Crónica Macaense

ANO NOVO CHINÊS FESTA DA PRIMAVERA

Ana Maria Amaro*

Celebrção do Ano Novo Extraído de: L'imagerie populaire chinoise. Léningrad. Aurora,1988.

Um macaense do século XIX 1 escreveu no seu diário: "Hoje, (...), é a festa do Panchom Grande e a festa de Quarentoras (...). E, a seguir, tece considera-ções acerca do risco de andarem na rua bobos reinóis 2

Este apontamento regista um facto que muitas vezes se repete em Macau: a sobreposição do Ano Novo chinês ao Entrudo, que os europeus trouxeram para esta cidade.

Esta sobreposição de celebrações resulta de am-bas as festividades serem cíclicas, sendo móveis as suas datas, de acordo com o calendário luni-solar. Os desvios que, em certos anos, se verificam na sua coincidência resultam, precisamente, das fundamentais diferenças entre o calendário Gregoriano 3 e o calendário luni-so-lar tradicional chinês. No primeiro, para acertar os períodos cíclicos da revolução solar, que ultrapassa os 365 dias, recorre-se aos anos bissextos, aumentando-se um dia ao mês de Fevereiro, ao passo que no segundo é intercalada uma lua ou mês lunar em cada 2 ou 3 anos (9 vezes em cada 12 anos).

Uma segunda causa de desvios consiste na obrigatória correspondência do Ano Novo ao novilúnio, tendo o Carnaval de recair num Domingo (Domingo Gordo), o que limita a sobreposição das duas festi vidades, ao caso de coincidir o 1° dia da Lua Nova com este dia da semana.

A partir de tal coincidência de datas, parece-nos não ser ousado admitir que tanto o Ano Novo chinês como o Carnaval do Ocidente se filiem numa muito antiga festividade comum relacionada com o culto do Fogo e do Sol, com o final da Estação Morta, com o fenó-meno da renovação, com o prenúncio da Primave-ra: Vitória da vida sobre a Morte.

Pelo que respeita ao Carnaval, admite-se hoje que ele corresponde, também no Ocidente, ao início do ano agrícola e ao advento da Primavera no calendário lunar, período que teria sido desde sempre, entre as populações de economia agrária, uma época de purifi-cação e de rituais tendentes à expulsão das forças nega-tivas do Inverno: uma homenagem à terra fecunda e ao Céu fecundante - uma festa de Ano Novo na sua concepção fundamental.

Muitos etnólogos e historiadores relacionam as festividades carnavalescas com as Saturnais romanas (festas do fim do Ano em Roma)4, e isto porque ambas as celebrações se filiam num antigo teísmo agrário perpetuado pela memória colectiva. O carácter orgíaco do Carnaval, equivalente aos excessos permitidos nas Saturnais romanas, corresponderia, pois, ao pensamento da atracção da fertilidade pela fertilidade e da abun-dância pela abundância. Depois da reforma do Calen-dário por César, esta festividade, que ocorria em Fevereiro/Março, recuou para Dezembro. No entanto, no mundo rural, não se perdeu a data antiga, que veio a transformar-se no futuro Entrudo, que avassalou a Eu-ropa e veio a ultrapassá-la. Com o advento do Cristianis-mo, para afastar os cristãos das orgias pagãs, foram estabelecidas pela Igreja duas datas diferentes para se fixarem as antigas celebrações do Ano Novo: o ciclo do Natal, festejando o nascimento de Cristo, em sobre-posição ao Solstício de Inverno, (a festa do Sol Novo), abrangendo o fim do Ano e estendendo-se até ao dia de Reis (6 de Janeiro) e a Meditação das Quarenta Horas, precedendo o início da Quaresma, que coincide com a data das antigas Saturnais (em Fevereiro/Março), quadra que veio a receber o nome de Carnaval, derivado, precisamente, do termo latino carne levare, (correspon-dente a abstinência).

Resquício de um mesmo antigo culto no Império do Meio parece testemunhar a festividade do Ano Novo com todo o seu antigo ritual em grande parte já esque-cido. Contudo, várias são as práticas que chegaram aos nossos dias. De entre estas são de citar a incineração do Deus da Cozinha (Chou Kuan), figura que, durante o ano, as chinesas conservadoras não deixam de venerar com incenso, velas e flores, retirando-o e queimando-o no dia 24 da 12a lua, celebração do Solstício de Inverno, que precede o advento do novo ano, altura em que tal imagem é, de novo, entronizada no seu nicho, precisamente na hora zero entre a hora do rato e a hora do boi (23-1) do un tan (). Porquê esta especial vene-ração do Deus da Cozinha nas celebrações do Ano Novo? Uma hipótese que avançamos é que esta divin-dade represente o próprio fogo que, nos lares ou antigos fornos, era preciso manter sempre aceso nos tempos arcaicos da civilização chinesa. As cerimónias do renovar do fogo, e as festividades que sublinhavam o fim da estação morta, durante a qual se interrompiam os trabalhos do campo, rematadas por festividades orgíacas em simpatia com o culto da fertilidade,5 segundo no-las descreve Marcel Granet, parecem apon-tar para uma celebração comum a todos os grupos de economia agrícola. É também de assinalar que o primeiro dia do ano era considerado na China o dia do galo6 - o anunciador do nascer do sol - emblema do fogo e da ressurreição, nas antigas civilizações mediterrânicas.

Nos primeiros anos da Dinastia Chau (1222 (?) - 255 AC) o Ano Novo começava na actual 12a Lua. contudo, os calendários diferiam de Estado para Estado, pelo que, procurar estabelecer-se uma cronologia, é hoje extremamente difícil. Em 104 AC foi reformado o calendário na China, mas o calendário Gregoriano do Ocidente só foi adoptado em 1912, pelo Governo da República.

Depois da reforma do ano 104 AC, o dia de Ano Novo passou a coincidir com a 1a Lua Nova depois do Sol entrar na Constelação da Águia, o que corresponde a um período situado entre os nossos dias 21 de Janeiro e 20 de Fevereiro. A partir de 1912 o dia Ano Novo passou, tal como no Ocidente, a ser celebrado no dia 1 de Janeiro, mantendo-se, porém, a antiga data que o povo rural não poderia deixar de festejar, data que se trans-formou na actual Festa da Primavera, tal como havia acontecido na Europa com o nascimento do Entrudo.

Na China Imperial, segundo os Anais de Chau, o ano religioso começava na Primavera, envolvendo a sua celebração grandes cerimónias realizadas pelo Soberano, pelos Magistrados e pelo povo. Estas cerimónias constavam do culto do Céu, da Terra e dos Antepassados.

As interdições impostas pela estação invernal haviam findado, recomeçando os trabalhos nos campos. O próprio Imperador sacrificava a Séong Tai (o Soberano do Alto) sendo o dia preciso ditado pelos Antepassados através da adivinhação pela carapaça da tartaruga.7

A vítima era um touro de pelagem ruiva e chifres pequenos que, antes, fora escolhido pelo próprio Imperador.

Quando os homens-galos (kai ian) anunciavam nesse dia o nascer do sol, o Rei, que se mantivera 10 dias em abstinência, envergava o seu traje bordado com figurações do Sol e da Lua, colocava a tiara de 12 pendentes, e num carro decorado com símbolos representando 12 chamas e Dragões, aliados ao Sol e à Lua, dirigia-se ao terrapleno circular situado a sul da capital e destinado aos sacrifícios. Ali, com grande solenidade, ao som de instrumentos musicais, procedia então à imolação do touro sagrado.

Iniciava-se deste modo a nova estação, a Primavera, e com ela o retorno aos trabalhos agrícolas. Festas orgíacas entre o povo, dispersavam os jovens pelos campos. Havia alegria e repastos abundantes. Os aldeãos pincelavam, nessa altura, as ombreiras das portas das suas casas com o sangue das vítimas imoladas, para afastarem deste modo os malefícios e atraírem as graças do Alto no Ano Novo que então começava. Com o mesmo objectivo faziam estalar, pelo fogo, colmos de bambu seco.8

Tal como, no Ocidente, o Cristianismo transfor-mou as festas pagãs, adoptando-as, também na China o Confucionismo, no século III AC, logrou transformar as antigas celebrações orgíacas em festas de coesão fa-miliar e de veneração dos Antepassados. Assim, das an-tigas práticas de celebração do Ano Novo, chegaram até nós os papéis vermelhos, com ou sem dísticos congratulatórios pincelados, principalmente os 3 papéis rectangulares que se colam nos umbrais das portas das casas, a substituir, imitando-o, o sangue das vítimas imoladas e os panchões, os estalos da Índia, que atroam os ares durante três dias consecutivos, causando o gáudio das crianças e inundando o solo com o vermelho auspi-cioso dos seus envólucros rasgados pela pólvora, a substituir o ruído dos antigos colmos de bambu quei-mados. Manteve-se também, através dos séculos, a veneração do Céu e dos Antepassados, bem como a con-solidação da coesão familiar e social mediante práticas rituais domésticas e nos templos.

Outro costume que vem dos antigos tempos e que em Macau tem ainda numerosos cultores, é a oferta dos lâi si, o dinheiro da sorte, envolvido em saquinhos de papel vermelho que, não ostentavam os elementos simbólicos com que hoje auspiciosamente se decoram.

Há, ainda, que referir a troca de cartões de Boas Festas com frases eruditas e/ou simbólicas formulando votos de Ano Novo próspero e feliz. Se há quem defenda que esta é uma criação europeia, difundida pelos ingleses nos meados do século XIX, a verdade é que já muito antes os letrados chineses trocavam grandes cartões vermelhos. finamente pincelados com frases auspiciosas, acompanhando os presentes que a tradição manda, ainda, que se enviem, de que se receba só uma parte e que se retribuam, dentro do arcaico complexo cultural do dom e da reciprocidade9. Estes cartões evoluíram e, hibri-dando-se com aqueles que os ingleses introduziram mais tarde no oriente, deram as actuais formas mistas, que em Macau e em Hong Kong se mantêm, e onde os anti-gos valores simbólicos perduraram e são valorizados. É de notar que estes motivos simbólicos, apesar de bastante variados, correspondem geralmente às 3 felicidades mais ambicionadas: longa prole, promoção social e longa vida.

Não iremos alongar-nos descrevendo o que resta das antigas cerimónias da Abertura do Ano em Macau e dos seus manjares rituais em que se prima pela abundância, variedade e simbolismo. No entanto, há que referir que, desde a comida de abstinência aos pratos requintados que se lhe seguem, há ainda uma variegada gama de bolinholas, pevides, cogumelos, algas, rizomas e sementes de loto que, tal como as tangerinas, repro-duzem por homofonia frases que são votos muito aus-piciosos de Feliz Ano Novo. É que no Ano Novo todas as palavras, bem como todos os actos, devem ser cuida-dosamente seleccionados. Apenas se devem pronunciar palavras fastas e assumir atitudes auspiciosas.

O Ano Novo é traduzido também, ainda hoje, pelo arriscar da sorte no jogo, à maneira de augúrio de riqueza no ano que vai começar. Cruzam-se sorrisos de alegria entre muito ruído, aliado ao vermelhão que sai das casas e enche as ruas, espalhado pelo chão, pelo vestuário, e até pelos lábios pintados das crianças.

Neste dia, a renovação é obrigatória: nos trajes, nas casas, nas refeições, no próprio interromper do trabalho. É a renovação Cósmica espelhada na Terra.9 Esquecem-se as penas e os revezes. Troca-se o ano velho pela juventude do Ano Novo que é recebido com esfuziante alegria e saudado pelos votos que se permutam em cordiais saudações: Kong Hei Fat Choi, Kong Hei Fat Choi!

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

Chavanne, H. - Les Chinois, Tours,1845

Eliade, Mircea- O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. Col. Livros -Brasil. Col. Vida Cultural. Lisboa, s. d.

Gomes, L. G. - Festividades chinesas, Col. Notícias de Macau, Macau, 1954

Granet, M. - Légendes et Chansons de la Chine Anciènne,1° vol., Payot, 1945

Li Yan e Shiran - Chinese Mathematics, A concise History, Oxford, 1987

Maspero, H.- La ChineAntique, Paris, PUF, 1970

Tun Li-Ch'en - Annual Customs and Festivals, Hong Kong, Un. Press, 1965

NOTAS

1 Manuscrito de Francisco António Pereira da Silveira (1841-1872) - Espólio de José Feliciano Marques Pereira. Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Est. 9, Maço 2, Doc. 15.

2 Portugueses europeus mascarados.

3 No primeiro calendário romano atribuído a Rómulo, proveniente de Alba Long, o ano tinha 304 dias divididos por 10 meses. Na reforma atribuída a Numa o ano passou ater 12 meses e 355 dias. Para corrigir a diferença entre este ano e o ano solar intercalava-se de 2 em 2 anos um mês suplementar de 22/23 dias. Esta correcção não se revelou satisfatória e o calendário veio a sofrer sucessivas transformações. Júlio César em 46 AC reajustou o ano civil com o astronómico atribuindo 445 dias a esse mesmo ano e para os anos futuros adoptou um período de 365 dias e 6 horas (mais 11 minutos e 14 segundos do que a real duração da translação da terra). Com as 6 horas sobrantes criou-se o sistema de anos bissextos, que consistia em acrescentar-se um dia de 4 em 4 anos. O início do ano passou então de 1 de Março para 1 de Janeiro. A diferença de tempo acumulado ao longo de muitos anos apontou para a necessidade de novas reformas. Em 1582, depois de estudos aprofundados, Gregório XIII, pela Bula Inter gravissimas de 24 de Fevereiro, declarou uma nova correcção, daí surgindo o calendário Gregoriano, em substituição do Juliano.

4 As Saturnais rematavam, em Roma, o fim do ano que, antes da reforma do calendário de César, e desde os tempos mais remotos, terminava em Fevereiro/Março.

5 Granet, Marcel - Légendes et Chansons de la Chine Anciènne, 1° volume, Payot, s. d.

6 A primeira hora do dia, o primeiro mês lunar de cada ano e o primeiro ano de cada ciclo sexagenário correspondem ao signo do rato, um dos 12 animais do zodíaco chinês.

Há autores que atribuem a estes animais uma origem totémica, outros astronómica, havendo também quem admita uma introdução mais ou menos tardia dos seus nomes na China trazidos da Turquia ou da própria Mesopotâmia.

Uma lenda atribui a Buda a convocação de todos os animais, elegendo os 12 primeiros a chegar, para "patronos" dos 12 meses ou luas, dos grupos de 12 horas do dia e das sérias de 12 anos de cada ciclo sexagenário.

Outra lenda, que se admite ser mais antiga, atribui ao Imperador de Jade, o mítico Senhor do Alto da China Arcaica, a fixação de uma data na qual se lhe deveriam apresentar, no seu palácio, todos os animais para serem eleitos patronos dos 12 ramos terrestres por ordem de chegada.

O rato, muito astuto, viajou no dorso do boi que, por ser um animal forte, paciente e muito laborioso, caminhou de dia e de noite sendo, por isso, o primeiro a chegar perto do local da reunião. O rato antecipou-se-lhe, porém, saltando para o chão e correndo à sua frente. Foi assim o rato, e não o boi, quem chegou primeiro, tendo tido, por isso, este pequeno animal a honra de dar o seu nome à primeira hora do dia, ao primeiro mês lunar e ao primeiro ano de cada ciclo.

Surpreende que não apareça o gato neste grupo de animais míticos, selvagens e domésticos. Contudo, é de admitir que talvez o gato, de tradição sagrada no Antigo Egipto e no Médio oriente, não fosse conhecido na China do Norte, tal como sucedeu ao leão, que só mais tarde, com o advento do Budismo, entrou no pensamento simbólico chinês.

Admite-se, aliás, que este sistema astrológico é muito antigo na China, remontando ao semi-lendário Imperador Amarelo (c. 2637 AC).

Em Astrologia Chinesa, os 12 caules terrestres são, ainda, masculinos ou femininos, de acordo com os números ímpar ou par com os quais os animais correspondentes podem identificar-se: o boi, a cabra e o porco têm as patas fendidas e são, por isso, animais pares, o que equivale a fêmeas. O mesmo sucede com o galo e com a lebre, cujo lábio é fendido e ainda com a cobra de língua bífida. O rato, o cavalo, o tigre, o macaco, o dragão e o cão relacionam-se com os elementos ímpares e daí, com o elemento yeóng (masculino).

7 O dia deveria ser sin (8° dia do ciclo denário) do mês que precedia o equinócio primaveril. Estas datas variam em função dos calendários ainda não unifacados naquela altura. Como há três décadas por mês, 3 dias sin, daí a necessidade da adivinhação para determinar a data certa.

8 Maspero, HENRI- La Chine Antique, Paris, PUF, 1970, (1a ed. 1927), cit. textos antigos reunidos no século Vlll DC (pp.187/219) e Chavannes de la Giraudière, H. - Les Chinois, Tours, 1845.

9 Esta prática das ofertas recíprocas parece ter sido, aliás, também comum, entre os egípcios e frequentes em Roma onde a Arqueologia revelou lâmpadas de azeite com votos de feliz Ano Novo gravados, a par da figura da Vitória e da dupla cara de Janus.

* Doutourada pela F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa; professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas (Departamento de Antropologia). Membro de várias instituições internacionais, v. g. a "Internacional Association of Antropology".

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