Poesia

ANTERO DE QUENTAL E O BUDISMO ALGUNS APONTAMENTOS

Fátima Gomes*

Gravura inspirada na foto preferida de Antero, tirada em 1887, no fotógrafo Raposo em Ponta Delgada.

"Dizer tudo, aqui, é dizer de-mais. É o império crepuscular do sentimento, o mundo do mistério (...) O Sábio respeita as coisas santas, ainda quando as interro-ga. Saber até qual limite se pode saber —eis aí a grande, a pri-meira das filosofias". Antero de Quental, «Cartas», p. 20-21.

INTRODUÇÃO

As páginas que se se-guem tentam explorar uma ver-tente do pensamento anteriano que é normalmente tomada noutros en-saios como um ponto de passagem, uma referência ou um apontamento. Esta localização intermédia é compreensível por-que o budismo, ou o entendimento que dele teve Antero, está estreitamente ligado e é decorrente do pessimismo o qual, para este autor, "não é um ponto de chegada mas um caminho. É preciso passar por ele, mas justamente para sair dele".1

No entanto, pensamos que sendo uma época demarcada na evolução intelectual de Antero, ela dei-xou marcas importantes, nomeadamente na superação do pessimismo que caracteriza os sonetos das duas últimas fases, permitindo um momento crítico superi-or, porque de uma racionali-dade mais elevada, e cuja expressão final é a propos-ta filosófica que domina as "Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Me-tade do Século XIX".2

Antero de Quental foi um homem profunda-mente integrado no seu tempo, cuja vida e escritos marcaram outros pensado-res. Desde a atitude con-testatária e activista que marca a sua permanência em Coimbra, até ao assumir da presidência da Junta Patriótica do Norte (1890), passando pela activi-dade do Grupo do Cenáculo e da experi-ência proletária (fracassada) de Paris, a vida deste homem encontra-se decisivamente ligada à vida cultural nacional, colaborando na sua realização em direcção a um futuro melhorado porque mais justo e mais espiritual - pelo menos assim o julgou toda a vida! Por isto, a compreensão dos seus textos e, por eles, do seu pensamento, passa necessariamente pela articulação com o percurso vivencial - público e priva-do. Assume assim a correspondência, que trocou com alguns dos maiores vultos da cultura nacional, uma importância decisiva naquela compreensão. Os volu-mes das "Cartas" servirão, portanto, para apoiar as considerações que aqui se forem tecendo.

No ano em que se comemora(!) o centenário da morte prematura de um grande pensador - escritor por-tuguês, seria ingrato passar sem assinalar a data nesta parte do mundo que foi um dos lugares preferidos do imaginário português (ocidental) do séc. XIX. O fascí-nio do Oriente, numa época em que este não era já, maioritariamente, português, criou das mais belas pá-ginas da nossa literatura e influenciou o padrão de vida ocidental. O mistério, o desconhecido, o exótico, fo-ram contrapostos à realidade tradicionalista e tacanha da Europa do século passado. Embora, como todas as modas, fosse muitas vezes superficialmente tratado ou desvirtuado para servir teses mais ou menos originais, o pensamento oriental foi divulgado, saiu à rua, tor-nou-se assunto público e disso nos dá conta um excerto de uma carta de Antero, dirigida a Maria Amá-lia Vaz de Carvalho (onde se tratam alguns aspectos da teoria budista): "(...) tendências búdicas que come-çam a manifestar-se por todos os lados, em sociedades que atingiram o nec plus ultra do pensamento".3

Misturado com elementos diversos, especial-mente a Teoria do Inconsciente de Hartman 4, o pessi-mismo de Schopenhauer, o evolucionismo naturalista (dominante no pensamento científico da época) e o espiritualismo francês5, o pensamento oriental aparece na evolução intelectual de Antero como uma solução engenhosa para um duplo problema: o paradoxo racio-nal Realidade-Absoluto e o desespero existencial, saí-do do agravamento da sua doença aliado à desilusão provocada pelos ideais de juventude.6

Metodologicamente, partiremos das referências explícitas ao pensamento oriental7, integrando-as no contexto geral do sistema anteriano. É de notar que estas referências constituem, por vezes, o tema princi-pal de alguns textos, aparecendo ao longo de toda a vida do autor (encontramos referências nas Cartas de 1865 a 1889) embora com variações interpretativas que, por si sós, constituiriam um outro ensaio. A nossa falta de conhecimento especializado do tema impede que as referências bibliográficas ao budismo/ori-entalismo sejam mais vastas, precisas e aprofundadas; fundamentando-se a interpretação nos conhecimentos adquiridos ao longo de sete anos de estudo da Filoso-fia Ocidental e de leituras esparsas sobre o tema, das quais não se reteve mais do que aquilo que cabe na memória ou em apontamentos, por vezes, sem citação das fontes. Que nos desculpe, quem nos lê, da falha de precisão que é sempre reprovável do ponto de vista científico.

Elaborando esta apresentação muito geral da vi-são do mundo anteriano, estamos a pagar uma dívida intelectual, já que este pensamento nos tem inspirado a reflexão nos últimos anos e guiado a acção na mira-gem de um mundo novo mais justo e solidário. Cre-mos que o Século XX português muito deve àquele que, pela sua acção, lhe desenhou as raízes e o impeliu a crescer, suscitando a Eça de Queirós a lembrança suges-tivamente intitulada "Um Génio que era um Santo ". 8

A COSMOVISÃO ANTERIANA

A interpretação anteriana da Natureza traduz-se num evolucionismo espiritualista, i. é., um universo di-nâmico em transformação progressiva, um "ser de ili-mitada e infinita expansão, tirando de si mesmo, (...), criações cada vez mais complexas, mais ricas de ener-gia, vida e expressão (...) desde as forças elementares e puramente mecânicas (...), ao instinto que sonha, à inteligência que observa e compara, à razão que orde-na, ao sentimento que fecunda, até à contemplação e à virtude dos sábios e dos santos" (T. G. F. "Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX", pp.- 40/41).

A realidade é diversificada, heterogénea, e a sua aparente multiplicidade é manifestação de um mesmo princípio vital, de uma mesma Força9 que, es-pontaneamente, se representa em graus seriados de ser, de menos para mais espiritual, culminando na Consci-ência onde se manifesta como liberdade:

"Quer durma na fatal obscuridade

Da massa inerte, quer na mente humana Sereno ascenda à luz da liberdade...

(...)

Através de mil formas, mil visões,

O universal espírito palpita

Subindo na espiral das criações".

(...)

in «Odes»10, Panteísmo I

Apesar da influência directa ser aqui, inequivo-camente, o hegelianismo, será esta ideia que "trabalha-da" produzirá, na maturação filosófica posterior, o espiritualismo e aproximará Antero, por exemplo, de Ravaisson11. A matéria contém já as potencialidades vitais que lhe permitem a auto-manifestação na diver-sidade natural. Concilia-se assim, o domínio do realis-mo empírico, onde predomina o conceito de matéria, e o idealismo evolucionista justificado racionalmente pelo pensamento alemão e, por outro lado, pelo cientismo positivista (o conceito de evolução). Antero definiu a sua posição como "pampsiquismo"12,"sín-tese das ideias modernas... um espiritualismo idealis-ta, enxertado, para florir e frutificar, no tronco robusto do materialismo (...). Sendo sínte-se, será conciliação; e todas as gran-des correntes do pensamento filosó-fico do nosso século se acharão igualmente representadas nela, cada uma por aquilo que tem de legítimo (...)", (T. G. F., p. 88).

Esta visão do mundo natural, edificada no texto filosófico mais sistemático do autor, no qual expôs as suas últimas ideias, frutos de uma reflexão amadu-recida por um percurso si-nuoso, aponta já para al-guns aspectos da teoria bu-dista ou do pensamento ori-ental em geral. Assim, a filoso-fia da Natureza tende para uma ética; o Universo, como mostrá-mos atrás, "resolve-se" na consciên-cia humana, sede da moralidade. A indiferenciação original desenvolve-se em diversidade da e na Natureza; a ciclicidade ordenada do acontecer natural, o "fado", que é imposição de ordem, indício de uma racionalidade que suporta o universo e que é "descoberto" pelo e no Homem, que aí se reconhece como partilhando o mesmo espírito universal. O microcosmos humano "encontra", dentro de si, o universo e a sua identidade, "o espírito huma-no sente agora palpitar nas coisas o que quer que é análogo à sua própria essência (...) sente-se, todavia, em comunicação com a mole imensa que o suporta" (T. G. F, p. 82). Esta "visão", com toda a carga mística que encerra e o processo contemplativo que indicia, será posteriormente abordada. Por agora, há que reter uma identidade da essência do micro e do macrocos-mos, uma tendência ético-moral, expressa na consciência como fim da evolução natural, uma face ilusória dos fac-tos, fatalista, que é "máscara" da verdadeira realidade e que pro-voca o pessimismo. Só aquele que "sabe ler" as aparências, superando-as, pode ultra-passar o desespero. Esta visão anteriana da reali-dade, elaborada no final de um percurso reflexi-vo, apresenta esta con-clusão (que é também, de algum modo, uma ideia presente na filoso-fia oriental): "(O Univer-so) Já não é o enigma in-compreensível, desespe-rador, que a si mesmo pare-cia, quando olhando em volta via em tudo a negação do seu pensamento, do seu ideal, da sua es-sência", (T. G. F. p.82).

Fotografia de 1867. "Para onde irei? Ignoro; talvez, daqui até lá, indague dum emprego para a Índia, para Goa ou Macau, países onde a vida moderna não deve ostentar-se em muito excessivo luxo de seu vermelho sangue burguês e gordura de banalidade, como cá acontece nesta Europa soezmente comodista, esta Cartago sem Moloch — mas com muitos mercenários". (Carta a António de Azevedo Castelo-Branco, Março de 1866)

Como referimos de passagem, o di-namismo espiritual desta cosmovisão é contraposto aos dados da ciência na sua forma pura. O naturalismo científico apresenta um universo em evolução mas, ao olhar só para a matéria e julgando-a incapaz de ser essência da realidade, chega à conclusão duma evolu-ção, mas de forças físicas e químicas impossibilitadas, por isso, de produzirem o espírito. Então, a evolução naturalista "em cuja espiral faz mover-se esse mundo cego e fatal, privada da verdadeira substância, expli-cando o complexo pelo simples e reduzindo o superior ao inferior, não tem realidade própria e é, no fundo, uma aparência vã e uma pura ilusão subjectiva" (T. G. F, p. 64). O cientista não é o sábio, o santo, e o homem comum não ultrapassa, normalmente, as con- clusões da ciência, o que nos permite afirmar que a dominância antropológica de todos os sistemas de pen-samento essencialmente virados para a prática, ou com consequências religiosas (caso da maior parte da filo-sofia oriental e do budismo em especial), é um critério último de verdade da filosofia para Antero. Por isso ele pode afirmar, reagindo contra o materialismo cien-tífico - aproximando-se decisivamente dos "orien-talismos"- que o universo da ciência "nada nos diz ao coração, nada que responda às mais ardentes aspi-rações do nosso sentimento moral. (...) Nada alimenta tanto o mórbido pessimismo dos nossos dias como este gélido fatalismo soprado pela ciência nos corações dos homens" (id., ib).

No entanto deve-se ressalvar que, em abono da verdade, e apesar desta aproximação largamente per-mitida pela letra dos textos, não podemos deixar de considerar um afastamento decisivo, neste ponto, entre os dois "pensares" que aqui se examinam. No budis-mo, o tratamento das questões de filosofia da Natureza é decorrente, um passo no percurso, da análise dos temas fundamentais de ordem ético-moral ou antropo-lógica 13 (entendidas no seu sentido amplo, englobante da filosofia da história e da filosofia social). Em Antero, esta área da especulação é sistematicamente analisada, precedente em relação ao resto do esquema teórico, constituindo a via de acesso à compreensão de um dos dois problemas metafísicos fundamentais: o pa-radoxo Determinismo-Liberdade. Embora a solução da questão se encontre em sede ético-metafísica, é um facto que boa parte do esforço especulativo é empre-gue na busca incessante de clarificação da incoerência aparente da realidade quando confrontada com as exi-gências da razão e do sentimento. Será talvez impor-tante atender neste aspecto ao facto de que, se o pensa-mento budista (porque metafísico-religioso), "solucio-na" automaticamente a questão da realidade, Antero negou muito cedo, no início da sua vida reflexiva em Coimbra ainda, os dados da religião, "forçou-se" a um ateísmo como única posição coerente com as necessi-dades críticas impostas pela Razão.14

Para terminar este aspecto, digamos que a visão das "T. G. F.", amadurecida, conciliadora, sintética, mostrando um espírito em paz com a realidade que reconhece (será esta a imagem do sábio budista ou outro) é um produto do fim da vida - 1889 -alicerçado num processo necessariamente conflituoso, árduo, em que a Natureza foi interrogada sistematica-mente até se deixar "ler" com olhar ético. Tal como as filosofias-religiões da Antiguidade passaram por uma fase prolongada de observação da Natureza, nos seus múltiplos aspectos, até se constituirem numa regra de vida onde as respostas dizem essencialmente respeito ao caminho da santidade e não tanto à Natureza.

DA NATUREZA AO HOMEM

A visão optimista e luminosa que preside às "Odes" e a outros escritos de juventude é progressiva-mente abandonada em prol de um dupla atitude: pessi-mismo e consequente resignação estóica, fruto da desi-lusão dos ideais político-sociais, do agravamento da doença e de uma irracionalidade aparente do mundo; optimismo racionalizado e traduzido numa reconcilia-ção com o mundo, através dum percurso intelectualizado e transformado numa síntese filosófi-ca de pendor acentuadamente ético. Deste percurso, vejamos as palavras de Antero: "... je reste toujours convaincu qu'ily a là (nas «Odes»), generalement (et surtout dans la deuxième partie), plus de passion et d'exaltation que de vraie poesie (...) - et du jeune jacobin de 1864 il ne reste guère plus que la peau d'un vieux philosophe, sachant trop bien que la colère, même la colère de la justice, est encore un reste d'ignorance, et que le monde ne sera définitivement sauvé que par la Raison soeur jumelle de Amour". 15

"Entretanto, o meu pensamento ainda ali (nos «Sonetos») se mostra obscuro e perturbado por outros elementos, sobretudo pelo pessimismo". 16"Toda a actividade do homem, há muitos mi-lhares de anos, (...), afirma implicitamente a autono-mia da vida moral e a identidade fundamental dela com o princípio oculto de actividade do Universo. (...) O que nos salva (...) é a fé na espiritualidade latente mas fundamental do universo (...) a melhor filosofia será sempre aquela que melhor conciliar a compreen-são e prática da virtude". 17

Assim, a evolução do pensamento anteriano pode, sem esforço, permitir a aproximação ao budis-mo, que o autor, como já vimos, conhece, especial-mente no segundo momento. É a vivência do fracasso do programa político, a par de um esforço de compre-ensão marcado pela vivência, que caracteriza a filoso-fia de Antero com um traço existencialista e até religi- oso, a que ele normalmente chama de estoicismo. En-tende por tal a resignação perante a fatalidade natural, que advém de uma compreensão intelectual de que a Natureza é incapaz de se conciliar com a liberdade humana e que o mal é radical ou essencial, e se traduz no conceito de necessidade. O sábio é quem compre-ende esta realidade e opta pela indiferença ou renúncia da acção. Parece-nos ser aqui, neste período intermé-dio da maturação de um pensar, que mais imediata-mente se capta a relação à temática ético-religiosa das filosofias orientais e especialmente da budista, crian-do-se condições para a reconciliação filosófica poste-rior. Confirmando isto, escreve Antero a A. Azevedo Castelo Branco, em 1865: "O cenobitismo e a contem-plação, o misticismo se quiseres, são, na sua inércia aparente, os mais rijos obstáculos que a liberdade de espírito pode opor à brutalidade invasora das condi-ções fatais do Mundo; são a maior vitória da consci-ência, o maior triunfo, com esta arma invisível e silen-ciosa - a indiferença, o desdém. (...) Esta é que é a base das religiões como das filosofias; e Cristo e Buda vão nisto (que é o essencial) de acordo com Sócrates e Epicteto". («Cartas», p. 24).

A tendência sintética do pensamento anteriano mostra-se aqui de forma admirável e, para a sua conse-cução, é ainda a influência das leituras da filosofia oriental um marco importante. O pensamento não se desliga da vida e a compreensão não pode alhear-se de nenhum objecto. É a totalidade que interessa a Antero, como ao budismo. Filosofia e religião aparecem inter-ligadas porque ambas partem da vivência e da reflexão sobre os dados da experiência. No entanto, esta experi-ência é em si totalitária e aberta a todas as fontes. É este entendimento do conceito de experiência que per-mitirá superar a estreiteza do positivismo e se tematizará na figura final do Santo ou Justo, aquele que encontra na consciência o mundo natural e huma-no, i. é., experimenta em si a totalidade.

"Santo"Antero, figura central do "Grupo dos Cinco"; foto tirada no Palácio de Cristal, cliché Casa Real, Praça de Santa Teresa, Porto.

Na fase que aqui analisamos, no entanto, ainda nem todas as ideias estão clarificadas, nem Antero conseguiu encontrar a linguagem - o símbolo18 - que pudesse veicular a verdade por agora apenas entrevis- ta. O vocabulário e as analogias interpretativas da exis-tência socorrem-se, assim, dum budismo "ociden-talizado", interpretado e misturado com as leituras vas-tas da filosofia alemã, do positivismo e de um cristia-nismo renegado mas marcante pela educação. Assim, podemos compreender que Antero afirme que "Tendo chegado (...) ao conhecimento de que não há no Mun-do motivo para muito esperar, assim como não o há para desesperar inteiramente. (...) Saindo, por este ra-ciocínio fora dos pontos de vista do antigo Idealismo (...), encontramos uma tolerância (...) cujo sossego e quase indiferença nos deixa apreciar melhor a harmo-nia do universo (...). Desta filosofia sai naturalmente uma ética, que se pode em grande parte resumir neste preceito - viver o mais possível da vida contemplativa o menos possível da vida activa. As religiões antigas já há muitos mil anos que têm pregado esta novidade (...)" (in «Cartas», p. 46).19

"A Philosofia da Natureza dos Naturalistas ", publicada na "Província", Porto, de 1 a 5 de Março de 1866 e editada em 1894 (Ponta Delgada).

Esta atitude, entenda-se também, é priorita-riamente "mental", o que Antero reconhece 20, é uma reacção contra o anterior pragmatismo patente na in-tervenção pública, de carácter sócio-político, marcada já por uma côr moral, pois para Antero o "facto políti-co" é inequivocamente de ordem moral.

O "pessimismo sistemático", como o define Oliveira Martins no Prefácio já citado (nota 7), que culmina e é superado pelo budismo, domina a mais longa fase dos sonetos - terceira fase: 1864-1874 - e origina e objectiva o desenvolvimento da última fase que, para este crítico, confidente de Antero, é um mo-mento de maturação que permitirá a expressão filosó-fica posterior já veiculada numa linguagem sistemati-zada. Na superação do pessimismo o budismo vai per-mitir, assim, o encontro da filosofia ética posterior, pelo relevo dado ao conceito de Bem mesmo na sua vertente salvífica: "Se, pois, só a perfeita virtude, a renúncia a todo o egoísmo, define completamente a liberdade (...), concluamos que a santidade é o termo de toda a evolução e que o universo não existe nem se move se não para chegar a este supremo resultado. O drama do ser termina na libertação final pelo bem" (T. G. F., p. 87).21

Ao lado da noção de contemplação ou atitude de indiferença, desponta o conceito de salvação que será, mais tarde, identificado com a consciência do justo e a sua acção. Será por aqui que se sai do imobilismo, consequência possível desta via de racio-cínio, mas sempre renegado por Antero, e se dá con-teúdo à expressão "misticismo activo".22

Estaremos perante duas direcções: a morte como superação poética («Sonetos»)23 do Pessimismo e a actividade da consciência, um Nirvana imanente, que domina as «Cartas» e será recuperado nas T. G. F.. Esta dualidade é ainda remetida para uma categoria budista fundamental que é a comunhão universal, pas-sível de ser compreendida como um além-morte, um não-ser indiferenciado onde o poeta pode dizer "(...) Dormirei no teu seio inalterável, /Na comunhão da paz universal./ Morte libertadora e inviolável!" (Elo-gio da Morte, p. 139) ou, como a comunidade do espí-rito - numa forma primária como sociedade e, superi-ormente, pela consciência trasfigurada e transfigurante do Justo-, o "encontro" com o Absoluto pela dissolu-ção de todas as limitações naturais. É ainda o conceito de Nirvana, não-ser que é o verdadeiro Ser, que nas T. G. F. se desprende de todos os lirismos poéticos ne-gativos dos «Sonetos» e da subjectividade passional das «Cartas», apresentando-se através de categorias fi-losóficas que não estão, no entanto, muito longe de categorias religiosas (tal como no budismo): "o Eu limitado, refluindo, se assim se pode dizer, para o seu centro verdadeiro, dissolve-se nalguma coisa de Abso-luto, (...): transição do ser para o não-ser, que equiva-le, quanto cabe na realidade, à plenitude e perfeição do ser. É o que na linguagem (...) do misticismo, se chama a união da alma com Deus: nós diremos sim-plesmente que é a união do eu com o seu tipo de perfeição (...) a realização na consciência do seu mo-mento último e mais verdadeiro" (In T. G. F., p. 85).

O evolucionismo natural, compreendido através da noção de espontaneidade e força, que é a imagem de um universo organizado e dinâmico, tende para o homem e deste para o espírito que nele se manifesta pela consciência e, através desta, permite o encontro do Absoluto, plenitude de ser que é patenteação do Mistério universal. Se a Filosofia da Natureza é um campo teórico que, por o ser, não foi objecto de explo-ração do budismo, ela permite a Antero lançar o fun-damento explicativo da verdadeira realidade que é es-piritual e, portanto, moral. A exigência de racio-nalidade introduziu desde sempre no pensamento anteriano a necessidade de exploração de um plano teórico que muitas vezes, porque contraditório com as aparências e a vivência, cindiu o itinerário de Antero, apoiando a existência paralela de discursos antitéticos ou soluções divergentes.24

O DOMÍNIO ÉTICO-MORAL

Como temos mostrado até aqui, de forma muito rápida e descurando voluntariamente alguns aspectos fundamentais da sistematização anteriana, é no domí-nio moral, culminância do pensamento do autor, que a influência budista é mais visível em alguns escritos («Cartas») e decisiva para a exposição de outros (caso das T. G. F.).

Lembremos que o budismo enquanto pensa-mento filosófico-religioso é predominantemente uma prática de vida, uma pedagogia em que, por isso mes-mo, o elemento moral é predominante.

Contrariando Oliveira Martins, quando este afirma que "se tirando a metempsicose ao budismo, o budismo reduz-se a uma névoa de abstrações"25, a fundamentação metafísica que suporta a teoria da reincarnação não é talvez a mais importante contribui-ção do budismo para a interpretação da realidade e para a sua força doutrinária. Retirando esta vertente fica ainda toda uma regra de vida que não é baseada naquela teoria, como o queria Oliveira Martins26, mas que é ela a base de que a metempsicose é o corolário e por isso passível de funcionar de per se.

Manuscrito do soneto "Transcendentalismo", dedicado a Oliveira Martins nos "Sonetos Completos".

Assim, podemos facilmente aceitar a inércia sistemática como princípio de acção e não decorrer daí a necessidade de aceitar a reincamação como um dado, o que era visto no clima positivista da época como uma "ilusão infantil", tal como o inferno/céu cristãos. Pensamos que Antero aceitou os conceitos budistas de "nirvana", "contemplação", "indiferença" ou "comunhão universal" integrando-os no seio do seu pensamento acentuadamente espiritualista e utilizan-do-os como instrumentos teóricos de articulação da teoria e prática, como veículos de explicitação do seu existencialismo ético. Isto quer dizer que Antero não foi budista, no sentido estrito deste termo, na sua ver-tente religiosa, mas que tão só compreendeu a impor-tância dessa doutrina e por isso a utilizou para elaborar a "síntese do pensamento geral da sua época", classi-ficada de "período alexandrino" pela variedade de tendências que aí se encontram27, que foi o seu objecto filosófico por excelência e simultaneamente a resposta à sua inquietação existencial. É a compreensão da filo-sofia como "equilíbrio" entre tendências e "equação" entre teoria e prática que permite a valorização da dou-trina budista. Já para o espírito marcadamente crítico, e contrário a todo o misticismo, de Oliveira Martins, o budismo só podia ser aceite como uma religião, i. é., como um dogma infantil, e só pela racionalização do conceito de Nirvana este poderia adquirir algum valor intelectual, de acordo com o pensamento positivista ou naturalista dominante.28

Em Antero, as categorias budistas permitiram fundamentar a sua reacção às limitações do posi-tivismo, enquanto teoria que não respondia à totalida-de do humano e das suas inquietações, especialmente aquelas que melhor o definiam: as espirituais e do "coração": "Não está tudo em se saber cientificamen-te que uma coisa é errónea, para se poder condenar, (...) a verdade humana não é científica. (...)" («Car-tas», p. 105) ou: "Filosofia, que (...) fecha os ouvidos a essa grande voz do instinto espiritual da humanida-de, (...) será boa na escola, mas na vida é falsa" (Idem, p. 19).

A valorização da atitude contemplativa, da re-cusa da acção, é entendida em Antero como um des-prendimento interno a par de uma vida activa (cf. carta a Jaime Magalhães Lima, p. 103, 1889), correspon-dente a um abandono progressivo da "vida dos senti-dos, dos instintos e da imaginação", que atrai a maio-ria dos homens, alcançando a vida verdadeira, a da virtude ou "não natural". Corresponde à passagem do eu individual natural para um eu espiritual que, sem sair dos limites do indivíduo, aí se absolutiza.29 No entanto, continua Antero na mesma carta, "não há en-tre estes dois pontos extremos oposição absoluta, mas sim escala, gradação e transição; são os dois pólos da natureza humana; e foi isso que quis significar com a minha fórmula do 'Helenismo coroado por um Budis-mo': o Helenismo, isto é, a vida natural nos seus diversíssimos tipos, na riqueza da sua evolução, apro-ximando-se ou afastando-se mais ou menos da com-preensão transcendente, cuja expressão é o Budismo (...) (que) é um estado psicológico puro, que, por isso que pressupõe os anteriores menos puros não os pode negar absolutamente". Esta continuidade afirmada en-tre os dois tipos do homem, onde vislumbramos já o "homem santo" budista - mais abaixo clarificado na apresentação da figura do Santo ou Justo -, remete-nos ainda para um outro traço de comunhão entre Antero e o pensamento budista ou, aqui melhor, o pensamento oriental: o caminho ("Tau", base do tauísmo). Tal como toda a realidade se organiza tendencialmente para os graus superiores de ser, também no homem se substancializa a tendência para o máximo de es-piritualização que exige um processo de libertação progressiva das limitações naturais. O estoicismo, que é inúmeras vezes invocado por Antero, manifesta pri-mariamente esta necessidade do sacrifício para atingir a plenitude do ser, daquele que "renuncia ao eu limi-tado e a tudo quanto é dele- o seu egoísmo, as suas paixões, o seu erro profundo e a sua innenarrável miséria — só esse alcançou a vida eterna. Confundido com o que sempre permanece, com o que é em si e por si, entrou no ilimitado, no inalterável, e subsiste com ele eternamente. Esta renúncia, verdadeira imortali-dade, é por isso mesmo a fonte de toda a virtude", (T. G. F. p. 85). Mais explicitamente ainda diz Antero que: "é renunciando a ele (indivíduo natural) que tor-na essa união efectiva, tanto mais efectiva quanto mais constante, mais completa é a renúncia" (idem, ibidem).

O fim do caminho, correspondente à visão/ compreensão da identidade profunda do universo, não é apenas, ou prioritariamente, da ordem cognitiva, mas sim moral. A verdade, tal como em todos os sistemas práticos, é identificada com a virtude, contemplação que exige a acção.

Neste processo de elevação, a sociedade de-sempenha um papel importante, porque é entendida como "facto da liberdade" que é "condição para a realização" do fim do universo: "Se a virtude é o fim último da vida, por conseguinte da sociedade, que não é mais que uma condição para que ela possa dar-se, direi que não há sociedade completamente perdida, completamente inútil, visto que o fim supremo nunca deixa de se realizar". (Carta a Fernando Leal, 1988, in «Cartas», p. 90). A sociedade é um degrau alto na elevação do ser já que é entendida como uma comuni-dade espiritual, cuja lei é já a liberdade, que preside à ordem criada pelo direito, sem no entanto ser ainda a verdadeira liberdade, é apenas uma liberdade formal que se objectivará na individualidade transfigurada. O acento humanista que se depreende de toda esta teorização continua a remeter para o budismo e as filosofias orientais em geral (embora não se reduza a estas, já que é marca também do espiritualismo francês ou do psicologismo escocês), fazendo-nos lembrar de imediato por exemplo o "Jen" (humanidade) ou virtu-de por excelência do confucionismo ortodoxo. Lem-bremos que, por exemplo, neste sistema a iniciativa pessoal e a espontaneidade são olhadas com desconfi-ança já que são potencialmente desvios da norma cuja observância é o próprio Bem. O social é superior ao indivíduo. Em Antero, como referimos, isto é parcial-mente verdadeiro já que a sociedade é possibilidade, porque manifestação da liberdade, de superação do in-dividual natural. No entanto divergem aqui os pensa-mentos já que o social não é o valor superior, o Bem, mas só condição deste, cuja realização se dá na e pela acção do "individual universal", se me é permitida esta expressão.

Regressando ao nosso raciocínio anterior, que-remos ainda realçar uma outra perspectiva estreita-mente ligada com o que vimos dizendo em favor da aproximação dos dois pensares, tão separados no tempo e no espaço. O Justo, aquele que alcançou o domínio das paixões e encontrou o Absoluto no inte-rior da consciência, reconhecendo-o como princípio de tudo, "suporte" da Natureza onde se explicita como força e da humanidade onde na vontade se exprime como liberdade, o Justo, dizíamos, tem uma Missão a cumprir. Ele tende à realização do Bem, que é reden-ção do mundo natural. O seu destino é pedagógico, já que, liberto das contingências que o afastavam da vi-são superior, ele é instrumento de transformação dos outros. A sua acção, sendo particular, é absoluta por-que se sabe como tal, toma-se modelo de acção, con-duzindo o Progresso, iluminando-o. O Santo realiza a evolução: "Se, pois, só a perfeita virtude, a renúncia a todo o egoísmo, define completamente a liberdade, e se a liberdade é a aspiração secreta das coisas e o fim último do universo, concluamos que a santidade é o termo de toda a evolução e que o universo não existe nem se move senão para chegar a este supremo resul-tado" (T. G. F, pp. 86-87).

Antero, num quadro a óleo do Visconde de Meneses (c. 1870); Museu Nac. Arte Contemporânea, Lx.

A santidade, dada pela visão superior na auto--consciência, explicita superiormente o epíteto de "misticismo activo", com que Antero rebatia as críti-cas que lhe eram dirigidas de imobilismo, acrescentan-do ao comentário que já atrás fizemos, de um entendi-mento do budismo como proposta de actividade, o sentido da universalidade dessa actividade. A acção virtuosa, sendo a acção superior, estende-se a todos os seres fazendo com que Antero possa perguntar-se "como não há-de então o justo dar-se aos outros, dar-se a todos os seres, se com cada acto de dedicação conquista e firma a própria beatitude? Libertando-os, liberta-se; aperfeiçoando-os, aperfeiçoa-se; beatifi-cando-os, beatifica-se. Para se fazer o próprio bem, tem de se fazer como que o instrumento do bem uni-versal. (...) A sua existência agora já não é a de uma individualidade particular, circunscrita no tempo e no espaço, condicionada (...) por mil circunstâncias for-tuitas". (T. G. F., pp. 85,86).

Tal como, na juventude, a figura do Poeta se apresentava como arquétipo do humano, condutor da humanidade através da voz do coração que lhe fazia conhecer a Ideia e o levava a conduzir a história anun-ciando a Revolução e, com ela, a criação de um mun-do mais justo; também agora na maturidade do pensa-mento que se construiu pela superação do pessimismo, consequência do confronto das aspirações mais ínti- mas do homem com a realidade, através da reconcilia-ção com o mundo pela "iluminação" da consciência, o Justo/Santo - herdeiro do Filósofo - é o arquétipo do verdadeiro homem. Em todas estas figuras superiores, a liberdade é o máximo de dever, o cumprimento dum destino que se sabe - intui - necessário e que sendo Absoluto é simultaneamente livre. Tal como o sábio tauísta (e o homem santo-buditsava-budista) cultiva a sua virtude ("Wu-Wei") através duma atitude de não intervenção no decurso natural, que é conformação activa com o seu "Tau" o qual é a essência própria e dinâmica de toda a realidade.

Assim, e muito rapidamente - por vezes dema-siado rapidamente! - pudemos verificar uma aproxi-mação, que é em muito interpenetração de elementos da doutrina budista com o pensamento anteriano. Aquela foi divulgada, e assim conhecida por Antero30, não num estado puro e através dos textos originais, mas amalgamada com outros elementos do pensamen-to oriental, nomeadamente o confucionismo e o tau-ísmo. O próprio pensamento anteriano recebeu, por outro lado, fortes influências - em fases diversas da sua evolução intelectual - de outras teorias como o hegelianismo, o naturalismo/positivismo (em relação ao qual reagiu violentamente), a teoria do Inconsciente de Hartmann e o espiritualismo. Estas duas últimas, predominantes na síntese filosófica final, têm elemen-tos muito próximos do pensamento moralista das dou-trinas orientais. A acrescentar a isto, lembremos a in-fluência do cristianismo que, presidindo à formação intelectual/moral de Antero antes de ir estudar para Coimbra, onde se deu o seu "rompimento" com esta doutrina, foi ainda analisado racionalmente e como tal negado não deixando, no entanto, de marcar o pensa-mento e a atitude de Antero. A sua busca inquieta de esclarecimento, o seu apego à justiça, a sua vida gene-rosa e a sua exigência de Absoluto terão sido forte-mente motivados pelo seu ateísmo. À filosofia pediu ele as respostas que impediu a religião de lhe dar. Daqui também a possibilidade de melhor compreender a atracção por teorias cujo pendor ético-moral e o fun-do místico poderiam responder à sua "sede de infinito" e à sua inquietação existencial.

Caricatura alusiva às Conferências do Casino, publicada por Rafael Bordalo Pinheiro na "Berlinda".

A visão de um universo que "aspira à liberda-de, mas só no espírito humano a realiza" (T. G. F., p. 83) através de um processo de evolução que "só será perfeitamente compreendida definindo-se como a espiritualização gradual e sistemática do universo" (T. G. F., p. 82), análogo à natureza do homem porque nele já lateja a liberdade, embora sob a forma de espontaneidade, é o primeiro ponto de contacto com o pensamento oriental. A necessidade e fatalidade visíveis são apenas ilusões provocadas pela experiência sensível que tão só capta factos, aparências de rea-lidade. A verdade do naturalismo é ainda metafísica e mais propria-mente ética. Deu Antero uma im-portância muito maior à questão da Natureza, que no budismo se explicava apenas e muito rapida- mente como ilusão das aparências e analogia do ma-crocosmos com o microcosmos (humano) este, sim, objecto de reflexão; dizíamos que o desenvolvimento da teoria da Natureza ocupa um lugar de destaque por necessidade de resposta ao "clima" positivista domi-nante no pensamento português do Século passado. Por outro lado, a exigência crítica impediu Antero de aceitar como verdade teórica uma doutrina essencial-mente religiosa e que, como tal, não podia responder às necessidades inquisitivas da razão.

Mas a filosofia da Natureza evoluiu progressi-vamente para uma antropologia e desta para uma metafísica de carácter ético que, então, encontrou no "orientalismo" um instrumento de explicitação. A ver-dade agora exigida não era já uma verdade formal, mas verdade total - resposta às interrogações do ho-mem todo e principalmente do espírito e do coração. O budismo deu a Antero conceitos que permitiram filtrar o seu próprio pensar, encontrando num terreno teórico superior a possibilidade da síntese procurada. O ele-mento moral dominante da doutrina ofereceu o sentido do Absoluto, não apenas como totalidade do ser racio-nalmente determinado, mas como comunhão espiritual de que o conceito de não-ser (realidade em si para lá das aparências) é apenas a face negativa. O Nirvana conheceu duas interpretações, marcadas por dois esta-dos de espírito - pela predominância alternada do ele-mento lírico ou do elemento racional/místico - que se expressam na poesia, principalmente nos Sonetos das duas últimas fases (70 a 84), e nos textos em prosa, especialmente no texto final, assumidamente de sínte-se e exposição do sistema original, que é o das T. G. F.. O Nirvana é então estado transcendente, pós-morte ou a própria morte, de indiferenciação sombria dos seres ou, finalmente, comunhão espiritual do homem com o Absoluto que na imanência da consciência se uni-versaliza.

O primado da Moral é em Antero, tal como no budismo, o elemento central para a resolução de uma filosofia a que se pede que indique a direcção da ac-ção, a via da salvação através da compreensão do real. Este elemento moral não pode ser só teórico e portanto a sua tematização na figura do Justo, que se constitui como arquétipo do humano, não apenas como figura-ção mais ou menos engenhosa mas como verdadeiro símbolo duma humanidade que se sabe apenas ideal. É aqui que, pensamos, Antero não pode ser budista. Fal-ta-lhe a fé que permite a acção comprometida pela visão interior de Deus: "se Deus fosse possível seria esse ser absolutamente livre. Mas, por isso que não é real, é que é verdadeiro. Ele é o tipo de plenitude do ser, tipo de que a nossa liberdade moral, aquela que com tamanhos esforços conseguimos realizar, é só vaga imagem (...) esse eu do nosso eu, (...) é o centro de atracção de toda a vida espiritual", (T. G. F., p. 79). O passo que leva da doutrina à vivência era demasiado grande para Antero, porque exigia aquilo que a razão impedia de aceitar: a crença sem reservas, o apaga-mento do espírito crítico. Daqui, talvez, que o texto das T. G. F., na sua parte final, apesar de expor as con-clusões a que Antero chegou e que lhe permitiram uma reconciliação com a realidade, esse texto apresen-ta-se-nos como programático, tal como anteriormente o tinham sido os seus escritos político-sociais. E se estes o levaram, pela desilusão, a "provar" o mais pro-fundo pessimismo e desespero, talvez que a consciên-cia da incapacidade de realização daquilo que a razão e a consciência mostraram como verdade levasse a que se sentasse numa madrugada trágica, num banco de uma praça de Ponta Delgada, encurtando a vida, aque-le que nasceu para ser "homem santo" (buditsava) mas não o conseguiu assumir.

Há que destacar ainda, neste resumo conclusi-vo, o carácter pedagógico imprimido à figura do Justo, "instrumento do bem universal" e condutor da história que "é especialmente o teatro da liberdade" (T. G. F., p. 83). A actividade pedagógica também aqui, tal como no budismo e tauísmo, não é ensinamento do exterior para o interior mas actividade exemplar e universalizante que, no máximo de contenção e renún-cia é simultaneamente salvífica. Os textos que expres-sam estas verdades são eles mesmos programáticos e, de per se, salvadores.

A verdade, objecto de toda a filosofia, é então, em ambos os pensamentos, virtude ou bondade, acção verdadeira que é símbolo da essencial realidade. A filosofia em Antero e a religião no budismo são as vias de humanização, isto é, de encontro do homem com o que em si há de mais verdadeiro que, por o ser, é Absoluto e Universal. Sendo contingente, e por isso incompatível com a sua própria verdade, o caminho do homem deverá ser "em vez de nos imobilizarmos no esforço contraditório de realizar em nós o Absoluto (que não tem realidade), o que devemos é praticar a vida como quem sabe que cada acto e momento dela é um acto e momento do Absoluto (...). É o que eu cha-mo 'misticismo activo' (...)". (Carta a Oliveira Martins, 1873, in "Cartas", p. 132).

CONCLUSÃO

Já vai longo este texto. É altura, portanto, de provisoriamente terminarmos, que não de concluir-mos, lembrando que estas páginas procuram pensar a relação entre dois pensamentos, o que necessaria-mente elimina alguns aspectos do sistema filosófico anteriano (especialmente da sua obra em prosa) que lhe dão um contorno mais vasto do que o que aqui se esboçou. Apenas tentámos, sem forçar o texto, mos-trar que o apelo de universalidade que presidiu à filosofia de Antero intersecta as doutrinas que se referem à existência e postulam a prioridade do espí-rito, e dentro destas, de forma explícita embora dis-persa, o budismo. A influência do budismo — que permite, como afirmámos à partida, a organização do sistema na sua fase final — embora assumida ultrapassa em muito a aceitação passiva de uma teo-ria por um autor posterior. Parece-nos que a relação estabelecida entre as duas doutrinas é mais uma afir-mação da comunidade do espírito humano que supe-ra os limites do espaço e do tempo, para patentear uma identidade de motivações e soluções que har-monizam aqueles que escutaram a voz do coração.

Pensamos que terá ficado clara a definição de Antero como "um génio que era um santo", atribuí-da por Eça de Queirós e que exprime a capacidade de articulação da mais alta racionalidade com a mais apaixonada entrega e vivência.

Se os textos de Antero são programa de ac-ção, se a sua vida foi expressão coerente do seu pensar que em muito contribuiu para a forma como hoje somos portugueses (e nos sabemos portugue-ses), o mínimo gesto de reconhecimento será a sua divulgação e a homenagem sincera ao seu génio. Se o budismo é apenas um elemento transitório — que não mede a totalidade nem a originalidade deste pensamento — é, no entanto, a forma imediata que neste "Portugal do Oriente" se nos apresenta para comemorarmos, publicamente, os cem anos da mor-te e os cento e cinquenta do nascimento daquele que levou até ao fim a verdade da sua afirmação, de que: "Em todo o lado se pode ser homem". ( «Cartas», p. 1867).

NOTAS

1«Cartas». Primeira Série (Cartas cujo principal assunto é de natureza filosófica); Prefácio de António Sérgio, Ed. Couto Martins, Lx, 1957, pág. 74. Salvo indicação expressa, será a esta edição que nos reporta-remos sempre que no texto se referir «Cartas».

2"Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do Século XIX", Ed. Ulmeiro, Lx, 1982. Este texto será referido, no decurso do artigo, pela sigla T. G. F..

3In «Cartas», p. 18. Sublinhado nosso.

4A leitura do texto de E. Hartmann (1842-1906) é referida duas vezes-pelo menos-nas «Cartas», em 1876 e 1885, afirman-do-se na primeira que a reflexão pessoal o conduziu às mesmas conclusões do autor alemão. É no entanto em 1877 que aparece a tradução francesa e será aqui que a meditação se aprofunda.

5O Espiritualismo francês desenvolve uma teoria que visa conjugar os dados positivos da ciência (materialismo) com os "dados afirmados pela voz da consciência" e se sistematiza em F. Ravaisson definindo-se como um "positivismo espiritualista". Na origem estão os trabalhos de psicologia racional, baseados na fisiologia/psicologia, de Maine de Biran.

6Agravamento da doença-Carta de Vila do Conde, 1874-data que marca o declínio da "fase activa" do pensador e que se liga com a evolução da doença nervosa que o consome. Numa carta a Faria e Maia (1874) confessa que se o pensamento nunca se lhe entorpeceu, na ordem activa, volitiva, sentiu os horrores de uma barreira intransponível entre a intenção e a deliberação, i. e., a abulia. Seg. Joaquim de Carvalho, "A evolução espiritual de Antero", Seara Nova, Lx, 1929, p. 27", "Os sonetos do 4ō ciclo (1874-1880) transmitem-nos o diálo-go destes dois homens (o que se esforçava por ser— ideal — e o que era - real), os seus conflitos permanentes e as suas tentativas de impossível reconciliação. O desespero conver-te-se em lei do seu ser, (...)".

7Encontramos, entre muitas outras, expressões como: "nirvana búdico "- «Cartas», p. 131; "vida contemplativa", "indife-rença" - id., pg. 45; "misticismo moderno" - id., p. 70; "budismo " - id., p. 56; "Buda" - id., p. 24, p. 132, p. 140, p. 142. A respeito do conhecimento e interpretação do budismo por Antero são importantes as palavras de Oliveira Martins no Prefácio à lḁ Edição dos"Sonetos Completos" (1888), em que afirma que o conceito de Nirvana e as "teorias neo-budistas" se aproximam das conclusões do pensamento cientifico da época e para um espírito de "tendências místicas"permitem "justificar racionalmente a existência". Para O. Martins, Antero viveu a dificuldade, impossibilidade até, de conciliar a lógica e o misticismo, exprimindo-a na fórmula "um helenismo coroado de budismo " que, no entanto, permanece inconcili-ável, e por isso desesperante, até à época posterior aos Sonetos (aí já se adivinhando no final). Para O. Martins, Antero não é budista "embora julgue sê-lo", pois isso repugna à racionalidade crítica. Devido à sua extensão é impossível citar aqui as 5 páginas dedicadas a este assunto no prefácio, embora este desenvolvimento seja já um sinal da importância do tema. O prefácio que aqui referimos vem transcrito nos "Sonetos Completos", Ed. Ulmeiro, Lx, 1984, que foi nestas páginas utilizada.

Entre 1872 e 1877 é marcante a influência de Schopenhauer, mestre de Hartmann e dos principais difusores do budismo no Ocidente. Cf. a propósito "Les Romantismes au Portugal", José Augusto França, Ed. Gulbenkian, Paris, 1986.

8Título do texto de Eça de Queirós in "Notas Contemporâneas" e reproduzido no "In Memoriam de Antero de Quental", Porto,1896.

9 Sobre o conceito de Força, filosoficamente analisado, encon-tramos inúmeras passagens nos textos em prosa, mas princi-palmente nas T. G. F.. Como ilustração veja-se o seguinte: "Se a síntese do pensamento moderno é possível, não pode ela realizar-se senão neste terreno do dinamismo, que é justa-mente o da ideia moderna fundamental, a ideia de força". ·(T. G. F., p. 73).

10"Odes Modernas", Prefácio de Nuno Júdice, Ed. Ulmeiro, Lx, 1983, p. 18/19.

11"(...) Le phénomène est un changement ou mouvement; c'est que le mouvement exige (...), quelque chose de simple dont il procède; (...) il implique un principe qui lui fournisse, à chaque instant de son progrés ce qu'il acquiert (...). Ce principe d'oú le mouvement émane comme de sa source, ce fonds et substance nécessair du mouvement, c'estla tendance ou l'effort". In "La Philosophie en France au XIXéme siécle", ed. Jean Vrin, Paris, p. 254.

12"(...) mostrar-lhe como é que concebo que sem se sair do naturalismo (...) se pode, (...) chegar ao mais completo espiritualismo, a umpampsiquismo (...)". "Cartas", p. 78.

13"Confucius, Mencius, and Hsun-Tzu were humanists in the sense that they believed the conditions of good life were to be met within human society. The relation of the individual to the gods or to the cosmos was not a comparably urgent problem ". M. Nayle Sivin Nathan, "The First Neo-Confucianism: an Introduction to Yang Hsiung's Canon of Supreme Mystery", in "Chinese Ideas about Nature and Society". Studies in Honour of Derk Bodde", Hong Kong Univ. Press, 1987, p. 41.

14"O facto importante da minha vida, durante aqueles anos (de Coimbra), e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu (...). Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nas-cido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. A chei-me sem direcção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração (...)". In "Cartas", Coimbra, Imp. da Univ.,1915, p. 2, Carta a Wilhelm Storck.

15In "Cartas", p. 65 - Carta a Tomazzo Canizzaro.

16Ib., p. 70 - Carta a Francisco Machado de Faria e Maia, Cf. também o que atrás se disse sobre o pessimismo.

17Ib., p. 74 e sgs. - Carta a Jaime Magalhães de Lima.

18O conceito de símbolo é de grande importância na compreen-são das ideias filosóficas de Antero e no esclarecimento do próprio conceito de Filosofia: "Mas a verdade filosófica, com ser outra, nem por isso deixa de existir e ser verdade. A sua relatividade não implica erro (...). É simbólica. (...) Não é o Absoluto, mas participa da natureza do Absoluto e tem em si, como diz o poeta, parte alguma de infinito". In T. G. F., p. 30.

19Cf. também o soneto "Nirvana".

20Cf. "Cartas", p. 47.

21Cf. passos paralelos em T. G. F., pp. 84-85 e na expressão poética no soneto "Voz Interior", "Sonetos", p. 145.

22"(...) o que devemos é praticar a vida como quem sabe que cada acto e momento dela é um acto e momento do Absoluto, e que por isso quanto mais o praticamos, se o fizermos com este conhecimento e intenção, mais nos uniremos ao Absolu-to, a Deus. É o que eu chamo misticismo activo (...)". «Car-tas», pp. 132-133 - "Carta" a Oliveira Martins de 1873.

23Cf., por ex.,"Em viagem"(p. 119):

"Quem sois vós, peregrinos singulares?

Dor, Tédio, Desenganos e Pesares...

Atrás deles a Morte espreita ainda...

Conheço-os. Meus guias derradeiros

Sereis vós. Silenciosos companheiros,

Benvindos, pois, e tu. Morte, bem-vinda!"

24Tal como mostrámos o questionamento da realidade que se oferece à vida e à ciência teve solução diversas na poesia (Sonetos) e na prosa filosófica. As "Cartas", porque motiva-das não só por estados de espírito específicos, como também, como resposta às solicitações dos interlocutores, apresentam ainda uma terceira atitude, pouco sistemática, às interroga-ções da realidade. É nelas que o recurso ao budismo se faz de forma mais explícita, o que é paradigmático de que esta doutrina não foi, filosoficamente, a dominante.

25In Prefácio dos "Sonetos Completos", p.

26. Id.; ibidem.

27"A hora do joeiramento das verdades adquiridas, da crítica e coordenação dos diversos pontos de vista e da conciliação dos sistemas parece ter voado para a filosofia moderna. (...) Um largo criticismo vai rapidamente substituindo o antigo dogmatismo. Por este lado ainda, tudo indica que somos entrados no que se pode chamar o período alexandrino do pensamento moderno". T. G. F; pp. 34-35.

28Cf. notas anteriores sobre a posição deste autor no Prefácio dos «Sonetos».

29 Cf. páginas finais das T. G. F. (82 e segs.) e cartas da mesma época.

30Fazemos aqui uma suposição, mas que nos parece ser acertada dado o que conhecemos da divulgação na época, e mesmo actualmente, do pensamento oriental recuperado pelos estu-dos, muito em voga no final do séc. XIX, da história das religiões.

*Licenciada em Filosofia (Universidade Católica de Lisboa).

desde a p. 141
até a p.