recompensa pela sua generosidade. Estes grãos, ao germinar, transformaram-se em belos pedaços de jade, graças aos quais ele pôde desposar a jovem que desejava.

Mesmo um leitor que ignorasse estas lendas poderia apreender completamente os elos metonímicos que unem as imagens: por exemplo, no verso 5, entre o mar e a lua (interacção), e a lua e as pérolas (brilho e esfericidade), as pérolas e as lágrimas; e, enfim, a imagem das lágrimas sendo a de um elemento líquido (porque existe também a expressão "mar de lágrimas" nesta língua), une-se à do mar. Os dois versos formam assim cada um um anel:

Recordemos que tal como a expressão "mar de lágrimas", existe também, em chinês, a expressão "mar de fumos", de modo que o fim do segundo verso se junta ao princípio do primeiro. Os dois anéis combinados podem ser representados pela figura seguinte (que utilizamos para ilustrar a forma do paralelismo):

Estes anéis combinados, por mais coerentes que sejam, cercam no entanto um vazio, uma ausência. Entre o reino animal do dístico II e o reino mineral do dístico III, há a imagem da flor citada no dístico I e sugerida por "borboleta-fumo" e "cuco-lágrimas". Esta flor ausente (a mulher desejada) é justamente o objecto da procura do poeta. Ora, tendo em conta as duas lendas do dístico III (ambas ligadas à aparição de uma mulher), e tendo em conta ainda os sentidos particulares ligados às imagens da lua, das ondas, das pérolas e dos jades (em chinês, uma multiplicidade de expressões baseadas nestas imagens descrevem a beleza femina: corpo de mulher, olhar de mulher, cabelos de mulher, rosto de mulher), sente-se realmente, para além da ausência, a presença carnal da mulher amada que suscita a magia do canto. O encadeamento circular representado pela figura 2, sugere além disso a crença do poeta na possibilidade do encontro numa vida futura.

Se esta procura do poeta através dos tempos e dos reinos é intensamente salientada pelo encadeamento linear, não esqueçamos no entanto que, tal como no dístico precedente, os dois versos (5 e 6) são paralelos. Os termos, frente a frente, entre dois versos, pelas suas combinações, provocam outros sentidos:

Mar-campo: transformação universal, vicissitudes da vida humana;

Sol-lua: movimento cósmico, passagem do tempo (dia e noite, dias e meses), eternidade;

Pé rolas-jades: tradicionalmente associados a um grande número de expressões: tesouros humanos, harmonia no casal, sons melodiosos de música. E a expressão "pérolas e jades escondidos" significa uma bela mulher morta;

Lágrimas-fumos: paixão trágica, paixão vã.

Outras combinações significantes são possíveis ainda: "mar-sol" = renascer; "mar enxuto-pedra estragada" = paixão indestrutível. Além destes binómios que ligam os dois versos, é preciso assinalar os dois versos no seu conjunto, um marcado pelo yin (lua, mar), e o outro pelo yang (sol, fogo). Postos em paralelo, os dois versos suscitam a imagem da união (yang-yin: homem-mulher). Através das ligações carnais, o homem e a mulher perdem-se e encontram-se sem cessar.

Assim, no dístico III, enquanto que no eixo sintagmático se persegue o tema do sonho iniciado no dístico precedente (letrado Zhuang), no eixo paradigmático, entre dois versos, desenvolve-se o tema do desejo (Imperador Wang). Um leitor que conheça o sentido simbólico de todas estas imagens, logo que escanda os dois versos segundo o ritmo, sente verdadeiramente, para além da linguagem directa ("através de tudo, dia e noite, te procuro e te desejo. Vem até mim, juntos um com o outro, renasceremos..."), aparecer das profundezas da significância as figuras e os gestos de um pensamento obsessivo.65

Os três dísticos que acabámos de analisar estão presos num processo de criação contínua, sem que os elementos demasiado imobilizados de uma linguagem denotativa venham fixá-los num único sentido. Por trás de todas as imagens, estruturadas e, ao mesmo tempo, desestruturadas, adivinham-se, subjacentes, um "eu" e um "tu" que asseguram uma certa unidade. Nem um nem outro são mencionados, porque um não existe a não ser pelo outro; e um e outro não se encontram senão nesta procura apaixonada, procura significada por uma série de "estratos" metafóricos, manifestando-se cada estrato por uma série de figuras ligadas entre si:

O último dístico, deixando a linguagem de estrutura paralela, reintroduz o canto linear inaugurado pelo primeiro dístico. O verso 7 pode ser interpretado tanto como uma súplica como uma interrogação (mesmo tipo de frase em chinês): esta paixão poderia ela ter durado (tal como a cítara que permaneceu)? E, à força de renovar o jogo, conseguir-se-á reencontrar o tom inicial? (Notemos que a imagem da cítara não reapareceu no poema; o instrumento ter-se-ia transformado num canto que não é outro senão o próprio poema.) O dístico contém três caracteres que têm a chave de "coração" (o primeiro começa o dístico e o terceiro termina-o) que respondem à única palavra coração no resto do poema: "coração primaveril" do verso 4. A sua presença parece significar que a aventura é interior. Trata-se de情"paixão", de憶"memória" e do último carácter wang 惘que fecha o poema e que se pronuncia como o nome do imperador Wang; faz ressurgir a figura deste e contribui para a coerência do poema. Esta palavra, muito figurada, quer dizer ao mesmo tempo: "estar possuído" (o coração apanhado numa rede) e "estar des-possuído" (o vazio inatingível, a ausência). Com esta palavra cheia de ambiguidade e de aparente contradição, o fim do poema situa-se no lugar em que qualquer presença não existe a não ser pela ausência e em que o tempo da paixão vivida se confunde com o da procura.

Estudaremos, para terminar, uma quadra de Li Bo que representa um caso extremo, ainda que, ao fim e ao cabo, muito frequente na poesia chinesa. Trata-se de observar como é que, num poema em que os elementos descritivos estão reduzidos ao mínimo, as imagens simbólicas formam um paradigma homogéneo e criam uma ordem espacial na qual, mesmo que contrastando, elas se transformam em unidades permutáveis. Através desta estrutura dividida e unificada (tal como uma constelação) e que impressiona pela sua economia, mostra-se a nu uma linguagem metafórica — em que sujeito e objecto, dentro e fora, longe e perto são as facetas de um mesmo prisma sempre irradiante:

    Li Bo
    Escadas de Jade 

    Escadas de jade nascer orvalho branco
    Tarde de noite penetrar meias de seda
    Entretanto baixar cortina de cristal
    Pela transparência contemplar lua de outono. 

O poema tem por tema a espera de uma mulher, durante a noite, diante das escadas da sua casa, espera longa e finalmente decep-cionante; o seu amante não aparecerá. Por despeito, e também por causa da frescura da noite, ela retira-se para o seu quarto. Aí, através da cortina de cristal corrida, ela demora-se ainda, confiando à lua, tão próxima (pela sua claridade) e tão distante, a sua saudade o seu desejo.

Acabamos de propor uma interpretação deste poema. No entanto, no poema, os elementos narrativos consistem em alguns verbos de acção neutros, enquanto que as palavras que descrevem sentimentos tais como solidão, decepção, despeito, saudade, desejo de reunião, etc., estão totalmente ausentes. O sujeito pessoal, tal como o quer a tradição poética, é omitido. Quem fala? Um "ela" ou um "eu"? O leitor é convidado a viver os sentimentos da personagem" do interior"; mas esses sentimentos não são sugeridos senão por gestos e alguns objectos.

O poema apresenta-se sob a forma de uma série de imagens: escadas de jade, orvalho branco, meias de seda, cortina de cristal, ling long "transparência", lua de outono. Um leitor que conheça o simbolismo chinês compreenderá sem dificuldade o seu sentido conotativo:

Escadas de jade: residência de uma mulher. O jade evoca por outro lado a pele macia e fina de uma mulher.

Orvalho branco: noite fresca, hora solitária, lágrimas. Variante erótica também.

Meias de seda: corpo de mulher.

Cortina de cristal: interior do gineceu.

Ling long: esta palavra que traduzimos:"por transparência", no verso 4, é muito rica de sentido; inicialmente evocava o barulho que fazia o tilintar dos pendentes de jade; seguidamente, é utilizada para qualificar objectos preciosos e cintilantes, e também os rostos de mulheres ou de crianças. Aqui, permite uma dupla interpretação: a mulher que olha a lua e a lua que ilumina o rosto da mulher. Do ponto de vista fónico, este binómio aliterado responde em eco à sequência de palavras contidas nos versos precedentes, palavras que têm por inicial l e que designam objectos brilhantes ou transparentes: lu (orvalho), luo (seda), lian (cortina de cristal).

Lua de outono: presença longínqua e desejo de reunião (os amantes separados podem olhar a mesma lua; além disso a lua cheia simboliza a reunião dos seres queridos).

Com esta sequência de imagens o poeta cria um mundo coerente. A progressão linear mantém-se ao nível metafórico. Estas imagens têm todas em comum a representação de objectos brilhantes ou transparentes. Elas dão a impressão de derivar umas das outras, numa ordem regular. Esta impressão de regularidade é confirmada, no plano sintáctico, pela regularidade das frases de tipo idêntico. As quatro frases que compõem o poema analisam-se todas assim:

complemento + verbo + objecto

Uma tal regularidade imprime ao poema nuances com uma ordem inexorável: em cada uma das quatro frases, o verbo, colocado ao meio, é determinado por um complemento e termina com um objecto. Tendo em conta a omissão do sujeito pessoal, o poema aparece como que dominado por um processo em que as coisas se encadeiam sozinhas e em que uma imagem engendra outra, desde a primeira à última:

Este esquema sugere uma progressão linear num sentido único. Mas se nos colocarmos num ponto de vista imaginário, poderíamos ligar a última imagem (luar) à primeira (escadas de jade) passando por todasas outras:

porque estes objectos transparentes ou cristalinos brilham graças ao luar que, aparecido no último momento, "refaz o percurso" do poema, como que para dar a cada imagem a sua plena clareza ou antes o seu pleno sentido. Esta lua que luz de novo nas escadas de jade vazias acentua a saudade; o movimento circular sublinha um pensamento obsessivo que regressa a si próprio sem cessar.

Esta organização paradigmática dentro do desenvolvimento linear permite verificar, no plano das imagens, o traço dominante da linguagem poética definido por R. Jacobson: projecção do eixo da selecção sobre o eixo da combinação. Subtilmente, o poeta faz explodir a linguagem, ao introduzir na ordem temporal a dimensão espacial. As imagens, ao oporem-se entre elas, provocam, como que "naturalmente" um sentido:

Esta maneira de deixar "representar" plenamente as imagens é a própria condição de uma economia de estrutura, estrutura que alia em si o fora e o dentro, o longe e o perto, e mais ainda o sujeito e o objecto. O mundo interior projecta-se no exterior, enquanto que o mundo exterior se torna o signo de um mundo interior. Este jade, é as escadas e a carne da mulher ao mesmo tempo; este orvalho, é ao mesmo tempo a frescura da noite e o desejo da mulher; o ling long, é ao mesmo tempo o rosto da mulher que olha e a lua vista através da cortina de cristal. E esta lua, ao mesmo tempo presença longínqua e sentimento íntimo, provoca a cada um destes encontros com os objectos um novo sentido.

Para nos servirmos também de uma linguagem metafórica, poderíamos talvez dizer que acima do discurso "terra a terra" se ergue uma abóbada celeste na qual planam figuras luminosas que formam uma constelação. Unidas por elos metonímicos, transformando o acaso em necessidade, elas situam-se umas em relação às outras, atraiem-se entre si e iluminam-se com os seus fogos cruzados. No meio delas brilha um astro de um brilho muito especial: a lua. Na sua direcção convergem as outras estrelas; é ela que, carregada do desejo humano, finalmente alumia todas as outras. Esta lua, que é um dos símbolos fundamentais dos poetas chineses clássicos, cuja sensibilidade é essencialmente "nocturna", revela, por intermédio dos signos de ritmo primordial, o segredo de uma noite de mito e de comunhão.

Reproduzido de: CHENG, François, L 'écriture poétique

chinoise: suivi d'une anthologie des poèmes des T'ang, Paris, Seuil, cop. 1977, parte I.

Traduzido do original francês por Ana Peres de Sousa.

NOTAS

1. Os primeiros espécimens conhecidos da escrita chinesa são os textos adivinhatórios gravados nos ossos e carapaças. A estes vêm acrescentar-se as inscrições nos vasos rituais de bronze. Estas duas formas de escrita foram utilizadas durante a dinastia dos Shangs (XVIII-XI a. C.).

2. O Shi Jing (Cânon das Odes), primeira recolha de cantos que inaugura a literatura chinesa, contém peças que datam do primeiro milénio a. C.

3. Não se trata aqui de uma apresentação baseada unicamente na etimologia. O nosso ponto de vista é semiológico: o que procuramos mostrar em primeiro lugar, são os elos gráficos significantes que existem entre os signos.

4. Sobre o modo como, na tradição retórica chinesa, são encarados, explicita ou implicitamente, os signos linguísticos e a sua função (problema que merece ser objecto de um estudo sistemático, mas que ultrapassa o quadro do presente trabalho), podemos referir-nos especialmente às seguintes obras: o Wen fu de Lu Ji (261-303), e o Wen xin diao long de Liu Xie (465-522). O que é importante sublinhar é, antes de tudo, a afirmação do lugar do homem no seio do universo. O homem, com o Céu e a Terra, forma os Três Génios (san cai); estes mantêm entre eles uma relação de correspondência e de complementaridade. O papel do homem consiste, não apenas em arrumar o universo, mas em interiorizar todas as coisas, em as recriar a fim de encontrar aí o seu próprio lugar. Neste processo de "co-criação" o elemento central, no que toca à literatura, é a noção de wen. Este termo que, posteriormente, entrará em numerosas combinações para significar língua, estilo, literatura, civilização, etc. designa inicialmente as "impressões" deixadas por certos animais ou os veios da madeira e das pedras, conjunto de "traços" harmoniosos ou rítmicos através dos quais a natureza se exprime. É à imagem destes signos que foram criados os signos linguísticos, a que se chama igualmente wen. Esta dupla natureza do wen constitui, de algum modo, um garante para o homem de conhecer o mistério da natureza e, assim, conhecer a sua própria natureza. Uma obra prima é aquela que restitue as relações secretas entre as coisas, tal como o sopro que as anima.

5. 詩成泣鬼神

6. A imagem do olho é importante na concepção artística chinesa. Recordemos, no que toca à pintura, a historieta do pintor que deixava sempre por desenhar o olho do dragão. Aos que lhe perguntavam a razão, ele respondia: "No instante em que eu lhe acrescentasse o olho, o dragão voaria!"

7. A propósito, citamos por exemplo, o verso de Li He: 筆補造化天無功(Completando o pincel a Criação, o Céu não tem todo o mérito!).

8. Xin yi wu.

9. Assinalemos que os dois ideogramas, no seu verdadeiro sentido, designam o lótus. O poeta usa-os aqui para designar a flor da magnólia que apresenta uma grande semelhança com o lótus.

10. Re san shou.

11. Chun jiang hua yue ye. Sobre este poema, pode ler-se o estudo que lhe consagrámos na Análise formal da obra poética de um autor dos Tangs: Zhang Ruo Xu.

12. A teoria do traço único, já contida no Li dai ming hua ji, de Zhang Yen Yuan (810-880?), será desenvolvida por outros pintores, especialmente por Shi Tao (1671-1719) no seu Hua yu lu.

13. Qi yun.

14. Para a literatura, citemos a frase de Cao Pi (187-225): Wen yi qi wei zhu (Em literatura: a primazia do sopro) no seu Tian lun lun wen (este texto é geralmente considerado como o primeiro no tempo da literatura chinesa). Citemos igualmente o capítulo "Yang chi" (Alimentar o sopro) no Wen xin diao long, de Liu Xie (465-522). Para a pintura recordemos simplesmente a célebre expressão: Qi yun shengdong (Animar o sopro rítmico), de Xie He (cerca de 500).

15. Mais particularmente da filosofia tauista.

16. A repartição das palavras nestas duas grandes classes varia segundo as obras e as épocas. Se os principais shi hua (Propósitos sobre a poesia) abordaram todos este problema, falta que os autores se dêem ao trabalho de definir as categorias e só os exemplos numerosos que eles citam permitem notar os seus propósitos. A este respeito, pode consultar-se o estudo muito completo de Zheng Dian e de Mai Mei Qiao: Gu han yu yu fa xue hui bian.

17. Ver capítulo II.

18. As condições históricas nas quais foi produzida esta poesia eram as seguintes: depois de séculos de divisões internas e de invasões que seguiram a dinastia dos Hans, a dinastia dos Tangs refez a unidade da China. O estado imperial graças a uma melhor administração, impôs a sua autoridade por todo o país. No entanto a formação das grandes cidades, o desenvolvimento de redes de comunicação, e o desenvolvimento do comércio vieram transformar, até certo ponto, a antiga estrutura de uma sociedade feudal. Por um lado, o sistema de recrutamento de funcionários através de exames oficiais criou uma grande mobilidade social. No plano cultural, por outro, a unidade reencontrada fez tomar consciência à China da sua identidade e, o país abriu-se largamente às influências exteriores que vinham da Índia e da Ásia central (a capital Zhang An foi então uma cidade cosmopolita onde se encontravam numerosas correntes de pensamento). Uma sociedade preocupada com a ordem e efervescente de uma extraordinária exaltação criadora. Assinalemos entretanto um acontecimento maior que veio, a meio da dinastia (755-763) modificar o destino do país: a rebelião chefiada por An Lu Shan, um general bárbaro. Depois desta rebelião, que causou a morte de um grande número e engendrou abusos e injustiças de toda a espécie, o império começou o seu declínio. A confiança dos poetas que viveram esta tragédia e a daqueles que vieram depois, deu lugar a uma consciência trágica; a sua atenção virar-se-á mais, a partir daí, para a realidade social e os dramas da vida. A sua própria escrita sofreu a influência da transformação da sociedade.

19. Sendo este trabalho igualmente destinado a um público não sinólogo, adoptámos, dentre os sistemas de transcrição existentes, o de Wade-Giles que, até agora, é ainda o mais utilizado e o mais familiar no Ocidente. Por outro lado, tomámos a decisão de transcrever as palavras segundo a pronúncia actual. Nota do Editor: Efectuou-se a conversão das transcrições para o sistema Pinyin, critério há muito adoptado pela RC.

20. Sobre a dificuldade de traduzir versos chineses, citemos as reflexões de Hervey Saint-Denys: "A tradução literal é a maior parte das vezes impossível em chinês. Certos caracteres exprimem por vezes todo um quadro que não pode ser dado a não ser por perífrase. Certos caracteres exigem uma frase inteira para serem correctamente interpretados. É preciso ler um verso chinês, compenetrar-se da imagem ou do pensamento que ele enferma, esforçar-se por atingir o seu traço principal e conservar-lhe a sua força ou a sua cor. A tarefa é perigosa; penível também, quando nos apercebemos das reais belezas que nenhuma língua europeia saberia reter."

21. Consecutiva ao Movimento do 4 de Maio (1919), a revolução literária, estreitamente ligada à revolução política e social, põe em causa não só a ideologia tradicional, mas também o próprio instrumento da expressão literária.

22. Esta forma será analisada no próximo capítulo.

23. 麻鞋見天子 (Shu huai).

24. 眼枯即見骨,天地终無情。 (Si an li).

25. 嵗晚或相訪,青天駒白龍。 (Song Yang san ren gui Song shan).

26. 青水碧於天,畫船聽雨眠。 (Pusa man).

27. 誰家今夜扁舟子,何處相思明月樓。É interessante mostrar aqui as traduções que existem destes dois versos. O marquês de Hervey Saint-Denis:"Ninguém sabe quem sou eu nesta barca viajante / Ninguém sabe se esta mesma lua ilumina, ao longe, um pavilhão onde alguém sonha comigo." Ch. Budel:"In yonder boat some traveller sails tonight / Beneath the moon which links his thoughts with home." W. J. B. Fletcher: "Tonight who floats upon the tiny skiff? / from what high tower yeans out upon the night / the dear beloved in the pale moonlight..." Na Antologia da poesia chinesa clássica: "A quem pertence a pequena barca que voga esta noite? / Onde encontrar a casa ao luar onde alguém sonha com o ausente?"

28. H. A. Giles: "Around these hills sweet birds their pleasure take / Manís heart as free from shadow as this lake". W. Bynner: "Here birds are alive with mountain light / And the mind of man touches peace in a pool". W. J. B. Fletcher: "Hark! The birds rejoicing in the mouintain light / Like one's dim reflection on a pool at night / Lo! the heart is melted wav'ring out the sight". R. Payne: "The mountain colours have made the birds sing / the shadows in the pool empty the hearts of men". O marquês de Hervey de Saint-Denis: "Desde que a montanha se ilumina, as aves (em plena natureza acordam contentes: / O olhar contempla as águas límpidas e profundas, como os pensamentos do homem cujo coração se purificou".

29. Damos as traduções existentes. J. Liu: "The stars drooping, the wild plain is vaste / the moon rushing, the great river flows". W. J. B. Fletcher: "The wide-flung stars overhang all vasty space / the moonbeams with the Yangtze current race". K. Rexroth: "Stars blossom over the vaste desert of waters / Moonlight flows on the surging rivers".

30. Ver a análise deste poema no capítulo III.

31. Este termo, que R. Jakobson empregou no seu texto Shifters, verbal categories and russian verb, foi traduzido por embrayeur por N. Ruwet. — N. T.: Traduzido à letra, aparelho de embraiar.

32. 日月龍中鳥,乾坤水上萍。(Du Fu: Heng zhou song Li tai fu ).

33. 星河秋一雁,砧杵夜千家。

34. 五湖三畝宅,萬里一歸人。(Wang Wei: Song Jiu Wei lui di gui Shandong ).

35. 老年復道路,遲日復山川。(Du Fu: Xing cu gu cheng ).

36. 黄葉仍風雨,青樓自管弦。(Li Shang Yin: Feng yu).

37. 幽薊餘蛇豖,乾坤尚虎狼。(Du Fu: You gan).

38. 生理何顏面,憂端且岁时。(DuFu: De di xiao xi).

39. Isto verifica-se ainda na língua falada moderna.

40. Muito antes que Shen Yue (441-513) tivesse definido os quatro tons, os poetas já se serviam, instintivamente, da distinção tonal.

41. Segundo a interpretação de Wang Li. Ver o seu Han yu shi lü xuan.

42. Damos os esquemas da primeira metade de um lü shi pentassilábico (a outra metade é idêntica).

43. Ver o seu artigo o desenho prosódico no verso regular chinês.

44. Este esquema foi proposto pela primeira vez, por G. B. Downer e A. C. Graham no seu artigo: Tone patterns in chinese poetry.

45. Ver capítulo III, a propósito das imagens metafóricas.

46. Primeira estrofe do poema Lang tao sha. Existe uma tradução na Antologia da poesia chinesa clássica: "Por detrás das cortinas, a chuva sem fim susurra. A virtude de primavera esgota-se. Sob a capa de seda, o frio intolerável da quinta vigília! Quando sonho, esqueço quem sou no exílio. Doce conforto tão esperado!".

47. Tirado do poema Ting Ying shi tan jin.

48. Sheng sheng man.

49. Ver capítulo I. O sinal / marca a cesura.

50. 江流天地外,山色有無中。 (Han jiang lin fan).

51. Do alto do pavilhão das Cegonhas, de Wang Zhi Huan.

52. Wang Li tratou longamente deste problema no seu Han yu shi gao.

53. Não podemos alongar-nos muito no problema das transgressões sintácticas permitidas pelo paralelismo sem romper o fio da nossa apresentação da forma do lü shi. O leitor conhecedor do chinês pode consultar muito utilmente o estudo de Wang Li no seu Han yu shi lü xue. De forma sumária, tentaremos resumir as investigações dos poetas dos Tangs, para inventar outras ordens verbais, nos três tipos seguintes:

I). Ordem perceptiva. O poeta organiza as palavras, não segundo a sintaxe habitual, mas numa sequência que quer ser o reflexo das suas percepções sucessivas (de uma paisagem, de uma sensação, etc.). Os versos seguintes mostram-nos o poeta Du Shen Yan em viagem (ele vai ao amanhecer ao sul do rio Iansequião perto da foz deste). A ordem das palavras sugere as imagens que o poeta capta à medida que se movimenta: imagens da aurora nascente e das plantas cuja cor marca a mudança de estação, de um lado e de outro do rio:

    Nuvens luz aparecer mar aurora 
    雲霞出海曙
    Ameixeiras salgueiros passar rio primavera
    梅柳渡江春

Por vezes, o poeta escolhe como ponto de partida da frase, sem que antes nada o tivesse anunciado, uma imagem viva: uma cena, uma cor, um sabor, que "desencadeia" uma série de sensações e de lembranças, como se estas tivessem dela nascido. Os exemplos seguintes são todos tirados de poemas de Du Fu:

    a). Templo lembrar-se outrora visitar lugar
    寺憶曾遊處
    Ponte amar de novo atravessar momento
    橋憐再度時
    b). Verde lamentar montes e colinas passar
    青惜峰巒過
    Amarelo pressentir floresta de laranjeiras aproximar
    黃知橘柚來
    c). Aveludado saborear arroz de cogumelos "revolto" 
    滑憶彫胡飯
    Perfume aspirar sopa de ervas "enfeitadas"
    香聞錦帶羹

Noutros casos, o que o poeta pretende fixar não é uma sucessão de imagens, mas um estado fixo:

    Salgueiros tenros [diante da soleira] ramos
    白花簷外朵
    Flores brancas [para além de alpendre] cálices
    青柳檻前梢

nestes dois versos, os elementos fora de [ ]constituem significantes descontínuos. No meio deles, o poeta insere as imagens da soleira e do alpendre para marcar visualmente a intrusão da presença humana na natureza (ou inversamente, a invasão do quadro humano pela natureza). Pelo arranjo das palavras o poeta constrói uma cena tal qual ela se oferece ao seu olhar.

II). Ordem inversa. Aqui, a ordem consiste em inverter, numa frase, o sujeito e o objecto. Mais do que a simples procura de um efeito estilístico, pode ver-se neste processo o desejo de perturbar a ordem do mundo, de criar uma outra relação entre as coisas.

    Arroz perfumado debicar acabar papagaio grãos 
    香稻啄餘鸚鵡粒
    Plátano verde empoleirar envelhecido fénix ramos
    碧梧棲老鳳凰枝

Ao ler este dístico muito célebre de Du Fu, o leitor compreenderá depressa que não é o arroz que debica o papagaio nem que é o plátano que está empoleirado na fénix. Notemos que é nos versos paralelos que o poeta "ousa" este género de distorção; a justificação mútua entre os versos retira-lhe o que pode parecer "fortuito" ou "arbitrário".

Viajante doente conservar proporcionalmentemedicamentos, 客病留因藥

Primavera tardia comprar por causa das flores

春深買爲花

Os versos, de facto, querem dizer: "Conservo os medicamentos no meu exílio, por estar muitas vezes doente; compro flores como que para reter a primavera que se vai embora." A inversão do sujeito e do objecto dão ao verso uma cambiante inabitual tingida de humor.

Durante muito tempo recordar rio-lago regressar cabelos brancos永憶江湖歸白髮Sempre errara céu-terra penetrar barca leve

欲迴天地入扁舟

Em vez das imagens de cabelos brancos (do exilado) que "se dispersam" pelos rios e lagos, e de barca leve perdida entre céu e terra, o poeta Li Shang Yin, por um processo inverso, marca com intensidade a acção do mundo exterior sobre o homem.

III). Ordem desagregada. Nesta ordem, ao misturar causa e efeito, ao organizar as palavras de modo aparentemente arbritário, o poeta tenta criar uma imagem "total", em que todos os elementos são confundidos e onde não existe, por assim dizer, um ponto privilegiado. Frase dinâmica, em que o signo se encontra numa rede sempre em transformação e em que, segundo cada mudança, ganha um novo sentido.

    Terreno penetrar montanha sombra varrer
    地侵山影掃 
    Folhas eivar orvalho traços inscrever
    葉帶露痕書

Para encontrar um sentido compreensível para estes versos de Jiao Dao, aplicamos uma transformação em cadeia ao primeiro verso:

Terreno penetrar montanha sombra varrer→

Penetrar montanha sombra varrer terreno→

Montanha sombra varrer terreno penetrar→

Sombra varrer terreno penetrar montanha→

Varrer terreno penetrar montanha sombra→

A última frase tendo um sentido normal informa-nos sobre o que quer dizer o poeta: ao varrer o terreno em frente da sua casa, ele penetra na sombra que a montanha projecta. Se se fizer a mesma transformação ao segundo verso, obter-se-á:

Inscrever folhas eivar orvalho traços

O poeta inscreve versos sobre as folhas (provavelmente de uma bananeira) todas eivadas de orvalho. Do mesmo modo, para descrever uma paisagem em que os ramos tenros de bambus se partem com o vento, deixando cair as suas folhas verdes, e em que as flores da ameixeira completamente embebidas pela água da chuva abrem as suas pétalas rosa (notemos a conotação erótica da cena), Du Fu muda a ordem natural das palavras a fim de lhes retirar qualquer ideia de anterioridade ou de posterioridade, restituindo-lhe assim uma visão instantânea e total:

Verde suspender vento quebrar-se bambus

绿垂風折筍

Vermelho expandir-se chuva desabrochar ameixeira

紅綻雨肥梅

54. Utilizamos os termos de metáfora e de imagem simbólica num sentido muito geral (ver principalmente os exemplos que propomos no parágrafo seguinte). O nosso propósito não é tanto destacar as figuras isoladas, mas observar como se encadeiam as imagens e como funciona a linguagem específica nascida deste encadeamento.

55.0 sinal / marca a cesura.

56. 朱門酒肉臭,路有凍死骨。 (Zu jing fuFeng xian xian yong huai wu bai zu). Nestes dois versos, as imagens de "porta vermelha" e de "vinho-carne" são de considerar como sinédoques, enquanto que a de "caminhos ou estradas" é de assimilar a uma metonímia. Mas precisemos, uma vez mais, que o nosso cuidado aqui não é classificatório.

57. Existe uma tradução deste longo poema na Antologiada poesia chinesa clássica.

58. 襄王雲雨今何在,江水東流猿夜啼。(Xiang yang ge).

59. 誰驚一行雁,衝斷過江雲。(Jiang lou).

60. Séculos IV-VI.

61. Ela cobre factos muito variados. Inclusive, por exemplo, os de "metáforas tecidas" definidas por M. Riffaterre.

62. Existem várias traduções deste poema em inglês, principalmente a de J. D. Frodsham. O sinal / nos versos marca a cesura.

63. Para a utilização das metáforas de Li Shang Yin, pode ler-se igualmente o seu poema Sem título, e o nosso comentário.

64. 滄海桑田。

65. Com efeito, não é necessário que a tradução e a nossa análise dêem a impressão que o poema é feito de um conglomerado de imagens. Trata-se de um canto onde a ausência de palavras que exprimem sentimentos não tomam senão o tom mais pungente. Para um ouvido chinês, os versos não são mais musicais do que, por exemplo, o Canto de Ariel de Shakespeare: "Full fathom five thy father lies / Of his bones are coral made / Those are pearls that were his eyes / Nothing of him that doth fade / But doth suffer a sea-change / Into something rich and strange"... nem menos "expressivos" do que o pranto de Maurice Scève: "Em ti eu vivo, embora estejas ausente, / Em mim morro, embora esteja presente. / Por mais longe que estejas, sempre estás presente, / Por mais perto que esteja, ainda estou ausente..."

*Professor do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais, Universidade Paris III.

desde a p. 5
até a p.