Poesia

CONSIDERAÇÕES SOBRE O MESSIANISMO EM PORTUGAL: VIEIRA E PESSOA

Yvette K. Centeno*

A vida do Padre António Vieira (1608-1697) decorre numa época em que ao brilho dos Descobri-mentos se colam as manchas da perseguição Inquisitorial, em Portugal e em Espanha, e em que, no caso português, à morte de um D. Sebastião mitificado se sucede a esperança de um novo reino que deveria chegar, em 1640, com a Restauração e D. João IV.1

Em Portugal, o mito da "eleição" por obra e graça divina já tinha consagrado a dupla função do rei no tempo de D. Afonso Henriques. O chamado "Milagre de Ourique", com a visão descrita por Duarte Galvão, iniciaria a série de prodígios que deuma maneira ou de outra seriam sempre lembrados para distinguir os sucessos e as particularidades da história nacional.2

A caracterização de D. Afonso Henriques é própria dos fundadores, nas narrativas míticas. Veja-mos o que nos diz Duarte Galvão, no início da sua Crónica:

"Era então naquele tempo costume que todos os filhos dos reis se chamavam reis e as filhas rai-nhas, posto que fossem bastardos; e como quer que el Rei D. Afonso de Castela desse este Condado de Portugal ao Conde D. Henrique e a sua filha, e ela se chamasse Rainha, porém ele nunca se chamou Rei em sua vida, nem seu filho o príncipe D. Afonso, até que houve uma grande batalha e vencimento no Campo De Ourique contra cinco Reis mouros, onde foi alevantado e daí avante chamado Rei de Portu-gal, cuja geração veio de Reis, assim da parte do pai como da mãe segundo já dissemos. Este Rei Dom Afonso Hanriques, primeiro Rei que foi de Portugal, era neto del Rei de Hungria da parte do Comde Dom Henrique seu pai, que era filho lídimo del Rei de Hungria. E da parte de sua mãe era neto del Rei Afonso de Castela, acima dito, filho de sua filha dona Tareija" (pp. 13-14).3

Note-se aqui o detalhe: não é a filiação que o torna rei, mas a batalha de Ourique, contra cinco reis mouros, e o seu milagre. É essa uma das marcas que o distingue. Há outras, e que o aparentam aos gran-des modelos míticos ( como Moisés, por exemplo): D. Afonso Henriques nasce defeituoso das pernas:"Veio a Rainha a parir um filho grande e formoso (...) salvo que nasceu com as pernas tão encolheito que, a parecer de mestres e de todos, julgavam que nunca poderia ser são delas" (p.15).

O Conde D. Henrique diz ao aio, Egas Moniz, que vem buscar a criança para a tomar a seu cargo, que não o faça, pois nascera tolhida e todos estavam convictos que nunca se curaria nem tornaria homem:"E quando Dom Egas viu a criatura tão formosa e com tal aleijão houve um grande dó dela" (p.16).

E vai surgir, em sonhos, como seria de espe-rar, o sinal do milagre: estando D. Egas certa noite a dormir, já o menino tinha cinco anos, apareceu-lhe Nossa Senhora e disse: "Eu sou a Virgem Maria, que te mando que vás a um tal lugar (...) e faz aí cavar, e acharás uma igreja, que em outro tempo foi começada em meu nome, e uma imagem minha: faz corrigir a igreja e a imagem feita à minha honra e isto feito, farás uma vigília, pondo o menino que crias sobre o altar: e sabe que guarecerá, e será são de todo" (p. 16).

O bom aio assim faz e logo o príncipe se en-contra curado da maleita, "como se nunca nada dela tivera". Vendo D. Egas "este tamanho prazer e mila-gre, deu muitos louvores a Deus e à Senhora sua Ma-dre, criando e guardando daí avante, com muito maior cuidado, o menino, cujo aio foi sempre..." (p. 17).

Assim temos o nosso primeiro rei enquadrado por milagres: os que o fazem são de "corpo", como este, e os que o fazem são de "reino", como o de Ourique, mais tarde.

Em 1139 combate D. Afonso Henriques o rei Ismar e os seus quatro aliados da mourama. A bata-lha parece desigual e há quem tente levar o rei ao abandono, mas este exorta ao combate e nessa noite aparece-lhe um ermitão que lhe anuncia a vinda de Cristo pregado na cruz: "ele te fará de manhã vencer el-Rei Ismar e todos os seus grandes poderes..." (p. 57).

O cronista tira a lição que se impõe: "... o que também se afirma, que neste aparecimento foi o Príncipe D. Afonso certificado por Deus de sempre Portugal haver de ser consagrado em reino, e o tem-po, e caso, aquela hora, e sua virtude e merecimen-tos eram tais para lho Deus prometer" (pp. 58-59).

E ali foi D. Afonso Henriques feito rei de Portugal, adquirindo a dignidade do seu "segundo corpo", para a utilizar a expressão de Kantorowicz.

Depois de ganha a batalha ficou três dias no campo como era costume fazerem os reis: "E estan-do assim, em lembrança da grande mercê que lhe Deus fizera, acrescentou em suas armas sinais que mostrassem o que lhe ali acontecera. Primeiramente porque lhe nosso Senhor aparecera no céu em cruz, pôs sobre o campo branco que dantes no escudo trazia por armas, uma cruz toda azul partida em cin-co escudos, pelos cinco Reis que vencera, e meteu trinta dinheiros de prata em cada um dos escudos, em lembrança da morte e paixão de Nosso Senhor vendido por trinta dinheiros. E os Reis de Portugal que depois vieram, vendo como se não podiam me-ter tantos dinheiros em pequenos escudos de armas, puseram em cada um dos cinco escudos cinco di-nheiros em aspa, e assim contando por si cada uma carreira da cruz, de longo e a través, metendo sem-pre no conto de ambas as vezes o escudo da metade, fazem trinta dinheiros: e desta maneira se trazem agora" (pp. 69-70).

Criou-se, com estas lendas, o primeiro núcleo dos mitos relativos a Portugal. Reis e reino protegi-dos de Jesus e de Maria, como veremos ainda noutro caso de "fundação" como este, o do Rei Encoberto, D. Sebastião.4

Também nos serve aqui de testemunho a Ora-ção de Obediência ao Papa Gregório XIII, de 1574, dita por Aquiles Estaço em nome de D. Sebastião. Nesta oração é feito o elogio do Rei, que "no limiar da sua adolescência já igualou ou venceu, pelo nú-mero e grandeza de seus feitos, a perpétua felicidade de seus maiores, propagando muito ao longe o nome cristão" (p.32). As orações de obediência interes-sam, como diz o seu editor, Martim de Albuquerque, "à história diplomática, e à história ideológica" e são obras "com significação universalizante" (vol. I, p.1). As mais antigas, impressas, datam dos últimos anos do Século XV. Podemos considerá-las testemu- nho da supremacia temporal do papa sobre os outros governantes.

No caso de Portugal a consciência eminente-mente religiosa do país e dos seus reis, e as necessi-dades de "uma expansão condicionada e em grande parte legitimada pela Fé", retomando palavras de Martim de Albuquerque, levavam ao acatamento e defesa da dignidade pontifícia como detentora de au-toridade temporal, ou pelo menos de uma auctoritas superlativa. As obediências, e cito ainda o estudioso português, "viabilizavam a oportunidade da procla-mação das glórias nacionais filtradas pela história e a lenda; permitiam o exaltamento da actividade de-sempenhada em prol da comunidade cristã; a apolo-gia do papel da própria Nação; em suma, da obra levada a cabo" (p.2).

Na oração de Aquiles Estaço de novo ressal-tam a lenda e os milagres. Desta vez num feito he-róico da Índia: "o que mais aterrou o inimigo foi a grandeza dos milagres, pois viu uma imagem da Vir-gem Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo assistir aosnossos combatentes. Além disso, no único lugar por onde o inimigo podia penetrar e atacar os nossos, o mar, que em determinadas horas enchia, ficou esta-cionário, e, não vazando depois do legítimo tempo natural, tapou as entradas, impediu o inimigo, salvou os nossos. De forma que, assim totalmente aterrori-zados, os adversários aperceberam-se de que não lu-tavam com mortais, mas com Deus. Isto mesmo abertamente o confessavam depois, e alguns levados pelos milagres fizeram-se voluntariamente cristãos" (p.33). O reino de Portugal fundado por um eleito, Afonso Henriques, é aqui claramente identificado ao povo eleito, o que agora recebe o apoio de Deus contrariando os ritmos da natureza, tal como só acontecera nos episódios relativos a Moisés no Ve-lho Testamento.

D. Sebastião é proclamado diante do Papa, no palco de Roma, como "divino". E divino é conside-rado o seu propósito de se virar para África, sendo ele mesmo o condutor das tropas. O rei é "pio, feliz, triunfador e dilatador da fé cristã", nas palavras de Aquiles Estaço. E ao Papa oferece "todo o seu po-der" (p. 34). É num texto do mesmo Aquiles Estaço, sobre "Insígnias dos Reis de Portugal", que encon-tramos a narrativa do milagre de Ourique impressa em 1574 (o mesmo ano da Obediência). A Crónica de Duarte Galvão, de 1419, já a continha, mas coisa diversa é fazer a crónica pela memória dos da casa, ou relembrar a lenda para a memória dos de fora-no caso deste diplomata que viveu e ensinou em Paris, e morreu em Roma em 1581.

Nas orações de Obediência encontra-se a his-tória e a ampliação da dignidade: "fama do rei, hon-ra da pátria, eternidade do nome português", como diz Diogo Pacheco em 1514 ao Papa Leão X, por ocasião da célebre embaixada de Tristão da Cunha. Aqui a obra é proclamada "mais divina do que hu-mana" (p.27) pois tornou o mundo, antes desconhe-cido, familiar e acessível, com uma abundância de riquezas nunca sonhada. O mesmo Diogo Pacheco, noutra Obediência anterior, de 1505, ao Papa Júlio II, tinha referido esta época como "idade do ouro":"Volta já, sob o vosso sumo pontificado, a idade do oiro, melhor, a idade das pedrarias, ou melhor ainda, a idade seráfica ou outra até mais preciosa..." (p. 16). Para além do panegírico, que é de tradição, adivinha-se que tal idade se prende com o reinado de D. Manuel e "as coisas" que ele traz ao Santo Padre:"... não são coisas vulgares e triviais, mas novas e nunca antes oferecidas por outrem a outrem" (ibid.). E segue-se a longa enumeração dos sucessos do rei-no, por terra e além-mar. O que D. Manuel traz ao Santo Padre é "o próprio mundo" (p. 18). "Recebei, enfim, o próprio mundo. O mundo? Não, outras ter-ras, outro mar, outros mundos, outras estrelas" (ibid.).

A glória e a dignidade do rei português acres-centam a glória e a dignidade do Papa. A função ultrapassa a fama individual, ampliada como está, até aos destinos do mundo. É neste contexto que surge o "divino" rei D. Sebastião, e é neste contexto que o seu desaparecimento pede uma satisfação que o anule: o sonho, o mito, irão dá-la, onde a história falhou.5

Morre D. Sebastião em 1578, na batalha de Alcácer-Quibir. Mas não quebra o espírito profético português que, pela voz do Padre António Vieira (1608-1697), irá aliar à Restauração e ao Reinado de D. João IV aquilo a que ele mesmo chama "Esperan-ças de Portugal e Quinto Império do Mundo". De nacional - e nacionalista - o mito fundador adquire foros de universalidade que lhe advêm da antiga tra-dição dos profetas bíblicos, e da mais recente tradi-ção do Abade Joaquim de Flora, da Monja Hilde-garda de Bingen, e dos visionários Nostradamus e Bandarra, o sapateiro que ele declara sábio e profeta e cujas trovas comenta até à exaustão. Morre D. João IV? Não importa. Ele é D. Sebastião. Ele volta-rá, ressuscitado. Em Portugal, apesar do reinado dos Filipes, o duplo corpo do rei continua a viver, impri-mindo à nação e aos seus representantes uma dinâ-mica de messianismo coeso que nenhum contratem-po parece poder abalar. Lembro Ana Isabel Buescu, no seu estudo sobre o Milagre de Ourique e a Histó-ria de Portugal de A. Herculano:

"O século XVII marcará a definitiva consa-gração do milagre de Ourique como narrativa das origens, instrumento da nacionalidade e justificação da independência. Esta consagração de Ourique é indissociável da Restauração que nela encontra um re-ferente fundamental para a estruturação do discurso ideológico. (...) Registe-se (...) que logo nas primeiras Cortes celebradas após a Restauração, D. João IV é instado a retomar o processo de canonização de Afonso Henriques, o que vem, de facto, a fazer". Não se perdeu pois a noção da origem divina do poder dos reis de Portugal. É neste contexto de sacralização (adiada, mas nunca perdida) que deve-mos situar o pensamento do Padre António Vieira. O Padre António Vieira considerava-se, no dizer de José van den Besselaar, "o intérprete dos sinais ce-lestes que lhe pareciam anunciar a iminente 'plenitu-de dos tempos'. Aproximava-se o ano de 1666, data que ele, como muitas outras pessoas dentro e fora de Portugal, tinha por decisiva na história da humanida-de, porque nele se manifestariam os primeiros sinais da gloriosa transfiguração do mundo." (Besselaar, História do Futuro, p.8).6

A História do Futuro começara a ser redigida em 1649. António Vieira recordava ainda a discus-são que tivera com Menasse-ben-Israel em Amsterdão, quando tentava dar um horizonte mais largo e mais profundo ao sebastianismo nacionalista então defendido pelo nosso missionário (Besselaar, p. 8). Enfermidades várias e muitíssimo trabalho im- pedem que ele continue o pro-jecto. Retomá-lo-á mais tarde, tentará resumi-lo na Clavis Prophetarum, mas tampouco nesta obra será melhor sucedi-do. Nem uma nem outra des-tas tentativas chegam a ser concluídas.7

Em 1664 encontramo-lo em Coimbra e pedindo, em carta a D. Rodrigo de Meneses, que lhe faça chegar às mãos "um Comento do abade Joa-quim sobre o Apocalipse". Este monge cisterciense do Século XII, cujas doutrinas milena-ristas abalaram a Europa, era tido pelos sebastianistas como um santo.8

Em carta ao mesmo D. Rodrigo, datada de 1664, alude ao projecto que tem em mãos, a História do Futuro "do des-cobrimento das nossas espe-ranças e felicidades" (p. 59), e de novo ao roteiro do Abade Joaquim. A propósito observa:"ele fez outro livro dos pontífi-ces, em que se vêem as suas imagens estampadas, com uma inscrição breve em que se descobrem os mistérios de cada uma; e, porque a do Papa presente tem cousas mui notáveis, e que grandemente condu-zem ao intento, estimara eu muito vê-lo, posto que já o li em Roma" (p. 60). E acrescenta: "Aqui teve um livro destes o reitor Saldanha, que não posso desco-brir; no Reino deve haver outros" (ibid.). O livro só lhe chega às mãos em 1665 - como se vê pela carta de 15 de Fevereiro a D. Rodrigo de Meneses: "Beijo a mão a V. Sa. pelos fragmentos de Santo Isidoro; também me chegou quase no mesmo tempo o livro do abade Joaquim..." (p. 121).

Marjorie Reeves dedica um capítulo à influ-ência do abade sobre os profetas e visionários que se lhe seguiram, citando, entre eles, Vieira.9

Comparando-o ao francês Guillaume Postel, observa que ambos se regozijaram com as novas descobertas, o progresso das ciências, o desenvolvi-mento da arte da navegação, etc. (p. 133 e segs.). Tudo se-ria parte de um plano divino, que caberia a Portugal exe-cutar. Portugal é a nação eleita, os portugueses os agentes de Deus. D. João IV e D. Sebastião encoberto e regressado, o rei profetizado por Bandarra, para o qual se elaborou uma árvore genea-lógica só comparável à de Cristo. De adiamento em adi-amento, foi Vieira passando de 1640, a 1666 e 1679, quando, inspirado em Ro-quetaillade, Bandarra e Nos-tradamus, profetizou a con-versão do mundo inteiro. Mas morreu em 1697 sem ter visto realizado nenhum destes loucos sonhos.

Em carta de 1672 a D. Rodrigo de Meneses refere o trabalho da Clavis Prophe-tarum: "Tenho em grande altura um livro latino intitulado o Quinto Império, ou Império Consumado de Cristo, que vem a ser a Clavis Prophetarum; e ninguém o lê sem admiração, e sem o julgar por importantíssimo à inteligência das escrituras proféticas." (Vol. II, p. 504).

Empenhou-se em demonstrar que o Quinto Império, profetizado por Daniel e Ezequiel, e inicia-do com o nascimento de Cristo, seria consumado em Portugal: com o regresso de D. Sebastião, incarnado em D. João IV. A sua ideia de Quinto Império inco-modava os Inquisidores porque mantinha o carácter temporal (atribuído pelos judeus ao Messias que es-peravam), já detectado (e condenado) nas doutrinas joaquimitas. No Livro Anteprimeiro da História do Futuro o propósito de Vieira é explicar a oportunidade e o sentido de tal matéria, estabelecendo a diferença en-tre os conceitos de Profecia e de História e seus diversos estilos. O profético acomoda-se à majestade dos mistérios, o histórico à "notícia e inteligência deles" (p. 25). É no capítulo primeiro que alude aos hemisférios do tempo, numa belíssima imagem que será, no Século XVIII, recuperada por outro sebastianista seu discípulo - Anselmo Caetano. Eis a citação: "O tempo (como o mundo) tem dous hemisfé-rios: um superior e visível, que é o passado; outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e outro hemisférios ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa. Desde este ponto toma seu princípio a nossa história, a qual nos irá descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo hemisfério do tempo, que são os Antípodas do futuro. Oh, que de cousas gran-des e raras haverá que ver neste novo descubrimen-to!" (p. 24). É bela a imagem dos hemisférios do tempo. E adequada a um português que já conhece os do espa-ço. Desafios, não teme; dificuldades, não o assus-tam: Moisés escreveu a história do princípio e cria-ção do mundo "com espírito de profecia". E se hou-ve um profeta do passado, diz Vieira, por que não haverá "um historiador do futuro?" (p. 25). E ainda:"Os profetas não chamam histórias às profecias, por-que não guardam nelas estilo nem leis de história: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos casos e sucessos; e quando tudo isto viram e tudo disseram, e envolto em metáforas, disfarçado em fi-guras, escurecido em enigmas..." (ibid.). Ora Vieira propõe-se fazer o contrário: "observar religiosa e pontualmente todas as leis da história"(ibid.). Definido o método para o seu objectivo, defi-ne melhor o objectivo: Portugal. E de Portugal, a descrição do futuro: "Um futuro que está longe, e outro futuro que está perto. Um futuro que há-de vir, e outro futuro que já vem." (p. 29). É deste que se vai ocupar e das "deleitosas esperanças" que a Por-tugal oferece: "Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas maravilhas, e os instrumentos prodigiosos de-las os Portugueses" (p. 30). É pois luso-cêntrico, mais do que univer-salista, pelo menos nesta fase, o Quinto Império do Mundo. E de que Império se trata? Continuemos com o autor: "O mundo do nosso prometido Império não é mundo neste sentido; não promete mundos nem im-périos titulares, nomes tão alheios da modéstia como da verdade. Bem sei que o Império da Alemanha (...) em muitos textos de um e outro direito se chama:'Império do Mundo', mas também se sabe que os textos podem dar títulos, mas não impérios. (...) Os que querem o ruído e encher de algum modo o vazio destes grandes títulos, dizem que se entendem por hipérbole ou exageração, e por aquela figura que os retóricos chamam 'sinédoque' em que se toma a par-te pelo todo" (p.35). Eis como, em meados do Século XVII, face às subtilezas do direito, se ergue, pela boca de Vieira, a subtileza da Retórica: e o problema do mundo duplo - secular e divino (equivalente ao cor-po duplo do Rei, material e espiritual, perecível e eterno) se vê esvaziado em mera figura literária. "O mundo de que falo é o mundo", diz Vieira, inclui África, Europa, Ásia, América, e a quinta parte, in-cógnita mas já reconhecida, "que chamamos Aus-tral" (p. 35). O "mundo inteiro" é o sujeito da nossa história: "tudo o que abraça o mar, tudo o que alu-mia o Sol, tudo o que cobre e rodeia o Céu, será sujeito a este Quinto Império, não por nome ou títu-lo fantástico, como todos os que até agora se chama-ram Impérios do Mundo, senão por domínio e sujei-ção verdadeira. Todos os reinos se unirão em um ceptro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema Cabeça, todas as coroas se rematarão em uma só diadema, e esta será a peanha da Cruz de Cristo" (pp. 35-36). A imagem soberana de Cristo está por trás da soberania futura de Portugal, a que se refere no capí-tulo quarto: "Quem considerar o Reino de Portugal no tempo passado, no presente e no futuro, no passa-do o verá nascido, no presente ressuscitado e no fu-turo glorioso; e em todas estas três diferenças de tempos e de estados lhe revelou sempre Deus e man-dou interpretar primeiro os favores e as mercês tão notáveis com que o determinava enobrecer: na pri-meira, fazendo-o; na segunda, restituindo-o; na ter-ceira, sublimando-o" (p. 41). Seguem-se as referências aos célebres episó-dios de Ourique, com o milagre do aparecimento de Cristo a Afonso Henriques e às profecias do Bandarra, com a Restauração e D. João IV (p. 42). No capítulo quinto (pp. 51-52) de novo aludirá a estes casos. É no capítulo oitavo que cita Frei Gil de Santarém e a sua profecia, bem como o célebre "Ju-ramento" de Afonso Henriques e outros testemunhos proféticos que lhe ocorrem: o de S. Bernardo, em carta ao Rei D. Afonso Henriques, e de novo Bandarra (pp. 79-81). Culmina com o milagre que acompanhou a Restauração: Ao Padre António Vieira, no auge do seu en-tusiasmo messiânico, visionando o império de Cristo com as suas duas coroas e um Rei Soberano com seus dois corpos, não repugna a hipótese de um D. João IV vir a ressuscitar. Pois não é ele que ressusci-ta, é a sua função régia por ele. Para Vieira o Rei de Portugal (qualquer que ele seja) é a efígie de Cristo. O que Vieira vê - na pessoa do rei - é o Cristo Imperador do Mundo, com as suas duas coroas. Escreve Oliveira Martins na História de Por-tugal que "a alma religiosa da Nação, retraindo-se ao seu âmago íntimo, criando espontâneamente uma fé, ao lado do catolicismo dogmático e transcenden-te, imposto, importado, e mal definido nas consciên-cias, constrói essa fé com os materiais conhecidos das antigas religiões naturalistas dos celtas; quando vemos que D. Sebastião se transforma num Rei Ar-tur, escondido na ilha viçosa dos bardos - somos, com efeito, levados a supor que o elemento primiti-vamente dominante nas populações é em Portugal celta, pois que os seus frutos ingénuos e espontâneos têm a cor e a forma dos produtos dessa raça" (p. 80). Assim, e ainda para Oliveira Martins, o Sebastianismo era "uma explosão simples da deses-perança, uma manifestação do génio natural íntimo da raça, e uma abdicação da história. Portugal rene-gava, por um mito, a realidade..." (p. 83 ). O histori-ador analisa o caso português sem complacências e remata citando Lord Tirawley, embaixador de Ingla-terra ao tempo de D. João V: "Que se pode esperar de uma gente, metade da qual está pela vinda do Messias, e a outra metade pela de D. Sebastião?" Este reparo do inglês provava também quanto o povo era indiferente ao novo regime. O seu verda-deiro rei era, continuava a ser, e seria sempre (até aos nossos dias) D. Sebastião. Nem os Filipes, nem os Braganças; nem 1580, nem 1640, nem depois ain-da o Marquês de Pombal, nem mais tarde a invasão francesa, nem os reis beatos, nem os reis magníficos, nem os reis plebeus; nem João IV, nem Afonso VI, nem João V, tinham poder bastante para o acordar do seu sonho. Este fenómeno de um povo, inteira-mente fiel a um rei encantado, piamente crente numa lenda, e por isso indiferente ao rei de facto, às revo-luções, à política, às guerras do estabelecimento da dinastia, e às reformas profundas do meado do Sécu-lo XVIII, é um caso único", (p. 158)13 15

Divide-se o livro em 3 partes: Brasão, Mar Portuguez, O Encoberto, com as seguintes epígrafes, respectivamente: Bellum sine bello, Possessio maris, Paz in Excelsis. Lê-se aqui, e desde logo pela simbólica trinitária, um destino exemplar que é mítico, e não apenas histórico, um destino exemplar que ao ser narrado deste modo aponta para a via da alma, da interioridade, depois de se ter es-gotado a outra via, do mundo, da materialidade. Em documentos do espólio que adiante detalharemos, escreve Fernando Pessoa, acerca da Terceira Ordem de Portugal, herdeira das anteriores do Templo e de Cristo, que esta Ordem é uma ordem interna, espiri-tual, que fundiu "certas teorias e profecias com a teoria mística e simbólica do Regresso do Rei Se-bastião". E neste mesmo documento reflecte sobre a tradição do país que é o seu: "Qual é a tradição portuguesa? O vago espírito nacional, cavalheiresco e lírico, que foi enchendo a Primeira Dynastia e cul-minou, extinguindo-se, no princípio da Segunda? O imperialismo terrestre de Tanger e de Arzilla? O im-perialismo marítimo dos descobrimentos? O dos descobrimentos só, ou o d'elles e das conquistas? Tudo isto é portuguez, tudo isto é tradição, mas uma ou outra d'estas coisas temos que escolher, pois to-das entre si se contradizem em seu íntimo sentido..." (Esp. 53A-4). E o poeta irá concluir, adiante, que Portugal "ganhou quasi todo o mundo e perdeu quasi toda a alma" (Esp. 53 B-65 ). A aposta é clara: o mundo ou a alma. E assim deve ler-se "Mensa-em", como tentativa de recuperação de um destino. Depois do finito do mundo (a terra, o mar), o infini-to da alma que o rei D. Sebastião vem personificar, como um outro heterónimo: colectivo, mítico e mís-tico.

Numa entrevista dada à Revista Portuguesa de 13 de Outubro de 1923, poderemos ler um depoi-mento igualmente significativo quanto a estas ques-tões:

"- O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?

"- O Quinto-Império. O futuro de Portugal -que não calculo, mas sei - está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja portuguez, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé?"16 E adiante: " Temos pois que a Nação Portu-guesa percorre, em seu caminho imperial, três tem-pos,- o primeiro caracterizado pela Força (Vis) ou as Armas (Arma), o segundo pelo ócio (Otium) ou o sossego (Quies), e o terceiro pela Ciência (Scientia) ou a inteligência (Intellectus) (...) No primeiro tem-po - a Força ou as Armas - trata-se de el-rei D. Manuel o Primeiro, que é o quinto rei da dinastia de Aviz, e sucede a D. João o Segundo, depois de este morto. Foi então o auge do nosso período de Força ou Armas, isto é, de poder temporal. No segundo tempo - Ócio ou Sossego - trata-se de el rei D. João o Quinto, que sucede a D. Pedro o Segundo, depois de este morto. Foi então o auge do nosso período de esterilidade rica, do nosso repouso do poder - o ócio ou sossego da profecia. No terceiro tempo - Ciência ou Inteligência - trata-se do Quinto Império, que sucederá ao Segundo, que é o de Roma, depois de este morto. Quanto ao que quer dizer esta Roma, a cujo fim ou morte se seguirá o Império português, ou Quinto Império, ou o que seja a Ciência ou Inteli-gência que definirá a este - não direi se o sei ou o não sei, se o presumo ou o não presumo. Saber seria de mais; presumir seria de menos. Quem puder com-preender que compreenda"17. Por outras reflexões do autor sobre o mesmo tema se poderá dizer, presu-mindo naturalmente, mais do que sabendo, que Roma representa aquilo a que ele chama " a forma romana do catolicismo", cujo fim já fora preconiza-do por Nostradamus para o final do Século XX.18 Fernando Pessoa chegará mesmo a dizer claramente:"Não precisamos dos sete montes de Roma: também aqui, em Lisboa, temos sete montes. Edifiquemos sobre estes a nossa Igreja".19

Assim se compreende o significado oculto da divisão tripartida da "Mensagem" e das epígrafes escolhidas pelo poeta. A paz a que se alude na últi-ma é igualmente a profetizada por Bandarra: "será a paz de não haver diferenças religiosas", a de "um só Deus será conhecido", como ele diz ainda.20

Em "Brasão", a análise dos poemas leva à definição do país que é o "rosto" da Europa. Mas já aqui, na conquista e delimitação do território, se afirma que " ter é tardar". A posse, embora gloriosa, atrasará a evolução natural. Sucedem-se os fundado-res: Ulisses, para o mito, D. Afonso Henriques, para a história. A espada e logo a seguir a poesia, que se conta com D. Dinis. A terra, e logo a seguir o mar, que a terra anseia.

Alude-se à Ordem do Templo (no poema "D. João, o Primeiro"). D. Dinis tinha-a transformado, em 1318, em Ordem de Cristo de Portugal, para evi-tar aos cavaleiros portugueses as perseguições de que haviam sido vítimas os seus pares em França. E já neste poema Portugal é referido como Templo, operando-se, por analogia, a transmutação do povo em povo eleito.

Confirma-se a eleição no poema "D. Phillipa de Lencastre": "Princesa do Santo Graal", "humano ventre do Império", que não é apenas terrestre e ma-rítimo, é o Quinto-Império, o reino do Evangelho Eterno, sonhado e adiado por António Vieira e tan-tos outros como ele, desde Joaquim de Flora, pas-sando pelo sapateiro Bandarra de Trancoso. Cum-pre-se na história o destino do mito, mas não inte-gralmente. A loucura, apanágio de D. Sebastião, terá que ser assumida por aqueles que não sejam "cadá-veres adiados que procriam". Cumpre-se o mundo, com "Brasão". Cumprem-se os três impérios: "Três impérios do chão lhe a Sorte apanha", diz-se no últi-mo poema, de "Affonso de Albuquerque".

E chega-se ao "Mar Portuguez", cuja traves-sia é uma iniciação, com a prova do Mostrengo (va-riante do antigo dragão medieval) e a afirmação da Ciência e da Ousadia que distinguem Portugal. Em "Última Nau", para que não o esqueçam, vai D. Se-bastião com o pendão do Império. Mas que Império? Deve entender-se aqui o do futuro, o da alma, o da chama que não se apagará nunca. Cumpriu-se o ele-mento terra, o elemento água, e falta agora cumprir o fogo e o ar.

Na terceira parte, "O Encoberto", amplia-se o significado da leitura. Caído em má hora, como o Grão-Mestre Jacques de Molay, D. Sebastião em boa hora se levantará: transmutado pela espada, não como corpo mas como pura chama espiritual. Via, destino, Quinto-Império aclamado: Grécia-Roma--Cristandade-Europa-Portugal.

"Há três espécies de Portugal, dentro do mes-mo Portugal; ou se se preferir, há três espécies de português. Um começou com a nacionalidade: é o português típico, que forma o fundo da nação e a sua expansão numérica, trabalhando obscura e modesta-mente em Portugal e por toda a parte de todas as partes do Mundo. Este português encontra-se, desde 1578, divorciado de todos os governos e abandona-do por todos. Existe porque existe e é por isso que a nação existe também. Outro é o português que o não é. Começou com a invasão mental estrangeira (...) do tempo do Marquês de Pombal. Esta invasão agra-vou-se com o Constitucionalismo, e tornou-se com-pleta com a República. Este português (...) é o que governa o país. Está completamente divorciado do país que governa. É, por sua vontade, parisiense e moderno. Contra sua vontade é estúpido. Há um ter-ceiro português, que começou a existir quando Por-tugal, por alturas d'El-Rei D. Dinis, começou, de Nação a esboçar-se Império. Esse português fez as Descobertas, criou a civilização transoceânica mo-derna, e depois foi-se embora. Foi-se em Alcácer--Quibir, mas deixou alguns parentes, que têm estado sempre, e continuam estando, à espera dele".21

Fernando Pessoa exprime, em "Mensagem", o "sonho português" de ser ele mesmo e mais, muito mais, do que ele mesmo. Com três avisos define três espaços, o histórico, o mítico e o místico; em cinco tempos narra a saudade do Encoberto, o desejo da Hora que deveria chegar, marcando o início-fim do Quinto Império. (Em 1935 escreverá um longo poe-ma com este nome, ressuscitando a história e o mito de Portugal. "Quinto-Império" é o grito que corta o nevoeiro da "Mensagem". O que aqui estava oculto é ali posto a descoberto: uma visão só mística da pátria).

O gosto da ordenação tripartida é muito fre-quente em Fernando Pessoa. Exprime assim a ordem espiritual no homem, no universo e em Deus.

D. Sebastião, enquanto figura mítica, reúne em si estes três elementos: o Poder, a Inteligência e o Amor, da tradição cristã (o Pai, o Filho e o Espíri-to Santo). Representa a súmula da manifestação e é, nesta medida, perfeito. Pode dizer-se dele o que René Guénon disse do Rei do Mundo: é Rei, Sacer-dote e Profeta.

A intenção da "Mensagem" é espiritual, signifi-ca mais um passo na obtenção do grau de Mestre, que Pessoa defeniu no Essay on Initiation, como "a fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo para lá de todas elas".22 Com o jogo da heteronímia, marco do modernismo português, e com "Mensagem", cum-pre o poeta o múltiplo destino de ser muitos, de ser tudo e todos de todas as maneiras - de ser o outro, completamente o outro, face à nudez do eu.

D. João IV ( 1604-1656 ); Museu Nacional dos Coches, Lisboa.

Oswald Wirth, citado várias vezes por Pessoa, escreve a propósito do simbolismo oculto da maço-naria que só se pode captar a sua essência viva com-preendendo que ela se põe ao serviço da Vida e ensina a viver "como artista iniciado na Arte de Vi-ver". 23 Esta ideia da arte ligada à iniciação é impor-tante, como sabemos, para Pessoa. Os Superiores Desconhecidos são, como ele, discretos artistas da alma, que em silêncio modelam. O verdadeiro Mes-tre opera "unitivamente", pela imaginação (a estrela no homem, como lhe chama Paracelso) e é também isso que ele procura ao estudar a Alquimia, a Kabala, o Rosacrusismo, a Maçonaria, a Astrologia, a Teosofia, etc., buscando, de todas as maneiras, o essencial, o vivo das doutrinas, e não a letra que as mata.

"Mensagem" termina com um Valete Fratres, evocador dos irmãos rosacruz. Mas no último poe-ma, "Nevoeiro", a mutação alquímica encontra-se invertida: "ninguém conhece que a alma tem", "tudo é disperso, nada é inteiro", o que coloca a visão pessoana ainda longe do paraíso que os adeptos rosacruz preconizavam. Podemos no entanto dizer, usando a sua linguagem, que das trevas se chega à luz, da dispersão à unidade, da perda à aquisição da alma. A obra de Pessoa não é senão o esforço de uma vida em busca da sua alma: múltipla, repartida, no ponto mais exterior buscando o mais interior, in-tensamente.

Para Fernando Pessoa, Portugal é o centro da mediação possível entre a espiritualidade das Ordens Internas (que busca) e a materialidade das Ordens Externas (que recusa), abrindo uma terceira via: a da Terceira Ordem de Portugal, que bem merece ser estudada.

Reflectindo sobre o que é a tradição portu-guesa, afirma: "Qual é a tradição portuguesa? O vago espírito nacional, cavalheiresco e lyrico, que foi enchendo a Primeira Dynastia e culminou, extin-guindo-se, no princípio da Segunda? O imperialismo terrestre de Tanger e de Arzilla? O imperialismo ma-rítimo dos descobrimentos? O dos descobrimentos só ou o deles e das conquistas? Tudo isto é portuguez, tudo isto é tradição, mas uma ou outra destas coisas temos que escolher, pois todas entre si se contradizem em seu íntimo sentido, e, sobretudo, no em que pode-mos guiar-nos por elle." (Esp. 53A-4).

Foi então por ter escolhido, ou por ter esco-lhido mal, que Portugal, diz Pessoa, "ganhou quasi todo o mundo, e, como na promessa negra do Evan-gelho, perdeu quasi toda a alma." (Esp. 53B-65).

Mas há um novo caminho a descobrir. É o caminho oculto que vem da Ordem do Templo, que passa pela Ordem de Cristo e culmina, ou culminará, na Terceira Ordem, fundada como o Terceiro Tem-plo de que nos fala Henry Corbin em Temple et Contemplation, na alta montanha da espiritualidade.

A via que se aponta é a da abdicação, a da renúncia: "renúncia ao amor à vida e ao temor da morte, renúncia à personalidade, à individualidade, aos deuses e aos demónios, renúncia à Kether, Chokmah e Binah, renúncia à divinação." (Esp. 54--44).

Para Fernando Pessoa é especialmente impor-tante a fundação da Ordem de Cristo, pois que ele a relaciona de modo profético, com o futuro de Portu-gal. Assim vemos que num dos documentos mais curiosos do espólio vai somar a 1318 o número da Besta do Apocalipse, 666, obtendo 1984, número à frente do qual aponta "que anno?" (Esp. 53-79).

Mas se nos lembrarmos que o ano da Bula Papal é 1319 e que só ela legitima de facto a existên-cia da Ordem, o resultado obtido será então 1985, o ano em que se celebrou o cinquentenário da morte do poeta, em que as opções, nacionais, europeias, mundiais, mais uma vez nos fazem reflectir sobre o caminho: material, espiritual, do mundo ou da alma...

É também de modo profético que ele relacio-na com a Ordem de Cristo o sapateiro Bandarra, Nostradamus português: "O nome Bandarra que é de facto o appelido do sapateiro propheta, passou a de-signar, a dentro da Ordem de Christo, qualquer dos irmãos que assumira a mesma luz, ou, fallando figu-rativamente, o mesmo grau. Assim a maior parte das prophecias, ou trovas, ditas do Bandarra nada teem que ver com a pessoa do sapateiro de Trancoso. So-bretudo o não tem o chamado Terceiro Corpo, a obra prophetica mais completa (no sentido, por as-sim dizer, artistico ou intellectual) que se tem visto no mundo. Em vez da desordem da intelligencia, que se pode dizer que distingue toda a prophetica, desde o Apocalypse a Nostradamo, ha uma systematização rigorosa, uma geometria do predizer. A linguagem certo, é Symbolica, mas assim é a lin-guagem geral dos ensinamentos superiores, dos quaes a prophecia é tamsȯmente um caso particu-lar." (Esp. 54-88).

O problema do Bandarra remete-nos para o problema do Sebastianismo e da Terceira Ordem dePortugal, sucessora das do Templo e de Cristo, no entender do poeta. Compõe-se de elementos de uma obscura Ordem Sebastianista que fundiu "certas teo-rias e profecias como a teoria mística e simbólica do regresso do Rei D. Sebastião" e ainda de outros ele-mentos mais recentes, todos judeus portugueses. (Esp. 53B-56).

O sapateiro Bandarra, o Rei Sebastião deseja-do e encoberto, são os símbolos do Templo que per-manece escondido na alma nacional. Só na alma, e não no mundo encontrará Portugal a tradição que é a sua: a tradição dos romanos da cavalaria, onde pas-sa, próxima ou remota, a Tradição Secreta do Cristi-anismo, a sucessão Super-Apostólica, a Demanda do Santo Graal (Sobre Portugal, p. 177).

Obras como "Mensagem" ou Quinto Império, para já não falar de outros poemas de igual interesse mas menos ambição, pretendem dar testemunho de um Portugal oculto e diferente, o dos sacerdotes que abandonaram o gládio e o escudo, como diz o poeta, "para galgar o céu".24

NOTAS

1Para a vida e obra do Padre António Vieira, consultar: J. Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, vol I, Lis-boa,1918; José van den Besselaar, António Vieira: o ho-mem, a obra, as ideias, Biblioteca Breve, Lisboa, 1981; João Marques, A Parenética Portuguesa e a dominação Filipina, Lisboa, 1986; A Parenética Portuguesa e a Res-tauração (1640-1668), Lisboa, 1986. Não deixam de ser igualmente interessantes, pela ferocidade sem perdão, as páginas de Oliveira Martins na História de Portugal.

2Sobre este assunto consultar Ana Isabel Buescu, O Milagre de Ourique e a História de Portugal de Alexandre Hercu-lano... INIC, Lisboa, 1987, pp.123 e segs. Repare-se como é no Século XVI, no final do reinado de D. João III, que se dá a primeira tentativa de canonização de D. Afonso Henriques, pelos cónegos de Santa Cruz de Coimbra (A. I. Buescu, p. 125).

3Sirvo-me, para todos os passos citados, da edição da Cróni-ca de Duarte Galvão, da Imprensa Nacional-Casa da Moe-da, com apresentação de José Mattoso: Crónica de El-Rei D. Afonso Henriques de Duarte Galvão (1934-1986).

4Ver Luísa Trías Folch (ed.) António Vieira, História del Futuro, Ed. Cátedra, Madrid, 1987. Como nos recorda a autora, "a ideia de um rei 'encoberto' não foi uma invenção de Bandarra. Procedia de Espanha. Por volta de 1520começaram a ser divulgados textos proféticos: uns extraídos dos escritos de Santo Isidoro, Bispo de Sevilha, no Século VII; outros que seguiam a tradição das lendas de Merlin. As Profe-cias anunciavam a destruição do Império e diziam que um Infante de Portugal venceria o rei D. Carlos e reinaria em toda a Espanha. Em 1520 publicaram-se em Valência umas Coplas deFreiPedro de Frias que eram a explicação, em rima popular, dos supostos textos de Santo Isidoro. O 'Encoberto' já existia antes de ser profetizado por Bandarra, e aparecia como um judeu misterioso que chefiava as sublevações de Valência em 1532 e pretendia fazer-se passar por D. João, filho dos Reis Católicos, alguns anos antes". Outra fonte de inspiração, ainda segundo L. Trías Folch, foram as coplas de Jean de Roquetaillade, franciscano catalão do Século XIV, discípulo do abade Joa-quim de Flora (p. 11). A esta amálgama da vaticínios de origem espanhola há que juntar "as esperanças judaicas no Messias e os restos das lendas do ciclo arturiano conservados na tradição popular" (p. 12). O judeu português Abravanel anunciou para 1503 a chegada do Redentor. Nesta linha, o primeiro Messias que se apresenta entre nós é David Rubeni, em 1526. Um dos seus discípulos, Diogo Pires (Salomão Malco), volta a anunciar a chegada do Messias para 1540. Não admira que as profecias do Bandarra floresçam, neste ambiente de profetismo excepci-onal.

Veja-se ainda, para este assunto, J. Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo, 2ªed. Presença, 1987, p. 17 e segs.

5Orações de Obediência, séculos XV a XVII - (ed. fac--similada com nota bibliográfica de Martim Albuquerque) Ed. Inapa, Lisboa, 1988.

6José van den Besselaar, Padre António Vieira, Livro Ante Primeiro da História do Futuro, Biblioteca Nacional, Lis-boa, 1983.

7Ibid., ibid.

8Ver Lúcio de Azevedo (ed.) Cartas do Padre António Vieira, Imprensa Nacional, Lisboa, 1970, 3 vols.

9Marjorie Reeves, Joachim of Fiore and the Prophetic Future, London, 1976, p. 133 e segs. (A importância da data ou do número 666 resultava do facto de, em escrita romana, MDCLXVI representar uma sucessão do maior para o menor número possível. Também em leitura teosófica re-presenta o l da unidade, da consumação do todo, e daí a virtude apocalíptica).

10Para o juramento de D. Afonso Henriques ver ainda Ana Isabel Buescu, op. cit. p. 196, onde refere António Pereira de Figueiredo, Dissertação histórica e crítica, em que se prova a milagrosa apparição de Christo Senhor Nosso a EL REI D. Afonso Henriques (...) Agora novamente accrescentada com o auto do juramento do mesmo rei em Latim e Portuguez.... Lisboa,1809. (O juramento foi publi-cado pela primeira vez em 1597 por Pedro de Maris em Diálogos de Vária História e por Frei Bernardo de Brito em 1602 na Crónica de Cister).

11Na Idade Média celebrara-se Cristo como Rei do Mundo, imperador de todas as coisas, representado pelos artistas no interior de uma mandorla, "pairando sobre as nuvens, com o globo terrestre e o livro da lei nas mãos, a coroa na cabeça, tal como o severo Cosmocrator", segundo as palavras de Kantorowicz (L 'Empereur Fréderic II, trad. Gallimard, Paris, 1987, p. 17). Era hábito os nascimentos ilustres serem acompanhados de profecias, o que se verificou com Frederico II, de quem o Mago Merlin, na Bretanha, parece ter-se ocupado (p.18), e a quem se profetizou que viria a ser a união do Ocidente e do Oriente. Joaquim de Flora (o abade calabrês que tanto agrada a Vieira e que tanto o inspira) reconhecerá em Frederico II o futuro tirano universal e o Anticristo responsável pela confusão no mundo. (p.222 e segs.) Este no Liber Augustalis afirmará que o Estado produz a verdadeira lei divina e a única válida: "a lei viva do mundo temporal é o Deus vivo e para permanecermos vivos, o Eterno e o Absoluto devem também metamorfosear-se no tempo" (p.226). Isto significa uma ruptura com tudo o que se tinha dito até então. O imperador fica transformado na Lex animata in terris. É a necessidade (necessitas) da função que confere ao imperador o privilégio de mudar o direito e a lei. O que Frederico II defende e proclama é, como diz Kantorowicz, "o direito de estado" (p.227).

12Do projecto da História do Futuro existem três manuscritos na Biblioteca Nacional de Lisboa: ms. 2674, editado por Luís de Azevedo e reeditado mais tarde por Hernâni Cidade e por Leonor Buescu; o ms. 9442 e o ms. 25, da Livraria Pombalina; o melhor é, no entanto, o ms. 382 da Torre do Tombo, segundo van den Besselaar, que o utiliza na sua edição crítica de 1976.

13Oliveira Martins, História de Portugal, Imprensa Nacional, Lisboa, tomo II.

14Ver José Blanco, Fernando Pessoa, Esboço de uma Biblio-grafia. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1893.

15Fernando Pessoa, Sobre Portugal (ed. Joel Serrão) Ática, Lis-boa, 1987, p. 179.

16Ibid., p.245.

17Ibid., pp. 248-249.

18Ibid., p.242.

19Ibid., p.178.

20Ibid., P.146.

21Ibid., pp. 82-83.

22Ver Y. K. Centeno, Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética, Ed. Presença, Lisboa 1985, p.82

23Cito da tradução francesa, Oswald Wirth, Le SymbolismeOcculte de la Franc-Maçonnerie, Levy-Livres, Paris, 1979, p.77.

24Para a Terceira Ordem ver Y. K. Centeno, Fernando Pessoa: Os Trezentos..., Ed. Presença, Lisboa, 1988.

*Licenciada em Filologia Germânica e Doutorada em Literatura Germânica (1978). Professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Autora com vasta obra nos campos da poesia, da ficção e do teatro. Tem-se distinguido com teses e ensaios de interpretação esotérica e simbólica, de temas da literatura portuguesa e germânica. Membro de diversas instituições internacionais, foi condecorada pelo Primeiro Ministro Francês (Ordem das Palmas Académicas, 1987).

desde a p. 126
até a p.