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(5)Frágil nuvem céu com longínquo Longa noite lua juntamente solidão
(6) Bosque antigo nenhum traço vereda Montanha profunda onde pois sino
(7)Uma vez deixar Terraço Púrpura sem interposição de nada Deserto Nórdico Sópermanecer Túmulo Azul em direcção a crepúsculo amarelo.
A consequência mais imediata destas elipses é a dissolução das coacções sintácticas, reduzidas a algumas regras mínimas. Se os versos de metro mais longo estão mais próximos do wen yan (prosa escrita), os versos curtos, pentassilábicos, observam praticamente apenas duas regras constantes: num sintagma, o determinante precede o determinado; numa frase em que o predicado é um verbo transitivo, respeita-se o esquema S + V + O. Assinalemos aqui o papel primordial que desempenha o ritmo, que marca o reagrupamento das palavras. Entre as palavras, os substantivos e os verbos (verbos de acção e verbos de qualidade) assim como certos advérbios, adquirem uma grande mobilidade combinatória. Os versos pentassilábicos, pela sua concisão, apresentam-se por vezes como uma "oscilação" entre o estado nominal e o estado verbal (certas combinações são previsíveis: antes da cesura, NN, NV, VV, VN; depois da cesura, NVN, NNV, VNV, VNN). Esta oscilação constata-se aliás, em muitos casos, no próprio interior de uma palavra. No caso das palavras invaráveis, a natureza de uma palavra não é assinalada morfologicamente, ainda que na linguagem vulgar o uso lhe atribua uma classe definida. Na construção de uma frase, a natureza de uma palavra é determinada pelos elementos que a rodeiam (preposições, conjunções, partículas, etc.) e a ausência destes elementos, torna a sua identificação muitas vezes difícil. Isto serve a intenção do poeta aos olhos de quem, numa palavra plena, o nominal e o verbal são dois estados virtualmente presentes. É por esta razão que as palavras, de natureza ambivalente e postas em contacto directo, conferem ao verso um devir e uma carga emocional poderosa.
) e de combinação (......) quetentaremos representar pela figura junto.
O aspecto ordenado, aparentemente estático, desta representação não deve fazer-nos esquecer que estamos em presença de uma linguagem dinâmica de que os elementos que a compõem, se implicam uns nos outros. Linguagem dividida que põe em jogo a relação entre o dito e o não dito, a acção e a não-acção e, no fim de contas, o sujeito e o objecto. Para os poetas, só esta linguagem, movida pelo vazio, é capaz de engendrar a palavra onde circula o "sopro", e deste modo, de transcrever o indizível.
Faça-se uma primeira distinção entre jin ti shi (poesia de estilo moderno), regida por estritas regras de prosódia, e gu ti shi (poesia de estilo antigo), que se assinala pela ausência de coacções, ou na maior parte das vezes, pela deformação intencional dessas mesmas regras. No seio do gu ti shi, duas correntes, uma popular yue fu, outra erudita gu feng, alimentam-se mutuamente. Quanto à poesia de estilo moderno, a sua forma mais importante é o lü shi (oitava regular); é em relação a ele que se definem o jue ju (quadra), considerado como um lü shi amputado, assim como o zhang lü (shi long) que, como o nome indica, é um lü shi prolongado, de múltiplas estrofes. Ao lado destes dois géneros, mencionemos uma forma de poesia cantada, intimamente ligada à música, chamada ci, que se desenvolve no fim da dinastia dos Tangs e que estará em voga na dinastia seguinte, os Songs.
Caligrafia de Li Bo.
Li He
Balada do Kong Hou62
Seda de Wu plátano de Shu / levantar outono alto
Céu vazio de nuvens imóveis / caindo e não
correndo mais
Deusa do Rio soluçar bambus / Rapariga Branca
lamentar-se
Li Ping no País do Meio / tocar no kong hou
Monte Kunlun jades quebrar-se / par de fénix
interpelar-se
Flores de lótus chorar orvalhos / orquídeas
perfumadas rir
Doze pórticos por diante / fundir luzes frias
Vinte e três cordas de sedas / comover
Imperador Púrpura
Nü Wa transformar rochedos / reparar abóbada
celeste
Pedras fendidas céu rasgado trazer chuva outonal
Sonho penetrar Monte sagrado / iniciar os Xamãs
Peixes envelhecidos levantar vagas / longos
dragões dançar
Wu Zhi fora sono / apoiar-se à caneleira
Orvalhos alados obliquamente voar / molhar lebre arrepiada
Este poema tem por tema a interpretação de um músico com um instrumento chamado kong hou. O tema da interpretação musical foi utilizado numerosas vezes por Li He, principalmente nos dois poemas com o título "Cordas mágicas". São poemas de natureza encantatória, que recriam cenas de invocações de feiticeiras xamãs. Aqui, embora as palavras mágicas não estejam ausentes, é sobretudo através das imagens suscitadas pela música que o poeta experimenta representar o poder da criação artística.
À primeira leitura, somos tocados pela abundância das imagens que se seguem como se não houvesse qualquer ligação entre elas. No entanto, um leitor que conheça o sentido de certas metáforas, e alguns sistemas de correspondências (números, elementos, etc.), não tarda em perceber a lógica metonímica que as une. (Já o dissemos mais atrás, o poeta passa sem os elementos narrativos, para se situar imediatamente ao nível da metáfora).
O poema começa pela expressão "seda e plátano", que deriva de "seda e bambu", metáfora que usualmente designa os instrumentos musicais em geral. O verso "transborda" destas imagens — que representam elementos da natureza —, como naturamente, a do outono e a do céu vazio. Este céu vazio — onde as nuvens se imobilizam e que perturba apenas as lágrimas da Deusa da ribeira de Xiang e as Raparigas Brancas: estas últimas são as mulheres do lendário rei Shun (na morte deste, elas choraram sobre o seu túmulo de onde nasceram os bambus) —, sugere primeiro um lugar mítico habitado pela morte. Esta passagem pelo vazio é uma prova necessária. Notemos que no fim do verso 4 o poeta colocou (engenhosamente) o nome do instrumento kong hou, que graficamente pode querer dizer: "o vazio que espera". A ideia de um lugar mítico é confirmada pelo verso 5, o qual, sem transição, introduza imagem do monte Kunlun, cadeia sagrada a oeste da China. Esta montanha é célebre, entre outras, pelos seus jades, donde a imagem de "jades quebrados" (verso 5). Ora, esta imagem é utilisada na linguagem corrente para significar" sacrificar-se pela Beleza" (ou morrer por uma causa justa). A ideia de uma passagem na morte continua pois, mas ela é seguida, no mesmo verso, pela imagem de uma ressurreição sugerida pelo casal de fénix (aves sobrenaturais, que simbolizam o acasalamento e o milagre da vida).
A partir deste ponto, o poema avança apoiando-se a cada etapa em metáforas e figuras extraídas dos diferentes mitos tradicionais: Deusas da ribeira Xiang, Imperador Púrpura (designa tanto o próprio imperador, pois que Li Ping era músico da corte, como um dos Augustos do Céu que reinam sobre a Estrela Púrpura); Nü Wa (figura feminina mítica que teria fundido pedras de cinco cores para reparar um canto do céu danificado pelo demónio Gonggong); xamãs: Wu Zhi (que, depois de uma falta cometida no decurso da sua iniciação para se tornar imortal, foi condenado a ficar na lua e a cortar os ramos da caneleira que aí cresce, o labor do lenhador não conhece nem espera nem fim). Através destas personagens, o poema mostra a relação estabelecida pela música entre os elementos terrestres e os do mundo sobrenatural. Este elo é sugerido além disso pelas redes de correspondências fundadas nos números.
No verso 7, os doze pórticos designam os pórticos do palácio imperial. Mas a imagem "luzes fundidas" (a acção da música ao agir sobre os elementos) que está a seguir, faz pensar nas doze notas da escala musical chinesa, e igualmente nos doze ramos terrestres que reatam assim a imagem inicial da árvore (os doze ramos terrestres têm por correspondentes os dez troncos celestes). Quanto às vinte e três cordas do verso 8, elas estão ligadas à presença de corpos celestes ("Imperador Púrpura" designa o imperador em pessoa e, ao mesmo tempo, a Estrela que tem o mesmo nome; por outro lado, o quarto crescente da lua diz-se em chinês: corda de lua, etc.) e evocam as vinte e oito Mansões-celestes. Entre o número 23 e o número 28, há uma falta. Esta falta é justamente sugerida pelo verso seguinte, em que o poeta fala do lado do céu que falta e da deusa Nü Wa que repara a parte celeste abatida, com as pedras de cinco cores.
Podem pôr-se em evidência — esquematizando muito — sob esta abundância de imagens, os temas seguintes: a criação artística é uma iniciação que comporta algumas provas, provas da morte de que não se pode sair vencedor senão unindo-se ao mundo sobrenatural. A relação procurada com o sobrenatural é de ordem sexual. Vê-se no poema, de um lado, seres sobrenaturais (ou ligados ao sobrenatural) que são figuras femininas: deusas da Xiang, Nü Wa, xamãs; e de outro, seres do sexo masculino: Li Ping o músico, o imperador e Wu Zhi. Esta natureza sexual é sublinhada pelo símbolo fálico que é o instrumento de música, o qual se apresenta sob a forma de árvores: plátano erecto, bambus aprumados, doze ramos terrestres e a caneleira cujos braços crescem incessantemente; sublinhemos também que o próprio nome do músico Li (verso 4) quer dizer ameixeira. A interacção dos dois tipos de seres — femininos e masculinos, sobrenaturais e humanos — regula o ritmo do movimento cósmico. Pelo seu desafio, o artista viola a ordem das regras e arrasta os elementos num processo de metamorfoses: nuvens imóveis, jades quebrados, fénix que cantam, orquídeas que riem, luz fundida, pedras queimadas, chuva de outono (note-se que a imagem da chuva está ligada à das nuvens do verso 2; as duas imagens combinadas significam em chinês, o acto sexual), dragão dançante e lebre arrepiada. Esta última imagem da lebre, aparentemente incongruente e como que extraviada nesta "floresta de símbolos", constitui também ela um símbolo: o da fecundidade e da imortalidade. Com efeito, os mitos que dizem respeito à lua apresentam-na como um lugar onde habitam uma lebre e um sapo, e onde cresce uma caneleira. Ao evocar a lua pelos seres que a habitam, o poeta quer evitar nomeá-la, apresentá-la como lugar longínquo ou uma decoração exterior. Graças ao que, a ambiguidade entre o mundo humano e o mundo sobrenatural é mantida. Wu Zhi e a lebre são seres reais e transfigurados ao mesmo tempo. Se Wu Zhi — que corta a caneleira — e a lebre — que fabrica o elixir da imortalidade — conhecem enfim o extâse e a felicidade, eles não conseguem esquecer a sua condição trágica. A caneleira vai crescer de novo e a lua caminha para o quarto minguante. A própria imortalidade é mortal. A imagem final, da caneleira (árvore sagrada), que se une à imagem inicial, do plátano (árvore terrestre), mostra o processo de sublimação, ao mesmo tempo que o do eterno recomeço.
Uma desordem aparente, uma unidade interna, tal parece este poema de tons encantatórios. Este universo transtornado, estes elementos misturados, são suscitados pela própria linguagem. Pelas imagens metafóricas (seda e plátano, jades quebrados, fénix cantantes, nuvem-chuva, doze pórticos e vinte e três cordas) e as figuras míticas, o poeta mantém a linguagem constantemente no eixo metonímico, sem comentário exterior, como se as imagens se engendrassem a si mesmas. O poema apresenta-se assim como uma sequência ininterrupta de "aparições" de metáforas, aparições que não são senão a actualização de um sistema metonímico constituído. Para utilizar uma imagem, podemos dizer que metáfora e metonímia formam aqui o direito e o avesso de uma única tela.
O poeta é, mais do que aquele que fala, aquele que se deixa falar. Ele aparece como um decifrador ao mesmo tempo que organizador dos mitos acumulados ao longo de milénios. Tudo se passa como se o poeta não pudesse completar o seu próprio mito, sem ter vivido todos os outros mitos. Ao organizá-los, ele transforma-os. Esta passagem subterrânea através dos mitos é para ele uma iniciação.
Li Shang Yin (812-858) viveu pouco depois de Li He. Como este, é célebre pelo modo de manejar as imagens, mas o seu processo é bastante diferente. Cantor da paixão secreta, procede por alusão. Para isso, serve-se de imagens ricas de sentidos simbólicos, como Li He, mas faz mais apelo às astúcias formais (cesura, paralelismo, progressão estrófica, etc.), organizando-as em dois eixos: linear e espacial. Abstendo-se de elementos narrativos e anedóticos,estas imagens apoiam-se em oposições e combinações internas, que esclarecem plenamente o seu conteúdo conotativo.
Pelo seu modo de esgotar todas as virtualidades metonímicas (fónicas, semânticas, iconográficas) que desperta uma imagem, ele junta-se à tradição popular das Seis Dinastias de que já falámos atrás.
Escolhemos, para a nossa análise, um lü shi de Li Shang Yin intitulado: "Cítara ornada de brocado"63
I. 1. Cítara ornada puro acaso / eis cinquenta
ordas
2. Cada corda cada cavalete / desejar anos
floridos
II. 3. Letrado Zhuang sonho matinal / imaginar-sebor
boleta
4. Imperador Wang coração primaveril
/transformar- se du juan
III.5. Mar profundo lua clara / pérolas ter lágrimas
6. Campo azul sol ardente /jades nascer fumados
IV.7. Esta paixão podendo durar / tornar
continuação-lembrança
8. Somente no próprio momento / já
des-possuído.
Este poema, escrito num estilo "lacónico", tem por tema a reminiscência de uma paixão. O primeiro dístico coloca primeiramente o poema num plano de ambiguidade. O poeta liberta o seu tema inicial a partir de um objecto real e lendário ao mesmo tempo. Trata-se de um jin se, um instrumento horizontal de cinquenta cordas. Ora, um jin se, normalmente, só tem vinte e cinco. É verdade que uma lenda conta que originaramente — na alta antiguidade chinesa —, o instrumento possuía efectivamente cinquenta cordas, mas que, durante uma audição, um imperador dos Zhous, não podendo suportar a música tão plangente que uma das suas favoritas tocava, ordenara que se reduzisse o número de cordas a metade. Ao ler o primeiro dístico, não se duvida que o poeta se encontra diante de um objecto real (a lembrança deixada por uma mulher amada?), mas pergunta-se se ele não sonhará, ao mesmo tempo, com um objecto imaginário, através do qual ele poderia identificar-se a um qualquer amante inconsolável da antiguidade. Seja como for, a imagem da cítara permite ao poeta não designar o seu "eu": ela oferece-se como um lugar de metamorfoses. Estas cinquenta cordas evocam talvez os anos que o poeta viveu (certos comentadores supõem que o poeta compôs o poema aos cinquenta anos). Estes anos convergem todavia numa imagem obsediante: uma flor (à qual faz alusão também a imagem do brocado) que não é um simples objecto decorativo, mas sugere um desejo escondido e insatisfeito. É que às imagens das cordas e do cavalete estão ligadas conotações de carácter sexual: na tradição tauista, designa-se o sexo da mulher por "cordas musicais" e o do homem por "coluna de jade" (em chinês, "coluna" e "cavalete" são designados pela mesma palavra). Assim, esta cítara que inaugura o poema de maneira abrupta, pelas suas múltiplas alusões e pelo eco do seu canto, coloca uma série de questões cheias de ambiguidade: Experiência vivida ou sonho? Identificação de si ou desdobramento? Perseguição de um desejo jamais realizado, ou procura do outro sem fim?
Estas questões, o poeta não as colocará nunca de forma explícita. Rompendo o tom oral e narrativo do dístico I, sem transição, ele introduz nos dois dísticos seguintes (II), dísticos paralelos, uma organização espacial dos signos baseada na equivalência reversível (II) e no encadeamento circular (III). Graças a estas estruturas, e sem que seja necessário qualquer comentário, as imagens são significantes por elas próprias, atraindo-se e combinando-se para formar uma rede complexa com a sua lógica interna. Através destas imagens, apreendemos os temas da perseguição de um sonho e de um desejo, de uma paixão vivida ou sonhada, de uma busca através da vida que se transforma ao longo do tempo cíclico que permitirá talvez aos amantes encontrarem-se.
Os dois dísticos articulam-se assim: o dístico II eleva o poema ao plano metafórico e, a partir deste plano, abre-se um "campo metonímico" que o poeta explora no dístico III, dístico ele próprio feito de uma série de imagens que se engendram umas às outras. Vejamos primeiro o sentido simbólico ligado às imagens que aparecem no dístico II:
Letrado Zhuang / borboleta: o filósofo tauista Zhuang Zi, ao acordar de um sonho no qual ele se encontrava transformado em borboleta, pergunta-se se, em todo o caso, foi ele próprio que sonhou ser borboleta ou o contrário, se foi a borboleta que sonhou ter-se tornado Zhuang Zi. (Ele estava acordado enquanto Zhuang Zi ou ele não era senão um ser sonhado por uma borboleta?) O filósofo ilustra aqui a concepção tauista no que diz respeito à ilusão da vida e à identidade dos seres. O imperador Wang du juan : segundo a lenda, o imperador Wang de Shu, inconsolável depois da morte da sua favorita, abandonou o trono e desapareceu. A sua alma ter-se-ia depois tranformado em du juan "cuco", cujo pio se assemelha aos soluços. O cuco, ao cantar, expelia sangue, que por sua vez se transformava em flores de cor vermelho vivo que se encontram por toda a parte no país de Shu e que se chamam justamente flores de du juan (espécie de papoilas). O du juan simboliza assim uma paixão breve que se prolonga sob a forma de metamorfoses. Notemos ainda que para "letrado Zhuang-borboleta" e também para "imperador Wang-cuco", há mudança de sexo: borboleta e flor de cuco têm sempre, na poesia de Li Shang Yin, uma conotação feminina.
Se o poeta se identifica ao letrado Zhuang e ao imperador Wang, estes dois últimos, por sua vez, são postos em equivalência com a borboleta e o cuco. Esta série de "posições em equivalência" é acentuada pela estrutura gramatical das duas frases. Sendo os dois versos paralelos têm uma estrutura idêntica: dois sujeitos animados (A e B) ligados por um verbo. Os dois verbos, "imaginar-se" e "transformar-se", que no uso corrente são verbos transitivos, são tornados aqui "neutros" pela omissão de elementos pós verbais (uma preposição como "a" ou "em", por exemplo). De modo que a progressão da frase, em vez de ser num único sentido: A → B, torna-se reversível: A ←→ B. É assim que o segundo verso, por exemplo, se pode ler "o coração do imperador Wang transforma-se em cuco" ou, inversamente, "um cuco transforma-se no coração do imperador Wang". Através desta astúcia sintáctica, o poeta coloca num plano de reversibilidade os elementos humanos e os da natureza, para significar que, se a sua paixão vivida e o seu desejo insatisfeito se transformaram em outras coisas, ele alimenta a esperança de os encontrar. Por outro lado, como os dois versos são paralelos, "sonho. matinal" e "cuco" estão frente a frente e opõem-se; de um lado, ilusão, esquecimento e indiferença; do outro, desejo carnal, lembrança e paixão trágica. A dilaceração do poeta que representam estes dois pólos inconciliáveis é posta em evidência pela organização formal.
Este dístico, construído à maneira da equivalência, é de natureza metafórica (que subentende uma estrutura metonímica: sonho-borboleta, coração-cuco). Ele estabelece elos de analogia entre diferentes tipos de seres (e entre diferentes reinos): entre o poeta e as duas personagens (Zhuang e Wang), primeiro; depois, entre as personagens e a borboleta e o cuco que são do reino animal. Enfim a imagem do reino animal arrasta a do reino vegetal, representado pela flor. Todos estes elos estabelecidos fazem nascer a ideia de interpermutabilidade e de transformação e abrem um largo campo metonímico, que o poeta explora no dístico seguinte.
Com efeito, o dístico III é composto por uma série de metáforas que têm entre si elos de contiguidade. Os dois versos começam respectivamente pelas imagens do mar e do campo, cuja combinação significa em chinês: transformação.64 Além dos reinos animal e vegetal, a procura do poeta vai ainda mais longe; ela toca o reino mineral, representado pela pérola e pelo jade. Vamos então precisar quais são os mitos contidos nos dois versos.
Verso 5: No mar do sul, nas noites de lua cheia, apareciam sereias; as lágrimas que elas choravam, transformavam-se em pérolas.
Verso 6: No Campo Azul (na actual província de Shensi, célebre pelos seus jades), o sol provoca emanações que dão, quando são olhadas de longe (mas apenas de longe) visões maravilhosas. Um outro mito conta que um velho semeou uns grãos que lhe foram dados por um desconhecido que passou, em recompensa pela sua generosidade. Estes grãos, ao germinar, transformaram-se em belos pedaços de jade, graças aos quais ele pôde desposar a jovem que desejava.
Mesmo um leitor que ignorasse estas lendas poderia apreender completamente os elos metonímicos que unem as imagens: por exemplo, no verso 5, entre o mar e a lua (interacção), e a lua e as pérolas (brilho e esfericidade), as pérolas e as lágrimas; e, enfim, a imagem das lágrimas sendo a de um elemento líquido (porque existe também a expressão "mar de lágrimas" nesta língua), une-se à do mar. Os dois versos formam assim cada um um anel:
Recordemos que tal como a expressão "mar de lágrimas", existe também, em chinês, a expressão "mar de fumos", de modo que o fim do segundo verso se junta ao princípio do primeiro. Os dois anéis combinados podem ser representados pela figura seguinte (que utilizamos para ilustrar a forma do paralelismo):
Estes anéis combinados, por mais coerentes que sejam, cercam no entanto um vazio, uma ausência. Entre o reino animal do dístico II e o reino mineral do dístico III, há a imagem da flor citada no dístico I e sugerida por "borboleta-fumo" e "cuco-lágrimas". Esta flor ausente (a mulher desejada) é justamente o objecto da procura do poeta. Ora, tendo em conta as duas lendas do dístico III (ambas ligadas à aparição de uma mulher), e tendo em conta ainda os sentidos particulares ligados às imagens da lua, das ondas, das pérolas e dos jades (em chinês, uma multiplicidade de expressões baseadas nestas imagens descrevem a beleza femina: corpo de mulher, olhar de mulher, cabelos de mulher, rosto de mulher), sente-se realmente, para além da ausência, a presença carnal da mulher amada que suscita a magia do canto. O encadeamento circular representado pela figura 2, sugere além disso a crença do poeta na possibilidade do encontro numa vida futura.
Se esta procura do poeta através dos tempos e dos reinos é intensamente salientada pelo encadeamento linear, não esqueçamos no entanto que, tal como no dístico precedente, os dois versos (5 e 6) são paralelos. Os termos, frente a frente, entre dois versos, pelas suas combinações, provocam outros sentidos:
Mar-campo: transformação universal, vicissitudes da vida humana;
Sol-lua: movimento cósmico, passagem do tempo (dia e noite, dias e meses), eternidade;
Pé rolas-jades: tradicionalmente associados a um grande número de expressões: tesouros humanos, harmonia no casal, sons melodiosos de música. E a expressão "pérolas e jades escondidos" significa uma bela mulher morta;
Lágrimas-fumos: paixão trágica, paixão vã.
Outras combinações significantes são possíveis ainda: "mar-sol" = renascer; "mar enxuto-pedra estragada" = paixão indestrutível. Além destes binómios que ligam os dois versos, é preciso assinalar os dois versos no seu conjunto, um marcado pelo yin (lua, mar), e o outro pelo yang (sol, fogo). Postos em paralelo, os dois versos suscitam a imagem da união (yang-yin: homem-mulher). Através das ligações carnais, o homem e a mulher perdem-se e encontram-se sem cessar.
Assim, no dístico III, enquanto que no eixo sintagmático se persegue o tema do sonho iniciado no dístico precedente (letrado Zhuang), no eixo paradigmático, entre dois versos, desenvolve-se o tema do desejo (Imperador Wang). Um leitor que conheça o sentido simbólico de todas estas imagens, logo que escanda os dois versos segundo o ritmo, sente verdadeiramente, para além da linguagem directa ("através de tudo, dia e noite, te procuro e te desejo. Vem até mim, juntos um com o outro, renasceremos..."), aparecer das profundezas da significância as figuras e os gestos de um pensamento obsessivo.65
Os três dísticos que acabámos de analisar estão presos num processo de criação contínua, sem que os elementos demasiado imobilizados de uma linguagem denotativa venham fixá-los num único sentido. Por trás de todas as imagens, estruturadas e, ao mesmo tempo, desestruturadas, adivinham-se, subjacentes, um "eu" e um "tu" que asseguram uma certa unidade. Nem um nem outro são mencionados, porque um não existe a não ser pelo outro; e um e outro não se encontram senão nesta procura apaixonada, procura significada por uma série de "estratos" metafóricos, manifestando-se cada estrato por uma série de figuras ligadas entre si:
O último dístico, deixando a linguagem de estrutura paralela, reintroduz o canto linear inaugurado pelo primeiro dístico. O verso 7 pode ser interpretado tanto como uma súplica como uma interrogação (mesmo tipo de frase em chinês): esta paixão poderia ela ter durado (tal como a cítara que permaneceu)? E, à força de renovar o jogo, conseguir-se-á reencontrar o tom inicial? (Notemos que a imagem da cítara não reapareceu no poema; o instrumento ter-se-ia transformado num canto que não é outro senão o próprio poema.) O dístico contém três caracteres que têm a chave de "coração" (o primeiro começa o dístico e o terceiro termina-o) que respondem à única palavra coração no resto do poema: "coração primaveril" do verso 4. A sua presença parece significar que a aventura é interior. Trata-se de情"paixão", de憶"memória" e do último carácter wang 惘que fecha o poema e que se pronuncia como o nome do imperador Wang; faz ressurgir a figura deste e contribui para a coerência do poema. Esta palavra, muito figurada, quer dizer ao mesmo tempo: "estar possuído" (o coração apanhado numa rede) e "estar des-possuído" (o vazio inatingível, a ausência). Com esta palavra cheia de ambiguidade e de aparente contradição, o fim do poema situa-se no lugar em que qualquer presença não existe a não ser pela ausência e em que o tempo da paixão vivida se confunde com o da procura.
Estudaremos, para terminar, uma quadra de Li Bo que representa um caso extremo, ainda que, ao fim e ao cabo, muito frequente na poesia chinesa. Trata-se de observar como é que, num poema em que os elementos descritivos estão reduzidos ao mínimo, as imagens simbólicas formam um paradigma homogéneo e criam uma ordem espacial na qual, mesmo que contrastando, elas se transformam em unidades permutáveis. Através desta estrutura dividida e unificada (tal como uma constelação) e que impressiona pela sua economia, mostra-se a nu uma linguagem metafórica — em que sujeito e objecto, dentro e fora, longe e perto são as facetas de um mesmo prisma sempre irradiante:
Li Bo
Escadas de Jade
Escadas de jade nascer orvalho branco
Tarde de noite penetrar meias de seda
Entretanto baixar cortina de cristal
Pela transparência contemplar lua de outono.
O poema tem por tema a espera de uma mulher, durante a noite, diante das escadas da sua casa, espera longa e finalmente decep-cionante; o seu amante não aparecerá. Por despeito, e também por causa da frescura da noite, ela retira-se para o seu quarto. Aí, através da cortina de cristal corrida, ela demora-se ainda, confiando à lua, tão próxima (pela sua claridade) e tão distante, a sua saudade o seu desejo.
Acabamos de propor uma interpretação deste poema. No entanto, no poema, os elementos narrativos consistem em alguns verbos de acção neutros, enquanto que as palavras que descrevem sentimentos tais como solidão, decepção, despeito, saudade, desejo de reunião, etc., estão totalmente ausentes. O sujeito pessoal, tal como o quer a tradição poética, é omitido. Quem fala? Um "ela" ou um "eu"? O leitor é convidado a viver os sentimentos da personagem" do interior"; mas esses sentimentos não são sugeridos senão por gestos e alguns objectos.
O poema apresenta-se sob a forma de uma série de imagens: escadas de jade, orvalho branco, meias de seda, cortina de cristal, ling long "transparência", lua de outono. Um leitor que conheça o simbolismo chinês compreenderá sem dificuldade o seu sentido conotativo:
Escadas de jade: residência de uma mulher. O jade evoca por outro lado a pele macia e fina de uma mulher.
Orvalho branco: noite fresca, hora solitária, lágrimas. Variante erótica também.
Meias de seda: corpo de mulher.
Cortina de cristal: interior do gineceu.
Ling long: esta palavra que traduzimos:"por transparência", no verso 4, é muito rica de sentido; inicialmente evocava o barulho que fazia o tilintar dos pendentes de jade; seguidamente, é utilizada para qualificar objectos preciosos e cintilantes, e também os rostos de mulheres ou de crianças. Aqui, permite uma dupla interpretação: a mulher que olha a lua e a lua que ilumina o rosto da mulher. Do ponto de vista fónico, este binómio aliterado responde em eco à sequência de palavras contidas nos versos precedentes, palavras que têm por inicial l e que designam objectos brilhantes ou transparentes: lu (orvalho), luo (seda), lian (cortina de cristal).
Lua de outono: presença longínqua e desejo de reunião (os amantes separados podem olhar a mesma lua; além disso a lua cheia simboliza a reunião dos seres queridos).
Com esta sequência de imagens o poeta cria um mundo coerente. A progressão linear mantém-se ao nível metafórico. Estas imagens têm todas em comum a representação de objectos brilhantes ou transparentes. Elas dão a impressão de derivar umas das outras, numa ordem regular. Esta impressão de regularidade é confirmada, no plano sintáctico, pela regularidade das frases de tipo idêntico. As quatro frases que compõem o poema analisam-se todas assim:
complemento + verbo + objecto
Uma tal regularidade imprime ao poema nuances com uma ordem inexorável: em cada uma das quatro frases, o verbo, colocado ao meio, é determinado por um complemento e termina com um objecto. Tendo em conta a omissão do sujeito pessoal, o poema aparece como que dominado por um processo em que as coisas se encadeiam sozinhas e em que uma imagem engendra outra, desde a primeira à última:
Este esquema sugere uma progressão linear num sentido único. Mas se nos colocarmos num ponto de vista imaginário, poderíamos ligar a última imagem (luar) à primeira (escadas de jade) passando por todasas outras:
porque estes objectos transparentes ou cristalinos brilham graças ao luar que, aparecido no último momento, "refaz o percurso" do poema, como que para dar a cada imagem a sua plena clareza ou antes o seu pleno sentido. Esta lua que luz de novo nas escadas de jade vazias acentua a saudade; o movimento circular sublinha um pensamento obsessivo que regressa a si próprio sem cessar.
Esta organização paradigmática dentro do desenvolvimento linear permite verificar, no plano das imagens, o traço dominante da linguagem poética definido por R. Jacobson: projecção do eixo da selecção sobre o eixo da combinação. Subtilmente, o poeta faz explodir a linguagem, ao introduzir na ordem temporal a dimensão espacial. As imagens, ao oporem-se entre elas, provocam, como que "naturalmente" um sentido:
Esta maneira de deixar "representar" plenamente as imagens é a própria condição de uma economia de estrutura, estrutura que alia em si o fora e o dentro, o longe e o perto, e mais ainda o sujeito e o objecto. O mundo interior projecta-se no exterior, enquanto que o mundo exterior se torna o signo de um mundo interior. Este jade, é as escadas e a carne da mulher ao mesmo tempo; este orvalho, é ao mesmo tempo a frescura da noite e o desejo da mulher; o ling long, é ao mesmo tempo o rosto da mulher que olha e a lua vista através da cortina de cristal. E esta lua, ao mesmo tempo presença longínqua e sentimento íntimo, provoca a cada um destes encontros com os objectos um novo sentido.
Para nos servirmos também de uma linguagem metafórica, poderíamos talvez dizer que acima do discurso "terra a terra" se ergue uma abóbada celeste na qual planam figuras luminosas que formam uma constelação. Unidas por elos metonímicos, transformando o acaso em necessidade, elas situam-se umas em relação às outras, atraiem-se entre si e iluminam-se com os seus fogos cruzados. No meio delas brilha um astro de um brilho muito especial: a lua. Na sua direcção convergem as outras estrelas; é ela que, carregada do desejo humano, finalmente alumia todas as outras. Esta lua, que é um dos símbolos fundamentais dos poetas chineses clássicos, cuja sensibilidade é essencialmente "nocturna", revela, por intermédio dos signos de ritmo primordial, o segredo de uma noite de mito e de comunhão.
Reproduzido de: CHENG, François, L 'écriture poétique
chinoise: suivi d'une anthologie des poèmes des T'ang, Paris, Seuil, cop. 1977, parte I.
Traduzido do original francês por Ana Peres de Sousa.
NOTAS
1. Os primeiros espécimens conhecidos da escrita chinesa são os textos adivinhatórios gravados nos ossos e carapaças. A estes vêm acrescentar-se as inscrições nos vasos rituais de bronze. Estas duas formas de escrita foram utilizadas durante a dinastia dos Shangs (XVIII-XI a. C.).
2. O Shi Jing (Cânon das Odes), primeira recolha de cantos que inaugura a literatura chinesa, contém peças que datam do primeiro milénio a. C.
3. Não se trata aqui de uma apresentação baseada unicamente na etimologia. O nosso ponto de vista é semiológico: o que procuramos mostrar em primeiro lugar, são os elos gráficos significantes que existem entre os signos.
4. Sobre o modo como, na tradição retórica chinesa, são encarados, explicita ou implicitamente, os signos linguísticos e a sua função (problema que merece ser objecto de um estudo sistemático, mas que ultrapassa o quadro do presente trabalho), podemos referir-nos especialmente às seguintes obras: o Wen fu de Lu Ji (261-303), e o Wen xin diao long de Liu Xie (465-522). O que é importante sublinhar é, antes de tudo, a afirmação do lugar do homem no seio do universo. O homem, com o Céu e a Terra, forma os Três Génios (san cai); estes mantêm entre eles uma relação de correspondência e de complementaridade. O papel do homem consiste, não apenas em arrumar o universo, mas em interiorizar todas as coisas, em as recriar a fim de encontrar aí o seu próprio lugar. Neste processo de "co-criação" o elemento central, no que toca à literatura, é a noção de wen. Este termo que, posteriormente, entrará em numerosas combinações para significar língua, estilo, literatura, civilização, etc. designa inicialmente as "impressões" deixadas por certos animais ou os veios da madeira e das pedras, conjunto de "traços" harmoniosos ou rítmicos através dos quais a natureza se exprime. É à imagem destes signos que foram criados os signos linguísticos, a que se chama igualmente wen. Esta dupla natureza do wen constitui, de algum modo, um garante para o homem de conhecer o mistério da natureza e, assim, conhecer a sua própria natureza. Uma obra prima é aquela que restitue as relações secretas entre as coisas, tal como o sopro que as anima.
5. 詩成泣鬼神
6. A imagem do olho é importante na concepção artística chinesa. Recordemos, no que toca à pintura, a historieta do pintor que deixava sempre por desenhar o olho do dragão. Aos que lhe perguntavam a razão, ele respondia: "No instante em que eu lhe acrescentasse o olho, o dragão voaria!"
7. A propósito, citamos por exemplo, o verso de Li He: 筆補造化天無功(Completando o pincel a Criação, o Céu não tem todo o mérito!).
8. Xin yi wu.
9. Assinalemos que os dois ideogramas, no seu verdadeiro sentido, designam o lótus. O poeta usa-os aqui para designar a flor da magnólia que apresenta uma grande semelhança com o lótus.
10. Re san shou.
11. Chun jiang hua yue ye. Sobre este poema, pode ler-se o estudo que lhe consagrámos na Análise formal da obra poética de um autor dos Tangs: Zhang Ruo Xu.
12. A teoria do traço único, já contida no Li dai ming hua ji, de Zhang Yen Yuan (810-880?), será desenvolvida por outros pintores, especialmente por Shi Tao (1671-1719) no seu Hua yu lu.
13. Qi yun.
14. Para a literatura, citemos a frase de Cao Pi (187-225): Wen yi qi wei zhu (Em literatura: a primazia do sopro) no seu Tian lun lun wen (este texto é geralmente considerado como o primeiro no tempo da literatura chinesa). Citemos igualmente o capítulo "Yang chi" (Alimentar o sopro) no Wen xin diao long, de Liu Xie (465-522). Para a pintura recordemos simplesmente a célebre expressão: Qi yun shengdong (Animar o sopro rítmico), de Xie He (cerca de 500).
15. Mais particularmente da filosofia tauista.
16. A repartição das palavras nestas duas grandes classes varia segundo as obras e as épocas. Se os principais shi hua (Propósitos sobre a poesia) abordaram todos este problema, falta que os autores se dêem ao trabalho de definir as categorias e só os exemplos numerosos que eles citam permitem notar os seus propósitos. A este respeito, pode consultar-se o estudo muito completo de Zheng Dian e de Mai Mei Qiao: Gu han yu yu fa xue hui bian.
17. Ver capítulo II.
18. As condições históricas nas quais foi produzida esta poesia eram as seguintes: depois de séculos de divisões internas e de invasões que seguiram a dinastia dos Hans, a dinastia dos Tangs refez a unidade da China. O estado imperial graças a uma melhor administração, impôs a sua autoridade por todo o país. No entanto a formação das grandes cidades, o desenvolvimento de redes de comunicação, e o desenvolvimento do comércio vieram transformar, até certo ponto, a antiga estrutura de uma sociedade feudal. Por um lado, o sistema de recrutamento de funcionários através de exames oficiais criou uma grande mobilidade social. No plano cultural, por outro, a unidade reencontrada fez tomar consciência à China da sua identidade e, o país abriu-se largamente às influências exteriores que vinham da Índia e da Ásia central (a capital Zhang An foi então uma cidade cosmopolita onde se encontravam numerosas correntes de pensamento). Uma sociedade preocupada com a ordem e efervescente de uma extraordinária exaltação criadora. Assinalemos entretanto um acontecimento maior que veio, a meio da dinastia (755-763) modificar o destino do país: a rebelião chefiada por An Lu Shan, um general bárbaro. Depois desta rebelião, que causou a morte de um grande número e engendrou abusos e injustiças de toda a espécie, o império começou o seu declínio. A confiança dos poetas que viveram esta tragédia e a daqueles que vieram depois, deu lugar a uma consciência trágica; a sua atenção virar-se-á mais, a partir daí, para a realidade social e os dramas da vida. A sua própria escrita sofreu a influência da transformação da sociedade.
19. Sendo este trabalho igualmente destinado a um público não sinólogo, adoptámos, dentre os sistemas de transcrição existentes, o de Wade-Giles que, até agora, é ainda o mais utilizado e o mais familiar no Ocidente. Por outro lado, tomámos a decisão de transcrever as palavras segundo a pronúncia actual. Nota do Editor: Efectuou-se a conversão das transcrições para o sistema Pinyin, critério há muito adoptado pela RC.
20. Sobre a dificuldade de traduzir versos chineses, citemos as reflexões de Hervey Saint-Denys: "A tradução literal é a maior parte das vezes impossível em chinês. Certos caracteres exprimem por vezes todo um quadro que não pode ser dado a não ser por perífrase. Certos caracteres exigem uma frase inteira para serem correctamente interpretados. É preciso ler um verso chinês, compenetrar-se da imagem ou do pensamento que ele enferma, esforçar-se por atingir o seu traço principal e conservar-lhe a sua força ou a sua cor. A tarefa é perigosa; penível também, quando nos apercebemos das reais belezas que nenhuma língua europeia saberia reter."
21. Consecutiva ao Movimento do 4 de Maio (1919), a revolução literária, estreitamente ligada à revolução política e social, põe em causa não só a ideologia tradicional, mas também o próprio instrumento da expressão literária.
22. Esta forma será analisada no próximo capítulo.
23. 麻鞋見天子 (Shu huai).
24. 眼枯即見骨,天地终無情。 (Si an li).
25. 嵗晚或相訪,青天駒白龍。 (Song Yang san ren gui Song shan).
26. 青水碧於天,畫船聽雨眠。 (Pusa man).
27. 誰家今夜扁舟子,何處相思明月樓。É interessante mostrar aqui as traduções que existem destes dois versos. O marquês de Hervey Saint-Denis:"Ninguém sabe quem sou eu nesta barca viajante / Ninguém sabe se esta mesma lua ilumina, ao longe, um pavilhão onde alguém sonha comigo." Ch. Budel:"In yonder boat some traveller sails tonight / Beneath the moon which links his thoughts with home." W. J. B. Fletcher: "Tonight who floats upon the tiny skiff? / from what high tower yeans out upon the night / the dear beloved in the pale moonlight..." Na Antologia da poesia chinesa clássica: "A quem pertence a pequena barca que voga esta noite? / Onde encontrar a casa ao luar onde alguém sonha com o ausente?"
28. H. A. Giles: "Around these hills sweet birds their pleasure take / Manís heart as free from shadow as this lake". W. Bynner: "Here birds are alive with mountain light / And the mind of man touches peace in a pool". W. J. B. Fletcher: "Hark! The birds rejoicing in the mouintain light / Like one's dim reflection on a pool at night / Lo! the heart is melted wav'ring out the sight". R. Payne: "The mountain colours have made the birds sing / the shadows in the pool empty the hearts of men". O marquês de Hervey de Saint-Denis: "Desde que a montanha se ilumina, as aves (em plena natureza acordam contentes: / O olhar contempla as águas límpidas e profundas, como os pensamentos do homem cujo coração se purificou".
29. Damos as traduções existentes. J. Liu: "The stars drooping, the wild plain is vaste / the moon rushing, the great river flows". W. J. B. Fletcher: "The wide-flung stars overhang all vasty space / the moonbeams with the Yangtze current race". K. Rexroth: "Stars blossom over the vaste desert of waters / Moonlight flows on the surging rivers".
30. Ver a análise deste poema no capítulo III.
31. Este termo, que R. Jakobson empregou no seu texto Shifters, verbal categories and russian verb, foi traduzido por embrayeur por N. Ruwet. — N. T.: Traduzido à letra, aparelho de embraiar.
32. 日月龍中鳥,乾坤水上萍。(Du Fu: Heng zhou song Li tai fu ).
33. 星河秋一雁,砧杵夜千家。
34. 五湖三畝宅,萬里一歸人。(Wang Wei: Song Jiu Wei lui di gui Shandong ).
35. 老年復道路,遲日復山川。(Du Fu: Xing cu gu cheng ).
36. 黄葉仍風雨,青樓自管弦。(Li Shang Yin: Feng yu).
37. 幽薊餘蛇豖,乾坤尚虎狼。(Du Fu: You gan).
38. 生理何顏面,憂端且岁时。(DuFu: De di xiao xi).
39. Isto verifica-se ainda na língua falada moderna.
40. Muito antes que Shen Yue (441-513) tivesse definido os quatro tons, os poetas já se serviam, instintivamente, da distinção tonal.
41. Segundo a interpretação de Wang Li. Ver o seu Han yu shi lü xuan.
42. Damos os esquemas da primeira metade de um lü shi pentassilábico (a outra metade é idêntica).
43. Ver o seu artigo o desenho prosódico no verso regular chinês.
44. Este esquema foi proposto pela primeira vez, por G. B. Downer e A. C. Graham no seu artigo: Tone patterns in chinese poetry.
45. Ver capítulo III, a propósito das imagens metafóricas.
46. Primeira estrofe do poema Lang tao sha. Existe uma tradução na Antologia da poesia chinesa clássica: "Por detrás das cortinas, a chuva sem fim susurra. A virtude de primavera esgota-se. Sob a capa de seda, o frio intolerável da quinta vigília! Quando sonho, esqueço quem sou no exílio. Doce conforto tão esperado!".
47. Tirado do poema Ting Ying shi tan jin.
48. Sheng sheng man.
49. Ver capítulo I. O sinal / marca a cesura.
50. 江流天地外,山色有無中。 (Han jiang lin fan).
51. Do alto do pavilhão das Cegonhas, de Wang Zhi Huan.
52. Wang Li tratou longamente deste problema no seu Han yu shi gao.
53. Não podemos alongar-nos muito no problema das transgressões sintácticas permitidas pelo paralelismo sem romper o fio da nossa apresentação da forma do lü shi. O leitor conhecedor do chinês pode consultar muito utilmente o estudo de Wang Li no seu Han yu shi lü xue. De forma sumária, tentaremos resumir as investigações dos poetas dos Tangs, para inventar outras ordens verbais, nos três tipos seguintes:
I). Ordem perceptiva. O poeta organiza as palavras, não segundo a sintaxe habitual, mas numa sequência que quer ser o reflexo das suas percepções sucessivas (de uma paisagem, de uma sensação, etc.). Os versos seguintes mostram-nos o poeta Du Shen Yan em viagem (ele vai ao amanhecer ao sul do rio Iansequião perto da foz deste). A ordem das palavras sugere as imagens que o poeta capta à medida que se movimenta: imagens da aurora nascente e das plantas cuja cor marca a mudança de estação, de um lado e de outro do rio:
Nuvens luz aparecer mar aurora
雲霞出海曙
Ameixeiras salgueiros passar rio primavera
梅柳渡江春
Por vezes, o poeta escolhe como ponto de partida da frase, sem que antes nada o tivesse anunciado, uma imagem viva: uma cena, uma cor, um sabor, que "desencadeia" uma série de sensações e de lembranças, como se estas tivessem dela nascido. Os exemplos seguintes são todos tirados de poemas de Du Fu:
a). Templo lembrar-se outrora visitar lugar
寺憶曾遊處
Ponte amar de novo atravessar momento
橋憐再度時
b). Verde lamentar montes e colinas passar
青惜峰巒過
Amarelo pressentir floresta de laranjeiras aproximar
黃知橘柚來
c). Aveludado saborear arroz de cogumelos "revolto"
滑憶彫胡飯
Perfume aspirar sopa de ervas "enfeitadas"
香聞錦帶羹
Noutros casos, o que o poeta pretende fixar não é uma sucessão de imagens, mas um estado fixo:
Salgueiros tenros [diante da soleira] ramos
白花簷外朵
Flores brancas [para além de alpendre] cálices
青柳檻前梢
nestes dois versos, os elementos fora de [ ]constituem significantes descontínuos. No meio deles, o poeta insere as imagens da soleira e do alpendre para marcar visualmente a intrusão da presença humana na natureza (ou inversamente, a invasão do quadro humano pela natureza). Pelo arranjo das palavras o poeta constrói uma cena tal qual ela se oferece ao seu olhar.
II). Ordem inversa. Aqui, a ordem consiste em inverter, numa frase, o sujeito e o objecto. Mais do que a simples procura de um efeito estilístico, pode ver-se neste processo o desejo de perturbar a ordem do mundo, de criar uma outra relação entre as coisas.
Arroz perfumado debicar acabar papagaio grãos
香稻啄餘鸚鵡粒
Plátano verde empoleirar envelhecido fénix ramos
碧梧棲老鳳凰枝
Ao ler este dístico muito célebre de Du Fu, o leitor compreenderá depressa que não é o arroz que debica o papagaio nem que é o plátano que está empoleirado na fénix. Notemos que é nos versos paralelos que o poeta "ousa" este género de distorção; a justificação mútua entre os versos retira-lhe o que pode parecer "fortuito" ou "arbitrário".
Viajante doente conservar proporcionalmentemedicamentos, 客病留因藥
Primavera tardia comprar por causa das flores
春深買爲花
Os versos, de facto, querem dizer: "Conservo os medicamentos no meu exílio, por estar muitas vezes doente; compro flores como que para reter a primavera que se vai embora." A inversão do sujeito e do objecto dão ao verso uma cambiante inabitual tingida de humor.
Durante muito tempo recordar rio-lago regressar cabelos brancos永憶江湖歸白髮Sempre errara céu-terra penetrar barca leve
欲迴天地入扁舟
Em vez das imagens de cabelos brancos (do exilado) que "se dispersam" pelos rios e lagos, e de barca leve perdida entre céu e terra, o poeta Li Shang Yin, por um processo inverso, marca com intensidade a acção do mundo exterior sobre o homem.
III). Ordem desagregada. Nesta ordem, ao misturar causa e efeito, ao organizar as palavras de modo aparentemente arbritário, o poeta tenta criar uma imagem "total", em que todos os elementos são confundidos e onde não existe, por assim dizer, um ponto privilegiado. Frase dinâmica, em que o signo se encontra numa rede sempre em transformação e em que, segundo cada mudança, ganha um novo sentido.
Terreno penetrar montanha sombra varrer
地侵山影掃
Folhas eivar orvalho traços inscrever
葉帶露痕書
Para encontrar um sentido compreensível para estes versos de Jiao Dao, aplicamos uma transformação em cadeia ao primeiro verso:
Terreno penetrar montanha sombra varrer→
Penetrar montanha sombra varrer terreno→
Montanha sombra varrer terreno penetrar→
Sombra varrer terreno penetrar montanha→
Varrer terreno penetrar montanha sombra→
A última frase tendo um sentido normal informa-nos sobre o que quer dizer o poeta: ao varrer o terreno em frente da sua casa, ele penetra na sombra que a montanha projecta. Se se fizer a mesma transformação ao segundo verso, obter-se-á:
Inscrever folhas eivar orvalho traços
O poeta inscreve versos sobre as folhas (provavelmente de uma bananeira) todas eivadas de orvalho. Do mesmo modo, para descrever uma paisagem em que os ramos tenros de bambus se partem com o vento, deixando cair as suas folhas verdes, e em que as flores da ameixeira completamente embebidas pela água da chuva abrem as suas pétalas rosa (notemos a conotação erótica da cena), Du Fu muda a ordem natural das palavras a fim de lhes retirar qualquer ideia de anterioridade ou de posterioridade, restituindo-lhe assim uma visão instantânea e total:
Verde suspender vento quebrar-se bambus
绿垂風折筍
Vermelho expandir-se chuva desabrochar ameixeira
紅綻雨肥梅
54. Utilizamos os termos de metáfora e de imagem simbólica num sentido muito geral (ver principalmente os exemplos que propomos no parágrafo seguinte). O nosso propósito não é tanto destacar as figuras isoladas, mas observar como se encadeiam as imagens e como funciona a linguagem específica nascida deste encadeamento.
55.0 sinal / marca a cesura.
56. 朱門酒肉臭,路有凍死骨。 (Zu jing fuFeng xian xian yong huai wu bai zu). Nestes dois versos, as imagens de "porta vermelha" e de "vinho-carne" são de considerar como sinédoques, enquanto que a de "caminhos ou estradas" é de assimilar a uma metonímia. Mas precisemos, uma vez mais, que o nosso cuidado aqui não é classificatório.
57. Existe uma tradução deste longo poema na Antologiada poesia chinesa clássica.
58. 襄王雲雨今何在,江水東流猿夜啼。(Xiang yang ge).
59. 誰驚一行雁,衝斷過江雲。(Jiang lou).
60. Séculos IV-VI.
61. Ela cobre factos muito variados. Inclusive, por exemplo, os de "metáforas tecidas" definidas por M. Riffaterre.
62. Existem várias traduções deste poema em inglês, principalmente a de J. D. Frodsham. O sinal / nos versos marca a cesura.
63. Para a utilização das metáforas de Li Shang Yin, pode ler-se igualmente o seu poema Sem título, e o nosso comentário.
64. 滄海桑田。
65. Com efeito, não é necessário que a tradução e a nossa análise dêem a impressão que o poema é feito de um conglomerado de imagens. Trata-se de um canto onde a ausência de palavras que exprimem sentimentos não tomam senão o tom mais pungente. Para um ouvido chinês, os versos não são mais musicais do que, por exemplo, o Canto de Ariel de Shakespeare: "Full fathom five thy father lies / Of his bones are coral made / Those are pearls that were his eyes / Nothing of him that doth fade / But doth suffer a sea-change / Into something rich and strange"... nem menos "expressivos" do que o pranto de Maurice Scève: "Em ti eu vivo, embora estejas ausente, / Em mim morro, embora esteja presente. / Por mais longe que estejas, sempre estás presente, / Por mais perto que esteja, ainda estou ausente..."
*Professor do Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais, Universidade Paris III.