Macau-Brasil

MACAU E O BRASIL UM DIáLOGO ANTIGO A SER APROFUNDADO

Fernanda de Camargo-Moro*

"Plantação de chá por chineses no Jardim Botânico do Rio de Janeiro" RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. trad. de Sérgio Milliet. 2aed.. São Paulo. Livraria Martins. 1949. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Os movimentos de expansão dos povos vêm sendo, através dos tempos, constantes fatores de modi-ficaçõo da paisagem da Terra. O meio ambiente inva-dido, avaliado como um todo, em que o homem se rela-ciona diretamente com seu entorno criando sua obra, é geralmente vítima de uma ruptura provocada por novas ambições, novas idéias, novas propostas, novos modos de vida. Os novos invasores, ao se expandirem, também recebem modificações em suas culturas e levam novos elementos para a sua própria paisagem. Estas modi- ficações, porém, são absorvidas de forma paulatina, caindo o débito maior sobre as áreas invadidas, cuja paisagem natural e cultural é, frequentemente, profun-damente modificada.

Na construçõo da história do meio ambiente, a interpretaçõo da história que analisa o desenvolvimento do homem e sua obra em permanente ligaçõo com a paisagem que o envolve, isto é, dentro de uma visão integrada globalizante, o estudo detalhado destas expan-sões, desenvolve-se cada vez mais. Ao lado de pontos bastante negativos gerados pela imposição de novos costumes, novas crenças, tecnologias diferenciadas e não apropriadas, que provocam estiolamento na paisagem de regiões inteiras, surgem alguns outros com aspectos positivos como o das ligações culturais que se estabe-lecem, proporcionando um diálogo interculturas, os bolsões policulturais, e os pontos de apoio criados atra-vés de expressões similares. Como decorrência de todos estes vasos intercomunicantes surge e intensifica-se um intercambio cultural extenso, imprescindível para o en-tendimento de um mundo pluri e policultural, e para uma maior compreensão dos diversos fatores imposta pela biodiversidade.1

Dentro do movimento de expansões européias, principalmente entre os séculos XVI e XVIII, a tentativa realizada na ásia foi profundamente enfraquecida pelo grande impacto provocado pelo desenvolvimento científico e cultural já existente de longa data na região. Isto fez com que sua influência nas culturas locais fosse muito ligeira, com muito menor intensidade do que aconteceu na América onde esta expansão, permeando--se em todas as áreas de contato, provocou imensas rup-turas no desenvolvimento das diversas culturas locais, provocando uma série de novas culturas diferenciadas, algumas delas ainda hoje passando por fase de forte europeização.

Como exemplo desta formação de núcleos cul-turais diferenciados, tomemos aqueles derivados da ex-pansão portuguesa que, a nosso ver, foi, entre as euro-péias, a que iniciou o diálogo entre as diversas popu-lações dos diversos continentes. Apesar das atitudes polí-ticas nem sempre favorecerem um intercâmbio comer-cial mais franco e aberto, tão necessário para o estreita-mento do diálogo cultural, o modo de ser dos Portugue-ses permitiu, em certas regiões, um maior entrosamento com as populações locais, proporcionando também os primeiros diálogos entre os povos dos diferentes lugares em que tiveram um acesso mais ou menos formal.

As tentativas de comunicação entre o Brasil e Ásia vêm de longa data. Estudos arqueológicos de gran-de responsabilidade mostram que camadas populacio-nais asiáticas são antigas no povoamento do continente americano. Uma série de pontos comuns entre as popu-lações da Ásia e as populações indígenas americanas talvez estejam na raiz de uma certa compatibilidade que se sente no relacionamento dos povos dos dois conti-nentes.

Em épocas bem mais recentes, esta comunicação se acelerou com o estabelecimento das primeiras liga-ções marítimas que, após a visita de reconhecimento ao Brasil feita pela esquadra de Cabral em seu caminho para a Índia, tornou-se permanente não apenas através de linhas regulares e/ou irregulares de navegação, mas também de atividades políticas e econômicas geridas pela Coroa Portuguesa e por uma série de outras ativi-dades delas decorrentes. Um novo universo de conhe-cimentos provenientes da Ásia e da América2 se entre-laçaram nas cortes européias, principalmente ibéricas, desde o início do século XVI.

Nesta perspectiva, a comunicação entre a China e o Brasil inicia-se na segunda metade do século através da abertura proporcionada por Macau, elo de ligação entre Portugal e a China e base para toda a comunicação com o Japão. Mais tarde, esta ligação vai-se estreitando através das "Coisas3 e Pessoas" que eram trazidas e/ou vinham de Macau para o Brasil diretamente ou via Lisboa. Pouco a pouco, Macau foi estabelecendo um diálogo com a Bahia e o Rio de Janeiro, diálogo este que se estendeu em diversas formas, se alastrou e se interiorizou. Deste intercâmbio participaram as diversas regiões do Oriente e do Ocidente que recebiam influê-ncia portuguesa. O perfilamento dado pela cultura portuguesa a Macau, Goa, Salvador, Recife, Rio de Ja-neiro, como a muitas outras partes do mundo, concedeu a este diálogo uma feição mais harmônica, mais flexível e duradoura.

O século XVII foi um período de grandes mu-tações no relacionamento de Portugal tanto com a Ásia como com a América. A perda do comércio japonês e a queda de Malaca criaram enormes transtornos ao desen-volvimento de Macau, impedindo sua comunicação de forma ágil com as outras áreas da rede portuguesa de comércio. A queda de funcionamento das feitorias da Índia, a guerra mundial holandesa, através de suas companhias de comércio que atacavam simultaneamente posições e navios portugueses no Atlântico e no Índico, abalaram profundamente a presença portuguesa em toda a região.

A Restauração e, por conseguinte, a chegada ao poder da Dinastia de Bragança trazem uma visão nova sobre o Ultramar. Portugal passa a olhar as terras do Brasil, que paulatinamente se tornavam altamente produtivas com as lavouras de açúcar e tabaco, como um território capaz de preencher as lacunas deixadas pela presença de outros europeus na Ásia. Veremos que D. Pedro II, o Pacífico, tenta trazer para o Brasil a produção de especiarias asiáticas, cujo plantio já se iniciara mas fora logo proibido no próprio século XVI.4 As minas de ouro e, mais tarde, de diamante, fazem tam- bém com que o Brasil passe a ter uma atenção maior e com que a ligação com o Brasil passe a ser encarada como a verdadeira saída, para que Portugal possa atravessar a difícil situação decorrente da ação mercan-tilista, iniciada de modo agressivo e maciço na Ásia pelas companhias de comércio do norte da Europa.

Enquanto a Companhia Holandesa das Índias Orientais ocupava de forma brutal, mas com grande competência comercial, posições no Oriente outrora portuguesas, como Nagasáqui, Malaca, Cochim; a esta-dia da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais no Brasil trouxe transtor-nos, "muitas lendas",5 mas não conseguiu nem empanar o desenvolvimento do Bra-sil, nem desintegrar o ter--ritório brasileiro. A ação dos comerciantes bávaros, que era simultânea, preda-tória, mas eficiente no Oceano Índico, era bem mais enfraquecida e teme-rosa no Atlântico ociden-tal.

A tentativa de plan-tar sementes asiáticas no Brasil vai ser sempre acompanhada pela idéia inteligente de trazer não apenas as sementes ou mudas, mas também de proporcionar a vinda de agricultores especializa-dos, oriundos da própria região do cultivo. Podemos ver esta preocupação ao serem trazidas mudas de caneleiras do Ceilão,6 ca-neleiras da China,7 pimentas da Índia8 e, bem mais tarde, com relação ao chá da China. Embora hoje saibamos que estas tentativas de plantio tiveram um sucesso bem maior do que se imaginou na época, há dúvidas sobre a verdadeira especialização de alguns dos lavradores trazidos.9 Mas é certo que árvores e arbustos de especiarias frutíferas da Ásia começaram, com sucesso e muito cedo, sua penetração nas florestas brasileiras. Os Jesuítas conseguiram bons resultados com as caneleiras10 da Quinta do Tanque, na Bahia; árvores frutíferas como as jaqueiras, os jambeiros,11 as árvores de fruta-pão12 e as caramboleiras13 do sudeste asiático, mangueiras e figueiras de diversas espécies vindas da índia; e outras plantas que cresceram com vigor. Muitas entraram mata a dentro se acomodando entre os espécimes nativos, passando a participar do ecossistema das matas brasileiras. A moscadeira,14 oriunda das ilhas de Banda, no entanto, teve maiores problemas em seu plantio. Suas mu-das careceram de maiores cuidados de aclimatação. As primeiras que se expan-diram no Brasil15 tiveram suas mudas trazidas, no fi-nal do século XVIII, do Jardim de Poivre na ilha de França, via Caiena, pene-trando no Brasil pelo Pará e dali se multiplicando. Mais tarde, já no século XIX, por duas vezes, em 1809 e em 1812, com a colaboração do senador macaense Rafael Botado de Almeida, espécies tam-bém aclimatadas nas ilhas Macarenas, principalmente árvores do liche16 e canfoeiras17 da China, foram trazidas diretamente para o Rio de Janeiro.

"Leques e louças de Macau" Vista parcial da exposição "O gosto do Império" Museu do Primeiro Reinado, Rio de Janeiro, 1982.

Em termos de comércio interdomínios por-tugueses, a tentativa de se construir em conjunto uma economia integrada é sempre impedida pela Coroa. Se bem que no final do século XVIII o tabaco brasileiro em folha e principalmente em pó fosse comercializado em Macau e através de Macau, a tentativa dos comerciantes de Goa, Macau e dos portos brasileiros da Bahia e Rio em terem um manejo maior e mais direto para a difusão das linhas de comércio com os centros de produção encontrava sempre um impecílio nos administradores do Ultramar. Estes, muitas vezes mas habilmente, contestavam e interviam modificando as tendências do próprio Rei de Portugal.18 As várias tenta-tivas de estabelecer ligações diretas com o Brasil e vice-versa que os comerciantes de Macau e do Brasil empre-enderam insistentemente desde o século XVII e com maior insistência ainda no século XVIII19 só conseguem um bom resultado, uma verdadeira abertura, com o tratado de 1810,20 isto é, quando a Corte já está no Brasil. Nesta época o vetor do comércio português teve que ser obrigatoriamente os portos do Brasil, principalmente o do Rio de Janeiro. Aqui estava o poder decisório do Reino e as maiores fontes de produção. A abertura dos portos do Brasil em 1808 preocupou-se em termos de comércio exterior; para o comércio inter-domínios ainda apresenta certas aberrações21 que impedem o tráfico co-mercial com Macau, o que só se resolverá em 1810.

A abertura dos portos da Carreira, permitindo um comércio direto de Goa e o Brasil nos séculos XVII e XVIII, era vista sempre como perigosa face a uma si-tuação político-social que já se delineava;22 havia também a temeridade de intercepção pelo Brasil ao comércio das mercadorias da região oriental africana do Rio de Sena, e vice-versa, o que criava problemas de escoamento principalmente para Goa e para o controle de ganhos pela Metrópole.23

A situação oficial como sempre era substituída por uma situação oficiosa, e tornou-se incontrolável a entrada de produtos asiáticos no Brasil provocada pelo preenchimento das "liberdades"24 dos navios da Carreira, as falsas paradas de emergência destes barcos, os siste-mas de policiamento tendenciosos nestas paradas de emergência, a entrada do contrabando através de barcos estrangeiros, fora o cabedal de produtos orientais trazidos legalmente pelos altos funcionários do Reino que vinham servir no Brasil.

As relações dos barcos da Carreira da Índia25 mostram a entrada de uma grande quantidade de tecidos indianos, mas também de sedas chinesas, louças, esmal-tes pintados, mesas e outros objetos de charão pro-cedentes de Macau. O gosto pelas louças brancas e azuis mais antigas e por aquelas denominadas "Macao" se instala em toda a sociedade brasileira: nas zonas de desenvolvimento açucareiro, nas áreas de plantação do tabaco e nas zonas mineiras. A louça chinesa, deno-minada "Companhia das Índias", passa a ser obrigatória nas mesas das grandes famílias onde mais tarde se inten-sifica a louça brazonada. O interesse, não apenas da so-ciedade que se forma no Brasil mas também de popu-lares, pelas "cousas do Oriente" corre junto com o inte-resse que Macau desperta. O encantamento do quase antípoda? A linha oriental das primeiras populações? O gosto pelo Oriente? Eu não chamaria de um modismo e sim de uma sensibilização provocada por uma percepção mais direta das texturas, formas e cores que o gosto ori-ental traz.

Evidentemente, por instigação da Metrópole, o Brasil recebe algumas influências da chinoiserie européia. Traços desta influência podem ser percebidos em diversos lugares e mesmo alguns nas denominadas formas chinesas que aparecem em detalhes do estilo Rococó de certas igrejas e imagens, como talvez as da Igreja de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, Minas Gerais. No entanto, alguns exemplos da imaginária da Bahia26 e do Nordeste mostram uma influência direta das imagens cristãs goesas e macaenses. Nelas podem ser sentidos processos aculturatórios que nada têm com as chinoiseries.

Teria esta influência sido trazida pelos reli-giosos? O movimento da informação inter-domínios que nos traz as Indipetas27 não poderia trazer uma influência direta? A Questão dos Ritos trouxe para o Brasil muitos religiosos que tinham estado no Oriente, principalmente na China, e com eles uma série de informações e modelos que certamente influenciaram o gosto da época. Obser-vando as influências chinesas nas formas brasileiras, é muito visível a diferença entre o toque mais verdadeiro e harmônico trazido através das ligações com Macau e o artificialismo oriundo dos múltiplos repasses aculturatórios e manipulados da chinoiserie européia.

O estabelecimento da Família Real Portuguesa no Rio de Janeiro trouxe novos e interessantes aspectos desta ligação Brasil - Macau. Além dos documentos de governo passarem a ser recebidos no Rio de Janeiro, havia o interesse em desenvolver o Brasil, uma terra protegida da problemática que assolava a Europa e que se propagava nas áreas mais longínquas sob o domínio da França e da Inglaterra. Entre os novos planos de incentivo agrícola estavam as plantações de chá que se iniciaram na região vizinha à Lagoa Rodrigo de Freitas, subindo pela encosta do maciço da Tijuca, na região atravessada pelo pitoresco caminho hoje denominado Estrada D. Castorina, onde se encontra um antigo pavilhão construído no século passado denominado "Vista Chinesa". Outras plantações foram instaladas na Fazenda Real, antiga Fazenda dos Jesuítas, em Santa Cruz. A vinda dos plantadores de chá chineses para o Brasil vem sendo citada em diversas publicações antigas e atuais28 e os documentos existentes no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro,29 ao serem completamente analizados de forma multidiciplinar, poderão trazer maiores contribuições sobre o assunto.

"Vista chinesa" Foto de início de século Fotógrafo: Augusto Malta, 1864-1957 Arquivo Malta, Fundação Museu de Imagem e do Som Governo do Estado do Rio de Janeiro.

As informações sobre a qualidade da terra, o sucesso ou insucesso das plantações e as opiniões são várias e indefinidas. A pressão política que a Inglaterra fazia sobre Portugal e que tanto o prejudicou em seu próprio desenvolvimento atingiu também o do Brasil e de outras regiões dependentes da Coroa Portuguesa. A Inglaterra, detentora do controle comercial sobre o chá do Oriente, não tinha o menor interesse de ver o pro-gresso do cultivo do chá neste posto avançado de produ-ção e de difusão de mercadorias, o Brasil, sob o domínio de uma outra nação européia, cujo espaço para produção era imenso e cujas costas seriam incontroláveis mesmo para a poderosa marinha inglesa. A possiblidade de um excesso de produção de chá pelo Brasil, como aconte-cera com o açúcar, e o possível escoamento desta pro-dução fora de seu controle fazia com que a Coroa Bri-tânica tentasse torpedear o desenvolvimento desta brilhante iniciativa do Conde de Linhares.

Somente os estudos mais profundos que se propõem sobre a agricultura do chá no Brasil poderão aclarar toda esta situação que até agora se baseia em poucos testemunhos e citações muitas vezes opostas. Tomemos a opinião de Spix e Martius sobre o sabor que descrevem como sendo "de gosto um tanto áspero e terroso", porém Maria Graham30 ao prová-lo o aprecia. Carl Seidler,31 que também aqui esteve por volta de 1825, elogia o apoio de D. João trazendo para o Brasil as plan-tações de chá, reclama uma melhor atenção para estas plantações cujo produto é de boa qualidade, muito pouco inferior ao produto chinês. O mesmo Seidler não poupa a Inglaterra do estorvo às plantações de chá no Brasil, nesta época já independente de Portugal.

Os documentos da lata 507 do Arquivo Nacio-nal,32 situado no Rio de Janeiro, sobre as contas da Fazenda Real de Santa Cruz entre 1814e 1821, requerem um estudo aprofundado. Através deles pode ser sentida a evolução social dos Chineses na região. Analisando salários, número de pessoas contratadas, compra de gê-neros, de materiais para propiciar seus costumes e ritos, a descrição de suas festas, podemos sentir a oscilação desta comunidade que se espalhou principalmente pela região de Santa Cruz33 e apercebemo-nos que alguns devem ter deixado o trabalho intensivo nas plantações e passaram a fabricar e vender produtos chineses, tanto os de seu fabrico como os provenientes de Macau via porto do Rio, por importação legal ou não. Seus princi-pais fregueses eram os membros da nobreza e da alta burguesia que se instalavam durante o verão nas vizi-nhanças da Fazenda Real de Santa Cruz. O formoso ainda que pequeno casario neoclássico do burgo de Santa Cruz era habitado por uma população cosmopolita que tinha grande atração pelos produtos de comércio prove-nientes de Macau.

As notícias da volta da Família Real para Portu-gal e da Independência do Brasil custaram a chegar em Macau. Nos anos que se seguem, muitos documentos do governo continuaram a transitar e estacionar no Rio de Janeiro. O interesse do Brasil por Macau continuou e na busca de intercâmbio com a China, o Brasil quis ter Macau como seu parceiro principal.

No rascunho (manuscrito original) de um documento de Outubro de 1846 de António Menezes de Vasconcellos Drummond,34 então Ministro Plenipo-tenciário do Brasil em Portugal, é bem visível o interesse do então governo brasileiro por Macau e por tecnologias chinesas para o desenvolvimento agrícola.35 Neste manuscrito das mãos do próprio Vasconcellos Drum-mond sente-se uma visão moderna e atual da troca de tecnologias apropriadas no campo da agricultura, uma tentativa de compreender a sociedade rural chinesa, uma bibliografia de época sobre o assunto, devidamente comentada, e a demonstração de sua grande preocupação com a falta de informações em Lisboa sobre a situação contemporânea de Macau.36 Nos diz Vasconcellos Drum-mond que dois ou três navios iam anualmente ao porto português do Extremo Oriente buscar uma provisão de chá para o consumo apenas do Reino. Cita ainda com tristeza que as relações de Lisboa com Macau não são mais as mesmas e que as informações sobre esta cidade são difíceis de serem conseguidas na capital portuguesa. Pouco tempo antes falecera o Cônsul do Brasil em Macau, Joaquim J. Pereira Veiga, que tentara estabelecer laços comerciais entre o Brasil e esta cidade e que para tal dela ficara conhecendo com profundidade. No texto do ministro brasileiro em Lisboa o falecimento do cônsul também é lastimado e citado "pois que delle se poderia colher informações prioritárias; era homem intelligente e indagador..."37

Entre os documentos com descrições de Macau existentes no Brasil, a Biblioteca Municipal de São Paulo possui um códice de grande interesse: Relação da viagem que Diogo Baduen da Serra fez a Macau, China, Mossâmedes, e Rio de Janeiro na nau de N. S. da Conceição e Lusitânia Grande, que está em fase de estudo juntamente com a Memória sobre Macau, de José de Aqui-no Guimarães e Freitas, existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

A pesquisa dos documentos de Macau existentes nos arquivos brasileiros, públicos e privados, juntamente com a dos objetos existentes nos museus e coleções, e as das espécies botânicas trarão muito mais subsídios sobre um passado de ligações entre Macau e o Brasil. Esta "História de um Diálogo" provavelmente incrementará ainda mais o estreitamento de relações presentes e futuras entre estas duas regiões. Analisando esta relação sob o ponto de vista contemporâneo vê-se que Macau sempre foi para os Brasileiros uma lembrança de encantamento e que a curiosidade pelo "quase antípoda" parece aumentar cada vez mais, mas também, por outro lado, nota-se que os macaenses que habitam o Brasil se integram perfeita-mente na comunidade brasileira.

Exposições realizadas no Museu do Primeiro Reinado, no Rio de Janeiro, em 1982 e 1983 - O Gosto do Império, Maio-Novembro de 1982, e No Caminho das Índias, Janeiro-Abril de 1983, trouxeram informações sobre Macau, sua paisagem, sua gente, sua cultura. Tanto na primeira, que buscou mostrar o pluriculturalismo que influenciou a cultura brasileira do início do século XIX, como na segunda, que mostrou a origem do traçado policultural do Brasil, foram importantes a amostragem da cultura proveniente de Macau e ver a profunda impres--são que ela causou nos mais diversos segmentos da sociedade. Para alguns, talvez até muitos, "o nome Macau desligou-se da grande sopeira38 obrigatória das casas tradi-cionais brasileiras e tomou-se vivo indicador de um lugar verdejante, de casario aportuguesado como o nosso, inter-calado de expressões culturais chinesas e onde até os Chineses falam como nós".39

Estas similitudes que ligam Macau às cidades costeiras do Brasil, principalmente ao Rio, sua cidade gêmea, trazem a perspectiva do desenvolvimento maior do intercâmbio, de uma ação amiga, comunitária, abran-gente.

Tanto o Rio como Macau têm as mesmas respon-sabilidades de preservação de bolsões policulturais integrados ao meio ambiente, o que requer uma ação sen-sível e que o intercâmbio de idéias e soluções muito pode auxiliar. A proteção das tradições culturais, a preservação da paisagem integral declarada imprescindível na implan-tação da Agenda para o Século 21, da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, pode ser um dos pontos de apoio para o aumento deste diálogo que se estende por séculos.

NOTAS

1 Esta forma de análise é essencial para a implantação da denominada Agenda 21 da CNUMAD (Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento), realizada no Rio de Janeiro em Junho de 1992.

2 E também da África.

3 Coisas no sentido geral de objetos e espécimens.

4 A proibição não pôde impedir que o gengibre (Zingiber officinale), por ser uma raiz, mergulhasse na terra e se expandisse por todo o Brasil.

5 Como por exemplo, os excessos que se cometem sobre o desenvolvimento científico e cultural, compartilhado com a população local, que teria ocorrido nas regiões ocupadas pelos Holandeses na época, o que a nós parece mitológico.

6 "Cinnamomum zeylanicum".

7 "Cinnamomum cassia".

8 "Piper nigrum".

9 Documentos nos mostram que, em relação à pimenta, os Canaris (ou Canarins) - cristãos indianos da região de Canará que vieram como lavradores - possuíam pouca experiência e conhecimento do plantio do "piper nigrum". No entanto, Spix e Martius, em Viagem pelo Brasil, t. 1, p. 75, citam que os colonos chineses trazidos, dentro do plano de cultivo de chá do Conde de Linhares, no início do século XIX, eram gente escolhida no interior: SPIX, Johann von; MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von, Viagem pelo Brasil: 1817-1818, trad. de Lúcia Furquim Lahmeyer, 3a ed., São Paulo, Melhoramentos, 1973.

10 Em grande parte "Cinnamomum zeylanicum", canela do Ceilão, mas também "Cinnamomum cassia", canela da China.

11 "Eugenia malaccensis".

12 "Artocarpus incise".

13 "Averrhoa carambola".

14 "Myristica fragans".

15 A moscadeira é dióica e até este detalhe ser observado não era possível cultivá-la.

16 "Nephelium litchi (Cambess), L. Chinensis de L".

17 "Cinnamomum camphora", Th. Nees & Eberle.

18 Apesar da tentativa para uma maior abertura como se percebe nos relatórios de alguns governantes, como por exemplo na Carta do Conde de Assumar futuro Marques de Alorna enviada de Goa em 1745, IHGB, 22 fls., lata 73, doc. 16; ou nas Instruções do Vice-Rei da Índia sobre o porto e a cidade de Macao, datada de 1783, IHGB, 43 fls., lata 37, doc. 4, cópia.

19 O artigo do Padre António da Silva Rego, publicado no "Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa", Relações directas entre Macau e o Brasil: um sonho irrealizável?: (1717-1810), é a obra mais completa no assunto.

20 Alvará de 13 de Maio de 1810, assinado pelo Príncipe Regente D. João, que isenta de direitos de entrada nas alfândegas do Brasil as mercadorias da China, exportadas diretamente de Macau em navios portugueses, e o retoque feito em 7 de Julho, no mesmo ano, sobre a isenção dos dízimos e dos direitos de entrada. Seria interessante observar os documentos datados de 1809, Cartas do Desembargador Diogo Viveira de Tovar e Albuquerque ao Conde de Anadia relatando o estado dos estabelecimentos portugueses na Asia, IHGB, 24 fls., lata 100, doc. 3.

21 O tratado de 1808 visava apenas o comércio exterior.

22 Podemos citar como um dos exemplos os movimentos políticos de libertação que se processaram no final do século XVIII em Goa (Revolta dos Pintos) e no Brasil (Inconfidência Mineira).

23 Documentos do final do século XVIII mostram o de-bate sério que se travou sobre a possibilidade desta ligação. Veja a Correspondência do Vice-Rei António Luís da Câmara Coutinho nos Arquivos de Goa, MR, mss. 63, 64, 65...

24 Direitos que tinham as tripulações para transporte nos barcos de uma certa quantidade de mercadorias.

25 Gostaríamos de citar o estudo do Professor José Roberto do Amaral Lapa, A Bahia e a Carreira da Índia, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968 (Brasiliana, 338), que traz excelentes informações sobre o assunto.

26 Principalmente na região de Cachoeira, como podemos ver na imaginária da Matriz.

27 Cartas trocadas pelos missionários jesuítas trabalhando em países longínquos.

28 Quando já estávamos com este trabalho pronto, recebemos os trabalhos do Sr. Professor José Roberto Teixeira Leite e do Sr. Arquitecto Carlos Moura e vimos que ambos tocam no assunto.

29 Principalmente os da caixa 507.

30 GRAHAM, Mary, Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos anos de 1821, 1822, e 1823, trad. de Américo Jacobina Lacombe, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956.

31 SEIDLER, Carl, Dez anos de Brasil, trad. de Bertoldo Klinger, São Paulo, Martins, 1825.

32 Esta lata tem documentos sobre a Fazenda de Santa Cruz, desde 1795.

33 Santa Cruz faz parte do Município do Rio de Janeiro.

34 DRUMMOND, António Meneses de Vasconcelos, Apontamentos sobre a China em rascunhos, Lisboa, 20 Out. 1846, IHGB, 14 fls., mss., lata 2, doc. 7.

35 Datando do mesmo ano existe, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a cópia, possivelmente requisitada dentro da mesma proposta, do documento: ANDRADE, José Inácio de, Cartas escritas da India e da China nos anos de 1815 a 1835, BNRJ, I, 28, 29, 24 (Col. Martins); sobre o chá, sua cultura e manipulação.

36 O documento de Vasconcellos Drummond que traz uma visão de meio ambiente e desenvolvimento inesperada para a época está sendo motivo de estudo de observação interdisciplinar visando sua futura publicação.

37 ANDRADE, José Inácio de, Notícia sobre o chá, sua cultura, e manipulação, extraída das 'Cartas escritas da Índia, e da China nos anos de 1815 a 1835', BNRJ, 16 p., cópia, I-25, 27, 3. O documento contribui para demonstrar o interesse do Imperador Pedro II pelo cultivo do chá.

38 Por volta dos anos quarenta, muitas crianças brasileiras chamavam a sopeira de louça azul e branca e, às vezes, a própria sopa de "Macau".

39 Frase de um visitante da exposição: NO CAMINHO DAS INDIAS, Rio de Janeiro, 1983, No caminho das Indias: Janeiro-Abril de 1983, Rio de Janeiro, Museu do Primeiro Reinado, SMU, Funarj, 1983.

* Arqueóloga, Historiadora e Museóloga brasileira, Doutora em Arqueologia, especialista em História do Meio Ambiente e Impacto Ambiental provocado pela expansão europeia na ásia e América. Directora geral do MOUSEION - Centro de Estudos Museológicos e de Ciências do Homem e do Meio Ambiente - e do projecto "Rota das Especiarias". Foi autora do plano director e dirigiu a implantaçõo do Ecomuseu da Hidreléctrica da Itaipu Binacional; coordenou o número da revista "Museum", da UNESCO, sobre museus dos países de expressão lusófona. Criou a Triomus - Trienal de Museus, os Encontros de Museus de Países de Expressão Lusófona e a Lusologia - sociedade internacional de especialistas, museus e instituições afins de possível expressão lusófona. Eleita membro do Conselho de Direcção do ICOM -Conselho Internacional de Museus (1980 e 1983); presidente do Comitê Internacional para Museus de Arqueologia e História do ICOM (1989), representando o Conselho na CNUMAD -Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvimento; e foi indicada presidente da M&E - Rede Internacional de Museus e Meio Ambiente, durante o Forum Global 92 / UNCED (CNUMAD). Consultora das Nações Unidas, PNUD, CEPAL, UNESCO, a partir de 1974.

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