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MACAU E O "QUADRO DOS TRIBUTÁRIOS" DO IMPERADOR QIANLONG

Choi San *

Panorama do Rio de Janeiro. Sunqua Desde a ponta da armação até à entrada da Barra Óleo sobre tela. ass.. s. tl. [ca. 1830), 40X 124 cm Colecção Paulo Fontainha Gcycr, Rio de Janeiro Foto: Dr. Paulo Berger

Em Agosto de 1991, tive a oportunidade de apreciar, no Museu do Palácio Imperial de Taipé, o origi-nal do "Quadro dos Tributários", feito durante o reinado do imperador Qianlong. Sobre esta obra grandiosa conservada como preciosidade pelo imperador, eu só tinha ouvido louvores e admiração dos professores daAcademia de Belas-Artes quando fui estudante na universidade, sem ter oportunidade de vê-lo com os próprios olhos. Desta vez, tendo apreciado o original, com o seu colorido, no re-ferido Museu, passei a compreender o valor histórico do "Quadro" e o seu prestígio artístico.

CONTEÚDO, DIMENSÃO E VERSÕES DO"QUADRO"

O "Quadro dos Tributários" constitui uma obra de pintura acompanhada de legendas e inscrições que apre-sentam os hábitos, costumes e trajos das minorias nacionais chinesas e dos povos dos países estrangeiros, asiáticos e europeus. Por "Quadro dos Tributários" entende-se o qua-dro completo das minorias nacionais e dos povos estrangeiros que ofereciam tributos à Corte da Dinastia Qing. Dividido em 4 partes, com 301 pinturas onde aparecem 602 figuras humanas, o "Quadro" mede 64,34 metros, constituindo uma obra raramente vista na história chinesa das Belas-Artes. A primeira parte, com 70 pinturas, regista as figuras dos estrangeiros, tanto orientais como ocidentais, e dos reinos vizinhos súbditos do Império Qing; a segunda parte, com 61 pinturas, descreve as minorias nacionais do Nordeste do País e das Províncias de Hunan, Fujian, Guangdong e Guangxi; na terceira parte, com 92 pinturas, aparecem as figuras das minorias nacionais das Províncias de Gansu e Sechuan, e na quarta, com 78 pinturas, as de Yunan e Guizhou. Ao longo da história, o original do "Quadro" foi deslocado várias vezes e muito copiado ou reimprimido. Hoje, existem três tipos principais:

1. "Quadro dos Tributários", conservado no Museu do Palácio Imperial de Taipé (o original colorido);

2. "Quadro dos Tributários da Corte Imperial", cópia manual feita pela Biblioteca Wen Yuan Ge segundo os "Livros Completos dos Quatro Tesouros compilado, por Ordem Imperial";1

3. "Quadro dos Tributários da Corte Imperial feita pela Corte Qing", a preto e branco, reimprimido pela Biblioteca Wu Ying Dian).

Dos três tipos acima referidos, o mais precioso é o do "Quadro dos Tributários" conservado pelo Museu do Palácio Imperial de Taipé, pois constitui o quadro origi-nal, colorido. As duas restantes são cópias feitas à mão ou reimpressas segundo o original, mas diferenciam-se tanto na divisão das partes como nas próprias figuras e legendas, e nas inscrições que as acompanham. À segunda e à terceira versões não faltam descuidos, omissões e falhas ocorridas no processo de reprodução. Por isso, ao estudar o "Quadro", deve-se tomar como base o original, hoje no Museu do Palácio Imperial de Taipé. Caso contrário, poderiam surgir confusões académicas.

"QUADRO DOS TRIBUTÁRIOS" E O IMPERADOR QIANLONG

A criação do "Quadro dos Tributários" teve como fundo histórico os "reinados prósperos de Kangxi a Qianlong" que compreendem os mais de 100 anos em que estiveram no trono os imperadores Kangxi, Yongzheng e Qianlong, ou seja, entre meados do século XVII e fins do século XVIII. A Dinastia feudal Qing encontrava-se então no auge do poder, muito próspera nos terrenos político, económico, militar e cultural.

Com suas poderosas forças militares, os impe-radores Kangxi, Yongzheng e Qianlong conseguiram a unificação de todas as nacionalidades chinesas e, con-soante as condições de cada uma delas, adoptaram dife-rentes formas de domínio: o sistema de Jun Fu 2 no Nordeste e Noroeste; o sistema de Mengs e Bandeiras 3 nas Mongólias Interior e Exterior; o sistema de Keshias 4 no Tibete e a instalação de Karons5 e postos de correio ao longo da fronteira. Dessa forma, a inédita conso-lidação e desenvolvimento do País fez surgir uma situa-ção de unidade, prosperidade e poderio, assim como o encontro e intercâmbio cultural entre as diversas nacio-nalidades do interior e as das regiões fronteiriças.

Os imperadores Kangxi e Qianlong davam grande importância aos sábios e talentosos missionários ocidentais, aprendendo deles conhecimentos científicos e culturais do Ocidente e nomeando-os como funcio-nários de diversos níveis no departamento de Astrono-mia e Calendário, no gabinete dos Ministérios e até na própria Corte. O interesse de ambos os imperadores pela cultura ocidental facilitou a entrada na China da Astronomia, Geografia, Matemática, Belas-Artes, Música, Medicina, Mecânica, fabrico de canhões e outros êxitos do Ocidente. Isto deu novo dinamismo e vitalidade à civilização chinesa: promoveram-se e pros-peraram a cultura e as Artes na China e levou-se o povo chinês, por longo tempo isolado, a olhar para o mundo.

Tendo subido ao trono com 25 anos, Qianlong foi imperador durante 61 anos (1735-1796) e faleceu aos 89 anos de idade, sendo o imperador de maior longe-vidade na história chinesa. Ao longo da vida, muito rica, o sábio e talentoso imperador Qianlong dominava perfeitamente os quatro compêndios6 e tinha finíssima formação no que diz respeito ao Guquin (um antigo instrumento musical de cordas), xadrez, caligrafia e pin-tura. Era um apaixonado das belas-artes e alimentava profundos sentimentos de amizade com muitos pintores.

Após a subida ao trono, Qianlong recrutou pintores chineses e estrangeiros para trabalhar na Corte, concedendo-lhes elevada remuneração e diversos pri-vilégios, dinamizando e diversificando assim as actividades da criação de pintura no Palácio Imperial.

O "Quadros dos Tributários" foi concebido e preparado sobre este fundo histórico. No dia primeiro de Janeiro (segundo o calendário lunar chinês) do 16° ano do Reino de Qianlong (1751 da nossa era), saiu a seguinte ordem do imperador:

"O erudito de primeira categoria e ministro honrado de fidelidade e valentia, Fu Heng, acata com todo o respeito e transmite a seguinte ordem de Sua Majestade o Imperador: a nossa grande dinastia unificou todo o território nacional, as diversas nacionalidades do País e os diversos países estran-geiros prestam obediência e aceitam a regulamentação da Corte. Eles são diferentes uns dos outros nos trajos, chapéus e até nas próprias feições. Ordeno aos governadores das pro-víncias fronteiriças que desenhem as figuras, vestuário e objectos de ornamento dos Miao, Yao, Li, Zhuang e outras nacionalidades a eles subordinadas e dos indi-víduos estrangeiros, entregando os desenhos feitos ao Jun Ji Chu7 da Corte e este, juntando os desenhos, entre-gue-os ao Imperador, para mostrar o grandioso pano-rama da tributação das minorias nacionais e dos países estrangeiros. Os governadores respectivos podem dese-nhar e escrever de passagem, quando forem às zonas fronteiriças em missão de trabalho, sem precisarem de enviar pessoas especialmente para tratar deste assunto. Esta ordem pode ser transmitida às localidades quando estas vierem fazer relatório à Corte. Ordem do Imperador".8

Recebida a ordem de Qianlong, os governadores das diversas localidades entraram imediatamente em acção. O governador da Província de Sechuan, Celeng, desenhou imediatamente 24 pinturas sobre a minoria Miao, cuja zona ele havia inspeccionado, e outras mino-rias nacionais cujos representantes ele havia recebido; juntou a cada pintura as notas e explicações quanto aos trajos, hábitos e costumes, e entregou-as ao Jun Ji Chu, para as fazer chegar ao Imperador. No dia 13 de Agosto segundo o calendário lunar chinês, isto é, dois meses depois, Celeng recebeu "dois modelos das pinturas sobre as minorias nacionais e os estrangeiros", enviados pelo Jun Ji Chu. Este ordenou-lhe que voltasse a desenhar as minorias nacionais sob sua jurisdição, assim como os estrangeiros, "para entregar ao Jun Ji Chu, e este entregar ao Imperador, a fim de mostrar o grandioso panorama da tributação".9

Disso tudo se depreende que a criação do "Qua-dro dos Tributários" foi ordenada e orientada pessoal-mente pelo Imperador Qianlong, e organizada e ac-cionada concretamente pelo Ministro Fu Heng e o Jun Ji Chu.

De acordo com a ordem do Imperador, recebida e transmitida pelo Ministro Fu Heng, e o relatório feito pelo governador da Província de Sechuan, Celeng, ao Imperador, pode-se afirmar que os preparativos da criação do "Quadros dos Tributários" tiveram início no 16° ano do reinado de Qianlong, isto é, em 1751 da nossa era. Após ampla recolha de materiais, tanto de desenho como de escrita, dez anos depois, isto é, no 26° ano do reinado de Qianlong (1760), foram concluídas as primeiras 60 pinturas da primeira parte. Em Julho do mesmo ano, o Imperador Qianlong escreveu, de próprio punho, a seguinte poesia em manchu e chinês no início da primeira parte do "Quadro":

"A sombra do Império beneficia os quatro mares, todos os países vizinhos oferecem tributos à Grande Dinastia Qing que dá tranquilidade a todo o mundo.

Com a unificação da escrita e da distância entre as duas rodas do carro, quem é que se rebela?

Apesar das diferenças de botinas, chapéus e feições, todos são íntimos um do outro.

Os descendentes da antiquíssima nacionalidade de Fang Feng têm vindo aqui.

Sabe-se que as gerações posteriores dos lendários Gan Chou e Lu Wang já são hóspedes da Corte.

Na seda de Tu Shan do Reino Zhou escrevem-se os méritos e proezas milenares,

Imita-se o Rei e os ministros do Reino Shan que não cessavam de aperfeiçoar a moral em busca da Felicidade.

Com a Lei, pretende-se administrar o Estado, em vez de recuperar o passado,

A sabedoria não nos impede de aprender dos ancestrais.

O primeiro-ministro da Dinastia Tang deve ser exemplo,

O escol dos pintores da Academia de Belas-Artes desenha a grande paisagem.

Como peixes do Oeste e pássaros do Leste homenageiam o palácio celestial,

As minorias nacionais do Norte e do Sul reúnem-se no dia festivo.

As pinturas não visam a elogiar a Corte Imperial,

Visam, sim, a tranquilizar, com todo o empenho, a situação tanto dentro como fora do país."10

MACAU E O "QUADROS DOS TRIBUTÁRIOS"

Naquela altura, Macau era a única cidade na China aberta ao exterior; por isso, muitos dos materiais, tanto de desenho como de escrita, da primeira parte do "Quadros dos Tributários", vieram de Macau. Os tra-balhos da criação do "Quadro dos Tributários" tiveram início no 16° ano de Chien Lung (1751) quando Iam Kuong-Iam e Tcheong Ü-Lam tinham concluído o livro "Ou Mun Kei Leok"11 e escreviam o prefácio. Eis por que o "Quadro dos Tributários" citou grande número de materiais do "Ou Mun Kei Leok" e, em certas partes, citou parágrafos inteiros.

Comparando o "Quadros dos Tributários" e o "Ou Mun Kei Leok", o autor do presente ensaio des-cobriu que as inscrições do "Quadro" sobre Sião (Tailândia), Léquias, Atlântico (países europeus), Itália, Escravos pretos diabos dos países do Atlântico, Frangi (Portugal), Monges e monjas dos países atlânticos (pa-dres e freiras europeus), Estrangeiros do Pequeno Atlân-tico (portugueses de Goa), Inglaterra, Japão, Holanda, Filipinas, Brunei e Java, são semelhantes às do "Ou Mun Kei Leok", sendo algumas partes parcial ou integral-mente copiadas. Citamos como exemplo a inscrição do "Quadros dos Tributários" sobre os "Escravos pretos diabos dos países do Atlântico" (países europeus, nomeadamente Portugal):

Os escravos pretos diabos dos países atlânticos. "Os escravos pretos diabos que os estrangeiros empre-gavam eram conhecidos como escravos de Kuan Lan no tempo da Dinastia Tang. Na História da Dinastia Ming, os escravos que os holandeses empregavam chamam-se "diabos corvos". Nasceram todos em ilhas que ficam fora da China. Quando chegam, ao princípio, dão-lhes comida "fogo", mas durante dias sucessivos; ficam com diarreia. Chama-se a isso "mudança de intestinos". Às vezes morrem; porém, os que sobrevivem podem ser criados durante muito tempo. O corpo deles é inteiramente negro como a laca. Os seus lábios são vermelhos e os dentes brancos. Usam chapéu vermelho de feltro e camisas curtas de cores misturadas, sempre com um pau na mão. As mulheres usam panos coloridos no pescoço, deixam decotar-se, vestem saias curtas em vez de calças, usam pulseiras tanto nas mãos como nos pés. Homens e mulheres usam sapatos pretos de couro para facilitar o andar. Os estrangeiros - homens e mulheres - sentam-se misturados uns com os outros e os escravos negros servem-lhes a comida. Lançam os sobejos num recipiente parecido com uma manjedoura. Os escravos, quer homens quer mulheres, tiram-nos então com a mão para os comerem. As casas dos estran-geiros têm vários andares de residência. Os escravos negros vivem no pavimento inferior. Se o patrão detesta um escravo, encarcera-o durante toda a vida, sem deixá-lo casar, para impedir a sua proliferação".12

O autor descobriu que esta inscrição composta de 173 caracteres chineses da pintura "Escravos pretos diabos", pertencente à primeira parte do "Quadros dos Tributários", foi quase inteiramente copiada do livro "Ou Mun Kei Leok", revisto, anotado e mais tarde edi-tado pelo Instituto Cultural de Macau. As notas do "Qua-dro" sobre padres e freiras estrangeiros - com 199 caracteres chineses - foram extraídas também do "Ou Mun Kei Leok". Dos 192 caracteres chineses da nota sobre os "países atlânticos", 172 foram extraídos do mesmo livro. Além disso, a nota sobre a Holanda utilizou 88 caracteres, a sobre as Léquias usou 69, a sobre o Sião 65, e a sobre as Filipinas, 59.

O livro "Ou Mun Kei Leok" também foi fonte de materiais de ilustração do "Quadros dos Tributários". Com base nas figuras do livro, tais como "Um Estrangeiro", "Uma Estrangeira" e "Um Jesuíta", os pin-tores da Corte Imperial fizeram adaptações e acres-centaram cores, criando assim os tipos dos homens e mulheres dos países atlânticos e dos padres dos mesmos.

As comparações e averiguações acima feitas demonstram que a redacção e edição do livro "Ou Mun Kei Leok" forneceram ricos e bem seguros materiais de escrita e figuras ao "Quadros dos Tributários". Não se pode negligenciar a ajuda que Macau prestou à conclu-são de primeira parte do "Quadros dos Tributários", no 26° ano do Imperador Qianlong.

A primeira parte do Quadro refere-se, em quatro lugares, às relações de Macau com o padre Mateus Ricci, os italianos, os portugueses e os holandeses:13

1. Estrangeiros dos países do Atlântico. "Durante o reinado de Yong Le da Dinastia Ming (1403-1425), Calicute, Ormuz e várias outras dezenas de países do Atlântico vieram oferecer tributo, e depois a maior parte deles não voltaram a fazê-lo. Durante o reinado de Wan Li (1573-1620), chegou à China Mateus Ricci, por via marítima, e dizia-se italiano. No 6° ano da nossa Dinastia de Kangxi (1667), foram recuperadas as relações com o exterior. No 3° ano de Yongzheng (1725), o Papa veio oferecer tributo à China. No 5° ano (1727), Portu-gal veio oferecer tributo, e no 18° ano de Qianlong (1753), voltou à China outra vez. Estas praticam o catolicismo, são hábeis no comércio, sendo muitos deles ricos. São de pele branca, de nariz alto, os olhos pro-fundos de cor verde-escura, e os cabelos curtos; porém costumam usar cabeleira e chapéu de feltro preto com três bicos, vestem fato curto, botinas de couro e calças apertadamente atadas nos joelhos como meias. As mulheres enrolam os cabelos no alto da cabeça, usam objectos de ouro, pérolas e pedras preciosas ao pescoço. O vestuário divide-se em duas partes: superior e infe-rior. Usam uma seda ou bordado a cobrir as costas. Cha-ma-se Jin Man (xaile). O costume deles é que a mulher é mais respeitada que o homem. Quando uma rapariga e um rapaz gostam um do outro, casam-se. O dirigente dos estrangeiros governa todos os estrangeiros que ha-bitam Macau, do Distrito de Heong San, e paga o foro de terra todos os anos."

2. Monges e Freiras dos países do Atlântico. "Os países do Atlântico tem dois reis, um civil e o outro religioso. Os comerciantes pertencem ao civil e os mon-ges ao religioso. Eles são crentes em Cristo e homena-geiam o seu retrato. Quando têm assuntos ou casos im-portantes a resolver, pedem solução à Igreja. O rei reli-gioso rapa os cabelos mas deixa crescer a barba, usa chapéu redondo azul e roupa preta. Quando sai, é guar-dado por luxuoso guarda-sol e estandartes, e rodeado por pequenos monges. Ao vê-lo, os homens e mulheres ajoelham-se e tocam os pés dele, e só se levantam depois dele ter passado. Os que dominam a teoria religiosa e visitaram a Capital passam a usar bigode. Eles sabem a língua chinesa, fabricam instrumentos de medida.

As freiras usam um véu branco na cabeça, ves-tido e xaile pretos, cintas e sapatos de couro. Os estran-geiros respeitam mais as freiras do que os monges. Quando uma mulher se torna freira, toda a família passa a ser da Igreja. Se algum membro da família cometer um crime, basta uma carta escrita pela freira para que ele seja perdoado, mas antes disso há-de doar uma gran-de quantia de ouro como oferenda. Quando uma mulher ingressa no convento, jamais o deixa. Em Macau, os monges moram em São Paulo e noutros templos, e as freiras moram em diferentes conventos, todos com disciplinas bastante rigorosas".

3. Estrangeiros franceses. "Faranci é também chamada Franci, isto é, a Frangi nos tempos da Dinastia Ming.14 Na antiguidade, não tinha nenhum contacto com a China. Em meados do reinado de Zhen De (1506-1522), da Dinastia Ming, enviou diplomatas à China para serem reconhecidos e oferecer tributo, mas não conseguiram. Depois, penetraram ilegalmente em Ma-cau, do Distrito de Heong San. Eles eram valentes e sabiam manejar armas de fogo, tomaram várias vezes Luzon, nas Filipinas, disputavam territórios aos estrangeiros de cabelos vermelhos (holandeses), e dominavam hegemonicamente os interesses nos mares adjacentes de Fujian e Cantão. Os que praticavam o budismo passavam depois a praticar o catolicismo, pelo que o mercado de Macau foi muito facilmente tomado pelos países do Atlântico. Os francis residentes em Lu-zon, Filipinas acabam de disputar com a Inglaterra os espaços pertencentes aos estrangeiros de cabelos vermelhos (holandeses), sendo os francis menos e mais fracos.15 Os estrangeiros cobrem a cabeça com lenço branco e chapéu preto de feltro; cumprimentam-se tirando o chapéu. As suas roupas e ornamentos são mais ou menos semelhantes aos dos países do Atlântico, de Goa e das Filipinas. Os trajes das mulheres francis são semelhantes aos da Holanda e outros países".

4. Estrangeiros holandeses. "Os holandeses também são chamados estrangeiros de cabelos ver-melhos. Seu país situa-se perto de Franci. Durante os reinado de Wan Li, da Dinastia Ming, eles pilotavam frequentemente grandes barcos e ancoravam em Macau do Distrito de Heong San para oferecer tributo e comer-ciar, sem conseguir os seus objectivos. Pouco depois disso, entraram em Fu Jian e apoderaram-se da Ilha Pong Hu e invadiram a Formosa. No 10° ano da nossa Dinastia de Shun Zhi (1653), começaram a oferecer tributo via Cantão. Nos primeiros anos de Kangxi, os holandeses, por seus méritos ao ajudar nossas poderosas tropas na conquista da Formosa, não cessaram de oferecer tributo, mas o canal do tributo passou a ser Fujian. Estes estran-geiros usam chapéus pretos de feltro e, ao encontrarem-se, cumprimentam-se tirando o chapéu e abraçando-se. Eles vestem roupas bordadas, usam espada e chicote. As mulheres decotam-se, usam saia comprida e sapatos de couro vermelhos, com manto nos ombros. Além disso, há ainda Java que é a Capital da terra no mar do Sul e também se chama Rui que significa sorte.

Segundo as quatro descrições acima, podemos saber que os autores do "Quadros dos Tributários" reali-zaram minuciosa pesquisa e descreveram vivamente as feições, o comportamento, o temperamento, os vestuá-rios e ornamentos, os hábitos e costumes e as cerimónias religiosas dos ocidentais residentes em Macau e dos holandeses que haviam invadido Macau. Por exemplo, os estrangeiros dos países do Atlântico "... praticam o catolicismo, são hábeis no comércio, sendo muitos deles ricos. São de pele branca, de nariz alto, os olhos profun-dos de cor verde-escura...". Estas frases, junto com as pinturas, parecem uma fotografia das figuras. Isto demonstra que, com base no livro "Ou Mun Kei Leok", os chineses deram um passo adiante no conhecimento do Ocidente neste "Quadros dos Tributários". Ao tratar o delicado problema das relações de Macau com o mun-do ocidental, as inscrições de "Quadro" correspondem aproximadamente à história e à situação concreta de então. Isto comprova que em meados do século XVIII, os governantes da Dinastia Qing compreendiam razoavelmente o estatuto especial de Macau e o mundo ocidental, sendo muito diferentes dos ignorantes impe-radores e altas figuras da Corte dos fins da Dinastia Ming. Aos olhos do Imperador Qianlong, Macau era uma porta ou uma janela para conhecer e estudar os países estrangeiros, um canal para introduzir as ciências e tecnologias avançadas do Ocidente, e um importante porto do comércio entre o Oriente e o Ocidente. Além disso, com vivas e detalhadas descrições de palavras e pinturas, o "Quadros dos Tributários" confirmou o esta-tuto internacional de Macau e a sua forma de arrenda-mento, em meados do século XVIII.

VALOR HISTÓRICO MÉRITO ARTÍSTICO E AUTORES

O "Quadros dos Tributários" de Qianlong constitui o primeiro longo quadro seriado na história da civilização chinesa, que, com abundantes descrições e desenhos, apresenta minuciosamente os povos estran-geiros e as minorias nacionais do próprio país, assim como um precioso material histórico para quem estude Macau e as relações entre a China e outros países no Século XVIII. É do conhecimento de todos que, devido ao prolongado isolamento das dinastias feudais, eram extremamente precários os materiais históricos sobre Macau e os estrangeiros dos Séculos XVIII e XIX, e nos parcos dados existentes percebem-se inúmeros erros e até absurdos. Os vaidosos e arrogantes imperadores e ministros alimentavam incrível preconceito sobre os países ocidentais e os seus povos, considerando outros países como "terras rudes" e "países de selvagens". Em alguns documentos, os ocidentais eram descritos até como "diabos" e "canibais". E o "Quadros dos Tributá-rios" de Qianlong passou a alterar a tradicional e ca-duca concepção, registando e descrevendo os estran-geiros sob um prisma objectivo. Trata-se, sem dúvida, de um importante progresso, de um marco na documen-tação histórica da China. Apesar de demonstrar certo complexo de superioridade de "País Celestial" e da exis-tência de alguns erros e falhas, como por exemplo confundir Portugal, Espanha e França, tratar a Inglaterra e a Suécia como países dependentes da Holanda etc., o "Quadros dos Tributários" de Qianlong" deixou, para as gerações posteriores, materiais históricos bastante autênticos e seguros (A). Hoje, em nossos estudos da História de Macau e da História das relações da China com o exterior, as duas grandiosas obras históricas - o "Quadros dos Tributários" e o "Ou Mun Kei Leok" que se completam e se comprovam um ao outro - revestem-se de igual valor e importância.

A criação do "Quadros dos Tributários" ocorreu no período do mais próspero desenvolvimento da pintura tradicional chinesa - a do Festival da Primavera. Jus-tamente nesse período, a pintura do Festival da Primave-ra de Yan Liu Qing, de Tianzin, na Província de Hebei, passou por inovações e mais inovações, sendo as suas pinturas xilográficas dessa espécie vendidas em todo o país, exercendo grande influência; a de Tao Hua Wu, da cidade de Su Zhou, na Província de Jiansu, entrou em sua fase-cume; a de Yan Jia Fu, do Distrito de Wei, na Província de Shangdong, vinha a desenvolver-se rapi-damente. Tudo isso marcou a maturidade da pintura chinesa do Festival da Primavera. Ao mesmo tempo, os missionários e pintores ocidentais Giuseppe Castiglione, Ignace Sichelbarth e Denis Attiret assumiram funções na Corte da Dinastia Qing. Desde 1737, o Imperador Qianlong passou a viver frequentemente no Palácio Yuan Ming Yuan, ordenando a J. Denis Attiret e aos pintores chineses Tang Dai, Sun You, Shen Yuan, Zhan Wan Ban e Ding Guan Peng que colaborassem para desenhar um quadro do referido Palácio, dando assim um exemplo sem precedentes da colaboração de pintores chineses e ocidentais na criação de um quadro de grande envergadura. Desde então, a concepção e as técnicas de Belas-Artes do Ocidente começaram a penetrar na cria-tividade da pintura chinesa.

Influenciado pela pintura tradicional chinesa do Festival da Primavera e pela pintura ocidental, o "Qua-dros dos Tributários", em seu estilo, dá maior importância ao uso das cores, aos detalhes e ao espírito das figuras, libertando a pintura tradicional chinesa da técnica rígida e dogmática. No "Quadro", a proporção das pessoas é correcta, com figuras tão parecidas com a realidade como a pintura do natural. Merece especial atenção o facto de que assimilou a técnica do uso das cores, dando origem a uma nova fisionomia da pintura tradicional. Apesar de continuar a usar o papel "Xuan" e as tintas tradicionais, o "Quadros dos Tributários" aceitou evidentemente a concepção de cores da pintura ocidental, deixando de se limitar a cuidar apenas das linhas, tendo tanto o espírito de vida da pintura chinesa do Festival da Primavera como a graça minuciosa do realismo típico do pintor ocidental Giuseppe Castiglione. Com 64,34 metros de comprimento, 301 pinturas e 602 figuras humanas, o "Quadros dos Tributários" consti-tui uma obra de belas-artes sem paralelo no século XVIII, uma preciosidade da antropologia, do folclore e do "genre painting", assim como um milagre na história da pintura do mundo. Quanto ao êxito do "Quadros dos Tributários" na arte, deve fazer-se uma investigação especial para o estudar mais profundamente.

Quem foi (ou foram) o autor (ou os autores) do "Quadros dos Tributários"? De acordo com os registos do Museu do Palácio Imperial de Taipé, foi o pintor Xie Sui; por isso lhe puseram no Museu o título de "Quadros dos Tributários de Xie Sui". Para mim, autor do presente ensaio, o título não está correcto. O Quadro foi uma obra colectiva da Academia de Belas-Artes e do Jun Ji Chu da Corte, feita sob a orientação pessoal do Imperador Chien Lung.

Da recolha dos materiais de referência em dife-rentes localidades do País e esboços de pintura, à criação da pintura definitiva e ao uso das cores, trabalharam muitos literatos e pintores. Segundo as inscrições do "Quadros dos Tributários da Corte Imperial Qing", reimprimido pela Biblioteca Wu Ying Dian, o pessoal que trabalhou nesta reprodução da obra dividia-se em sete secções com 28 pessoas, 4 das quais eram pintores: Xie Sui, Men Qing An, Dai Yu Ji e Sun Da Ru. Isso leva o autor deste artigo a julgar que Xie Sui não passava de um dos vários pintores da obra original colorida. Além disso, o "Quadro" compreende inscrições do Imperador Qianlong e notas escritas em chinês e manchu, além das próprias pinturas. Acatando a ordem do Imperador, a Academia pintava; compilando materiais oferecidos pelas diversas localidades, o Ju Ji Chu redigia as notas que, ratificadas pelo Imperador, eram copiadas pelos calígrafos no Quadro. Uma obra grandiosa como esta não pode ser feita por uma só pessoa. No Museu do Palácio Imperial de Taipé, o autor do presente artigo observou e estudou demoradamente o "Quadro", à luz eléctrica, e percebeu certa diferença nos traços e nas cores, entre as duas primeiras e as duas últimas partes, de maneira que o "Quadro" não pôde ser desenhado exclusivamente por Xie Sui. Eis porque considera o título "Quadros dos Tributários de Qianlong" mais correcto que o do "Quadros dos Tributários de Xie Sui".

UMA PROPOSTA

O "Quadros dos Tributários de Qianlong" foi produto do intercâmbio cultural entre a China e o Ocidente. A sua primeira parte, em particular, está estreitamente ligada a Macau, e constitui importante documento no estudo da história, cultura e folclore de Macau e das relações entre a China e Portugal (B). Para promover o estudo académico de Macau, facilitar aos cidadãos compreender melhor a brilhante história da sua cidade e enriquecer o Arquivo Histórico de Macau, proponho que este procure uma cópia do "Quadros dos Tributários" de Qianlong (C).

NOTAS

(A) Estes erros ou falhas procederam principalmente dos erros da História da Dinastia Ming. Além disso, o problema linguístico constitui outra importante causa, pois os chineses então residentes em Macau eram, na sua maioria, pescadores de Guangdong e Fujian e os governadores Iam Kuong Iam e Tcheong Ü Lam, enviados pela Corte de Pequim, mandarins que falavam respectivamente dialectos de Jiangsu e Anhui. Os dialectos chineses dessas 4 províncias, aos quais se acrescentavam o português, o italiano, o inglês e o francês dos ocidentais então residentes em Macau, formavam uma confusão linguística que causava inevitavelmente muitas incompreensões e erros.

(B) Devido à imensidade dos tesouros que conserva, o Museu do Palácio Imperial de Taipé tem de expor os seus objectos periodicamente por turnos, de forma que o "Quadro dos Tributários" raramente é exposto ao público.

(C) De forma que mais e mais pessoas possam apreciá-lo.

1 "Livros Completos dos Quatro Tesouros compilados por Ordem Imperial": uma grandiosa obra compilada a partir do 38° ano do reinado de Qianlong (1773) e concluída 10 anos depois, contendo 3.503 espécies divididas em 79.337 volumes. As suas 7 cópias, guardadas em 7 bibliotecas nacionais, foram total ou parcialmente destruídas durante as guerras. Só depois de 1983 é que a Formosa e o Continente editaram de novo tais Livros Completos.

2 Sistema de "Jun Fu": a tradução literal seria "governo militar". Na Dinastia Cheng, havia 5 "governos militares" dirigidos por generais que administravam os assuntos, tanto militares como civis das regiões equivalentes à província: a de Sheng Jin (atual Liao Ning), a de Ji Lin e a Hei Long Jiang, do Nordeste do País, a de Ili (ao Norte e Sul das montanhas de Tianshan) e a de Uriyasudaui, do Noroeste.

3 Sistema de "Mengs" e "Bandeiras": sistema que a corte da Dinastia Qing utilizava para dominar os mongóis, estabelecido entre 1624 e 1771 com base no sistema social já existente na Mongólia. A "Bandeira" constituía uma unidade básica que acumulava as funções militar, administrativa e judi-cial. Várias "Bandeiras" formavam uma "Meng".

4 "Keshia" significa, em língua tibetana, "órgão que decreta ordens".

5 "Karom": posto de sentinela. Durante o seu reinado, Chien Lung pulverizou as rebeliões de Armursana, Grande Hecho e Pequeno Hecho, unificando toda a região do Sinjian. Em 1762. Chien Lung estabeleceu "Karons" no Sinjiang para fortalecer o seu domínio da região.

6 Isto é, as quatro espécies de livros: Jing, Shi, Zi e Ji. "Jing" compreende as obras clássicas do Confucionismo: "Shi", obras de história; "Zi", obras das diversas escolas académicas e do Tauismo, inclusive de filosofia, política, ciência e tecnologia, e artes; "Ji", obras de prosa, poesia, ópera e crítica literária.

7 "Jun Ji Chu", na tradução literal seria "Departamento de Assuntos Militares". Na Dinastia Qing, constituía um organismo que assistia o imperador na administração, sendo uma espécie de "secretariado".

8 Vide a Primeira Parte do "Quadros dos Tributários" da Corte Imperial Qing", na Série de "História" (Shi) dos "Livros Completos dos Quatro Tesouros compilados por Ordem Impe-rial".

9 Vide "Revisão e Notação das Inscrições em Manchu", de Xie Sui, página 12, editado pelo Museu do Palácio Imperial de Taipé.

10 Vide a Primeira Parte do "Quadros dos Tributários" reimpresso pela Biblioteca Wu Ying Dian.

11 A versão em português do livro "Ou Mun Kei Leok" (Monografia de Macau), de Iam Kuong Iam e Tcheong Ü Lam, foi feita por Luís G. Gomes e editada em 1950 pela Imprensa Nacional de Macau.

12O nome de diabos atribuído, em geral, aos pretos que vinham como escravos para Macau, sublinha a impressão que decerto faziam aos chineses nativos.

13 Vide a Primeira Parte do "Quadros dos Tributários", conservado no Museu Imperial de Taipé.

14 Na História da Dinastia Ming, Frangi significa Portu-gal e (ou) Espanha.

15 Vê-se aqui a confusão que se fazia entre Portugal e Espanha.

* Du Xin, escritor e pintor residente em Macau. Graduado (1966) na Escola de Cinema de Pequim, tem currículo cinematográfico como produtor, realizador e guionista. Foi jornalista do jornal "Va Kio" e coordenador da "Revista de Cultura" (edição em chinês). Tem publicado crítica de arte e investigações sobre história de Macau. Responsável pelo núcleo editorial das edições em chinês do ICM.

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