Antropologia

A QUESTÃO DAS ORIGENS: FAMÍLIA E ETNICIDADE MACAENSES

João de Pina Cabral e Nelson Lourenço*

I PROLEGÓMENO METODOLÓGICO

Os principais objectivos do projecto de inves-tigação que presentemente empreendemos, sobressa-em claramente do seu próprio título: "Família eEtnicidade em Macau: a Comunidade Macaense". Há, portanto, três parâmetros principais que definemo campo empírico da nossa investigação: família, etnicidade, macaense. As considerações meto-dológicas que se seguem constituem uma tentativapara especificar, pelo menos parcialmente, a formacomo entendemos estes conceitos, bem como assuas implicações metodológicas. Começaremos poridentificar analiticamente os conceitos de família ede etnicidade. Seguir-se-á uma curta e, necessaria-mente preliminar, caracterização do significado de macaense. Concluiremos esta apresentação com umesboço de alguns dos aspectos técnicos do processode investigação.

O CAMPO DA FAMÍLIA

Considerando que as pessoas morrem, a con-tinuação da sociedade requere que novas pessoas se-jam constantemente recrutadas. Mesmo a um tãoalto nível de generalização, a Antropologia ensina--nos a respeitar a diversidade: há inúmeras formasde empreender este processo de recrutamento.

A maioria dos recém-chegados à sociedadesão crianças. Por sua vez, a maioria destas resulta deum acto intencional de reprodução (mas é importan-te que se note que nem sempre assim se passa, o queé demonstrado pela persistência de instituições soci-ais tais como a adopção ou a ilegitimidade). Assim, todas as sociedades reconhecem, de um modo ou deoutro, os laços que cada criança tem com as pessoasenvolvidas no planeamento e empreendimento doacto reprodutivo que resultou na sua geração. (Des-de há muito que se estabeleceu um consenso entre oscientistas sociais no sentido de que essas pessoaspodem não ser o pai ou a mãe biológicos da crian-ça).

O processo de criação da pessoa social estáinextricavelmente relacionado com uma sucessão deidentificações com os outros. Estas identificaçõessão de dois tipos: a) identificação por empatia - queenvolve o reconhecimento de uma identidade entre o eu e o outro; e b) identificação com os papéis soci-ais - que corresponde a um desejo de copiar as atitu-des do outro (cfr. Weinreich 1989: 52). Deste modo, como resultado do processo institucional que permi-te a sua integração como pessoa social, a criança vaiadquirindo um conjunto de solidariedades primá-rias. 1

Como Weber referiu há muito tempo, "histo-ricamente, o conceito de família tinha diversos sig-nificados, e a sua utilidade só se verifica se o seusignificado particular fôr sempre claramente defini- do." (1978, I: 357) Por conseguinte, é convenienteexplicitar que, quando no decorrer da nossa argu-mentação nos referimos a família ou a relações fa-miliares, estamos a considerar as solidariedades pri-márias e não qualquer outra noção de "família ele-mentar", tal como a que foi utilizada pelos pensado-res funcionalistas e estruturo-funcionalistas. Paranós, portanto, "a família" não é uma unidade, antes, sim, é o domínio das relações sociais criado pelassolidariedades primárias.

Dentro deste campo, no entanto, todas as so-ciedades "identificam um nível de identidade social, o qual tem as maiores implicações estruturais naintegração da pessoa social, assim como na apropri-ação social do mundo - nomeadamente, através doestabelecimento do nível primário da autoridade for-malmente reconhecida. Este é também o nível emque os participantes reconhecem a integração primá-ria entre reprodução social e reprodução humana". (cfr. Pina-Cabral, 1989) Chamamos a isto, a unidadesocial primária.

Desta maneira, é a integração da criançanuma unidade social primária que irá estabelecer assuas principais identificações por empatia e, dessemodo, marcar a forma pela qual a pessoa adulta seidentificará no decorrer sua vida. Isto não é, obvia-mente, um processo estabelecido de uma vez portodas. Pelo contrário, a identidade pessoal é forte-mente caracterizada por uma plasticidade temporal. Nas palavras do psicólogo social Peter Weinreich,"as primeiras identificações e as experiências de in-fância podem ter importantes ramificações nas aspi-rações futuras (...), mas, conforme cada pessoa sevai identificando com novas pessoas e problemas, também se vai esforçando por resolver as incompati-bilidades resultantes dessas identificações." (1989:44) Assim sendo, como será argumentado mais adi-ante, a identidade étnica depende grandemente dasprimeiras identificações, que ocorrem no seio daunidade social primária.

Mas o campo da família não é limitado à uni-dade social primária, antes emerge da combinaçãode uma variedade de processos sociais de identifica-ção: existem laços baseados no casamento, nacolateralidade, na filiação, no parentesco espiritual, na amizade, etc.. Neste sentido, cada pessoa temuma família diferente, por ele ou ela criada ao longoda sua vida, conjuntamente com outras pessoas quese reconhecem entre elas como pertencendo à mes-ma família (cfr. Pina-Cabral 1990).

Assim, devemos entender a família como umprojecto, no sentido que Jaber Gubrium atribui aotermo. Ao longo do tempo, os interesses das pessoasvão sendo desafiados e elas dependem da sua "famí-lia" para se protegerem a si próprias e àqueles comquem se identificam. Na medida em que ela respon-de aos problemas que confrontam as pessoas, a fa-mília toma-se um projecto no qual elas próprias tra-balham activamente. Este processo de compromissoapresenta-se sob duas formas: por um lado, as pesso-as vão construindo concretamente a forma e o con-teúdo das suas próprias famílias como resposta aosdesafios com que se defrontam; por outro lado, aspessoas experimentam, desenvolvem e modificam asrepresentações colectivas que recebem a respeito doque é uma família, de acordo com a forma comoconstruíram o seu projecto familiar (Gubrium 1988:291).

Estudaremos as famílias macaenses comoprojectos sob três aspectos: a) para ver como, nocurso da sua história, as famílias emergem como en-tidades separadas dos seus membros (e, claro está, eventualmente, como elas perecem); b) para avaliaras formas como as pessoas percebem a família comoforma social activa, independente das acções dosseus membros; e c) para ver como as pessoas inter-pretam e orientam as suas próprias vidas em termosda sua experiência familiar (cfr. Gubrium 1988:275). Daremos especial ênfase ao estudo das "práti-cas descritivas" que as pessoas utilizam para carac-terizar a sua vida familiar (Gubrium e Holstein1987: 783-4) e à apreciação das formas como essaspráticas evoluem, não só em relação a um campoparticular (como o doméstico, por exemplo) mastambém observando diversos contextos. No caso dosmacaenses, estas práticas podem ser estruturalmentediferenciadas (como é o caso das práticas descritivasdistintas que se desenrolam no lar, na escola ou nasruas), assim como culturalmente diferenciadas(como é próprio da condição de uma população quesubsiste num limbo entre dois universos culturaislargamente incompatíveis - teremos oportunidade deabordar esta questão mais à frente de forma maiselaborada) (cfr. Arriscado Nunes 1990).

O CAMPO DE IDENTIDADE ÉTNICA

A construção do "eu" depende de uma sériede identificações por empatia (o "eu" é construídona base de uma série de "nós"). Por conseguinte, oprocesso de avaliar "os meus" interesses, envolvenecessariamente uma avaliação dos "nossos" inte-resses. A acção das pessoas no mundo depende, as-sim, de uma série de processos de avaliação e decompensação. Já nos referimos à identidade familiare à forma como esta tem origem nas solidariedadesprimárias. Iremos agora considerar o campo da iden-tidade étnica.

Começaremos pela referência, hoje comum àmaioria dos cientistas sociais, de que as característi-cas resultantes da exclusiva associação entre consti-tuição hereditária e condições ambientais não têmnenhum efeito causal directo sobre o comportamen-to social e cultural dos humanos. Por isso não utili-zaremos "raça" como termo analítico independente, mas antes como uma das três manifestações possí-veis da identidade étnica - "nacionalidade" e"etnicidade" são as outras duas. Definimos identida-de étnica essencialmente nos mesmos termos queFloya Anthias usa para designar o que ela chama ethnos: "um fenómeno muito heterogéneo cuja únicabase comum é a construção social de uma origemque funciona como um campo de acção para a vidaem comunidade" (1990:23).2

As sociedades urbanas modernas são caracte-risticamente compostas por pessoas que têm diferen-tes origens, diferentes hereditariedades, línguas di-versas, diferentes religiões, etc.. A identidade étnicaresponde a esta diversidade. O que a define é nãodepender das características adquiridas no decursoda vida de um indivíduo (tal como a educação), nemde formas de associação baseadas em interesseseconómicos. Pelo contrário, a identidade étnica de-pende da inserção da pessoa num processo históricocomplexo e é adquirida como parte das solidarieda-des primárias.

A correspondência relativa entre característi-cas hereditárias e ambientais distintas (característi-cas fenotípicas) e a comunidade sócio-cultural, con-duz à formulação de uma identidade étnica que assu-me um aspecto de raça. Como veremos, um tal tipode correspondência não está claramente presente, hoje em dia, no caso dos macaenses. Desta maneira, quanto mais vaga fôr a designação etnicidade, maisútil ela será para os nossos propósitos. Anthias defi-ne-a da seguinte maneira: "etnicidade (...) refere-se àidentificação de culturas particulares como modosde vida ou de identidade que são baseadas numanoção histórica de origem ou de destino comumquer este seja mítico ou real" (1990:20).

Duas características muito relacionadas daidentidade étnica devem ser identificadas desde já. Em primeiro lugar, por estarem associadas a umapercepção das "origens", as categorias da identidadeétnica estão dependentes de um processo histórico. Mas o seu significado não é o mesmo em todos osmomentos. Ou seja, consoante as situações e as con-dições se vão modificando, o significado de cadaidentidade particular também vai mudando. Uma ca-tegoria da identidade étnica, tendo assumido a formade nação ou de raça, pode posteriormente apresen-tar-se como uma etnicidade e vice-versa.

Em segundo lugar, as categorias da identida-de étnica não são independentes das suas relaçõescom outras categorias: ser um chinês em Portugalnão é a mesma coisa que ser um chinês emGuangzhou; ser português na África do Sul não é omesmo que ser português em Inglaterra ou na Fran-ça; ser muçulmano na Arábia Saudita não é o mes-mo que o ser na Índia; e assim por diante.

Ora, se aproximarmos estas categorias pro-cessualmente, poderemos visualizá-las como umprojecto, tal como fizemos para o caso da família. Devemos, então, estudar como a etnicidade: a) emerge da forma como os indivíduos a usam pararesponder aos desafios com que se confrontam; b) adquire uma forma específica que é independentedos membros particulares que a compõem; c) guia aacção das pessoas porque determina a forma comoelas concebem o seu futuro comum.

Nenhuma formulação geral da etnicidade fi-cará completa sem que alguns comentários sejamproduzidos acerca da sua relação com outros doisgrandes princípios da acção social e da classificaçãosocial: género3 e classe. Como refere PeterWeinreich, "a identidade de género está fundamen-talmente implicada na identidade étnica devido àforma como a segunda depende da descendência eda ascendência e como a primeira depende de asso- ciações como a procriação" (1989:68). A reprodução da identidade étnica assenta sobre uma política sexu-al que está frequentemente associada a várias formas de controlo sobre o casamento - sendo a endogamia apenas a mais característica (mas o exemplo dos macaenses é particularmente interessante neste as-pecto, visto que aponta para a existência de formas mais complexas de controlo comunitário sobre a re-produção do grupo). A identidade de género é criada no processo da socialização primária no contexto da unidade social primária e é, obviamente, marcada pelas construções culturais que caracterizam a iden-tidade étnica. Deste modo, o processo de formação da pessoa social cria uma série de predisposições para a conformidade sexual no interior do processo de reprodução da identidade étnica.

No que respeita à afinidade entre etnicidade e classe, tem havido um longo debate no qual não entraremos nesta ocasião4. Pretendemos evitar, igualmente, a discussão a respeito de como definir classe. Basta dizer que existe uma íntima relação entre o fenómeno da identidade étnica e o fenómeno da estratificação sócio-económica.

Especificamente, deve ser referido que a etnicidade é frequentemente associada com formas de controlo do acesso aos recursos, às profissões e aos serviços. Estes monopólios dependem da identi-dade étnica para a sua definição, mas, em troca, a segurança que apresentam para os membros facilita a reprodução da identidade. Um dos principais fac-tores da alteração gradual da natureza da identidade étnica a que nos vimos referindo, parece ser as mu-danças nas características destes monopólios étni-cos.5

OS MACAENSES

Uma das principais categorias da identidade étnica hoje em Macau é a de "macaense". Ainda que uma larga maioria da população do território seja chinesa e que a élite administrativa seja portuguesa, os macaenses desempenham um papel central em Macau uma vez que, dentro dos três maiores grupos étnicos6, é o que está mais fortemente associado com a identidade histórica do Território. É neste sentido que, em Macau, a expressão cantonense "filhos da terra" (tou saang), é usada para se referir a eles.

Não é possível saber quantos são os habitan-tes de Macau que se consideram macaenses; em pri-meiro lugar, porque há uma real escassez de boas informações estatísticas (cfr. Morbey 1990:14) e, em segundo lugar, porque a própria natureza dos macaenses, como um grupo que ocupa uma espaço intermédio entre a maioria chinesa e a minoria admi-nistrativa portuguesa, conduz a uma definição vaga que os próprios agentes sociais exploram, nos seus esforços para melhorar as suas situações individuais. O quantitativo de 3.870 indivíduos (em Dezembro de 1988) que, com base nas estatísticas, Jorge Morbey estima como sendo macaenses, não deve ser encarado com representativo dos actuais efectivos, mas antes como um valor mínimo absoluto (1990:15).

Deolinda da Conceição, vulto do jornalismo e da cultura macaenses, autora de "Cheong Sam" (A Cabaia), obra densa de registos antropo-sociológicos, citada neste texto.

Na verdade, um número mais ou menos duplo deste é-nos sugerido pelo estudo da administração do território. Em Dezembro de 1989, a administra-ção empregava 13.125 pessoas. De entre estas, 7.372 eram nascidas em Macau. Por sua vez, 3.536 destas últimas são bilingues em português e cantonense. Se subtrairmos a este número todas as pessoas que têm nome chinês ou dois nomes (cantonense e portu-guês) chegamos a um número aproximado dos ma-caenses que são empregados pela administração do território: 2.086.7 Considerando que este número se refere só a pessoas adultas entre as quais a popula-ção masculina predomina, e considerando ainda que, com o desenvolvimento económico de Macau na dé-cada de 80, começaram a surgir cada vez mais ma-caenses activos no sector privado da economia, con-cluímos que as propostas anteriores estavam larga-mente subestimadas.

Não repetiremos aqui o que já foi referido por diversos autores a propósito dos macaenses, designadamente por não estarmos de acordo com muitas destas referências, não tanto em relação às suas observações empíricas, mas sim no que respeita às suas tentativas para caracterizar os macaenses, na actualidade, como uma população passível de ser distintivamente identificada com características he-reditárias, ambientais e culturais específicas.8 Em vez disso, insistimos que os macaenses devem ser vistos como uma classificação étnica no interior do contexto histórico da complexidade cultural e gené-tica que tem caracterizado as sociedades do sul da Ásia, ao longo dos séculos. A plasticidade demons-trada pela identidade macaense nos últimos cinquen-ta anos não pode conduzir a qualquer outra aborda-gem. Um esclarecimento deve, contudo, ser salva-guardado. Por diversas razões conjunturais, a ex-pressão "macaense" tem sido também utilizada ulti-mamente para significar todos os indivíduos nasci-dos em Macau, independentemente da sua identida-de étnica. Por nossa parte, não enveredamos por uma tal prática, já que isso contraria o actual sentido que aqueles que a si próprios se apelidam de maca-enses atribuem ao termo.

Como vimos, a característica primária de uma classificação étnica é que ela permite a "construção social de uma origem que funciona como um campo de acção para a vida em comunidade" (1990:23). Por conseguinte, não é surpreendente que a preocu-pação coma afirmação das "origens dos macaenses" constitua a maior fatia do que tem sido escrito sobre Macau, por pessoas que directa ou indirectamente, positiva ou negativamente, estão conotadas com a identidade macaense como um projecto. E é clara-mente desproporcional o espaço dispendido no trata-mento dos primeiros séculos da presença portuguesa no Território, face à ligeireza de tratamento dos fenómenos históricos e sociais mais recentes.

A polémica das origens parece dividir-se en-tre os que se identificam positivamente em relação à identidade macaense como um projecto (ou, pelo menos, como ela se manifestava nos anos setenta) e que preferem dar menos importância à componente chinesa e aqueles que, estando menos identificados com esse projecto, admitem uma maior influência das contribuições culturais e genéticas chinesas. To-davia, no que se refere às perspectivas sóciológica e sócio-antropológica, este debate parece ser pouco produtivo. Dois aspectos, contudo, são inques-tionáveis: a) de uma forma ou de outra, no casamen-to ou fora dele, sempre ocorreram relações sexuais entre pessoas de origem portuguesa e de origem chi-nesa e as suas crianças foram geralmente integradas na sociedade católica e de expressão portuguesa de Macau; b) a mistura racial no território nunca foi restringida ao binómio português/chinês, pois a po-pulação de Macau de expressão portuguesa sempre esteve profundamente relacionada com outras regi-ões de presença portuguesa no sul da Ásia.

No decurso de numerosas entrevistas abertas e aprofundadas, tentámos estabelecer os vectores centrais da identidade macaense. Encontrámos três vectores principais que são utilizados pelas pessoas para se classificarem a si próprias ou aos outros como "macaense" (tou saang); a ordem como esses vectores serão aqui apresentados não deve ser vista como expressão de uma importância relativa. Deve-mos sublinhar que este modelo visa uma aplicação aos macaenses que entrevistámos e não a toda a his-tória de Macau. De facto, a nossa investigação preli-minar parece indicar que, tal como a identidade ma-caense como projecto vai sendo alterada, assim a importância relativa daqueles vectores se vai modifi-cando.

Um destes vectores é a linguagem — isto é, qualquer tipo de associação de um indivíduo ou da sua família com a Língua portuguesa. Outro vector é a religião - ou seja, qualquer forma de identificação individual ou familiar com o Catolicismo. Finalmen-te, o terceiro vector é a raça - isto é, quando uma pessoa, ou alguém da sua família, resulta de misci-genação entre sangue europeu e asiático.9

A hipótese que testaremos é a de que cada um destes vectores pode constituir a base da identifica-ção do macaense, mas eles não precisam de estar todos presentes para que um indivíduo se identifique a si próprio ou aos outros como macaense. Por ou-tras palavras, é possível um indivíduo ser considera-do macaense embora ele ou ela não possua uma das características indicadas pelos referidos vectores. Por exemplo, há hoje pessoas em Macau que são consideradas por todos como macaenses mas que no entanto não são produto de miscigenação entre euro-peus e asiáticos; ou outras pessoas, ainda, que são consideradas macaenses mas que todavia não sabem falar português.

Deve ser entendido, contudo, que aquelas pessoas e famílias que reúnem os três traços referi-dos e que, além disso, adquiriram um nível relativa-mente elevado de sucesso educacional e/ou econó-mico, constituem um núcleo de famílias à volta do qual a identidade macaense se constrói a ela própria na comunidade - ou seja, um grupo de indivíduos que partilham um conjunto de instituições e que tra-balham em conjunto com vista à reprodução de um projecto étnico.

Os macaenses, de forma particular, regista-ram durante muito tempo dois tipos de actividades para os quais eles estão especificamente ajustados devido à sua posição relativa face a outros grupos étnicos: a) eles ocupam os postos intermédios da estrutura administrativa (auxiliares administrativos, polícias, etc.) e b) eles desempenham um papel cen-tral como intermediários dos interesses chineses face à administração (como advogados, solicitadores, se-cretários, etc.). A posição de relativa marginalidade económica que tem caracterizado Macau desde que a Inglaterra fundou Hong Kong, significa que, pro-gressivamente desde 1840 (Amado 1988:70), os jo-vens macaenses mais ambiciosos e de nível educaci-onal mais elevado, têm sido tentados pela emigra-ção. Este escoamento de cérebros afectou a imagem dos macaenses perante os outros grupos étnicos que hoje competem com eles pelas novas possibilidades criadas pelo rápido desenvolvimento de Macau, des-de meados da década de setenta.

Este controlo do aparelho de Estado tem dado aos macaenses uma posição de segurança económica e social que os distingue da outra comunidade local, a chinesa, tornando-se num dogma central dos inte-resses étnicos macaenses. Esta associação é subli-nhada, por exemplo, por meio de uma outra expres-são que eles frequentemente utilizam para se qualifi-carem a si próprios: "nós somos os portugueses do Extremo Oriente". Esta associação toma uma impor-tância acrescida em momentos de relativa estagna-ção económica, quando a confiança da comunidade no seu monopólio étnico foi essencial para a sua sobrevivência. Desde a recente explosão económica de Macau, porém, a ligação com o aparelho de Esta-do tornou-se menos importante e a identificação com aquilo que poderíamos chamar cultura portu-guesa parece ter diminuído - isto é claramente evi-dente quer no campo das práticas matrimoniais quer nas atitudes linguísticas. Não é este o lugar para en-trarmos em detalhes no que se refere a este processo complexo, antes para verificar que privilegiamos uma abordagem situacional da etnicidade, que a vê como reflexo das situações históricas das quais ela própria faz parte.

De facto, o destino dos macaenses é indisso-ciável da contradição básica que permanece no cora-ção da vida política e social de Macau desde os seus primórdios: o facto de, embora permanecendo chi-nês, Macau ser um Território administrado pelos portugueses. Isto significa que, desde 1845, quando o Governador Ferreira do Amaral destruiu os postos comerciais chineses, o governo chinês viu-se obriga-do a exercer a sua influência por meios indirectos. É esta a fonte dos "incidentes" (o que, em Hong Kong, se designa por troubles) que regularmente sacodem o Território, estabelecendo limites ao exercício do controlo por parte da Administração Portuguesa.10

Por conseguinte, Macau vive num estado de constante equilíbrio instável e, com uma certa regu-laridade, o conflito latente vem à superfície dando azo a distúrbios cuja principal função é o esclareci-mento da natureza dos conflitos. Estes "incidentes" são por nós considerados como "dramas sociais" e, na linha dos que Victor Turner identificou na aldeia africana que estudou, eles têm a sua própria estrutu-ra temporal (Turner, 1957). Eles fazem emergir a contradição básica que, durante os longos períodos de normalidade, permanece adormecida. A posição dos macaenses é particularmente susceptível aos seus efeitos. A sua ligação com os portugueses bem como a sua ligação com os chineses deve ser vista como dependente desta profunda instabilidade enraizada e não pode ser compreendida sem a ter em conta.

CONCLUSÃO

Vamos concluir com alguns comentários refe-rentes aos procedimentos técnicos a ser usados com vista a aprofundar o nosso conhecimento do tipo de informação que a discussão acima referenciou. Num contexto como o de Macau, qualquer tentativa para elaborar um estudo quantitativo detalhado sobre os macaenses será seriamente dificultada pela própria na-tureza das características da identidade étnica macaen-se. Assim, foi decidido usar uma abordagem essencial-mente qualitativa e holística que permite o uso de uma multiplicidade de fontes e métodos.

Para além de uma leitura cuidada da bibliogra-fia já existente, tentaremos reconstruir a recente histó-ria do território com base em informação de índole jornalística desse período, assim como por meio do recurso a histórias orais. Alguns aspectos receberão uma atenção mais aprofundada, tais como: movimen-tos migratórios, conflitos inter-étnicos e, de forma ge-ral, os "incidentes". Isto será comple-mentado com o estudo da informação estatística disponível, qualquer que ela seja. Uma atenção especial será conferida à caracterização dos empregados do Estado no Territó-rio.

As principais fontes de informação, contudo, serão de dois tipos. O primeiro consistirá em entrevis-tas de diferentes géneros: entrevistas abertas exploratórias; entrevistas aprofundadas dirigidas; his-tórias de vida; e outros procedimentos baseados na corrente de investigação que utiliza o "método das bio-grafias" (Lourenço 1988, s. d.). O segundo tipo, consis-tirá na abordagem das" histórias de família".11 Deri-vando da tradição sócio-antropológica enraizada no método genealógic o, esta abordagem procura alar-gar a natureza da informação reunida nas áreas da educação, profissão, emigração e co-habitação.

Com vista a identificar candidatos para in-vestigações posteriores em conformidade com os dois métodos acima enunciados, seleccionaremos uma amostra de aproximadamente cem pessoas que-nunca tenham pertencido à mesma unidade social primária (no caso dos casados, recolheremos igual-mente dados de identificação básica respeitantes ao cônjuge). Estes indivíduos serão seleccionados ten-do em conta os três vectores identificadores da iden-tidade macaense atrás referidos.

Em conclusão, um território como Macau, apesar das suas limitações geográficas, é um espaço social extremamente complexo, quer na sua perspec-tiva histórica, quer na perspectiva do seu presente. Ele foi durante muitos séculos um ponto de encontro de duas das mais distintas e complexas culturas e tradições sociais do mundo. Não obstante a ocorrên-cia de alguns curtos momentos de maior aproxima-ção, no seu conjunto, estas tradições desenvolveram--se separadamente, apesar do mútuo conhecimento. Macau desempenhou um papel central na história deste contacto e frequentemente foi a única porta aberta entre elas. O seu lugar no futuro é incerto, mas parece-nos que os poderes políticos envolvidos no desenho desse futuro têm tido a presciência e a imaginação que permitirá a continuidade da vida de Macau como uma encruzilhada de culturas, de soci-edades e de sistemas económicos. Os macaenses são o produto deste longo processo de contacto - não apenas entre Portugal e a China, mas entre a China, Portugal e todo o mundo marítimo do Sul da Ásia, um mundo para o qual os economistas predizem um futuro muito fascinante.

Uma das lições que a história macaense nos pode ensinar é a de que uma identidade étnica é o produto das relações que a contextualizam. Por mui-to pequeno que o seu número nos possa parecer, os macaenses continuam a constituir um dos vectores centrais do futuro desenvolvimento de Macau. Du-rante as duas últimas décadas de rápida e profunda mudança, eles mostraram amplamente como são ca-pazes de responder aos importantes desafios com que a história os confrontou.

II AS RELAÇÕES INTER-ÉTNICASE A CONDIÇÃOFEMININAEM MACAU

Foi a leitura do livro de Deolinda da Concei-ção "Cheong Sam" (A Cabaia) que nos decidiu a tentar ordenar algumas ideias sobre a relação entre a condição feminina e a identidade étnica macaense.12 Apesar de uma certa naiveté literária, este livro deve ser considerado como uma obra de destaque. A auto-ra demonstra possuir uma perceptividade crítica e um empenho social invulgares para a época, particu-larmente no contexto de Macau.

"Cheong Sam" é uma recolha de pequenos contos em que se segue o percurso da exploração feminina no sul da China, então atribulado pela guerra. Tudo se passa num mundo que hoje temos já dificuldade em reconhecer: um Macau e uma China onde os que fugiam às depredações da invasão japo-nesa morriam de fome pelas ruas, onde se vendiam e compravam abertamente crianças, onde a barreira racial era acompanhada de preconceitos profundos, onde o vício do ópio grassava, onde só se vivia con-fortavelmente à custa de negócios por vezes perver-sos e sempre perigosos - como o tráfico de estupefa-cientes, de armas, de ouro...

O Macau que conhecemos nos anos 90 é já muito distante do mundo descrito por Deolinda da Conceição. Vários factores devem ser tomados em conta para compreender esta alteração. Para além do crescimento económico e da modernização que se verificaram em Hong Kong e, mais tarde, em Ma-cau, um outro factor não pode ser esquecido: o im-pacto das políticas sociais do regime comunista chi-nês. Progressivamente, efectuou-se uma considerá-vel alteração na condição feminina no sul da China. Se bem que, como insistem as cientistas sociais que se têm debruçado sobre o tema, essas reformas não tenham sido levadas até ao fim nem tenham postoem causa a tendência essencialmente patrilinear da sociedade chinesa, elas foram sem dúvida importan-tes (Croll, 1981; Johnson, 1983; Molyneux, 1986; Domenach e Hua, 1987).13

Em Macau, em particular, os anos 60 corresponderam ao virar de uma curva na História. Iniciaram-se, então, uma série de processos que viri-am a alterar radicalmente o território e as relações étnicas no seu interior, assim como as atitudes no interior de cada um dos campos culturais que aqui se cruzam. Só nos finais dos anos 70 e princípios de 80, porém, é que Macau assiste a um importante e significativo surto, acompanhado de um crescimento incontrolado da população, resultante da imigração de pessoas vindas da República Popular da China. A estrutura social do território é completamente altera-da. Ora, é também na sequência da Revolução de 1974 em Portugal, da morte de Mao Tsé Tung em 1976 na China e do advento de Deng Xiaoping em 1979, que os dois Estados iniciam um processo de abertura de relações políticas e económicas, permi-tindo uma situação de relativo entendimento social que, por superficial que pareça, não pode ser negada. Macau aproxima-se da data crucial de 1999, num estado de pujança social, cultural e económica que não é de forma alguma característico dos dois sécu-los precedentes.

A proposta central deste ensaio é a de que não é possível compreender a relação entre a sociedade chinesa e a portuguesa no território, e por conse-guinte a própria identidade macaense, sem tomar em conta aquilo a que os cientistas sociais anglófonos chamam gender dynamics. Por outras palavras, con-sideramos que as alterações profundas que se verifi-caram nas relações inter-étnicas no Macau da segun- da metade do nosso século se devem, não só a facto-res de natureza política e económica, mas também às alterações verificadas nas relações entre os géneros no interior tanto da cultura ocidental como da cultu-ra chinesa.14

A QUESTÃO DAS ORIGENS

O discurso sobre as origens é uma das peças centrais na construção de qualquer identidade étnica (cf. Anthias, 1990:20), pois envolve não só a defini-ção do grupo enquanto tal por oposição a outros grupos, como as próprias definições que cada mem-bro faz de si mesmo. O confronto entre definições identitárias alternativas tende a enfraquecer a força de evidência e portanto a legitimidade de cada uma delas, pelo que, num contexto de pluralidade étnica, o discurso das origens é mais enfático, assumindo geralmente um forte conteúdo emocional.

Uma das primeiras conversas que tivemos com um natural de Macau sobre o tema dos luso--descendentes originários desse território foi com uma senhora chinesa. Quando lhe explicámos que estávamos a projectar um estudo sobre os macaen-ses, ela respondeu-nos surpreendida: "Mas Vs. sabem as origens deles?" Segundo ela, tratar-se-iam de pessoas descendentes de casamentos de portugue-ses com mulheres chinesas de muito baixa reputa-ção.

A questão começou a interessar-nos vivamen-te quando, já em Macau, um de nós obteve precisa-mente a mesma reacção de uma outra senhora chine-sa. Em ambos os casos eram pessoas bastante cultas, originárias da classe média chinesa de Macau. O que mais nos surpreendeu, no entanto, foi o facto de ambas serem casadas com europeus. Apesar das suas opções matrimoniais, elas continuavam a repro-duzir o preconceito étnico. Pertencendo a uma gera-ção que assistiu e participou numa profunda mudan-ça das relações inter-étnicas, elas transportam ainda consigo as memórias de um passado conflituoso. Imediatamente, surgiu-nos o problema de com-patibilizar estas afirmações com as que, entretanto, recebíamos de macaenses, no sentido de que não era hábito "até ainda há pouco tempo" os macaenses ca-sarem-se com chineses. Antes do mais, convém vol-tar a insistir que não é nossa intenção entrar no de-bate sobre "as origens dos macaenses" nos termos em que ele tem sido formulado até hoje (cf. Pina Cabral e Lourenço, 1990). O que ninguém põe em causa é que os macaenses surgem no espaço cultural e económico que é criado pelo contacto entre duas civilizações profundamente díspares.15 Encontrando--se numa encruzilhada de culturas e de povos - ten-do acesso relativo a qualquer um deles, mas não pertencendo a nenhum em absoluto - a identidade étnica dos filhos da terra surge como ambivalente e potencialmente problemática. A melhor formulação que conhecemos deste sentimento encontra-se num poema de Cecília Jorge16:

Macaense

que te (in)defines

pelo não ser bem

que também não és, bem...

um mais ou menos

entre dois pólos

que se atraem

e repelem

pela diferença

no desconhecimento

divergente.

Na medida em que os agentes sociais aplicam a si próprios os ideais socialmente reconhecidos, eles impõem limites ao seu comportamento, ao mes-mo tempo que reforçam a sua identidade. O "não ser bem" representa a incapacidade de se modelar pelos ideais sociais reconhecidos por todos, pelo que a identidade pessoal é posta em risco. Assim, como julgamento negativo sobre o/s outro/s, o "não ser bem" funciona como forma de legitimar a exclusão desses outros de vários benefícios de ordem simbóli-ca, política ou económica. A sua aplicação tende, portanto, a deixar marcas sobre o outro, na medida em que enfraquece a sua posição e a imagem de si próprio, pondo em causa a sua identidade (pessoal ou étnica). A este fenómeno chamaremos o estigma da humilhação.

A cada momento, esta valoração (o que é ou não é "bem") apresenta-se como evidente e inevitá-vel. Mas, mais do que nenhuma outra, a história recente de Macau demonstra a transitoriedade dos valores e das hierarquias que neles se baseiam. Num contexto de mutabilidade social e económica tão rá-pido como o de Macau no último meio século, a lógica do "não ser bem" dá azo a uma dinâmica do desprezo, em que os que atingem prestígio são for-çados a desprezar alguém (preferencialmente aque-les mesmos que os desprezaram) como única forma de apagar o estigma da humilhação que consigo transportam. Ora esta dinâmica ocorre tanto ao nível individual como ao nível de grupo e ela torna-se ainda mais complexa por estar ligada a dois factores que se entrecruzam: o da diferenciação étnica e o da diferenciação sócio-económica. As gerações que vi-veram em Macau as décadas de 60 (em que as rela-ções de poder entre as comunidades chinesa e lusófona se começaram a alterar), de 70 (em que se criaram as condições para a futura reintegração de Macau no Estado chinês) e de 80 (em que ocorreu um enorme surto de desenvolvimento, conco-mitantemente com o aparecimento de uma nova classe média chinesa), estiveram sujeitas a muitas ocasiões em que a ironia de um destino imprevisível resultou no funcionamento da dinâmica do desprezo.

Por se situarem num ponto intermédio entre o Oriente e o Ocidente, tanto de um ponto de vista cultural como fenotípico, os macaenses ameaçam quebrar as fronteiras das identidades étnicas dos gru-pos culturalmente hegemónicos e, pela mesma ra-zão, estão sujeitos a uma maior fragilidade iden-titária.17 Esta fragilidade manifesta-se no discurso das origens, que tende a estar mais sujeito a manipu-lações e ambiguidades - tanto quando relatado por macaenses, que se sentem inseguros, como quando relatado por membros de outros grupos, que têm in-teresses próprios investidos no relato.

Encontram-se, em particular, duas versões aparentemente contraditórias. A versão que, na nos-sa experiência, é proposta por pessoas de identidade étnica chinesa18 tende a ser fortemente depreciativa. Marcados ainda pelo estigma da humilhação ligado a experiências de preconceito anti-chinês anteriores aos anos 60, os chineses com mais de quarenta anos não gostam de reconhecer os laços que os unem aos filhos da terra. É frequente ouvi-los insistir que só os sectores menos privilegiados e menos valoriza-dos da sociedade chinesa estão na base da miscige-nação que deu origem aos tou saang. A versão con-trária encontra-se veiculada pelos sectores mais prestigiados da sociedade macaense - as chamadas "famílias tradicionais" - e é altamente prestigiante. Alguns dos advogados desta versão têm sido autores de origem portuguesa que estão pessoalmente asso-ciados às referidas famílias tradicionais.

Esta segunda versão afirma que os macaenses têm origem numa miscigenação ocorrida essencial-mente nos primeiros séculos da estada dos portugue-ses no Oriente entre homens portugueses e mulheres malaias, japonesas e indianas. As famílias macaen-ses casavam-se ou com portugueses ou entre si. O casamento com algumas mulheres chinesas só teria ocorrido "nos últimos tempos". Esta última versão, como se vê, considera a influência fenotípica chine-sa como recente e secundária, pelo que reforça a identificação dos macaenses como "portugueses do Oriente", negando assim a sua equidistância entre as etnias portuguesa e chinesa.

Tendo lido inicialmente a obra "Os Macaen-ses" do Padre Manuel Teixeira (1965), em que se refuta satisfatoriamente esta segunda versão, fomos levados a não conceder valor empírico a qualquer uma das versões. O estudo atento de histórias de família que temos vindo a fazer, no entanto, levou--nos a reconsiderar esta posição. Somos hoje de opi-nião que ambas as versões das origens macaenses têm algo de verídico e que, contrariamente ao que inicialmente julgámos, elas não são contraditórias mas complementares.

Por oposição a grupos sociais em que a aqui-sição de novos membros resulta da integração de crianças produzidas num contexto de reprodução bi-ológica entre membros do grupo, no caso dos maca-enses há duas entradas possíveis para o grupo. A primeira, a que chamaremos contexto matrimonial de reprodução, resulta de casamentos entre pessoas que já eram macaenses ou casamentos com portu-gueses que se integram na vida social macaense. A segunda, a que chamaremos contexto matrimonial de produção, resulta de casamentos entre pessoas que não são necessariamente macaenses. Neste se-gundo caso encontram-se os filhos de chineses com portugueses ou de macaenses com chineses ou ainda de qualquer um destes com uma pessoa originária de outro referente étnico exterior ao território. Assim, em vários momentos da história de Macau, surgem contribuições genéticas muito variadas: japoneses, malaios, timorenses, indianos, negros, etc.. Por exemplo, encontramos hoje um grupo de germanos cujo pai era indiano e a mãe chinesa e que são consi-derados por todos e por si próprios como sendo ma-caenses.19

Até aos finais da década de 60, para os maca-enses, o funcionamento do contexto matrimonial de reprodução estava normalmente ligado a situações de privilégio social e até de promoção social, já que representava uma maior identificação com a identi-dade europeia. Ora, no contexto colonial da época e tendo em conta a paralisia económica que caracteri-zava a vida de Macau, essa identidade europeia era um capital valioso que não podia ser facilmente des-perdiçado. Representava uma maior probabilidade de obtenção de emprego na administração em Ma-cau e, em Hong Kong, melhores oportunidades de não ser identificado com a comunidade chinesa e, por conseguinte, de evitar o tipo de limitações ao movimento e à promoção social que essa identifica-ção comportava.

Os seguintes exemplos, que nos foram relata-dos por macaenses pertencentes a duas das famílias tradicionais, são característicos da época. A primeira história passou-se em Hong Kong no início da déca-da de 40. A família vivia na época um momento de pujança económica e estava hospedada num dos ho-téis mais prestigiados da ilha. Passeando-se com uma filha num jardim do hotel, a mãe encontrou uma criança inglesa que quis brincar com a filha. Contudo, a irmã mais velha da criança, mal se aper-cebeu da aproximação, levou-a dali agressivamente, perguntando-lhe com azedume: "Para o quê" - e não para quem - "é que tu olhas?" ("What are y ou looking at?") O estigma da humilhação que esta re-acção causou na senhora, sobrevive como memória viva nos filhos, que nos relataram o acontecimento.

O outro exemplo dá bem noção de como, nes-sas famílias de élite, a aparência europeia constituía um capital a proteger. Um macaense distinto, cujas características faciais o identificavam como tendo algum sangue chinês, teve uma numerosa prole de uma senhora macaense. O único filho na companhia do qual aceitou ser fotografado era uma filha que, por acaso das combinações genéticas, não manifes-tava características faciais chinesas.

Os casamentos em contexto de reprodução di-minuíam a probabilidade de ocorrência de situações de preconceito étnico. Mesmo assim, contudo, havia formas de casamento mais e menos prestigiantes. Uma vez que os macaenses constituíam uma élite potencial, certos tipos de união eram mais valoriza-dos que outros. O tema das características de élite da sociedade macaense será discutido noutro texto; para já bastará indicar que a sua relativa "portu-galidade" permitia aos macaenses ter acesso a car-gos administrativos que estavam vedados aos chine-ses, concedendo-lhes assim as características de uma élite. Assim sendo, o casamento com uma portugue-sa aumentava o capital de portugalidade, enquanto que o casamento com uma filha de mãe chinesa ou uma jovem oriunda de uma família de "cristãos no-vos" diminuía esse capital.

Considerando que, pelo menos desde os mea-dos do Século passado, os jovens macaenses tendi-ara a emigrar e que, pelo contrário, havia sempre um contingente de mulheres chinesas acessíveis aos ma-caenses, a sociedade macaense era caracterizada por um forte excedente feminino. Assim, nem sempre era fácil às jovens em contexto de reprodução en-contrar marido.20 Desta forma, se explica a existên-cia de celibato definitivo feminino entre as famílias tradicionais, assim como os relatos que nos são fei-tos de raptos de raparigas das famílias tradicionais por rapazes de famílias menos prestigiadas.

Se considerarmos agora o contexto matrimo-nial de produção, veremos que, até aos meados da década de setenta, havia três situações características em que novos macaenses eram produzidos. A pri-meira é o caso típico do soldado ou marinheiro por-tuguês que, vindo para Macau, criava uma relação com uma senhora chinesa - em geral oriunda das classes menos privilegiadas - coma qual tinha fi-lhos que perfilhava, ou por estar casado com a mãe, ou por opção pessoal. Alguns dos contos de Deolinda da Conceição lidam com os resultados po-tencialmente dramáticos destas situações (p. ex. "O Calvário de Lin Fong", "A Esmola"). Temos ainda um exemplo muito bem documentado do período da viragem do século: a família que Venceslau de Mo-rais criou com uma escrava que terá eventualmente comprado à sua dona. Aí vemos que, não obstante a pobreza do escritor, e apesar de ter abandonado o lar quando os dois filhos eram crianças, ele nunca dei- xou de os apoiar até à maioridade e nunca recusou a paternidade (Barreiros, 1990 [1955]).

Na verdade, a impressão que temos, resultan-te do estudo de histórias de família em que esta situ-ação se verificou, é que em largo número de casos, estes casamentos (fossem eles oficializados pela Igreja ou meramente uniões de facto) deram azo a famílias estáveis e felizes. Para além de tudo o mais, uma união desta natureza constituía frequentemente, tanto para o marido português como para a mulher chinesa, uma possibilidade de promoção social atra-vés dos filhos que, uma vez integrados na sociedade macaense, tinham possibilidades de beneficiar da si-tuação de élite que caracterizava os filhos da terra e que estaria normalmente vedada tanto aos filhos de um casal chinês pobre em Macau como aos filhos de um casal português pobre em Portugal.

A segunda versão do contexto matrimonial de produção é a do concubinato. Os relatos que temos recolhido indicam que a prática do concubinato com mulheres chinesas (e até, em menor número de ca-sos, com segundas mulheres macaenses) era muito frequente. Estas senhoras não alteravam a sua identi-dade étnica chinesa (continuando, por exemplo, a falar chinês em casa). Contudo, quando a relação era prolongada e os filhos eram perfilhados, eles assu-miam uma identidade étnica macaense.

A natureza do método que utilizámos poderia reduzir o conhecimento de situações desta natureza, já que é fácil aos informantes pretender ignorância sobre situações, tais como a poligamia, que eles con-sideram poder ser humilhantes aos olhos de um in-vestigador europeu. Contudo, a abundante informa-ção que obtivemos, permite-nos afirmar que, neste campo, há uma forte influência dos costumes chine-ses. Por um lado, para uma senhora chinesa, a situa-ção de concubina de um homem casado não era tão humilhante como seria para uma senhora de cultura portuguesa.21 Por outro lado, os filhos sofrem menos do estigma da bastardia do que sofreriam na Europa onde, ainda na primeira metade deste século, ele era muito marcante. A cultura chinesa aceita facilmente que um homem tenha filhos legítimos de várias mu-lheres. Assim se explica que, quando a relação que o pai teve com a mãe foi prolongada, os meios-irmãos adultos se reconheçam e apoiem mutuamente. Ainda nos anos 40 e 50 (nas décadas seguintes estas situa-ções foram diminuindo) era frequente entre macaen-ses um homem ter filhos da sua mulher principal, concomitantemente com outros filhos "de atrás da porta", que reconhecia como seus. Nestes casos, ele combinava um contexto de reprodução, com um ou mais contextos de produção.

A evidência que até hoje recolhemos sugere que não havia um padrão obrigatório para as rela-ções entre os meios-irmãos e entre o pai e os filhos. A situação altera-se consideravelmente consoante os filhos resultavam de elações eventuais ou de rela-ções de poligamia prolongada. A disponibilidade por parte do pai e da sua prole "legítima" para reconhe-cer abertamente estes laços parece também estar re-lacionada com o estatuto sócio-económico. Entre as famílias mais prestigiadas e economicamente mais beneficiadas, os filhos e irmãos "de atrás da porta" constituíam uma ameaça tanto para o prestígio da família como em termos de herança. Em famílias menos prestigiadas, nas quais a lógica patrimonial constituía um factor pouco relevante, o reconheci-mento dos laços podia até constituir um factor de benefício sócio-económico mútuo.

A terceira versão é a dos cristãos novos. A partir dos anos 60, a Igreja Católica de Macau foi alterando as suas atitudes tradicionais, abrindo-se a uma forma de culto mais caracterizado por marcas culturais chinesas. Hoje, e com o crescimento do número de católicos de etnia chinesa, assiste-se a uma aproximação da Igreja e da comunidade chine-sa. O presente bispo, aliás, é um apologista da pro-cura de um Catolicismo de raiz cultural chinesa. Ainda há duas décadas, porém, era frequente um converso adoptar um nome português e que educas-se os seus filhos dentro de um universo cultural eu-ropeu. Assim, os filhos das famílias de cristãos no-vos eram considerados como pertencendo de pleno direito à comunidade macaense. Se bem que o seu capital de portugalidade não fosse muito elevado, nos casos em que estes jovens foram bem sucedidos, integrando-se profissionalmente na administração, casaram-se com mulheres macaenses. Assim, para os jovens que, como resultado das suas experiênci-as de escolarização se integravam na comunidade, o momento do casamento era uma ocasião de con-firmação de pertença e não de entrada na comuni-dade.

A ASSIMETRIANAS RELAÇÕES SEXUAIS INTER-ÉTNICAS

Os contos de Deolinda da Conceição exprimem uma revolta perante a posição altamente desvalorizada que era concedida à mulher na sociedade chinesa da primeira metade do século. Vários deles pretendem ainda mostrar como, numa situação de incompreensão étnica, a principal vítima era a mulher chinesa, já que as relações sexuais inter-étnicas eram tendencialmente assimétricas.

Na verdade, o cruzamento luso-chinês era ge-ralmente unidireccional, ocorrendo entre mulheres chi-nesas dos estratos mais inferiores e homens europeus ou macaenses de todos os estratos sócio-económicos. Em Macau, até aos finais da década de 60, um homem de ascendência chinesa só se casava com uma europeia ou macaense se tivesse abandonado a sua identidade étnica chinesa - convertendo-se ao catoli-cismo, adoptando um nome europeu e falando como língua principal o Português.22 A evidência que temos vindo a recolher parece sugerir que teria havido sem-pre muitos mais casos destes do que se é levado a pensar inicialmente.

Algumas das famílias presentemente activas em Macau têm mesmo uma origem quase novelesca. Quando as autoridades portuguesas conseguiram ex-pulsar um bando de piratas da Ilha de Coloane, no princípio do século, encontraram um pequeno grupo de rapazes raptados pelos bandidos com a finalidade de os vender. Os moços foram dados a educar ao Se-minário de S. José, integrando-se, mais tarde, na co-munidade macaense. O exemplo é interessante até por ser pouco vulgar, já que todos os informantes são unânimes em afirmar que não era frequente encon-trarem-se orfãos masculinos, enquanto que havia muitos orfãos femininos. A figura das bambinos - orfãs recolhidas pelo Asilo da Santa Infância das Irmãs Canossianas - não tinha praticamente um cor-respondente masculino. Por exemplo, entre 1876 e 1926, esta ordem religiosa criou 32 960 raparigas chinesas abandonadas, por oposição a 1446 rapazes chineses.23

Esta assimetria entre os géneros está ligada a uma compatibilidade, que poderíamos mesmo consi-derar irónica, entre as atitudes culturais dominantesno sul da China e as atitudes culturais características do império colonial português. Enquanto a socieda-de chinesa tende a facilitar a saída de mulheres dos seus estratos mais baixos, a sociedade portuguesa tende a permitir facilmente a integração dos filhos (legítimos ou ilegítimos) de uniões mistas.

O forte pendor patrilinear da sociedade chine-sa da província de Guangdong (Cantão) e o consequente desinteresse que as famílias do sul da China tinham por crianças do sexo feminino, estão directamente associados à abundância de orfãs que sempre se verificou em Macau (vide Anexo) e que está amplamente referenciada por dados históricos (ver Teixeira, 1965). Nos anos 30 e 40, a guerra e a depressão económica terão forçado muitos pais a vender ou abandonar as suas filhas.24

Para termos uma ideia de como o fenómeno era parte integrante da sociedade da Província de Guandong, citarei o que nos diz um reconhecido sinólogo (James Watson) a propósito das aldeias que estudou nos Novos Territórios de Hong Kong: "Ain-da em 1920, uma má colheita causou que aproxima-damente mil crianças, na sua maioria raparigas, fos-sem abandonadas. As condições eram tão más que as raparigas eram vendidas por vinte cêntimos." (1980:236) "Em tempos de crise extrema, tais como fomes ou inundações; as mulheres secundárias e as filhas mais novas eram as primeiras a ser vendidas. Os aldeões assinalam a data do declínio de famílias que antes eram prestigiadas - em geral devido ao vício do ópio por parte do chefe da família - calcu-lando qual foi a data em que desapareceu pela pri-meira vez uma filha ou uma mulher secundária" (1980:228).

Os relatos que Deolinda da Conceição nos lega sobre este tema são particularmente pungentes (por exemplo, "Aquela Mulher"). O abandono de crianças femininas era uma alternativa ao infanticídio - prática tradicional nesta região que, se-gundo um estudo baseado em relatos dispersos na im-prensa chinesa, continuava ainda em vigor nos anos 80, estando agora associada à política de filho único (Bianco e Hua, 1989).

Por outro lado, enquanto a adopção de varões por famílias chinesas era geralmente feita com a finali-dade de continuar a linha masculina, a adopção femi-nina assumia aspectos mais próximos da escravatura do que da adopção propriamente dita. Uma vez assina-do o contrato de venda pelos pais, estas crianças podi-am ser revendidas livremente. Conhecidas por mooi jai, eram frequentemente vendidas a intermediárias, que as criavam com a finalidade de as revender a parti-culares ou a prostíbulos (Jaschok, 1988; Teixeira, 1965). A expressão portuguesa utilizada pela comuni-dade macaense para se lhes referir era "bichas". Em Macau, na primeira metade do Século, esta expressão era utilizada para referir tanto as mooi jai como as bambinos acima referidos. Em ambos os casos, chega-das à idade adulta, esperava-se que as pessoas que as "adoptaram" lhes encontrassem marido.

Nas famílias mais abastadas havia várias destas raparigas e ainda há senhoras em Macau, agora inte-gradas na comunidade macaense, que durante os anos 50 viveram nestas circunstâncias. Em Hong Kong, o costume terminou mais cedo (vide Jaschok, 1988). A compatibilidade irónica entre as práticas culturais chi-nesas e as portuguesas a que nos referíamos anterior-mente toma-se amplamente clara se tomarmos em conta as atitudes características da sociedade colonial portuguesa. Nas histórias de famílias que recolhemos, encontrámos casos que demonstram que a sociedade de Macau tratava como sendo portuguesa qualquer pessoa que se convertesse ao catolicismo, adoptasse um nome português e se coadunasse aos padrões de vida portugueses. Ao fazer esta afirmação, bem enten-dido, não negamos a existência de formas mais subtis de discriminação contra estas pessoas. Basta ler a cor-respondência do próprio Camilo Pessanha - que dei-xou descendentes seus de mãe chinesa em Macau -para vermos que os preconceitos não só existiam como eram fortes.25 Contudo, algo que parece ter caracteriza-do sempre as relações sexuais inter-étnicas em contex-tos coloniais portugueses, é a facilidade com que os portugueses perfilhavam os frutos das suas relações com mulheres de outras sociedades, mesmo quando essas relações eram temporárias ou não eram tratadas coma dignidade de casamentos.26

Ao estudarmos hoje o conhecimento que os macaenses têm das suas relações familiares deparamos com o facto inesperado das mulheres chinesas não funcionarem como veículos de laços de parentesco; de tal forma que as crianças que se integravam na socie-dade lusófona como macaenses não tinham laços de parentesco chinês. Se analisarmos brevemente as nove primeiras histórias de família que recolhemos pode-mos concluir que, para além do não reconhecimento mútuo de laços, o processo de amnésia é generalizado.

Casamentos Católicos nas Igrejas de Santo António e São Lourenço, Macau 1961-1990 (V. páginas seguintes)

Entre as 670 entradas individuais de parentes (excluindo, portanto, os 9 entrevistados), encontrámos 61 pessoas das quais os informantes nos dizem terem nome chinês.27 Só 13 destas são homens, enquanto 48 são mulheres. Os entrevistados só sabiam os nomes de 29 destas 61 pessoas (22 mulheres e 7 homens), mas só em 14 casos é que conheciam os nomes de família. Nos restantes 15 casos, só conheciam alcunhas ou no-mes portugueses ou ingleses adoptados pelas pessoas em causa. Os nomes de família eram conhecidos nos seguintes casos: em 3 casos era o nome da própria mãe; em 3 casos era o irmão da mãe; em 2 casos era a avó materna co-residente; em 1 caso era a própria mu-lher; em 1 caso era a mãe da mulher; em 1 caso era o marido da irmã e em 1 caso era a mulher do irmão da mulher. Finalmente, só em 2 casos os entrevistados reconheciam como parentes, afins maternos mais dis-tantes do que a mãe, o irmão da mãe e a mãe da mãe. Em ambos os casos tratava-se de personalidades chi-nesas conhecidas em Macau. Nenhum dos entrevista-dos conhecia o nome chinês completo de qualquer pri-mo, apesar de todos os entrevistados serem bilingues em cantonense e português.

Por outras palavras, com muito raras excep-ções, o casamento com mulheres chinesas não dava azo a relações de parentesco duráveis entre famílias macaenses e chinesas. Para tal contribuiu o próprio sistema de nomeação chinês, que atribui às mulheres casadas uma condição de falta de nome (namelessness), como têm insistido os antropólogos que escreveram sobre este tema no sul da China (cf. Watson, 1986). Não se trata, porém, de um simples desconhecimento dos nomes das mulheres casadas, mas sim do facto dessas mulheres não funcionarem como veículos para laços de aliança.

Chamamos a atenção para o facto de que estes dados só podem ser compreendidos se situados por relação à idade dos nossos informantes - todos eles entre 34 e 69 anos de idade, sendo a média de 53 anos. Como temos insistido, Macau é um terreno social em franca mutabilidade: o que se aplica a uma geração não se aplicará necessariamente a outra. Estamos aqui, é claro, a utilizar a noção de geração no seu significa-do sóciológico, tal como a definiu Carmelo Lisón Tolosana.28

NOVAS DINÂMICAS INTER-ÉTNICAS

Por razões de natureza metodológica, a amostra acima estudada insiste sobre informantes nascidos nas décadas de 30 e 40. Como tal, ela tende a esconder as alterações que ocorreram entre a geração cuja vida profissional adulta se iniciou no período do pós-guerra e a geração cuja vida profissional adulta se iniciou no período que se seguiu ao maior trauma da história re-cente de Macau, a Revolução Cultural. Voltaremos a explorar esta temática com mais detalhe noutro artigo. Para já basta insistir que, nos termos propostos por Lisón Tolosana, poderíamos distinguir estas gerações, em termos do poder político intra-comunitário, entre a geração que presentemente está a deixar de controlar os lugares de poder - a geração cessante - e a geração da qual saem as pessoas que estão agora a atingir os lugares de liderança - a geração controlante.

Se bem que, seguindo ainda o mesmo autor, não possamos fazer uma correspondência absoluta en-tre pertença a uma geração, tal como aqui definimos este conceito, e a data de nascimento cronológico, não estaremos muito errados se dissermos que a maioria dos membros da geração cessante nasceu nas décadas de 30 e 40 e os da geração controlante nasceu nas décadas de 40 e 50. Na nossa opinião, o que marca a diferença entre as gerações cessante e controlante pre-sentemente em Macau é a diferença entre os contextos em que planearam a sua vida adulta. Quando a geração agora cessante iniciou a sua vida adulta, Macau estava num período de estagnação sócio-económica. O pós--guerra foi um período de relançamento da velha ordem colonial. A China estava imersa numa guerra civil particularmente destrutiva, enquanto que o re-gime político português era conservador e imbuído de uma ideologia nacionalista isolacionista. Para a população chinesa que se ia estabelecendo em Macau, e particularmente para uma élite de refugiados políti-cos que foi crescendo de importância no território com o passar dos anos, o regime do indigenato era altamen-te ofensivo (vide segunda parte do Anexo). Por virtude de se identificarem com os portugueses, os macaenses beneficiavam de privilégios que os distinguiam da po-pulação chinesa circundante.

No início dos anos 60, a legitimidade do regime colonial português perante a comunidade chinesa entra em crise. Os macaenses, que até aí formavam pratica-mente a única classe média de Macau, viram-se con-frontados com uma nova classe média chinesa de base empresarial. Instala-se uma situação de conflito surdo entre as duas comunidades que viria a desembocar no "1,2,3" como viria a ficar conhecida a grande revolta da população chinesa de Macau na altura da Revolu-ção Cultural (em Dezembro 1966 e Janeiro de 1967). A população chinesa passa a ter muito mais peso e uma voz activa na gestão do território. A intensa conflitualidade que marcou a década de 60 foi sendo progressivamente substituída por um processo de va-garosa aproximação entre os macaenses e os chineses.

A geração controlante, no decorrer do grande surto de crescimento que foi a década de 80, conse-guiu proteger o seu monopólio étnico (que assenta so-bre o controle das camadas intermediárias da adminis-tração) através da exploração dos seus dotes de comu-nicação inter-étnica: isto é, posto na sua forma mais simples, o seu conhecimento da língua cantonense fa-lada, conjugado com o seu conhecimento da língua portuguesa escrita.

Para os membros da geração emergente porém, que, no início da década de 90, lançam as bases da sua vida profissional futura, a questão põe-se de forma distinta. A Declaração Conjunta de 13 de Abril de 1987 marca um termo para o regime administrativo português tal como ele presentemente existe. Se bem que, formalmente, a língua e o direito português de-vam continuar a ser oficiais durante algumas décadas, a questão é excessivamente vital para os macaenses para que eles possam confiar em promessas vagas de um regime político que é conhecido pelas suas atitudes fortemente nacionalistas e pela sua imprevisibilidade de decisões.29 Os macaenses prevêm que, em 1999, termine o seu controlo sobre o monopólio étnico que os protegeu da classe média chinesa emergente duran-te as últimas três décadas. A partir dessa data, eles entrarão em aberta competição, mas o trunfo que cons-tituía a associação cultural dos macaenses com as figu-ras dominantes da administração, estará então nas mãos da classe média chinesa.

Por conseguinte, para a geração emergente, a situação apresenta-se novamente de forma muito dis-tinta. A opção de élite (tanto para chineses como para macaenses) é permitir aos filhos uma educação univer-sitária num país anglófono onde, possivelmente, estes jovens virão a integrar-se. Entre os pais de jovens pre-sentemente a estudar no estrangeiro que entrevistámos, detectámos sinais de que, nomeadamente no Canadá, na Inglaterra e na Califórnia, a identificação cultural portuguesa seja menos valiosa para estes jovens do que a identificação cultural chinesa, já que são regiões onde a comunidade chinesa permite uma integração sócio-económica mais eficiente do que a portuguesa.

Para os jovens aos quais o êxodo não é possí-vel, a educação básica em português constitui uma desvantagem, pois significa que são analfabetos em chinês. O português não é uma língua atraente para estes jovens criados num universo cuja referência cul-tural dominante são os canais em língua cantonense da televisão de Hong Kong, pelo que eles resistem aos esforços dos seus pais e professores - pertencentes à geração cessante ou à controlante - de lhes incutir uma cultura lusófona. Uma nota dominante entre os profes-sores do ensino português que entrevistámos é a de que os seus alunos macaenses nunca chegam a apren-der muito português, pois a sua língua veicular domi-nante é o cantonense. Mais recentemente, os filhos de casamentos mistos entre chineses e macaenses come-çam até a ser enviados para escolas anglo-ehinesas.

Os jovens macaenses educados em Macau na década de 80, veêm a sua segurança no futuro numa colagem à classe média chinesa de Macau. Como tal, a sua agressividade não é dirigida contra os chineses mas sim contra os portugueses da República. Os dis-túrbios ocorridos entre os alunos do Liceu em 1988 são o melhor sinal deste processo. Como nos dizia uma testemunha ocular das ocorrências, a reivindica-ção principal dos jovens macaenses que iniciaram as hostilidades no Complexo Escolar era: "Nós nem so-mos chineses nem portugueses, somos uma raça à parte". Em vez de se identificarem com os filhos dos funcionários portugueses da Administração - como ocorreu em Macau nas décadas de 50 e 60, quando a élite da geração controlante foi educada no Liceu - os adolescentes macaenses da década de 80 preferiram distanciar-se violentamente. Ainda segundo informa-ção de alunos do Liceu que assistiram aos distúrbios, o núcleo dos oponentes era formado por jovens originá-rios da República cujos pais ocupavam lugares de des-taque na Administração.

NOVAS ESTRATÉGIAS MATRIMONIAIS

A profunda alteração das relações entre maca-enses e chineses que temos vindo a identificar teve efeitos marcados no comportamento matrimonial. No referente ao contexto matrimonial de produção, a evi-dência que temos sugere fortemente que houve uma alteração no volume e no cariz de classe desses casa-mentos no momento em que o território passou a im-portar quadros da República em vez de soldados. De um estudo dos casamentos católicos realizados nas igrejas de Santo António e de São Lourenço podemos verificar que, entre 1961 e 1974, 13,9% dos casamen-tos que envolviam um macaense eram com portugue-ses, enquanto que, entre 1975 e 1990, esta percenta-gem desce para 5,9%.

No referente ao contexto matrimonial de repro-dução, a situação tem vindo também a alterar-se marcadamente. A sociedade macaense abriu-se por completo a casamentos com chineses - e o mesmo parece estar a ocorrer da parte da sociedade chinesa, visto que ainda nos anos 50 as famílias chinesas, que não fossem pobres, viam com maus olhos os casamen-tos com ocidentais, mesmo quando estes pertenciam à élite (ver o conto "O Refúgio da Saudade" de Deolinda da Conceição). Mas é, de facto, a geração emergente que dá sinais de ter finalmente quebrado o padrão tradicional da assimetria matrimonial. Entre 1961 e 1974,43,7% de todos os casamentos realizados nas igrejas acima referidas em que pelo menos um dos nubentes era macaense, eram entre macaenses; mas, entre 1975 e 1990, essa percentagem desce para 30,5%. Mas a mudança verifica-se ainda num outro aspecto. Se considerarmos o total de casamentos que involvem um nubente chinês e um nubente macaense, vemos que, entre 1961 e 1974, só em 27% dos casos é que o homem era chinês. Contudo, entre 1975 e 1990, em 40% dos casamentos entre macaenses e chineses, o homem era chinês.

Assim, verificamos que, como resultado da alteração nas dinâmicas de identificação étnica, a geração emergente macaense quebrou os padrões até aí vigentes de estratégia matrimonial. Contudo, con-tinuamos a encontrar alguns sinais de que a assimetria das relações inter-étnicas não foi simples-mente abolida. Todos os informantes são unânimes em afirmar que, em Macau, as crianças que resultam de casamentos entre macaenses e chineses e portu-gueses e chineses se identificam sempre como sendo ou macaenses ou portugueses. Curiosamente, por exemplo, quando a mãe é chinesa, é ainda hoje fre-quente que o nome de família não seja dado às cri-anças como, em teoria, obriga a lei portuguesa.

Como resultado da modernização da socieda-de de Macau (tanto o desenvolvimento económico, como a penetração de valores ligados à sociedade de consumo veiculados principalmente através dos ca-nais de televisão de língua cantonense de Hong Kong), a dinâmica dos géneros tem vindo a alterar--se. Os antropólogos que têm estudado a sociedade chinesa parecem estar de acordo em que o desenvol-vimento sócio-económico tende a acompanhar um certo reforço dos laços de parentesco bilateral e um consequente enfraquecimento da patrilinearidade. Este processo contribuiria para uma maior aproxi-mação da posição relativa dos géneros (ver Ward, 1985). Um dos factores, sem dúvida, mais importan-tes nesta área foi o acesso feminino ao trabalho re-munerado que, entretanto, ocorreu. Uma mulher pro-fissional, e particularmente um quadro, tem uma individuação e nomeação que não eram acessíveis às mulheres da sociedade chinesa tradicional que, no momento do casamento, "entram num mundo em que elas existem só por relação a outrém." (Watson 1986:626).

Enquanto que as mulheres macaenses e chi-nesas da geração cessante estavam predominante-mente ocupadas com o trabalho doméstico (para as suas próprias famílias ou para outrém) ou com traba-lho esporádico no sector informal da economia, mui-tas mulheres da geração controlante desempenham já hoje papéis profissionais de destaque. As jovens da geração emergente, porém, foram maioritariamente educadas tendo em vista uma possível vida profissio-nal.30 No caso dos macaenses, as histórias de família que recolhemos comprovam este padrão para além de qualquer dúvida.

Um segundo factor de enorme importância, para o qual temos melhores informações referentes à comunidade macaense, é a vulgarização do divórcio. Enquanto que a geração cessante estava fortemente presa aos valores da Igreja Católica e da ideologia política dominante na época no império colonial português, esta geração teve já acesso ao divórcio legal. A vulgarização do divórcio entre esta última geração, significa também que muitas das situações de concubinato e de bigamia informal, que caracteri-zaram as vidas matrimoniais de muitos dos homens da geração cessante, não se verificaram na geração seguinte. As mulheres que hoje recusam, através do divórcio, essas situações, estão muito melhor prote-gidas para o fazerem devido ao acesso que têm ao mercado de trabalho.

A relação entre a dinâmica dos géneros e a dinâmica das relações inter-étnicas altera-se em concomitância com as alterações específicas a cada um dos campos. A aproximação dos lugares de clas-se entre certas camadas do grupo étnico chinês e do grupo étnico macaense, assim como o paralelismo em que ambos os grupos se encontram em relação ao futuro próximo de Macau, vêm criar uma identifi-cação de interesses entre indivíduos situados em campos étnicos distintos. Ao mesmo tempo, os fac-tores que acabamos de identificar concedem às mu-lheres, sobretudo às chinesas, uma nova liberdade de movimento por relação à ordem familiar patriarcal, permitindo-lhes menor necessidade de sujeição a ló-gicas de reprodução étnica. A relativa independência sócio-económica de uma mulher com uma profissão independente, e por vezes até prestigiada, significa que a identificação entre casamentos inter-étnicos e despromoção social deixa de se verificar - por ou-tras palavras, tanto entre os chineses como entre os macaenses, o contexto matrimonial de reprodução passa a ser compatível com um casamento inter-étni-co. No caso dos macaenses deixa, assim, de haver uma distinção clara, como havia até aos meados dos anos 70, entre o contexto matrimonial de reprodu-ção e o de produção.

CONCLUSÃO

Em conclusão, voltemos ao argumento geral que enunciámos no início deste ensaio. As relações inter--étnicas em Macau estiveram sujeitas, no período de vida dos informantes com quem tivemos a oportunidade de fa-lar, a enormes e profundas alterações. O Macau vivido, no início das suas vidas de adultos, pela geração nascida no princípio do século, e que marcou as suas escolhas vitais para o resto da sua vida, não é o mesmo Macau no qual se desenvolveu a geração cessante de hoje, e muito menos ainda o Macau dos quadros que, nos anos 70, foram trazi-dos de volta ao território no início do período de expansão económica. E que dizer do Macau dos jovens que hoje saem para ir estudar numa universidade canadiana, inglesa ou portuguesa?

O que mudou em Macau e nos macaenses não foram unicamente as condições políticas circundantes, mas também as próprias definições identitárias étnicas. Ora, esperamos ter podido provar que, por detrás destas, está a natureza e alteração das relações entre os géneros no interior de cada um dos campos culturais que no território se entrecruzam. Por muito privada que seja, a dinâmica dos géneros não pode ser posta à parte se quisermos compreender essa questão que parece fasci-nar a todos que por Macau passam: a questão das ori-gens dos macaenses.

ANEXO

AS BAMBINOS CRIADAS PELAS MADRES CANOSSIANAS

O seguinte relato foi redigido pelo Bispo de Ma-cau, D. Domingos Lam, a quem estamos muito gratos pelas informações que tão gentilmente nos prestou. Transcrevemos apenas parte de uma carta escrita a 1 de Fevereiro de 1990. Pelos dados pessoais incluídos, con-cluímos que o relato se refere essencialmente à juventu-de do seu autor nos anos 30 e 40.

DONDE VIERAM AS ORFÃS

"Em tempos menos civilizados, as famílias chi-nesas pobres dedicavam pouco amor aos bébés do sexo feminino, mesmo do seu próprio sangue. Não era raro os pais abandonarem bébés nas ruas. Isto acontecia mais frequentemente, se os bébés eram físico-deficientes. Os pais que tinham algum amor à sua prole, levavam-na até à porta da casa paroquial ou do Orfanato, tocavam o sino da porta e afastavam-se, sem ter revelado a sua própria identificação. Os bébés assim encontrados pela Polícia e Missionários, eram entregues às Irmãs dos or-fanatos. Havia também outras meninas pobres, perse-guidas pelos pais e/ou seu patrão as quais procuravam refúgio nos asilos/orfanatos, muitas vezes acompanha-das por um Comissário da Polícia.

BÉBÉS ADOPTADAS

"Ora, os bébés e crianças assim recebidos, en-contravam-se por vezes, em perigo de morte por não terem recebido os cuidados devidos e terem sido expos-tos a um ambiente hostil à sua sobrevivência. Era, en-tão, costume serem baptizados pelas Irmãs, dando-lhes apenas o nome dum Santo. Quando se encontrava um família cristã que os desejasse adoptar, então lançavam, a pedido dos pais adoptivos, nos livros de assento de baptismo da Paróquia, os dados mais pormenorizados.

"Quando elas tinham 18-20 anos de idade, saíam do orfanato à procura de trabalho. Os deficientes geral-mente ficavam no orfanato e, tendo recebido certa edu-cação elementar mas cristã, viviam nos asilos até à mor-te. Ainda hoje se encontram nos Asilos de Mong Há e de Coloane muitas invisuais fruto desta obra de Carida-de Cristã.

MENINAS ADOPTADAS

"Outras que não tiveram a sorte de encontrar pais adoptivos quando eram bébés (em geral, eram de aparência pouco atraente), ao chegarem à idade juve-nil (18 a 20 anos de idade), eram recebidas em casas católicas onde trabalhavam como criadas. Era costu-me fazê-las baptizar (ou ungir com os Santos Óleos em rito solene), tendo a dona da casa como madrinha. Re-cebiam, então, nomes e outros dados de identificação, à sua escolha ou da sua madrinha, e eram registadas nos assentos de baptismo. Ao chegarem à idade de 18 ou 20 anos, elas casavam-se e saíam do convento ou da casa onde trabalhavam. Outras encontravam trabalho na Ci-dade e viviam fora do convento. Algumas delas volta-ram ao convento por terem sido perseguidas.

"Tenho conhecimento pessoal detes casos por minha mãe ter recebido sucessivamente 4 ou 5 orfãs em casa. Três delas casaram-se e são hoje mães de filhos honestos, donas de famílias boas e todas elas possuem moradia própria. A quarta ficou na minha casa por um breve período de tempo. Mais tarde foi para Hong Kong sem ter comunicado a ninguém. As outras três tratam--me por irmão (por adopção), até hoje.

"É certo que nem todas essas orfãs foram tão felizes. Algumas foram infelizes no casamento. Muitas outras fugiram do convento ou da casa onde trabalha-vam, e desapareceram, desde então. Contudo, é certo que a Igreja tinha feito, com plena cooperação do Go-verno, a sua obrigação caritativa, de acordo com os cos-tumes e Leis vigentes no seu tempo.

NACIONALIDADE E IDENTIFICAÇÃO LEGAL

"Ora, antes da Segunda Guerra Mundial, na Ásia Oriental havia apenas três nações independentes (China, Japão e Tailândia) que gozavam de uma soberania mais ou menos perfeita. Havia, naquele tempo, poucas restri-ções à imigração e viagens pelos territórios nas vizi-nhanças de Macau. Não havia então, em Macau, nem Bilhete Policial nem Bilhete de Identidade, que apenas foram introduzidos a partir da década de cinquenta. Pas-saporte era um documento muito raro, era um símbolo de prestígio.

"O meu primeiro Bilhete de Identidade foi emiti-do em 1957. Possui o número serial 174. Isto significa que, até 1957, o bilhete de identidade não era de uso comum na Cidade.

"Nestes territórios coloniais, aos nativos não foi dado o direito de cidadania da nação colonizante pela simples razão de terem nascido nas colónias. Mesmo em Macau, que tinha sido proclamada Província Ultra-marina de Portugal, havia uma diferença legal e subs-tancial entre um "europeu" e um "indígena". Não era, pois, a naturalidade que dava o direito de nacionalidade, mas sim a origem e a paternidade. Em consequência, nos assentos de baptismo mais antigos, foram registados os nomes do pais com todos os pormenores (algumas vezes, incluindo o nome da nação, província, distrito e concelho) a fim de indicar a origem como base de naci-onalidade, que a prole iria adoptar por virtude da sua filiação. Pela mesma razão, um chinês preferia ser regis-tado nos seus documentos pessoais (diploma de estudo, matrícula na escola, e, mais tarde, Bilhete Policial) com a sua origem por filiação em vez do lugar de nascimen-to, pois eles detestavam serem designados por "Indíge-na" cuja tradução em chinês conota o sentido de indiví-duo sem pátria e civilização.

"Como não se dava muita importância à naturali-dade, não se procurava lançar, nos assentos de baptis-mo, a não ser que o interessado fosse nascido fora de Macau. Quando não estava indicado o lugar de naturali-dade, presumia-se que o interessado tinha nascido em Macau."

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NOTA DA REDACÇÃO

O presente texto constitui um relatório parcial de um projecto de investigação subsidiado pelo Instituto Cultural de Macau e também apoiado pelo Instituto de Investigação Científica e Tropical de Lisboa. A harmonização das suas partes e capítulos, (com atribuição do título genérico e dos dois subtítulos) são da responsabilidade da Redacção, assim como outras adaptações e uniformizações gráficas.

NOTAS

1Estamos gratos a João Arriscado Nunes pela sugestão da utilização desta designação, assim como por outros valiosos comentários e sugestões.

2Cfr. a definição de Peter Weinreich: "a identidade étnica tem a ver com a identificação com (...) construções divergentes dos universos da vida, que dão aos indivíduos interpretações da vida e lhe fornecem os recursos e os sistemas de suporte emocional da comunidade" (1989:45).

3Utilizamos aqui o neologismo género (do ingles gender) para distinguir sexo (masculino v. feminino) de sexo (sexualidade).

4Para duas recentes abordagens sintéticas da questão, ver Anthias 1990:27 e Rex 1988.

5Veja-se o conjunto de questões que Rex delineia com vista a auxiliar a investigação que trata deste tipo de matérias (1988:111-2).

6No âmbito desta argumentação, consideramos os chineses como um grupo étnico principal, ainda que estejamos conscientes da existência de uma diferenciação étnica no seio do amplo domínio definido pelo termo "chinês" como categoria geral.

7Estamos gratos aos Serviços de Administração e Função Pública do Território, e em particular ao seu director Dr. Manuel Gameiro, pelo acesso que nos proporcionaram a estes números.

8Veja-se, entre outros, Amaro 1988, Batalha 1988, Lessa 1974, Scheid 1987, Teixeira 1965, Zepp 1987.

9Devemos insistir, de novo, que esta miscigenação não deve ser circunscrita ao binómio português/chinês, uma vez que malaios, indianos, japoneses e outras influências desempenharam um papel importante na história dos macaenses.

10Ferreira do Amaral foi vítima de um dos primeiros destes "incidentes", no decorrer do qual acabaria por ser morto.

11Este método foi desenvolvido pelo Grupo do Noroeste (João Arriscado Nunes, Caroline B. Brettell, Sally Cole, Rui Graça Feijó, João de Pina Cabral e Elizabeth Reis) e testado no contexto do curso de mestrado em História da População da Universidade do Minho e no curso de licenciatura em Antropo-logia Social do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (Lisboa).

12Por "macaenses" entendemos as pessoas que, por serem des-cendentes de portugueses e/ou por se identificarem com a cultura portuguesa, formam em Macau e em Hong Kong (e anteriormente em Xangai) um grupo étnico com uma identida-de distinta da chinesa e da dos portugueses originários da República (cf. Pina Cabral e Lourenço, 1990). No território, estes também têm sido chamados tou saang, "filhos da terra".

13Reconhecemos ainda que, por muito que a escravatura feminina doméstica tenha terminado, a escravatura feminina para fins de prostituição parece ainda continuar em vigor.

14A palavra "género" é aqui usada no sentido de sexo (feminino v. masculino) por oposição a sexo (sexualidade).

15Convém, no entanto, ter em conta que seria um erro reduzir a discussão ao binómio chinês/português. Até ao fim do império colonial português, em 1974/5, os macaenses eram parte inte-grante do grupo de pessoas ligadas à administração e aos interesses comerciais portugueses nesta região do globo (mes-mo em zonas que não estavam sob administração portuguesa, nomeadamente em Xangai e Hong Kong). Assim se explica, que ainda hoje, tanto de um ponto de vista fenotípico como cultural, se encontrem sinais claros da influência de outros povos na formação dos macaenses.

16Poema datado de 23 de Dezembro de 1989. Agradecemos à autora tê-lo posto à nossa disposicão.

17Este facto é amplamente reconhecido e não é nada de recente ou até de específico a Macau. Por exemplo, Camilo Pessanha comenta em 1894 a propósito de um mestiço das Filipinas que com ele viajava, e que ele e os seus companheiros de viagem trataram com muito desprezo: "Os malaios das Filipinas ne-gam sempre a sua naturalidade, como também os nhons de Macau, honra lhes seja feita" (1988: 74).

18Se bem que, com menor frequência, também temos por vezes ouvido esta versão da boca de alguns residentes de Macau originários da República, mas cujas atitudes são antagónicas ao projecto étnico macaense.

19Chamamos a atenção para o facto de que esta distinção deve ser concebida como puramente heurística, isto é, a sua finalidade é esclarecer os princípios lógicos subjacentes à reprodução da comunidade macaense no Território, permitindo superar a aparente contradição entre as teses anteriormente vigentes. Na realidade prática os dois contextos matrimoniais frequente-mente se interligam. Para além disso, o sentimento de pertença à comunidade é tão forte entre os macaenses da geração presentemente adulta que ele supera totalmente este género de polarização. Pelo que, nos nossos dias, esta distinção não pode ter, nem tem na realidade vivida, qualquer efeito prático de distinção entre indivíduos ao nível étnico.

20Considerando a relativa facilidade de acesso a mulheres soci-almente menos prestigiadas, na nossa opinião, os casos de celibato definitivo masculino que se encontram entre as histó-rias de família das famílias tradicionais deverão ser interpreta-dos diferentemente.

21Como exemplo, veja-se os termos em que Henrique de Senna Fernandes concebe os pensamentos de uma tancareira perante a possível infidelidade do seu amante português: "Decerto possuía muitas mulheres. Todos os homens possuíam, quanto mais um marinheiro. Não a acidulava, porém, o ciúme porque se criara na lógica do concubinato e da bigamia. Tudo lhe era natural. No fundo, até se orgulhava de pertencer ao número daquelas que partilhavam do seu amor"(1978:10).

22Existem numerosos casos, sendo que um dos mais notáveis foi Pedro José Lobo, figura complexa que desempenhou um papel central na vida de Macau nas décadas de 40 e 50.

23Dados retirados dos registos das Madres Canossianas, pelos quais estamos gratos ao Bispo de Macau, D. Domingos Lam; vide Anexo.

24Encontramos mesmo publicados estudos de casos detalhados envolvendo mooi-jai compradas e vendidas em Macau. Vide, por exemplo, a história de Moot Xiao-Li contada por Maria Jaschok (1988:7 seg. s).

25Veja-se quão violento era o preconceito durante o período áureo da ideologia colonial cm Macau no seguinte comentário do autor a propósito de um colega seu, advogado macaense: "Ele também já tinha ouvido dizer que eu de línguas apenas sei o português bastante para me fazer entender, e que ele, por tal sinal, não sabe, porque fala nhom, uma coisa que aqui se fala e que é a língua de preto. A gente daqui é como a de todos esses portos até à Europa, que em Adém leva chicotadas dos police-men, que em Colombo vende diamantes falsos e que em Singapura puxa os carros ou pede esmola. Não podem ser senão carregadores (os nhons - "uns portugueses que por aí há, de cara de abóbora ", como diz o bispo-e em geral todos os mestiços de europeus -, nem para isso [servem], que são fidalgos), para corretores das hospedarias (...) e para irem mostrar aos estrangeiros as curiosidades da terra. Como são parasitas e criados nestas babéis, que são os portos do Oriente, não sabem nem precisam de saber outra coisa mais de que de línguas o bastante para poderem roubar os passageiros dos vapores. Os daqui, advogados como todos, cultivam um género especial de exploração: a dos chinas riquíssimos que aqui vivem, mais avarentos do que judeus, e que, com razão de sobra, têm um grande medo das justiças portuguesas."(1988:77) Note-se a referência à situação de élite da comunidade dos "filhos da terra".

26O próprio Livingstone, quando se familiariza com a sociedade portuguesa em Angola nos meados do século passado, comenta este facto (cf. Pina-Cabral, 1989:8). O exemplo descrito por Henrique de Senna Fernandes no seu conto "A-Chan, a Tancareira " - de um português que, ao abandonar a sua amante em Macau, leva consigo para Portugal a filha que dela tivera -não é de forma alguma invulgar nem específico de Macau (1978). Na ocasião da descolonização em África, muitas situ-ações destas se verificaram.

27Excluímos pessoas descendentes de chineses que adoptaram nome de família europeu e das quais por vezes os entrevistados dizem "ele é chinês, mas é considerado macaense".

28"Uma geração, no sentido sóciológico, compreende um grupo etário de homens e mulheres que levam uma forma de existên-cia semelhante ou que partilham de um mesmo conceito de vida; que julgam os acontecimentos que lhes ocorrem em dado momento em termos de um fundo comum de convenções e aspirações". (1983 [1966]: 180). Ver também distinção entre efeito de idade e efeito de geração (Lourenço, 1991).

Recentemente, os acontecimentos de 4 de Junho de 1989 vieram exacerbar esta falta de confiança, tanto por parte da população chinesa como da macaense (ver Morbey, 1990:75).

No que se refere à sociedade chinesa de Hong Kong, ver Ng Chun-hung (1988:13) onde o autor afirma que, nas 22 famílias que estudou, "não se encontrou nenhum tratamento diferencial dos filhos em relação às filhas. Os pais negam qualquer cálculo deste tipo. Os padrões de trabalho e educação também não mostram uma tendência consistente para favorecer os ho-mens".

*João de Pina Cabral é doutorado pela Univercidade de Oxfordem Antropologia Social, Professor Associado no Instituto Su-perior de Ciências do Trabalho e da Empresa e Investigador doInstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. NelsonLourenço é doutorado em Sociologia pela Universidade Novade Lisboa onde é Professor Auxiliar.

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