Crónica Macaense

DA VARANDA DE SANTA SANCHA
Memórias do Ex-Governador António Adriano Faria Lopes dos Santos

Esta crónica é a primeira publicada, de uma série de seis, para que solicitámos a colaboração e os depoimentos de seis Governadores de Macau. Sob o título genérico de "Da Varanda de Santa Sancha"- sugestivo da perspectiva memorialista - é nossa intenção convocar testemunhos que, pela especial vivência e ligação dos seus autores a Macau, em muito podem documentar a evolução e os meandros da história mais recente do Território.

Em sequência cronológica, iniciamos esta secção com a crónica do Brigadeiro António Adriano Lopes dos Santos, que tomou posse como Governador em Abril de 1962 e terminou as suas funções em 1966.

1. Como antigo Governador de Macau foi com o maior prazer que aceitei o convite do senhor Presidente do Instituto Cultural de Macau para "confessar" algumas memórias, impressões, episódios do período em que habi-tei "Santa Sancha".

Curiosamente, passei largas ho-ras sentado à noite, nos "terraços" de Santa Sancha, contemplados pelas ilhas dispersas nas águas turvas e sempre mexidas, envolventes da península de Macau. É que, ali, meditação e contem-plação "interior" eram as atitudes do meu espírito.

2. Começarei por uma memória geral dos aspectos mais preocupantes durante o meu governo.

Como único governador ainda vivo do período anterior ao "25 de Abril", alguns factos relembrarei, tam-bém, dessa época, à laia de notas soltas, por os considerar singulares.

Terminarei com algumas refle-xões a propósito do futuro de Macau, tema apaixonante, irresistível e, simul-taneamente, muito preocupante.

3. A posição geográfica de Ma-cau, território encravado na China Con-tinental, envolvido por águas chinesas, praticamente sem recursos naturais, aconselhava, por parte do Governador de Macau, a manter os desejos de boa vizinhança com a China Continental.

O agregado humano de Macau apresentava-se, tal como hoje, formado por uma comunidade heterogénea, com acentuada predominância de chineses, estes com uma apreciável população flutuante e de refugiados, mas com uma tradição de boa convivência e entendi-mento entre dois povos de naturezas tão díspares, entre duas civilizações tão dis-tintas, entre duas culturas tão diferenci-adas. Coexistência sem paralelo na com-preensão de atitudes, no respeito pelos costumes diversos e na miscigenação, ao ponto de ter criado, ao longo de mais de quatro séculos, uma comunidade multirracial de profundas tradições, caso ímpar no Extremo Oriente.

Na verdade os macaenses cons-tituem um grupo português bem dife-renciado, que sobressai em todos os pontos do mundo onde trabalha, pela sua inteligência, pela sua cultura e pelo seu portuguesismo.

Mas nem por isso a Administra-ção de Macau deixou de sentir dificul-dades ao longo dos tempos. Muitas delas teriam resultado ou de erros da administração local, ou de intrigas provocadas internamente ou, também, de exigências ou pressões dos vizinhos.

4. É óbvio que não vou, aqui e agora, fazer a apologia do que o gover-nador fez na altura, ou justificar o que não fez e devia ter feito. Desejo apenas salientar as dificuldades que o governo enfrentava na década de sessenta. Ver-bas largamente insuficientes, com o orçamento, em 1966, a rondar os 50 milhões de patacas, o que em pouco ultrapassava os 8 milhões de dólares norte - americanos. Valor aproximado tinha então o orçamento do Plano de Fomento o que, no total, significava uma disponibilidade anual, para o go-verno e serviços autónomos, da ordem dos 500 mil contos; números que, em valor acrescentado, não têm paralelo com os orçamentos actuais. De resto, também não são comparáveis com as de hoje as estruturas dos departamentos públicos e empresas privadas da altura, e consequente capacidade de produção e de realização.

Bastará lembrar que, ainda em 1966, o governo de Macau era constitu-ído pelo Governador, com um chefe de gabinete, um secretário e um ajudante de campo, apoiado pelos serviços pú-blicos encabeçados por chefes de servi-ço.

5. Durante o meu governo as soluções tinham de ser pensadas e re-pensadas, sobretudo quando os proble-mas eram de natureza política em rela-ção à RPC, ou afectos a organizações ou a pessoas a ela ligadas. Para isso contri-buía a não existência de relações diplo-máticas com a RPC e também a presen-ça em Macau, até Abril de 1965, da Delegacia Especial do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Formosa, de que falaremos adiante.

Aliás, Macau foi sempre, ao lon-go de mais de quatro séculos de presen-ça portuguesa, um território, embora minúsculo, muito difícil de governar, um quebra-cabeças quase permanente para os capitães-generais e, depois, para os Governadores. Apesar de tudo, nun-ca a bandeira portuguesa deixou de flutuar nos mastros da "cidade do Nome de Deus, não há outra mais leal".

6. Considerámos sempre funda-mental aumentar a presença de elemen-tos qualificados, naturais de Macau, em lugares de importância da Administra-ção, como entendemos ser indispensá-vel a colaboração de figuras de relêvo locais, portugueses, alguns naturais de Macau, e da comunidade chinesa. Fo-ram muitos, e é justo salientar que se obteve sempre a melhor colaboração de todos.

Assim, eram com frequência ou-vidas - quanto a assuntos com previsí-veis implicações políticas, ou quanto a outros que chegavam ao governador já com problemas criados, alguns ridícu-los na aparência, mas reais frente a interesses chineses.

Destes citarei, sem ir mais lon-ge, os das hortas da Ilha Verde e dos Aterros do Porto Exterior, terrenos com frequentes interesses para construção ou para arruamentos. O Conselho do Governo, presidido pelo Governador e com reuniões reservadas, era também ouvido com frequência. Não vou citar nomes para evitar melindres.

7. A tranquilidade do território significava, para o governo, condição "sine qua non" do seu desenvolvimen-to. Na verdade, procurava-se, através do aumento e melhoria das actividades industriais, fomentar o progresso do território, pois não podia apoiar-se es-sencialmente, como sucedia, nas recei-tas da concessão do ouro, então a maior, e da concessão do jogo. Daí que a matriz determinante da acção govemativa fos-se o factor político relativamente, claro está, à R. P. C.. Como consequência, ti-nha especial interesse para o Governo estreitar as relações com algumas enti-dades chinesas de Macau.

António Lopes dos Santos (retrato da Galeria do Leal Senado).

Ho Yin, como presidente da As-sociação Comercial e deputado à Assembleia Nacional Popular em Pe-quim, como representante dos chineses de Macau, era o mais saliente dirigente da comunidade chinesa de Macau, já comprovado amigo dos portugueses e, do antecedente, membro do Conselho Legislativo.

Sem dúvida homem notável e esclarecido, mostrou-se sempre dispo-nível e pronto a colaborar com o Gover-nador na resolução de casos "difíceis" com implicações políticas locais ou ex-ternas em relação à RPC. De notar que este conceito tinha, em Macau, um sig-nificado mais lato que o usual. Por vezes pequenas questões afectas à ad-ministração portuguesa, serviços públi-cos, departamentos militares ou Leal Senado, envolvendo população ou inte-resses chineses, avolumavam-se, so-bretudo quando intervinha a Associa-ção dos Operários, na pretensa defesa dos interesses dos associados. Mas, e não só, outras figuras de relêvo da co-munidade chinesa, como Ma Man Kei, vice-presidente da Associação Comer-cial, Chui Tak Kei, vogal da Comissão Administrativa do Leal Senado, Roque Choi, procuravam defender os interes-ses de Macau, perante o Governo.

De salientar que pouco tempo após a minha chegada a Macau, logo a seguir à ocorrência do incidente em que foram recolhidos nos limites das nossas águas, por uma vedeta da Polícia Marí-tima e Fiscal, alguns fugitivos da RPC, perseguidos por uma vedeta chinesa, em conversa com Ho Yin concluí pela grande vantagem em iniciar contactos com o Sr. Ho Ping, efectivo represen-tante da RPC em Macau e gerente da firma Nam Kwong, verdadeiro entreposto comercial da RPC em Ma-cau. Os contactos passaram a realizar--se, mas com carácter reservado e na residência de Santa Sancha.

Considerei-os sempre da maior utilidade, durante cerca de três anos, mantendo nós as melhores relações pes-soais, embora não oficiais, como é ób-vio, com pleno conhecimento do Mi-nistro do Ultramar e do Dr. Salazar.

Aliás o Sr. Ho Ping só contactava o Governador em casos considerados graves, principalmente relacionados com actividades da Delegacia da For-mosa, ou quando recebia indicações do Governo de Cantão, geralmente através de cartas, escritas em cantonense, de que era portador, já traduzidas em por-tuguês, sempre dirigidas ao "Sr. Antó-nio Lopes dos Santos", pelo chefe do Departamento de Negócios Estrangei-ros do Governo de Cantão.

9. Durante o meu governo três problemas eram levantados com relati-va frequência por aquelas autoridades e transmitidos por cartas que normalmente o Sr. Ho Ping ou o Sr. Ho Yin, me entregavam, sempre acompanhados por Roque Choi que as explicava em Portu-guês:

- A exigência da entrega às au-toridades da RPC dos sete fugitivos atrás indicados, afirmando serem espi-ões com crimes praticados antes da fuga, reclamação que nunca foi atendi-da, alegando o governo de Macau o direito de asilo político, mantendo-os o governo presos, para evitar piores im-plicações com a RPC;

- O aluguer, afirmavam aquelas autoridades, da emissora de radiodifu-são oficial de Macau aos americanos, sob a capa de uma sociedade comercial, constituída no território. O governo de Macau estudou profundamente o assunto e a natureza da Sociedade a quem a direcção da Emissora tinha alugado as horas de emissão, por contrato, tendo o governa-dor, ouvido o consultor jurídico, decidi-do considerar aquele contrato nulo e de nenhum efeito e suspender o aluguer, o que motivou um recurso daquela em-presa para o Conselho Superior Ultra-marino ao qual foi negado provimento, o que fez morrer o assunto;

- As actividades da Delegacia do Governo da Formosa em Macau, consideradas pela RPC atentatórias da sua soberania e criminosas. Na verda-de, provou-se que aquela Delegacia apoiava, se é que não dirigia, activida-des clandestinas contra a RPC. Mais do que um posto diplomático era um cen-tro de actividades clandestinas e de espionagem. Assim, por determinação do governo central através do Ministé- rio do Ultramar, foi aprovada a propos-ta do Governo de Macau e encerrada aquela Delegacia em Abril de 1965, após várias e infrutíferas tentativas em contrário do Governo da Formosa.

Refira-se, por curiosidade, que os E. U. A., da sua equipa diplomática sediada em Hong Kong, dispunham de nada mais nada menos do que de sete cônsules acreditados em Macau, cada um deles com o seu "pelouro" específi-co. Macau era, nessa altura de difíceis relações entre os E. U. A. e a China, uma excelente porta de entrada.

Ho Yin (retrato da Galeria do Leal Senado).

10 - Convidado em Nampula, em Outubro de 1961 (governava então o distrito de Moçambique), para Gover-nador de Macau pelo Professor Dr. Adriano Moreira, aceitei o cargo com a prévia condição de ser simultaneamen-te nomeado Comandante-Chefe das Forças Armadas de Macau, isto por duas razões que na altura reputava fun-damentais:

- Não desejar abandonar a car-reira militar, da qual já estava afastado havia quase 3 anos;

- Desejar minimizar possíveis atritos, muito em voga na época, levan-tados entre o Comando Militar e o Go-verno, o que ficava eliminado à partida colocando o Comandante Militar na dependência hierárquica do Comandan-te-Chefe e Governador.

Só que o Comandante Militar era na altura coronel, aliás militar distintíssimo, o coronel de Art. ª Eduar-do Bessa, e o Governador era tenente—coronel! Assim, e pela primeira vez na história das Forças Armadas Portugue-sas, foi nomeado, pelo Governo de Salazar, Comandante-Chefe de Macau, com prerrogativas definidas na Carta de Comando, um tenente-coronel, tendo como subordinados um coronel, Co-mandante Militar, e um Capitão de Fra-gata, Comandante Naval. Tudo correu depois sem quaisquer atritos, dadas as excelentes relações pessoais mantidas com ambos aqueles comandantes. Não deixou, contudo, de ser uma situação singular, fora dos mais elementares prin-cípios da hierarquia militar. Tudo se teria resolvido, sem qualquer aumento de encargos, pois as funções de Coman-dante-Chefe não eram remuneradas, através da graduação no posto imedia-to. Mas, inexplicavelmente, não o qui-seram fazer.

11 - A primeira vez que fomos recebido pelo Dr. Salazar, em Abril de 1962, pouco depois de tomar posse do cargo de Governador, deparámos na então muito modesta e austera residên-cia do Presidente do Conselho de Mi-nistros, em S. Bento, com maquetas de bairros implantados num simulacro de urbanização, pretensamente destinados a alojar em Macau, talvez milhares de refugiados. Tal ideia era da iniciativa de D. Fernanda Jardim, representante em Portugal da Caritas e pessoa com acesso - que diziam relativamente fácil - ao Dr. Salazar.

Ao passar pelas maquetas per-guntou-me: já viu isto? Respondi afirmativamente, insistindo ele a seguir: e que acha? -Não me parecem adapta-das nem adequadas para refugiados chineses, atenta a sua forma de viver muito especial e o seu baixo nível de vida. Respondeu com o silêncio habitu-al que o caracterizava, pois se sabia que gostava muito mais de ouvir do que de falar.

Escusado será dizer que as maquetes, apesar de enviadas para Ma-cau, não foram executadas, nem os pro-jectos constituíram encargo de Macau, como aquela senhora pretendia, ale-gando ter o Dr. Salazar aprovado a sua execução...!

12 - É curioso recordar que em 1962 promovemos a ida para Macau dum grupo de jovens arquitectos, com o objectivo de assegurar que o plano de desenvolvimento urbano de Macau se enquadrasse em critérios, simultanea-mente, de respeito pela tradição e pre-servação dos tipos antigos de constru-ção de qualidade e por normas específi-cas da arquitectura e da urbanística.

Daquele grupo faziam parte os promissores e conhecidos arquitectos Maneiras e Vicente e o grupo trabalhou enquadrado no Departamento do Plano de Fomento.

As dificuldades do seu trabalho foram enormes, frente às múltiplaspres-sões e interesses de organismos políti-cos chineses e dos construtores locais.

Fizeram e orientaram muitos es-tudos e maquetas, com especial rele-vância para a Urbanização do Porto Exterior, naquela altura praticamente sem construções, e o estudo de localiza- ção dum aeroporto na Ponta da Cabrita, este executado à minha solicitação pela D. G. A. Civil, através do conceituado técnico especialista de aeroportos, Eng.º João Tomás Siu, que mais tarde, tam-bém a meu convite, passou a chefiar os Serviços de Obras Públicas e Transpor-tes.

De resto, já em 1958, o Gover-nador de Macau, Comandante Correia de Barros, antigo aviador naval, com comissão de serviço prestada em Ma-cau, havia proposto ao Ministério do Ultramar a execução dum aeródromo nos terrenos do Porto Exterior, incluin-do o Projecto no Plano Intercalar de Fcmento 1959/62, elaborado a seu pe-dido, pelo signatário, então chefe do Estado-Maior da Guarnição, na sua qualidade de engenheiro, e com a con-cordância do então Comandante Mili-tar.

Aquele aeroporto destinava-se a satisfazer vôos locais, com aviões até ao tipo DC-3.

Como se vê, a ideia dum aero-porto em Macau, agora em efectiva construção, está longe de ser novidade recente. Simplesmente, na altura, tinha de ser adaptado às características de então dos meios aéreos e dos aeropor-tos, às reais possibilidades dos meios técnicos de execução e do erário públi-co do território e, muito principalmen-te, tinha de se encarar a falta de relações diplomáticas com a RPC, factor determinante dos bloqueios verifica-dos.

13 - Em data que não me é possível precisar, apareceu no gabinete do Governador com algumas propostas para despacho um destacado chefe de um importante departamento público.

Lido um dos documentos, o go-vernador, um pouco agastado, devol-veu-lho e disse: isto não é comigo, é consigo, senhor doutor. - Comigo, se-nhor Governador? Tudo está em or-dem, embora reconheça que o assunto é bastante desagradável, acrescentou. A razão é simples, disse eu: "De minimis non curat praetor". Estas "questiún-culas" são consigo, meu caro doutor.

E acabou o caso.

14 - De regresso duma missão oficial a Timor, passou por Macau, em 1966, o professor Edgar Cardoso, figu-ra então já sobejamente conhecida e altamente prestigiada, em Portugal e no estrangeiro, pelos seus projectos, tidos como revolucionários, no domínio das pontes.

Em conversa, ao almoço, falou—se do problema da ligação Macau--Taipa e desta ilha a Coloane, esta nessa altura em execução, através dum aterro, factor importante para o progresso do território, dado a península de Macau estar superlotada e ser notório o atraso das ilhas, principalmente devido à grave dificuldade das ligações por barcos, largamente insuficientes e deficientes perante os graves e crescentes assoreamentos, em especial entre a Tai-pa e Coloane, do lado poente.

Aquele professor criticou desfa-voravelmente a ligação por aterro entre as ilhas, alegando dever ter sido construída uma ponte baixa, a despeito da natureza fluida dos Iodos dos fundos, por mim invocada, mas já não foi tão crítico quando expus a grande vanta-gem da conquista de terrenos ao mar do lado poente, resultado a obter, confor-me os estudos feitos por hidrógrafo competente.

Perguntou se não estava nos pla-nos do Governo ligar Macau à Taipa, ao que a resposta foi de imediato afirmati-va, só que a falta de verbas disponíveis não havia ainda permitido a sua inscri-ção no Plano de Fomento em execução, mas que tal teria lugar no Plano seguin-te, uma vez construída a ligação Taipa--Coloane.

O Palácio de Santa Sancha em 1950 (foto do Arquivo Histórico de Macau).

Imediatamente se ofereceu para fazer o primeiro estudo da ponte Ma-cau-Taipa, por um preço simbólico, ape- nas suficiente para dar cobertura às despesas.

No dia seguinte propôs-se ao Governador fazer o estudo por 300 con-tos, o que levou o Governador a trans-mitir a respectiva proposta ao Ministro do Ultramar.

Assim se concretizou o primeiro passo para uma obra a todos os títulos notável para o progresso e desenvolvi-mento de Macau e das Ilhas.

Mas a ponte só foi possível gra-ças à grande dedicação e tenacidade do Governador Nobre de Carvalho, que soube vencer todas as dificuldades e contratempos, vendo o seu trabalho co-roado com a inauguração em fins de 1974, no termo do seu mandato.

15 -Em finais de 1974 tivemos ocasião de acompanhar, no Estado Mai-or do Exército, a alteração então logicamente pretendida de fazer evo-luir as forças militares de Macau- sem qualquer significado perante o poderio chinês -para Forças de Segurança com a missão, já muito próxima da actual, de constituírem um departamento ao ser-viço da população, nas mais diversas áreas, visando essencialmente a protec-ção de pessoas e bens.

Já em 1963, como Governador e Comandante-Chefe defendíamos, no Conselho Superior Militar e com vista à redução de efectivos militares, ser o problema de Macau essencialmente político e não militar, no que éramos curiosamente ultrapassados pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Franco Nogueira, para quem - segundo me afirmou numa das audiências que me concedeu numa minha deslocação a Lisboa - a presença portuguesa em Macau se devia limitar a uma adminis-tração portuguesa, simbolizada pelo Governador e pela Bandeira, à qual um destacamento militar- para ele a única força militar ali necessária - saberia prestar, nos momentos solenes, as hon-ras devidas. Isto sem prejuízo, claro está, das forças de segurança, tipo poli-cial, para garantia da ordem e tranquili-dade públicas. Mas, uma Administra-ção Portuguesa em que as forças vivas chinesas tivessem a principal posição na gestão do Território era um ponto de vista que não podíamos perfilhar.

Para nós, uma coisa foi, sempre, respeitar os interesses chineses e aceitar a sua intervenção na administração lo-cal, outra seria Portugal manter ali uma presença apenas simbólica, na prática muito difícil, se não impossível, de ga-rantir com um mínimo de dignidade.

Pouco mais de oito anos decor-rerão até que a administração portugue-sa deixe Macau e este território passe a plena jurisdição da RPC, embora com um estatuto especial e a chamada Lei Básica, em gestação, a orientar todas as actividades públicas e privadas para os cinquenta anos que se seguirem. Ocorre então perguntar: que futuro para Ma-cau? Tema aliciante e tentador, sem dúvida, mas cheio de interrogações.

A administração portuguesa, agora renovada pela mão prudente e muito esclarecida do General Rocha Vieira, procurará, por certo, desenvol-ver uma luta gigantesca contra o tempo numa acção que busca, na continuida-de, a garantia da máxima eficácia na consecução dos objectivos primordiais fixados para o período de transição.

Outro problema sério refere-se a todos os agentes públicos, seja qual for a situação e residência, pagos pelos orçamentos do território, a quem terão de ser garantidos para além de 1999 os direitos adquiridos em Macau.

Estão em causa, não só o prestígio e o bom nome de Portugal, mas ainda a situação dum punhado de portu-gueses nascidos em Macau, que não desejam deixar o território, mas que esperam usufruir nessa altura de condi-ções que lhes garantam um estatuto próprio, para além de lhes ir sendo facultada a adequada preparação para se integrarem em futuros quadros lo-cais, públicos e privados.

Para lá de 1999, o que perdurará na administração e soberania chinesa que defenda os interesses dos cidadãos portugueses, naturais de Macau que aqui desejem continuar? A Lei Básica regulará a vida em Macau até ao ano de 2050, mas só a Assembleia Nacional Chinesa a pode aprovar ou alterar.

Para lá de 1999, que estruturas legais conseguirá a Administração por-tuguesa deixar a vigorar, com jeitos de aceitação, para durar, pela soberania chinesa?

No domínio cultural e do patri-mónio arquitectónico, o Governo de Macau tudo fará com certeza, para os preservar.

No domínio da Língua e da cul-tura nunca será tarde demais actuar -pela criação, para ficarem, de instru-mentos vivos de difusão da Língua e da cultura portuguesas.

Ninguém, por certo, porá em causa o alto interesse do núcleo portu-guês do Grupo de Transição na defesa do futuro dos portugueses na Região Administrativa Especial de Macau, para além de 1999, já que o Governador Rocha Vieira será nos próximos anos o mais fiel garante na luta pela defesa e preservação, para os vindouros, do que foi a presença portuguesa em Macau e das condições de vida para os portugue-ses que em Macau quiserem continuar a viver.

António Lopes dos Santos

desde a p. 181
até a p.