Macau-Brasil

ENTRE MACAU E O BRASIL ALDA DE CARVALHO ÂNGELO ESCRITORA MACAENSE

Ana Maria Costa Lopes*

Tendo de falar de alguns aspectos da realidade macaense e da urgente necessidade da reconstituição dos materiais que a constituem, veio-nos à memória o Dragão, um dos mais significativos animais simbólicos da cultura chinesa, por aquilo que ele representa. Não sendo um monstro, como na imaginação medieval ocidental, ele é, em terras de Oriente, o génio da bondade e da força e o símbolo de mudança. Escondendo-se nas cavernas profundas da montanha ou do mar, metamorseando-se através das suas "nove aparências", visível ou invisível, "a maior criatura do mundo" é também temida e reverenciada...

As expressões culturais macaenses não param de nos surpreender, tal como o Dragão que ora se oculta ora se revela colorido e misterioso aos nossos inexperientes olhares. Também elas, como o monstro, se elevam no Céu, ou repousam nas profundezas das águas. Nos gestos que as incarnam, descortinam-se partes do seu magnífico e brilhante corpo, ainda por revelar. Por isso, intentamos dálas a conhecer. O tempo urge. Muito em breve poderão mergulhar para sempre nas águas sépia do Rio das Pérolas ou então desaparecer no céu como o fumo dos panchões do Ano Novo.

Partindo desta imagem, podemos reflectir sobre o estado actual da cultura macaense. Durante muito tempo, a recolha directa do seu património não existiu e, quando começou, não foi feita sem dificuldades. Marques Pereira, entre outros, testemunha isso na revista que dirigiu, "Ta-Ssi-Yang-Kuo, Arquivos e Anais do Extremo-Oriente".1 Apesar de a situação se ter alterado desde então, como se pode constatar pelos estudos entretanto publicados e pelas investigações feitas em campos até há pouco tempo inexplorados, resta um longo caminho a fazer em Bibliotecas e colecções particulares, nacionais e estrangeiras. Apesar de a Bibliografia macaense2 ser um utilíssimo instrumento de trabalho, há ainda muito a fazer. É necessário inventariar e coligir documentos esparsos, organizar colectâneas críticas, reconstituir este património em vias de extinção. Como teremos ocasião de mostrar neste artigo, há sempre, no Oriente, algo por descobrir, segredos a desvendar.

Como foi revelado em trabalhos bibliográficos3 e de outra natureza, designadamente literária, não abundam, até ao século XIX, os materiais originais relativos à cultura macaense. Graciete Batalha, por exemplo, admira-se da escassez de obras de ficção. Afirma, por exemplo, não conhecer nenhum testemunho poético antes do século XIX.4

Entre as causas apontadas para este estado de coisas, apontam-se a insularidade, a difícil história da permanência portuguesa em Macau,5 a miscigenação variada, a língua e as "línguas faladas", as diversas culturas e modelos culturais, alguns deles tão diferentes como o português e o chinês, sem excluir outros, já que muitos povos provindos da Índia, da Malásia, de Timor, do Japão, de África, tiveram guarida neste Território.

Tirar a ganga deste cadinho de culturas e etnias ou, se se preferir encontrar-lhe as sementes, as raízes e os frutos, é tarefa complexa e demorada, embora alguns resultados se possam obter da longa busca, na sequência de tantos investigadores e literatos de mérito.

Desde o século XIX que se assiste, com efeito, ao aparecimento de vários escritores provenientes de Macau ou da metrópole que nos deram a conhecer múltiplas facetas tanto do Território como da China, por via quer literária e histórica quer etnográfica, antropológica, social e política. Os nomes de Camilo Pessanha, Venceslau de Morais, Conde de Arnoso, Luís Gonzaga Gomes, Francisco de Carvalho Rego, Jack Braga, Henrique de Sena Fernandes, Danilo Barreiros, Deolinda da Conceição, Marques Pereira, Manuel da Silva Mendes, Padres Benjamim Videira Pires e Manuel Teixeira, Beltrão Coelho, Cecília Jorge, Pina Cabral e Nelson Lourenço vêm imediatamente a lembrança.

Alda de Carvalho Ângelo não consta deste elenco. Gonzaga Gomes refere-se a um dos seus livros, os Fragmentos do Oriente, contos, viagens, culinária, na sua bibliografia.6 Tanto quanto se sabe, não existem outras referências à escritora. Diversas explicações podem ser encontradas para este facto: o seu afastamento para as longínquas paragens brasileiras, a sua tardia revelação como escritora em Macau e ainda a incompleta bibliografia macaense que não permitiu uma reconstituição cabal dos materiais pertinentes... Até ao momento presente Alda Ângelo quase passou despercebida. No entanto, os seus livros são um contributo importante para a cultura macaense.

A trajectória vivencial e cultural desta mulher é variada e rica. Vive e partilha culturas de 3 continentes e quatro povos: português, macaense, chinês e brasileiro. Da infância à idade adulta vive em Macau, tanto em tempos calmos como nos conturbados anos de guerra em que Hong-Kong é invadido pelos japoneses e em que entram refugiados na cidade do Rio das Pérolas. Nascida em Kowloon,7 aí viveu algum tempo; mas a escola primária e secundária fá-las em Macau. Aqui permaneceu até 1941 quando casou, tendo ido viver novamente para a sua cidade natal, de lá saindo em 1942, em condições muitos trágicas. Durante a guerra contra os japoneses, o seu marido alistou-se como voluntário e ficou prisioneiro no campo de concentração de Sam-Shui-Poo onde parece ter morrido. Alda enviuvou três meses após o casamento, tendo-se mantido em Kowloon apenas 8 meses após estes acontecimentos cujos episódios traumatizantes conta. Passa breve período em Lisboa a caminho de S. Paulo, no Brasil. Aí finalmente se radica.

Proveniente de uma família numerosa de oito irmãos, relata-nos com pormenor os sítios onde viveu em Macau, a sua rua, mais habitada por chineses indianos do que pelos "filhos da terra". Conta ainda a bonita amizade que a unia a vizinhos de várias raças e nacionalidades, os desgostos, a aprendizagem do quotidiano, o tipo de educação recebido, com sua ama chinesa, presente na maioria das casas macaenses. Aos seus pais ficou a dever a riqueza da sua abertura e aceitação inter-étnica e cultural. A toda a sua família se referiu nos seus escritos. Ao pai, português originário de Vila Real, que aqui aporta jovem e toma esta terra como sua, nela vivendo até à morte. À mãe, natural de Macau,8 que muito jovem casou e criou prole numerosa. À ama chinesa, aAmah, que para além de cumprir o papel que lhe estava destinado, lhe deixou um legado importante na língua, nos hábitos e costumes, nas histórias e canções da ópera e do teatro chinês ou ainda nas infinitas coisas que o partilhar diário traz. O seu espírito curioso e inteligente soube organizar sabiamente "lugares, tempos e culturas". Transmite-nos tudo isso num estilo vivo e próximo do leitor, reconstituindo cenas e histórias da vida. A influência brasileira denota-se na língua, no modo de se exprimir, nas construções utilizadas e até, talvez, na espontaneidade.

Do mais íntimo ao mais pessoal, do mais geral ao mais particular, das considerações de natureza etnográfica (sobre múltiplos aspectos do vestuário, da gastronomia tradicional, dos costumes e hábitos macaenses e chineses), histórica, meteorológica, demográfica, de tudo se encontra nesta obra perpassada de humanidade e conhecimento.

Após ter vivido cerca de 30 anos em terras do Oriente, distribuídos pela Cidade do Nome de Deus, Hong-Kong e Kowloon, em casa de familiares e amigos ou na sua própria, revela-se como escritora, tradutora e colaboradora em publicações periódicas, no Brasil, sua segunda pátria, para onde emigrou por volta de 1946. Neste país da América se distinguiu em várias actividades, interessando-se por diferentes assuntos, literários e artísticos, designadamente teatrais, tendo pertencido a diversas associações profissionais de jornalistas, de escritores e de pessoas do teatro.

Mas nada disto parece ter tido eco em Macau. A distância da sua terra e da sua gente não lhe terão favorecido uma maior ligação com o outro lado do mundo, o Oriente. Assim, passa despercebida neste Território. A diáspora macaense tem sido grande, mas a maior parte dos seus "filhos" não esquece a sua terra: uns regressam, outros visitam-na em excursões de saudade, outros ainda escrevem sobre ela e dedicando-lhe o seu labor intelectual. Foi o que aconteceu com Alda de Carvalho Ângelo.

A sua obra apresenta facetas muito variadas e interessantes, desde a tradução à colecção de memórias que permitem uma reflexão sobre diversos aspectos do "ser e estar" macaense e chinês e do modo como são entendidas as respectivas culturas. Ocasionalmente e de modo mais superficial, refere-se igualmente à dos indianos.

Dos vários livros de Alda Ângelo, pronunciar-nos-emos especialmente sobre dois: as Maravilhas do conto chinês,9 título da primeira edição, e Fragmentos do Oriente, contos, viagens, culinária,10 de 1965. Com estas duas obras colocaremos o leitor perante algumas problemáticas ainda hoje actuais e pertinentes: a da tradução e a do intercâmbio cultural. Devido à dificuldade da língua, o conhecimento de obras chinesas era apenas feito através de traduções, deficiente mesmo hoje e muito mais há 30 anos. Sublinha-se, por isso, a importância das traduções realizadas pela autora numa época em que elas eram praticamente inexistentes, no que se refere ao caso português.

O mesmo não acontecia com a língua inglesa. Graças à iniciativa de editoras chinesas e de intelectuais ingleses, como Gladys Yang, integrados na sociedade de Hong-Kong, o leitor tem, desde há muito tempo ao seu dispor, um vasto reportório de obras chinesas sobre as mais diversas matérias.

Ao contrário, parece que a necessidade ou entusiasmo das comunidades portuguesa e chinesa em aprofundar o conhecimento do Outro tem sido diminuto. Nem a literatura portuguesa nem a chinesa foi objecto de extenso trabalho de tradução para as línguas alheias. Como já tivemos ocasião de referir noutro lugar,11 apesar de tão próximos, portugueses e chineses fizeram, em Macau, caminhos paralelos e estanques. No entanto, têm sido feitos esforços para superar esta situação, tão emprobrecedora para ambos os lados.

Assiste-se, na China, por volta de 1971, a um certo aumento das actividades de tradução, apesar de a abertura cultural apenas se ter dado por volta de 1980. Surgem edições que abrangem a política, a literatura, a história, as artes marciais, a literatura infantil, as cronologias da República Popular... Curiosamente, em Portugal, é praticamente pela mesma ocasião, a década de 70, que se inicia um período de grande aumento das traduções de obras chinesas. O 25 de Abril foi o momento desencadeador do nosso interesse por esta cultura. Também curiosamente, a literatura tradicional ocupou, nos dois países, um lugar chave. Várias obras chinesas de natureza contística foram então traduzidas tanto na China como em Portugal.

Se, porém, foi este o período mais importante na história da tradução do chinês para o português, não podemos ignorar algumas iniciativas anteriores que contribuíram para o conhecimento da literatura tradicional chinesa. Silvina Gomes, por exemplo, auxiliada por um embaixador chinês, conta-se entre esses pioneiros. O seu contributo e de alguns mais ia contrariando progressiva e lentamente a falta de interesse e de contacto com o Outro.

O mesmo aconteceu no Brasil, mais propriamente, em S. Paulo, onde Alda de Carvalho Ângelo viveu. Aí publica, em data incerta, as Maravilhas do conto chinês.12 Outras edições se lhe seguiram. A mais recente intitula-se Contos chineses13 e está inserida na colecção Universidade de Bolso de antologias e contos universais.

As suas várias edições mostram o interesse por este tipo de literatura na América. Mas não sabemos se as identificamos todas. Foi-nos de facto difícil fazer a sua "história", uma vez que ainda não recebemos as informações referentes ao nosso tema e que foram solicitadas à Biblioteca Nacional e ao Sindicato Nacional dos Editores de Livros do Brasil.

Reconstituamos, mesmo assim, com os dados disponíveis, esta "história" das edições dos Contos chineses. Entre a primeira e a que foi dada à estampa pela Ediouro / Tecnoprint parece haver pelo menos mais uma de permeio, já que a Editora Cultrix cedeu à Ediouro direitos de reprodução, o que nos leva a supor ter havido pelo menos três edições. A primeira, sem editora, é provavelmente uma edição de autor e da responsabilidade das pessoas que trabalharam para a sua organização. Por outro lado, a provável penúltima, da Cultrix, parece ter reproduzido integralmente o volume original.

Permita-se-nos um pequeno excurso relativo à importância da tradução da literatura tradicional. Em 1938, Pearl Buck recebe o Prémio Nobel. Também ela tinha feito uma recolha e tradução de Histórias maravilhosas do Oriente, constituída por uma série de contos de vários países orientais, entre os quais a China. Esta obra foi vertida para português pela editora Livros do Brasil, em data que também ignoramos, por omissão da casa editora de elementos de informação bibliográfica.

As Maravilhas do conto chinês é uma obra de colaboração de Alda de Carvalho Ângelo com outros dois tradutores. Nela se pretende dar uma visão de conjunto da novelística chinesa. O seu prefaciador, Fernando Correia da Silva, mostra-se consciente da importância de tal iniciativa e dos obstáculos que é necessário ultrapassar para aproximar duas tão diferentes culturas. Sublinha designadamente a complexidade da língua chinesa como principal barreira para o conhecimento da sua cultura.

Parece, no entanto, que esta obra não foi traduzida directamente do chinês, o que é tanto mais de lamentar quanto Alda de Carvalho Ângelo se poderia encarregar disso, visto conhecer a língua perfeitamente. À falta de originais, recorreram a traduções espanholas, francesas e inglesas. Sobretudo estas serviram, então como hoje, de veículo de intercâmbio cultural.

Na obra colectiva a que nos referimos, Maravilhas do conto chinês, coube a Alda Ângelo a selecção dos textos. Este importante papel faz supor que a autora teria um bom conhecimento da história da literatura chinesa. Só ele lhe poderia permitir levar a bom porto tal empreendimento.

Os catorze contos incluídos na colectânea abrangem "cerca de 14 séculos de produção literária, razão pela qual esta coletânea testemunha, não apenas a evolução de temas fundamentais e das técnicas narrativas da novelística chinesa, mas a versatilidade e o talento dos seus mais ilustres cultores".14 Uma breve introdução histórica de cada uma das dinastias é seguida de alguns contos: contos heróicos da dinastia Tang (618-907), contos da dinastia Song (900-1276), período mais significativo da literatura tradicional, visto ter sido nesta época que os contadores de histórias atingiram o apogeu. Para a dinastia Ming (1368-1644), Alda de Carvalho Ângelo seleccionou duas histórias sobre a sociedade da altura. Da dinastia Qing (1644-1912) foram escolhidos textos dos Contos Fantásticos do Gabinete Leao, de Pu Song Ling, provindos do folclore chinês. A introdução no período moderno, através das histórias de Lu Xun, mostra uma outra faceta da literatura chinesa, a da Revolução, uma vez que este escritor escreveu sempre com motivos ideológicos e, não raro, altera o conteúdo ou as personagens das histórias tradicionais sempre que não se adaptam aos seus objectivos.

Mas a contribuição de Alda de Carvalho Ângelo para o conhecimento das terras do Oriente não se ficou por esta colectânea de contos. Os seus Fragmentos do Oriente, contos, viagem, culinária, são publicados em S. Paulo, cerca de dezanove anos após ter deixado a China,15 em memória de sua Mãe, no ano do seu falecimento, 1965. A obra é muito mais rica e ampla do que o título parece indicar. Através de histórias várias, a autora faz considerações de vária ordem e dá múltiplas informações de natureza histórica, demográfica, geográfica e etnográfica.

É uma obra de natureza memorialista sobre múltiplos aspectos da vida macaense referentes a várias épocas, bem como sobre Hong-Kong, a Índia e Singapura. Numa viagem através de muitos "tempos" e "lugares", faz a trajectória de uma "heroína" que passa da infância à maturidade, e que tendo abandonado Macau a ele regressa através da memória.

Meditando sobre a Morte e sobre o sentido da vida, abre o seu livro, não com um texto de religiosidade cristã mas de filosofia oriental: Excertos de filosofia taoista que um dos seus conterrâneos, Manuel da Silva Mendes, traduzira para português. A filosofia oriental estará, aliás, presente em muitos outros momentos, sobretudo quando se trata da rememoração da educação recebida.

A leitura destes textos memoriais pressupõe uma intertextualidade permanente. Oscila frequentemente entre o Ocidente e o Oriente e entre os diversos "Orientes" existentes em Macau, de que a escritora é um exemplo vivo: o da China e o dos "filhos da terra", a Índia das famílias com quem conviveu desde criança e da viagem que fez àquele país. Todavia não conseguimos reconstituir a árvore genealógica da sua família, principalmente da parte macaense, de modo a distrinçar a sua proveniência étnica: chinesa, malaia, indiana, africana? São interrogações que ficam sem resposta.

A autora nada deixa ao acaso na selecção criteriosa da realidade. Desde os fenómenos marcantes da natureza, como um tufão, até aos culturais, designadamente da História de Macau, de tudo aparece um pouco. Como ela diz "está dentro do propósito do presente trabalho: um pouquinho de tudo trazer para cá".16 Como se se tratasse de um arquivo vivo de memórias, ela clas--sifica e organiza. Desenvolve em seguida algumas das suas fichas temáticas. Demora-se essencialmente no ser humano e no ambiente em que viveu. Deste, a paisagem pouco lhe interessou. Mas, em todos os campos que têm a ver com o humano, ela é exímia no traço com que os esquiça e na cor que os põe em relevo.

O discurso com forte tendência para a digressão, do exterior para o interior, e do interior para o exterior, do habitante para o habitat, regressando-se novamente ao primeiro, expande-se significativamente em pormenores ricos de um profundo conhecimento cultural. Opõem-se os seres humanos aos objectos e às coisas. Em torno da enumeração, da descrição exacta e fiel, muitas vezes pormenorizada, entrecruzam-se frequentemente comentários subjectivos provenientes de uma observação e vivência profundas.

Opõe o conhecido ao estranho, as acções às personagens e estas aos objectos. Apela, na maioria das vezes, para o exótico transmitido nas suas múltiplas facetas: a língua em que introduz o ocidental, as temáticas sociais e culturais (gastronomia, rituais da morte, festividades tradicionais, religião, trabalho, o quotidiano nas ruas e em casa, a guerra), as muitas situações que descreve...

A autora funciona, muitas vezes, como um nar--rador que mostra autoridade e saber total sobre todas as matérias, mesmo no que respeita à competência linguística: "Nós conversávamos, ora em português, ora em chinês, ora em inglês".17 Sempre que o leitor tenha dificuldade na compreensão ou na execução de coisas concretas, interpreta e explica através de um outro texto paralelo, usando metalinguagens ricas e significativas. Manifesta um grande rigor na descrição das situações: nas orações ou práticas mágicas para curar,18 no vestuário típico, etc. Eis um exemplo: "Moças e velhas [...] de cheón sám ou de cabaias e calças compridas, novinhas [...], as criadinhas pendurando no braço o tradicional hap ló (caixa de madeira fina redonda com divisões)".19 A respeito dos alimentos e dos pesos, diz: "Pois bem, couve-côco quer dizer repolho e cate é uma subdivisão da medida de pêso. Em chinês 'cân'. Cada pico tem cem cates e cada cate tem dezesseis taéis (singular tael). E cada quilo tem um cate e dez taéis".20 Dá, de resto, muitas explicações em rodapé sobre conceitos, palavras e costumes diferentes.21 Apesar de empregar muitas expressões chinesas, utiliza igualmente as macaenses, mas em menor quantidade.

Alda de Carvalho selecciona aquilo que é mais representativo de Macau. Dá especial atenção à população chinesa e às suas festas, digam elas respeito à vida ou à morte. As festividades do Ano Novo Chinês e as do dia 15 do oitavo mês lunar, os rituais da morte e dos antepassados ocupam largas páginas deste livro em que são descritos pormenorizadamente, através de um Olhar, Sentir e Enten-der próprios. Assiste-se permanentemente a dois percursos: um no exterior, nas ruas, nos barcos, na cidade, nos templos, na praia; outro no interior, na casa, no templo...

Começando cronologicamente no primeiro dia dos cinco do Ano Novo Chinês, dá-nos indicações precisas acerca da sucessão dos acontecimentos que o caracterizam. Conta como se vive nessa altura, das ruas apinhadas de gente, o que se come, veste e compra, se dá e se recebe e se vê. E depois vem o espectáculo inesquecível da procissão do Dragão: o reboliço da cidade, a excitação à roda dos que jogam e dos que lançam panchões. Por vezes, faz comparações com as festas tipicamente portuguesas levadas para o Brasil, como é o caso da festa de S. João. Recorda os rituais impostos à dona de casa nessa mesma ocasião: a recepção de visitas, os alimentos, os adornos especiais da habitação. As pormenorizadas descrições estão carregadas de observações pessoais e atentas de quem está por dentro da cultura e percebe os seus significados. Para além dos cenários exteriores de berrantes cores, cheiros intensos e exóticos, barulhos estrondosos, gestos carregados de significado, tudo anota e descreve com rigor e nada deixa escapar.

O leitor, a quem se dirige, é claramente o brasileiro, sobretudo no que respeita à gastronomia, forne-cendo-lhe receitas e sugestões para a substituição de alimentos ou condimentos existentes no Brasil. Mas também lhe comunica as artes mágicas que parece dominar com a mestria de quem delas tem uma vivência pessoal. Da cozinha chinesa e macaense aponta os pratos mais representativos, avisando desde logo que se falasse em detalhe delas poderia encher um livro.

Com base na cozinha preparada por si, promove uma viagem aos "culaus" ou restaurantes chineses e seu pessoal. Descreve-os pormenorizadamente, bem como aos diversos pratinhos exóticos que se podem lá comer, designadamente especialidades como o gui-chi-tóng (sopa de barbatana de tubarão) ou pei-tán (ovos pretos). De resto, explica a melhor hora para os frequentar, conforme se vai apenas para comer ou para jogar primeiro e depois jantar. Da alimentação e sua confecção, dos seus sabores e ingredientes, são-nos fornecidas preciosas informações que são postas, muitas vezes, em paralelo com as da cozinha e costumes ocidentais.

Como nem só de alimentação se faz a vida, uma série de práticas relacionadas com a sua manutenção são igualmente referidas: fumigações, gestos, orações e práticas ocultas. A magia do Tám-chi-châi, que significa literalmente "incensando porquinhos", ou do afastamento do susto ou do mau olhado, saván, são práticas correntes nas casas chinesas de Macau e provavelmente em algumas macaenses. A Mãe de Alda socorria-se do seu livro caseiro de mesinhas, não se incomodando o seu marido com isso. Ajudada pelas folhas mágicas do pessegueiro, do alecrim, da losna e do mangericão, através de frases e sons sibilinos, as empregadas e a amah ajudavam Alda e seus irmãos a serem livres de todos os males.

Mas, pior do que estes males é a existência dura e desigual do cule, o homem que puxa o riquechó nas ruas de Macau. A sua vida pobre, colecção de misérias e amarguras, decorre num clima húmido e quente que o destrói lentamente desde o romper da madrugada ao dia seguinte. Alda Ângelo escolheu para o seu memorial uma das profissões mais árduas de Macau, e documenta-a com uma pequena história cheia de dramatismo e tristeza.

Da vida se passa para a morte. A descrição dos seus rituais é completa. Faz a descrição da escolha da futura casa do falecido, da saída de casa para a sua última morada, do acompanhamento de carpideiras, do caixão completamente diferente do ocidental, das canções e banquetes durante a noite. De branco se acompanha o falecido à última morada. O cortejo é constituído por familiares, amigos, conhecidos e curiosos seguidos de banda de música. Levam lanternas aos ombros, altares com iguarias finas, flores, modelos de objectos feitos em papel, à imagem dos que serão utéis ao defunto no outro mundo: carro, roupas, calçados, notas, etc. No féretro também é colocada uma fotografia do morto. Finalmente tudo é queimado de modo a que as cinzas acompanhem o seu espírito. Junto do túmulo são deixadas iguarias que serão renovadas de vez em quando ao longo do ano para que nada falte a quem morreu.

Estes rituais, tão diferentes dos nossos, são também um testemunho rico dos papéis tradicionais dentro da família, sobretudo do filho mais velho, já que as mulheres, filhas ou esposas, não contam para estes ritos. Mas também se fala das funções dos bonzos e das múltiplas e complicadas praxes em casa, na rua, no templo e na sepultura. Da escolha da futura casa do falecido pelos monges, do vestuário dos vivos e das ofertas, de tudo é dado a conhecer um pouco nesta descrição.

Como já foi dito, ao filho, tão desejado pelo pai, cabe a continuação do nome dos antepassados e o cumprimento de todos os complicados rituais funerários. Num conto intitulado A estela dos antepassados, baseado na Piedade filial de Luís Gonzaga Gomes, desenvolve estes e muitos outros aspectos relacionados com a temática da morte.

Uma outra faceta destas memórias diz respeito à sua vivência como jovem casadoira e da sua vida em Kowloon: o período difícil da guerra, o medo e o pânico então vividos, a vinda dos refugiados para Macau, os campos de concentração em Hong-Kong, a história dramática de amigas suas.

Todos estes aspectos têm sido desenvolvidos por outros escritores ou investigadores. Por exemplo, dos tempos da guerra, podemos recordar A história na bagagem,22 de Luís Andrade de Sá, reconstituída a partir de textos antigos. Mas não só. E outros autores, de maneira mais ou menos profunda e com técnicas e objectivos diferentes, tratam mais tarde de alguns dos pontos desenvolvidos por Alda no seu livro. Ana Maria Amaro, Graciete Batalha, Cecília Jorge, entre outras, fazem o ponto de ligação com a obra de Alda de Carvalho Ângelo. Por exemplo, Graciete Batalha, no seu livro Bom dia, S'tora,23 deixa-nos um Diário de uma época mais recente, acompanhando outra guerra, que poderá ser lido na continuação do texto memorialista de Alda de Carvalho, de certo modo, precursor.

Referindo-se ela, de resto, a tantos e variados aspectos da vida macaense, é sempre possível encontrar nos autores recentes um certo tom de continuidade, designadamente no que diz respeito à gastronomia macaense e ao mundo secreto das especiarias. Basta olhar para as obras recentes, mais ou menos elaboradas, portuguesas e macaenses.24

Do que não há dúvida é que os livros de Alda de Carvalho Ângelo têm uma grande importância para o conhecimento da cultura macaense. Por isso não podem nem devem ser esquecidos.

(Especiais agradecimentos aos senhores Dr. Isaú Santos e Dr. Júlio Nogueira pelo fornecimento de dados imprescindíveis à concretização deste trabalho e ao Prof. Mário Lages pela sua crítica atenta.)

NOTAS

1 PEREIRA, J. F. Marques, Subsídios para o estudo dos dialectos crioulos do Extremo Oriente: textos e notas sobre o dialecto de Macau, "Ta-Ssi-Yang-Kuo", Macau, 2a ed., s. 1, 1 (1)Out. 1984, p. 56.

2 GOMES, Luís Gonzaga, Bibliografia macaense, 2a ed., Macau, Instituto Cultural, 1987, 202 p.

3 EDMONDS, Richard Louis, Macau, Oxford, Clio Press, 1948 (World Bibliographical Series); GOMES, op. cit.; MACAU, letras e artes do século XVI ao século XX, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1979.

4 BATALHA, Graciete Nogueira, Poesia tradicional de Macau: os poetas populares macaenses, "Macau", (4)Ago. 1987, p.41.

5 Idem, ibidem.

6 GOMES, op. cit., p. 14.

7 ÂNGELO, Alda de Carvalho, Fragmentos do Oriente: contos, viagens, culinária, São Paulo, A. C. Ângelo, 1965, p. 141.

8 Idem, p. 66.

9 ÂNGELO, Alda de Carvalho, trad. [et al.], Maravilhas do conto chinês, São Paulo, [s. n., s. d.].

10 ÂNGELO, op. cit., 1965.

11 LOPES, Ana Maria Costa, O catálogo dos livros chineses: versões em português, "Revista de Estudos LusoAsiáticos", Macau, (1) Set. 1992, pp. 84-96.

12 ÂNGELO, trad. [et al.], op. cit.

13 RHEDEL, Diaulas, ed., Contos chineses, [s. l.], Ediouro / Tecnoprint, [s. d.], 202 p.

14 ÂNGELO, trad. [et ai.], op. cit.

15 ÂNGELO, op. cit., 1965, p. 15.

16 Idem, p. 71.

17 Idem, p. 118.

18 Idem, pp. 62-3, 65.

19 Idem, P. 18.

20 Idem, p. 82.

21 Idem, p. 36.

22 SÁ, Luís Andrade de, A história na bagagem: crónicas dos velhos hotéis de Macau, Macau, Instituto Cultural, 1989, 151 p.

23 BATALHA, Graciete Nogueira, Bom dia, S'tora: diário de uma professora em Macau, Macau, Instituto Cultural, 1991, 424 p.

24 111 receitas de cozinha chinesa: receitas da avó Roalina, 2a ed., Mem Martins, Europa-América, 1990; CELESTINA, Bons petiscos, 2a ed., Macau, Centro de Informação e Turismo, 1977; GOMES, Maria Margarida, A cozinha macaense, Macau, Imprensa Nacional, 1984.

* Professora e investigadora: Universidade de Macau (1989-93); Universidade Católica Portuguesa, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Lisboa. Mestrado em Estudos Luso-Asiáticos, variante Literatura, com a tese Confluências e divergências culturais na tradição contística portuguesa e chinesa e nas imagens referentes à família e à sociedade em duas das respectivas colectâneas de contos populares. Dos estudos publicados, individualmente ou em colaboração, destacam-se: O conto regional na imprensa periódica de 1875-1930, Sequências narrativas no conto popular português, Alguns casos patológicos na literatura erudita do século XIX. Organizou uma Antologia do conto popular português (edição em chinês), no prelo.

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