Ilustração de Carlos Marreiros (tinta da china sobre papel cavalinho, 24,5x18,5 cm ).
José dos Santos Ferreira é o único autor de Macau em cuja obra sobrevive o patuá, dialecto hoje praticamente desaparecido, em que se exprimia a sociedade macaense de antanho.
Nos seus numerosos escritos, em poesia e em prosa, ficará registado este específico linguajar, rico de inventiva lexical e onomatopaica, e de inexcedível graça quando transmitido oralmente, pelas modulações ortoépicas, os ademanes, as expressões faciais e o ritmo próprio que os interlocutores imprimiam à conversação.
Aqui apresentamos cinco poemas, acompanhados da sua versão em português, recentemente editados no livro "Poema na Língu Maquista" (Ed. Livros do Oriente, 1992).
Únde ta vai, quirida?
Macau di nôsso coraçám,
Alma di nôsso vida,
Únde vôs ta vai, quirida,
Assi metido na iscuridám?
Qui di candia pa lumiá vôs?
Quelê-môdo vôs pôde andá?
Cuidado, nom-mestê tropeçá!
Vôs cai, nôs cai juntado co vôs.
Macau di rosto tristónho,
Únde têm vôsso alegria?
Quim já suprá vôsso candia,
Largá vôs na treva medónho?
Ventania fórti ta zuní,
Tempo ta f azê coraçám esfriado;
Na fugám, fôgo apagado,
Amôr tamêm pôde escapulí.
Onde vais, querida?
Macau do nosso coração,
Alma da nossa vida,
Onde vais, querida,
Tão cercada de escuridão?
Onde está a vela para te aluminar?
Como podes caminhar assim?
Cuidado, não tropeces!
Caindo tu, cairemos todos contigo.
Macau de semblante tristonho,
Onde pára a tua alegria?
Quem foi que te soprou a vela
E te deixou nessas medonhas trevas?
Fustigam ventos fortes
E o tempo vai arrefecendo o teu coração;
Com o fogo apagado na lareira,
Até o amor acabará por sumir.
Nom-têm calôr, nom-têm luz,
Mâz fé sã nom-pôde faltá.
Dios Misericordioso lôgo achá
Unga Cirineu pa vôsso cruz!
Divera saiám
Unga lágri,
más unga lágri
trepá vai ôlo,
fazê êle ficá mulado,
atormentá coraçám.
Um-cento, mil,
quánto-mil ôlo
inchido di lágri
ta churá, nom-têm consôlo.
Aqui, ali-vánda,
coraçám tamêm ta churá.
Nádi uví suluçá,
nom-têm mám pa limpá lágri.
Ôlo co coraçám
churá juntado.
Mánso-mánso,
bêço boquizá oraçám.
Ninguim sai bafo...
Cuza fazê desafogá?
Passado têm na lembránça;
sã somente unga lembránça.
Divera saiám!
Passado vaído,
esperánça já escapulí,
tudo glória cai isquecido.
Sã tempo di lágri,
tempo di dôr;
dôr qui martirizá,
sofrido na básso di siléncio;
lágri qui ta corê,
quimá tudo rosto.
Não há calor, não há luz,
Mas fé não poderá faltar;
Deus Misericordioso descobrirá
Um Cirineu para a tua cruz!
Deveras uma pena
Uma lágrima,
outra lágrima
afloram aos olhos,
humedecendo-os,
atormentando corações.
Uma centena, mil, milhares de olhos
rasos de lágrimas
choram desconsolados.
Aqui, além,
choram também corações.
Não se apercebem soluços,
não há mãos a enxugar lágrimas.
Olhos e corações
choram juntos.
Silenciosamente,
lábios balbuciam preces.
Ninguém fala...
De quê serve desabafar?
O passado está na memória;
não é mais que uma recordação.
Deveras uma pena!
Passado transcorrido,
esperanças esvaecidas,
glórias esquecidas.
É tempo de lágrimas,
tempo de dor;
dor que martiriza,
sentida em silêncio;
lágrimas que escorrem,
queimando as faces.
Coraçám machucado,
filo-filo amoroso
di estunga quánto geraçám...
Na qualquê cánto di Mundo
co unga seléa coraçám ta batê,
ali têm unga lágri margo,
têm dôr,
ánsia quelê grándi!
Somente nádi churá
— pramor qui nom-pôde churá -
quim já vai, pa sempri.
Quim insensato
tamêm nádi churá.
Mâz, uví!
Mai sã unga sánta,
têm tánto carinho,
sã mil-vez quirida,
nom-têm filo insensato.
Guia
Farol,
Gréza,
Pinheral.
Luz,
Fé,
Saúde.
Farol, tira-tira di luz;
Anôte, mar lumiado,
Aliviado di iscuridám;
Lorcha sab únde têm,
Passá safo,
Nádi erá caminho.
Gréza, Casa di Dios,
Ninho di fé cristám;
Nos 'Sióra têm na altar,
Corações acabrunhados,
filhos amorosos
destas últimas gerações...
Em qualquer ponto do Mundo
onde um deles pulsar,
ali há uma lágrima amarga,
há dor,
angústia!
Só não choram
— porque não podem chorar —
os que já partiram,
para sempre.
O insensato
também não chora.
Mas, escutai!
A Mãe é santa,
muito carinhosa,
é mil vezes querida,
não tem filhos insensatos.
Guia
Farol,
Igreja,
Pinheiral.
Luz,
Fé,
Saúde.
Farol, fachos de luz;
De noite, o mar é alumiado,
Aliviado das trevas;
Os barcos sabem onde se encontram,
Navegam seguros,
Sem errar no rumo.
Igreja, Casa de Deus,
Ninho de fé cristã;
Nossa Senhora está no altar,
Su ôlo lumiá alma,
Su mám isvaziá bénça,
Protezê dizamparado.
Na básso, pinheral,
Jardim di saúde vendido saguáti.
Árvre di pinhéro quánto-mil,
Laia-laia árvre unga porçám.
Sopro di vento puro,
Voz dóci di pastro alegrá coraçám.
Na riva di montánha,
Lugar qui tudo pôde olá,
Têm unga pau arto levantado;
Ali, unga bandéra elegánti ta bulí-bulí;
Sã, atê estunga ora,
Bandéra di nôsso Portugal.
Casarám antigo
Macau di janéla vérde,
veneziána di tabique;
Macau di chám sobradado,
co enténa chuchú parede
pa co-côi sobrado;
Saguám pa lavá rópa,
Teraço di chám di ladrilho.
lugar pa sugá rópa.
Macau di casarám antigonostre
Cubrido co télia vemêlo,
parede caiado,
varánda empolado...
Únde têm vôs?
Macau di quintal co pôço,
corda mará báldi,
báldi elá águ vêm riva.
Horta co árvre di frutázi
semeado aqui-ali;
Porta-trás pa sai "lap-sap",
pa áma comprá som,
Seus olhos iluminam almas,
Suas mãos derramando bênçãos,
A proteger desamparados.
Lá em baixo, o pinheiral,
Vergel de saúde distribuída gratuitamente.
Pinheiros aos milhares.
Árvores variadas aos montes.
Brisa de ar puro,
Voz doce de passarinhos alegrando corações.
No cimo da colina,
Em posição sobranceira,
Vê-se erguido mastro alto;
Nele flutua airosa uma bandeira;
Por enquanto,
A bandeira do nosso Portugal.
Casarão antigo
Macau de janelas verdes,
persianas de tábua delgada;
Macau de chão sobradado,
com barrotes metidos nas paredes
para susterem o solho;
Logradoiro onde se lava a roupa,
Terraço com chão de ladrilho,
lugar para se pôr a roupa ao sol.
Macau de casarão muito antigo
Coberto com telhas vermelhas,
paredes caiadas,
varandas vistosas.
Onde estás?
Macau de quintal com poço,
corda atada ao balde,
balde trazendo água para cima.
Pomar de árvores de fruto,
plantadas aqui, ali;
Porta traseira para a saída do lixo,
para a criada que vai ao mercado,
apô di cartá águ-fónti,
intrá-sai di casa.
Únde têm vôs?
Macau antigo di gudám
co dispénsa pa guardá catá-cutí;
Quarto di quiada na "lau-chai",
Quartinho di bánho na vánda-trás,
co bacia di lóiça pa lavá rosto,
balsa di pau pa lavá corpo...
Casa-casa antigo
di Macau tamêm antigo...
Seléa Macau, únde têm vôs?
Macau modernado
Nôs agora têm unga túne
Na básso di Mato-Guia;
Caréta ramendá bicho-núne,
Vai-vêm na túne tudo dia.
Quim intrá na Pôrto Nôvo,
Unga estánti têm na Flora;
Di unga buracám, sai rua nôvo,
Tudo ta contente agora.
Perto-perto di Sám Francisco,
Têm unga rua riva di ôtro rua;
Gente di pôvo olá, ficá pisco,
Pensá ta vivo na Lua.
Pa sai di casa, agora, nancassá
Prendê montá biciquéta;
Rua sã nádi faltá
Pa tudo laia di caréta.
Pa tudo vánda sã casarám,
Na tudo cánto têm jardim.
Quim pôde gastá unga dinherám,
Pôde vivo ramendá. mandarim.
para a aguadeira de água potável
entrar e sair do domicílio.
Onde estás?
Macau antiga de casas com rés-do-chão
guarnecido de arrecadação para tarecos;
Quarto de criadagem na sobreloja,
Casa de banho na zona traseira,
com bacia de loiça para se lavar a cara,
balsa de madeira para o banho...
Casas antigas
de Macau também antiga...
Macau assim, onde estás?
Macau modernizada
Nós agora temos um túnel,
Por baixo da Colina da Guia;
Os carros, parecendo libelinhas,
Vão e vêm no túnel o dia inteiro.
Quem entra no Porto Exterior,
Num instante está na Flora;
De uma buraca se fez uma rua nova,
Agora estão todos contentes.
Próximo de São Francisco,
Há uma rua em cima de outra rua;
O povinho vê, fica zuca,
Pensando que está a viver na Lua.
Para sair de casa já não é preciso
Aprender a andar de bicicleta,
Pois, vias já não faltam
Para todo o tipo de viaturas.
Por toda a parte se vêem casarões,
Em qualquer canto há um jardim.
Quem muito pode gastar,
Pode viver como um mandarim.
Aropôrto ta perto têm,
Na vánda di nôsso "T'am Chái"
Pa aropláno di lóngi vêm,
Aropláno pa lóngi vai.
Co nôsso Macau assi capaz,
Quelora nhu-nhum vai "Sai Iông",
Sã cruzá pónti na-más,
Popá trabalo vai Ong-Công.
Unga pôrto quelê fundo
Na mar di Ka-Hó lôgo olá,
Pa vapôr di tudo Mundo
Vêm aqui, fáci intrá.
Macau-Taipa têm unga pónti
Qui já nom-pôde chegá.
Sã erguí más unga pónti,
Pa gente nancassá nadá.
"Lap-sap" di rua lô disparecê,
Pa Macau ficá limpo-assiado.
Govérno já lembrá f azê
Unga fungarám pa tudo sai quimado.
Vapôr "féri" antiquado
Di cartá gente vai Ong-Công,
Agora já ficá parado,
Nádi más gongchông, gongchông.
Quim vai Ong-Công sã vai
Na "che-fói" regalado;
"Che-fói" assi azinha sai,
Assi azinha ta chegado.
Si querê chegá más ligéro,
Buscá "helicótro" sentá.
Sã gastá unga mám di dinhéro,
Mâz lôgo têm gôsto di aguá.
Co Macau assi modernado,
Quim nádi querê vivo aqui?
Tera di poguésso champurado
Co tristéza aqui, chachau ali.
Estamos prestes a ter aeroporto,
Lá para os lados da nossa Taipa
Para os aviões que vêm de longe
E aviões que para longe vão.
Com a nossa Macau tão eficiente,
Aos senhores que vão para Portugal
Basta atravessar a ponte,
Poupando o trabalho de ir a Hong Kong.
Um porto bem fundo
Vai surgir no mar de Ka-Hó,
Para que os barcos de todo o Mundo
Aqui venham e entrem facilmente.
Entre Macau e Taipa existe uma ponte
Que já se mostra insuficiente.
Erga-se, então, outra ponte,
Para que ninguém atravesse a nado.
O lixo vai desaparecer das ruas
Para Macau ficar asseadinha.
O Governo lembrou-se de mandar fazer
Grande fogão para tudo ser queimado.
Os barcos "ferry" obsoletos,
De transporte de passageiros para Hong Kong,
estão agora parados
E já não voltam a chocalhar.
Quem se desloca a Hong Kong
Vai repimpado no "jetfoil";
O "jetfoil" tão depressa parte,
Quão depressa está a chegar.
Se se deseja chegar mais depressa,
Compra-se lugar no helicóptero;
Paga-se um dinheirão, é certo,
Mas fica-se com o prazer de voar.
Com Macau tão modernizada,
Quem não gosta de aqui viver?
Terra de progresso, misturado
Com tristeza aqui, confusão ali.

Ilustração de Carlos Marreiros (tinta da china sobre papel cavalinho, 24,5x18,5 cm ).
desde a p. 173
até a p.