Atrium

Do Universo ao Universo

Luís Sá Cunha

Há um luso-tropicalismo, cuja tese foi definitivamente estruturada por Gilberto Freire.

Também a fisionomia urbana e humana de Macau di tempo antigo se insere autenticamente neste quadro antropológico de lusitanidade.

Para o confirmar, bastava ouvir uma velha nhonhonha a expressar-se no doce e melodioso patoá. Surpreender os recortes "mediterrânicos" da típica arquitectura macaense dos "tempos patrimoniais". Reconhecer no guarda-roupa do teatro humano a vestuária das paisagens mais solares. Decantar as semelhanças, os traços do mais consanguíneo parentesco entre a velha Praia Grande e o risco das cidades que debruam a costa brasileira.

Por razões de similitude ambiente e comum fraternidade cultural, terão muitas famílias macaenses demandado o Brasil nas últimas décadas. Já agora se prevê novo fluxo migratório para terras brasileiras, até 1999. Em ampliação e renovação daquele tronco da diáspora macaense.

A definição que Manuel Bandeira deu do Brasileiro, ajusta-se agora mais a um Macaense, a viver tardamente a cisão do fim do Império: "é um português à solta".

Por si sós, bastariam os termos desta geminação Macau/Brasil para justificar a edição deste número da Revista de Cultura do Instituto Cultural de Macau, há anos já concebido e exaltado na colaboração entusiasta de Fernanda de Camargo-Moro.

Com ele intentamos congregar os primeiros esforços de uma diagnose, em estímulo de prognose que seja arco de mais profunda relação entre dois parentes geograficamente tão apartados. Pensamos, com isto, na maior re-união da Família Lusa, arquitectura pátrida de fraternal comunidade conversável na mesma Língua.

Com este levantamento introdutório, o que fica também em relevo é que os grandes, e exclusivos, contactos históricos que a China teve com o Brasil, foram sobretudo através de Macau.

Moveu-nos, assim, melhor divulgar às duas Nações, Chinesa e Brasileira, irmãs na grandeza e nas potencialidades, aliadas objectivas no concerto geo-político mundial, a memória dos encontros passados tonificante de reencontros futuros.

No meio, Macau, sempre. A confirmar duas vocações polares entre as oscilações da história. A pulsão marítima, centrífuga, de suficiência e abertura ao exterior; e a missão radial, de antena sintonizada com as partes do mundo, mensageira de dois hemisférios civilizacionais.

Teve a RC a felicidade de poder inaugurar a oiro o Átrio desta edição com um prefácio do Mestre Agostinho da Silva. Terá sido, certamente, um dos derradeiros testemunhos que a sua personalidade cordial nos ofereceu em vida.

Mais bem do que a sua, nenhuma palavra se apropriaria aqui deste espaço.

Fica-nos dele, para sempre, a imagem clássica de vulto das antigas eras heróicas, a recortar-se das páginas da Bíblia ou de uma crónica medieval. Com o seu perfil de Profeta entre gatos, de pobre franciscano esmoler de Infinito.

Andarilho e vagamundo, de Espírito e geografias universais, no Brasil iria mineirar as mais puras gemas do Velho Portugal, as mais íntegras sobrevivências do lusismo. Ei-lo no arranque fundacional de mais de uma dúzia de Universidades, entre as quais a de Brasília. Ergue o Centro de Estudos Portugueses. Entusiasma espíritos, com o carisma do seu verbo iluminante, do historiador Carlos Francisco Moura ao poeta esotérico Santiago Naud.

Sempre de vela panda, com prudências de bolina a virar os contrários em favor, é o pensamento náutico à descoberta do Futuro: ou Parússia, ou Nova Idade do Ouro, ou Jerusalém Terrestre ou Celeste.

Assim, Profeta, na íntima audição dos arcanos mais promissores do profetismo lusitano: da VII Idade de Fernão Lopes, do V Império de Vieira e de Fernando Pessoa, do Advento do V Evangelho ou Eterno de Joaquim de Flora, da visão de Camões na Ilha dos Amores.

Visionário de Império a haver. Não do ter, da posse ou domínio. Mas uma escatologia da fraternidade universal, depois do derrube da Torre de Babel, os homens em ecúmena a falarem todas as línguas, sem haver uns que ensinem os outros — porque a Coroa pousa na cabeça da Criança.

Desde já, o movimento libertador de um "abraço do universo ao universo" das "partes da China" ao planalto brasileiro, e tomando nas mãos a África, de caminho.

Como ele propõe neste Átrio, e nos resta seguir com humildade.

O Director da RC

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