Macau-Brasil

ORIENTALISMOS NO BARROCO EM MINAS GERAIS E A CIRCULARIDADE CULTURAL ENTRE O ORIENTE E O OCIDENTE

Sônia Maria Fonseca*

Capela de Na sra do Ó. Sabará: detalhe de painel. Foto de Raquel Ferraz Proença

"Esse nome de Oriente é um dos quais me parece um tesouro. Para que Tal nome produza no espírito de alguém seu pleno e total efeito, é preciso antes de mais nada não haver jamais estado na região mal determinada que designa (...). É assim que compõe uma boa matéria de sonho."

Paul Valéry

A análise da presença de elementos da arte chine-sa, japonesa, indiana, mourisca, no âmbito da arte bar--roca no Brasil, permanece, ainda, como filão temático a ser explorado pelos pesquisadores de história da arte.

Indo além das fronteiras do Barroco no Brasil, podemos constatar elementos orientais em edificações e figurações no México (torres da Igreja de Tasco, próximo a Acapulco; friso com dragões e pelicanos no Convento de Coixtlahuaca; púlpito da Igreja de Huaque-chula com figuras hindus; palco chinês da Catedral de Guadalajara), Peru (portada do Colégio Jesuítico de Ayacucho, onde foi esculpido um elefante), Colômbia (altar mor da Igreja de São Francisco de Bogotá com faisões e elefantes), Equador (Capela de São Javier em Nazca, onde há dragões marinhos rodeando uma divin-dade em atitude védica), para ficarmos somente nesses exemplos.1

No Brasil, temos um repertório de casos de ocor—rências, variado nas suas manifestações, mas geografi-camente delimitado, se levarmos em conta a extensão territorial. Entre os estudiosos que contribuíram para o mapeamento das influências orientais na cultura brasi-leira está Gilberto Freyre, que elencou os aspectos materiais dessa influência sobre a vida, a paisagem e a cultura brasileira. Para o autor, "o que parece é que, ao findar o século XVIII e ao principiar o XIX, em nenhuma outra área americana o palanquim, a esteira, a quitanda, o chafariz, o fogo de vista, a telha côncava, o bangüê, a rótula ou gelosia de madeira, o xale e o turbante de mulher, a casa caiada de branco ou pintada de cor viva e em forma de pagode, as pontas do beiral de telhado arrebitadas em cornos de lua, o azulejo, o coqueiro e a mangueira da Índia, a elefantíase dos Árabes, o cuscuz, o alfeolo, o alfenim, o arroz-doce com canela, o cravo das Molucas, a canela de Ceilão, a pimenta de Cochim, o chá da China, a cânfora de Bornéu, a muscadeira de Bandu, a fazenda e a louça da China e da Índia, os per-fumes do Oriente, haviam-se aclimatado com o mesmo à-vontade que no Brasil (...)".2

No nordeste brasileiro, cuja colonização remonta aos primórdios do século XVI, restaram, esparsos, poucos exemplos intactos, sendo um armário com chinoiseries na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Cachoeira, Bahia, o único exemplo significativo que pudemos observar. Os elementos de composição na decoração interna e externa deste armário são figuras humanas ladeadas por árvores, flores e pássaros, em cores fortes sobre fundo claro.

Em Minas Gerais, a presença de elementos orien-tais, sobretudo da arte chinesa, ocorre em maior número. Elegemos, portanto, essa área para analisarmos as cir-cunstâncias em que surgiram, especialmente em se tra-tando de seus traços na arte barroca.

A configuração arquitetônica de algumas edifi-cações, desde logo, atraiu a atenção de viajantes, que notaram certas semelhanças entre as construções feitas na região mineradora com a arquitetura chinesa. Ri-chard Burton,3 ainda no sé-culo passado, notava semel--hança entre a disposição das calhas nos telhados das casas coloniais com o modo de edificá-las na China, onde a diferença subs-tancial, segundo o cronista, seria o emprego de material: bambu, no caso chinês. Mais recentemente, foi M. Brajnikov quem comparou a arquitetura mineira do sé-culo XVIII à arquitetura chinesa. Os beirais alevan-tados dos telhados das an-tigas casas em Sabará, Ma-riana e Caeté seriam, para a autora, muito característico do tipo de construção no Extremo Oriente. Ainda segundo a autora, a hipótese provável para a existência destas similitudes é de que as ordens monásticas dos Franciscanos e, em particular, a dos Jesuítas tenham desempenhado papel importante no traslado das características arquitetônicas orientais para o Brasil.4 No caso de Minas, esta hipótese tem suas res-trições, uma vez que era proibição régia a permanência do clero regular na região mineradora, tendo os leigos se organizado em torno de irmandades, confrarias e or-dens terceiras.5 O referido traslado, portanto, só poderia ter chegado por outras vias.

Mas as semelhanças não param aí. O frontispício chanfrado de algumas capelas e igrejas, como a de Santa Rita, do Serro, a Igreja das Mercês e a Arquiconfraria dos Anjos, em Mariana, as Igrejas Rosário, de Itabira e de Santa Bárbara, a Igreja São Francisco, de Caeté e a Capela do Ó, em Sabará, lembra a forma arquitetô-nica dos pagodes chineses.

Capela de Na Sra do Ó, Sabará: frontispício. Foto de Raquel Ferraz Proença

Quando passamos a examinar a escultura, nosso campo de análise restringe-se. Em menor escala, mas não menos importante, encontramos em algumas peças escultóricas, princi-palmente na imaginária, a presença de turquices, assim chamadas por reve-larem uma preferência pelo modo de vestir e traços físi-cos dos povos árabes. Po-demos encontrar tais carac-terísticas, por exemplo, nos profetas de António Fran-cisco Lisboa - o Alei-jadinho, no adro do San-tuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congo-nhas do Campo. Roberth Smith esclarece tratar-se de uma tradição medieval todas as figuras bíblicas e da hagiografia cristã serem representadas com mantos, barretes e turbantes, dentro do espírito da vestimenta mourisca.

No Museu Arquidiocesano de Mariana, encon-tramos uma peça singular: uma escultura de Santa Cecí-lia, com traços orientais chineses acentuados nas feições, no penteado e nos trajes. Padroeira dos músicos e das corporações musicais, esta santa teve sua devoção muito difundida em Minas, devido à intensa atividade musi-cal no período colonial.

A pintura, dentre as ditas artes plásticas, é a que mais se destaca enquanto manifestação do contato das artes do Extremo Oriente com a arte barroca. Um tipo de representação pictórica, consensualmente conhecido por chinoiserie ou chinesice,6encontra-se representado nas portas da sacristia e no altar da Capela do SS. Sacramento da Igreja Nossa Senhora da Conceição -Matriz, nos painéis (num total de sete) que circundam o arco cruzeiro da Capela Nossa Senhora do Ó, no teto da sacristia da Capela da Soledade, em Sabará; no órgão e nos vinte painéis do espaldar do cadeiral da capela-mor da Catedral Sé, no barravento da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Mariana; nos nichos dos altares laterais da Igreja Matriz de Catas Altas; na capela-mor da Igreja Matriz de Cachoeira do Campo.

Estas imagens de-monstram, através das evi-dências materiais, a utiliza-ção da técnica da laca, já muito difundida na Europa por volta do século XVII,7 e a apropriação de temas comuns à figuração chine-sa, tais como flores e pássaros,8 pagodes, paisagens, árvores (amoreira, cerejeira, bambu, etc.), animais; onde figuras douradas são representadas sobre fundo vermelho ou azul. Encontramos, também, estas pinturas em um oratório (Museu da Inconfidência, em Ouro Preto) e em uma urna de votos (Museu Arquidiocesano de Mariana), ambos do século XVIII.

Um dado que se revela importante é que os locais mais comuns de ocorrência das chinoiseries são as igrejas construídas na primeira metade do século XVIII, na sua maioria matrizes, o que nos leva a inferir que estas imagens detinham uma feição mais requintada para o gosto da época. O que causa espécie, à primeira vista, ao observador mais atento, é o facto de tratarem-se de pinturas de inspiração pro-fana em locais, por exce-lência, de iconografia cristã. As chinesices não se confi-guram em alegorias ou me-táforas; elas são, no nosso entendimento, um dos arti-fícios de valor decorativo que a arte barroca utilizou, no seu esforço de síntese da linguagem plástica. Para Lourival G. Machado, "só podemos compreendê-las em sentido apenas deco-rativo sem significação sim-bólica",9 o que acaba resultando num efeito de "singularidade ornamen-tal".10 A temática profana não é inovação barroca; o que pode ser ressalvado aqui é que o Barroco pro-moveu uma "dessacrali-zação"11 no domínio do sa-grado.

Museu Arquidiocesano de Mariana: imagem de Sta Cecília. Foto de Raquel Ferraz Proença

Passando à análise iconográfica dessas repre-sentações pictóricas, cons-tatamos que há uma certa repetição nos motivos de composição. Nos painéis do cadeiral da Sé de Mariana, como exemplo, predomina a representação de figuras humanas, animais, pássaros e borboletas, estruturas arquitetônicas e, em menor número, veículos de locomo- ção. Dos vinte painéis do cadeiral, quinze apresentam cenas de caça. Podemos notar que algumas figuras humanas alternam-se em diversos painéis demons-trando, com isso, que o artista trabalhou uma variedade de posições a partir dos mesmos modelos. Exempli-ficando: os caçadores que aparecem no segundo painel do lado direito, reaparecem no sexto, sétimo e oitavo painéis do mesmo lado. Na Capela do Ó, em Sabará, semelhante esquema acontece: os sete painéis, ou carte-las, dispostas em molduras octogonais, são concebidas a partir de quatro modelos básicos. O artista dispõe, simetricamente, seis cartelas encimadas por uma peque-na que arremata o arco cruzeiro. As seis cartelas confi-guram-se em pares, onde são representados pássaros e pagodes. Há nessas pinturas ausência de volume, o que sugere ao observador serem chapadas e estáticas: o movimento é dado, basicamente, pelo vôo dos pássaros.

Sé de Mariana: espaldar do cadeiral — detalhe. Foto de Raquel Ferraz Proença

As pinturas na sacristia da Capela da Soledade, em Sabará, apresentam, basicamente, motivos de pás--saros e flores, em cores alegres sobre fundo branco; produzem efeitos graciosos, típicos do Rococó europeu. Nas pinturas da capela do Santíssimo, na Matriz de Sabará, as figuras humanas foram suprimidas, dando lugar somente a pagodes e a outras estruturas arquite-tônicas. A porta original da sacristia, na Matriz de Saba-rá, a mais escura e danificada, serviu de modelo para a fatura de uma outra, ambas servindo à composição simé-trica, nas laterais da capela-mor, sendo que uma delas não leva a parte alguma.

A análise estética destas peças tornou-se tarefa quase impossível devido as péssimas condições de conservação; outro fator agravante é a ausência de acer-vo documental (livros de receita e despesa, livros de assentos, etc.) perdidos em um suposto incêndio. Um dos raros registros disponíveis é um desenho de detalhe da porta da sacristia, feito por Eugènie Brajnikov, por volta de 1950. Brajnikov12 aponta que o tema nela representado é o mesmo da arte namban,13 onde os mis-sionários e comerciantes europeus eram figurados pelos Japoneses, em biombos. Ocorre que, pelo que pudemos notar, alguns elementos de composição aproximam-se dos figurados no espaldar do cadeiral da Sé de Mariana, ou seja, figuras humanas entre pagodes, árvores, pássaros.

A tradição popular e oral narra que a "porta de Macau" da capela-mor da Matriz de Sabará teria sido doada por um rei português - supostamente D. João V, que fez também a doação do órgão da Sé de Mariana; esta última dispõe de fontes documentais manuscritas.

Certamente uma das questões que mais tem sus-citado o interesse dos pesquisadores é estabe-lecer a procedência de tais imagens, através da análise de sua fatura. No que diz respeito à veiculação e à produção dessas imagens pictóricas, é possível aven-tar uma hipótese. Em Ma-riana, na primeira metade do século XVIII, viveu o pintor Jacinto Ribeiro, como consta do registro do Livro de termos de ad-moestações: "Nesta fregue-sia de Nossa Sra. da Conceição dos Camargos appareceu Jacinto Ribeiro, homem solteiro, que vive da sua arte de pintor, natural da Índia e ora morador na gama desta freguesia de idade que disse ser de trinta e oito annos para ser admoestado".14

Apesar da presença documentalmente compro-vada, naquele momento, de um único pintor de proce-dência oriental na região de Minas, muito pertinente parece-nos a hipótese da existência de outros pintores em condições similares, que teriam atuado em outras regiões da colônia. Há registro do pintor jesuíta Charles Belleville, que "em 1708, náufrago ou doente, sem con-dições para prosseguir a viagem que da China o levava à Europa, fixa-se em Salvador".15 É de supor que, pelo longo contato com a cultura oriental, esse jesuíta pu-desse, hipoteticamente, tê-la difundido na colônia.

Museu da Inconfidência, Ouro Preto: oratório, séc. XVIII. Foto de Raquel Ferraz Proença

Sylvio de Vascon-cellos, em ensaio sobre a Capela do Ó de Sabará,16 sugere que este gosto orien-talizante por motivos pictó-ricos chineses poderia ter si-do recolhido da louça de Macau, que era bastante utilizada no Brasil colônia, sobretudo na região de Mi-nas, afora o acervo de porce-lanas da Companhia das Ín-dias Ocidentais, que hoje encontra-se disperso em museus e coleções particu-lares, muitas vezes não disponíveis aos estudiosos, o que não nos tem permitido fazer afirmações desta natu-reza. Resta-nos estudo pio-neiro como o de Mafalda Zemella,17 que atesta o comércio efetivo de tais pro-dutos. Segundo a autora, "a Bahia funcionava como entreposto importador de ar-tigos embarcados em Lisboa, de produção reinol ou de outras procedências. Pela Bahia (localizada mais próxima de Lisboa que do Rio de Janeiro ou Santos e gozando, por isto, das vantagens dos fretes menores), entravam para as Gerais espelhos ornados de ricas mol-duras, louças da Índia, panos de Damasco, tapeçaria das mais famosas fábricas da Europa e do Oriente (...)".18

Apesar de haver legislação portuguesa proibi-tiva para este comércio, é de supor que, dadas as dificul-dades de fiscalização, ele ocorresse com regularidade. Charles Boxer esclarece que "as naus da Carreira da Índia, que tocavam regularmente na Bahia, em suas via-gens de Goa e Macau, estavam entre os piores trans-gressores".19 Do porto de Macau, grande exportador de gêneros e produtos do Oriente, devido a sua posição estratégica, partiam as embarcações para Portugal e daí eram distribuídos os artigos pela Europa.

A CIRCULARIDADE CULTURAL: UMA SUPOSIÇÃO TEÓRICA

Na tentativa de compreensão das relações culturais entre o Oriente e o Ocidente, pensamos no ter-mo circularidade cultural como síntese explicativa. Tal como pensamos, difere da proposta de Carlo Guinsburg que usa o termo para se referir à "circularidade entre a cultura das classes dominantes e a das classes subal-ternas que existiu na Europa pré-industrial, um relacio-namento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para bai-xo".20 Apropriamos da idéia concebida por Guinsburg para referirmo-nos a uma circulação não a níveis de cul-tura, mas entre culturas distintas: percebemos, portanto, um movimento circular no plano horizontal, deixando de parte a idéia de hierarquia cultural.

Museu Arquidiocesano de Mariana: urna de votos, séc. XVIII.

Foto de Raquel Ferraz Proença

A circulação comercial de produtos e artigos de luxo, provenientes da Carreira da Índia, permitindo o "intercurso de valores culturais"21 e a presença de artistas e artífices de procedência asiática na região mineradora concorrem, sem dúvida, para explicar a produção e a difusão destas representações orientalizantes, mas há que se considerar, ainda, a tendência que havia dos pintores do período colonial utilizarem-se de modelos europeus.22 Quando da primeira investigação pela via exposta, descar-tamos a possibilidade do órgão da Sé de Mariana e a "porta de Macau" (esta, tal como já abordamos anteriormente, tem algumas semelhanças com os painéis da Sé de Mariana), vindos de Portugal, terem servido de modelo para outras representações, tendo em vista haver grande diferença na fatura, nos motivos de composição.

Contudo, a via européia não pode ser descartada. Todos os indícios materiais da existência dos orientalis-mos na arte de Minas Gerais levam-nos a supor que são uma decorrência histórica dos costumes europeus, nos séculos XVII e XVIII, surgidos quando do contato comercial e cultural com o Oriente. Não pretendemos historicizar a respeito da significação do termo orienta-lismos, porquanto é usual na historiografia da arte, o que seria pretensão fazê-lo neste espaço. Entretanto, adotamos aqui uma significação que nos parece mais de acordo com a nossa linha de pesquisa. Assim, consi-deramos que orientalismos encerram uma "solução estética de um problema estético, mas também (...) o produto de um interesse específico pelos países orientais, interesse em que todo o caso, muito deve à tradição lite-rária da viagem pelo oriente".23

As representações literárias e iconográficas que os Europeus produziram sobre o Oriente, desde as pri-meiras expedições exploradoras do veneziano Marco Polo, foram se sedimentando no imaginário europeu, como se esta imagem correspondesse à realidade cultu-ral daqueles povos. Sucederam-se publicações de relatos de viagem, guias e roteiros. Mas é no século XVIII que filósofos como Voltaire e Montesquieu lançaram as luzes da razão sobre a cultura oriental, produzindo ensaios filosóficos e obras literárias que recorriam, como recurso temático, às sociedades e culturas orientais.

Voltaire, na obra Zadig ou o Destino - espécie de conto filosófico, busca definir o perfil decantado da sabedoria oriental através da personagem chave - Zadig, um sábio babilônio, às voltas com seu próprio destino que, vez por outra, reserva-lhe dissabores e situações inusitadas, das quais se livra usando de arguta sabedoria. Com as Cartas persas, 1721, Montesquieu cria uma sá-tira moral e política da sociedade francesa no reinado de Luís XIV, a partir da visão de dois viajantes - Rica e Usbek, que viajam pela França nos últimos anos de go-verno do monarca absolutista francês.

Para Paul Hazard, "se pudéssemos definir o sé-culo XVIII numa palavra e ação, poderíamos dizer que é o século da descoberta, das viagens".24 Entre 1704 e 1711, são publicadas a tradução de Antoine Galand das Mil e uma noites, que fornecia relatos mais fidedignos dos costumes e hábitos orientais. Os pintores do período imitaram as lacas e os vernizes da China e do Japão. Antoine Wateau (1684-1721) decorou o Castelo de La Muette com chinesices e François Boucher (1703-1770) forneceu, através de sua obra Sequência de figuras chinesas, modelos que foram reproduzidos por toda a Europa. Boucher foi, para além de pintor favorito de Mme. de Pompadour,25 prestigiado e requisitado por toda a sociedade francesa no século XVIII.

O material literário e iconográfico produzido desse contato com o Oriente nutria a imaginação e a curiosidade dos Europeus sobre esta região distante e cheia de exotismos. Desse modo, as "ardentes espe-ciarias", tal como no verso de Camões,26 as sedas e porcelanas chinesas tiveram tanto êxito no mercado europeu não somente pela raridade e preciosidade dos artigos em si, mas por se constituírem em extratos mate-riais daquelas culturas, isto é, a prova concreta de sua existência. Até aproximadamente o século XVIII, o Oriente, comercialmente explorado, era conhecido pelo nome genérico de Índias; por estas compreendiam os Europeus as regiões da China, Japão, Arábia e Índia, pro-priamente dita.

Ao procurarmos os antecedentes europeus das pinturas chinoiseries, pudemos constatar que na Europa a decoração palaciana rendeu-se à moda chinesa; em vários ambientes palacianos eram comuns os gabinetes chineses. O exemplar mais antigo encontra-se no Castelo de Rosenberg, em Copenhagem, datado de 1617; são painéis de parede com paisagens chinesas, onde figuras humanas douradas foram pintadas imitando laca, sobre fundo verde e preto. Assim temos, também, nos palácios de Aranjuez, Schönbrunn, Versalhes, Queluz e Stadt, exemplos desta moda européia. Em Portugal, na biblio-teca da antiga Universidade de Coimbra, há chinesices figuradas em painéis, alternadamente, sobre fundo azul, vermelho e verde.27 Com certeza, num levantamento minucioso, outros casos de ocorrência surgirão.

A Europa foi, portanto, a porta de acesso de uma arte e suas expressões plásticas resultantes de uma in-terseção cultural, cujo paradigma maior são os orientalismos transplantados para as colônias ultrama-rinas. Concluindo, vale lembrar a afirmação de José A. Maravall, "que una cultura dispone siempre de prés-tamos y legados, los cuales le llegan de otras precedentes y lejanas, és algo facil de comprobar".28

NOTAS

1 BUSCHIAZZO, Mario Jose, Influencias exoticas en la arte colonial, "La prensa", Buenos Aires, 29 Abr. 1945. Esses e outros exemplos foram apontados, por Buschiazzo, nesse artigo, onde faz breves referências ao Brasil.

2 FREIRE, Gilberto, O Oriente e o Ocidente, in: Sobrados e mocambos, 7a ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1985, t. 2, p. 424.

3 BURTON, Richard, Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho, São Paulo, Belo Horizonte, EDUSP, Itatiaia, 1976.

4 BRAJNIKOV, Eugénie M., Traces de l'influence de l'art oriental sur l'art brésilien du debut du XVIIIe siècle, "Revista da Universidade de Minas Gerais", Belo Horizonte, (9) Maio 1951, pp. 40-60.

5 BOSCHI, Caio César, Os leigos e o poder, São Paulo, Ática, 1986. Este autor faz o estudo mais completo e atual sobre a organização social em Minas Gerais.

6 Foram estabelecidas, para o estudo das chinoiseries, 4 períodos. No 1° período, que vai de 1650 a 1715, tem-se a predominância do uso de objetos originais ou imitações, principalmente a laca e a porcelana; o 2° período -1715-1730-é encontrado acentuadamente na Alemanha e, em menor proporção, na França: abandona a imitação fiel, buscando salientar o caráter exótico; o 3° período -1715-1770 - caracteriza-se pelo modismo propriamente dito, podendo notar-se sua presença tanto na decoração como na pintura de Watteau e Boucher; por fim, o 4° período - a partir de 1750 - estende-se aos ambientes externos, principalmente aos jardins, que abandonam a geometria e adotam o modelo chinês, mais naturalista. YAMADA, Chissaburo, Dei chinamode des spätbarock, Berlin, Würfel, 1936. Apud ABRANTES, Dalva, Chinoiserie no barroco mineiro, São Paulo, 1982, pp. 107-8, mimeografado, (dissertação de mestrado apresentada à ECA/USP).

7 SCHÖNBERGER, Amo; SOEHNER, Halldor, Chinoi-serie and the exotic East, in: The Rococo age: art and civilization ofthe 18th century, London, New York, Mcgraw-Hill, 1960, p. 87.

8 HOUGTHON, A. H., La pintura china, México, Buenos Aires, Breviarios del Fondo de Cultura Economica, 1954, p. 39. Segundo Hougthon flores e pássaros é um gênero da antiga pintura chinesa que teve origem no período da Dinastia Tang (618-906 d. C.).

9 MACHADO, Lourival Gomes, O Barroco em Minas Gerais, Belo Horizonte, I Seminário de Estudos Mineiros -UFMG, [s. d.], p.51.

10 ÁVILA, Afonso, Igrejas e capelas de Sabará, "Revista Barroco", Belo Horizonte, (8) 1976, p. 30.

11 CHAUNU, Pierre, A civilização da Europa clássica, Lisboa, Estampa, 1987, vol. 1, p. 55.

12 BRAJNIKOV, op. cit., p. 52.

13 CAVALLI, Francesca, A missão jesuítica no Japão e a arte religiosa, "Revista Barroco", Belo Horizonte, (12) 1981, p. 324.

14 LIVRO de termos de admoestações, AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, fl. 75. Apud MAR-TINS, Judith, Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais, Rio de Janeiro, MEC/IPHAN, 1974, vol. 2, p. 163.

15 BARDI, Pietro Maria, Influxos vindos do Oriente, in: ZANINI, Walter, História da arte brasileira, 4a ed., São Paulo, Melhoramentos, 1975, p. 91.

16 VASCONCELOS, Sílvio, Capela de Nossa Sra. do Ó, Belo Horizonte, Escola de Arquitetura da Universidade de Mi-nas Gerais, 1964, p. 27.

17 ZEMELLA, Mafalda P., O abastecimento da Capitania das Minas Gerais no século XVIII, São Paulo, 1950, tese de doutoramento apresentada à FFLCH, da Universidade de São Paulo.

18 Idem, p. 72.

19 BOXER, Charles Ralph, A idade do ouro do Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969, p. 177.

20 GUINSBURG, Carlo, O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 11-3.

21 LAPA, José Roberto A., A Bahia e a Carreira da Índia, São Paulo, Companhia Editora Nacional, EDUSP, 1968, p. 21.

22 Para esta quetão, ver LEVY, Hannah, Modelos europeus na pintura colonial, "Revista do SPHAN", Rio de Janeiro, (8) 1944, pp.7-89.

23 BOURDIEU, Pierre, O poder simbólico, Rio de Ja-neiro, Bertrand, 1989, p.269.

24 HAZARD, Paul, A crise da consciência européia, Lisboa, Cosmos, [s. d.], p. 17.

25 FRIEIRO, Eduardo, Orientalismos nas igrejas mineiras, in: O diabo na livraria do cônego, Belo Horizonte, Itatiaia, 1981, p. 164. Frieiro afirma que Mme. Pompadour, favorita de Luís XV, teria ajudado a incutir nos Franceses o gosto pelas chinoiseries.

26 CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889, p. 54, canto II, estrofe IV.

27 ABRANTES, op. cit., p. 109.

28 MARAVALL, José Antônio, La cultura del Barroco, Madrid, Ariel, 1986, p. 25.

* Licenciada em História, Universidade Federal de Ouro Preto, especializou-se em Arquivologia. É responsável pela organização de arquivos históricos no Centro da Memória Cul-tural, Prefeitura Municipal de Santos, e inventariou o fundo Milícias do litoral paulista, no prelo.

desde a p. 109
até a p.