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Encerra-se com este número um tomo da Revista de Cultura. Também, e na continuidade material dos anteriores, têm nele parte leonina as abordagens culturais de aspectos vários do universo de Macau. Não só, especificamente, o capítulo da "Crónica Macaense" — com os poema na língu maquista de José dos Santos Ferreira, as memórias do Ex-Governador António Adriano Lopes dos Santos, o esboço histórico do Museu de Luís de Camões por Isabel Nunes, e a evocação biográfica do notável médico tomarense Francisco da Silva Guimarães, pelo P.e Manuel Teixeira. Em descrição memorialista, centrada nos primórdios do cinema em Macau, Henrique de Senna Fernandes transmite-nos, numa sequência fresca e viva de quadros, a crónica lúdica da cidade no primeiro terço do Século. Dois estudos de investigação confluem no aprofundamento antropológico dos Macaenses como grupo diferenciado. Enquanto Ana Maria Amaro enquadra a caracterização antropobiológica dos Macaenses, Pina Cabral e Nelson Lourenço analisam a evolução antropo-sociológica da comunidade macaense no quadro balizado entre o surto socio-económico dos anos 60 e o horizonte da transferência de soberania. O perfil revolucionário de Sun Yat Sen é-nos delineado por João Guedes no cenário da viragem do Século, numa encruzilhada política onde a Administração Portuguesa de Macau se balanceia entre a tradicional lealdade a Pequim e a perspectiva das alterações políticas no continente chinês.

Abre este número da RC com a versão em Português de um texto já publicado em Inglês no N. ō13/14. De propósito assim o relevamos à atenção do leitor de Língua Portuguesa. H. C. Fok aclara com nova luz a obscura questão da fixação dos portugueses em Macau, estribado em fontes primárias e documentos chineses, inacessíveis ao conjunto dos historiadores lusos (e mesmo estrangeiros) que pelos tempos foram propondo as suas teses sobre a fundação de Macau. Informações de primária importância, que devem ser agora compaginadas com as da historiografia que nos herdaram Mendes Pinto, Faria e Sousa, Du Halde, Sonnerat, Álvaro Semêdo, José de Jesus Maria, Domingos Navarrete, T'ien Tsê Chang, J. M. Campelo e outros — para a delucidação desta básica questão da história de Macau.

Com a tradição universalista lusíada, onde cabe a dimensão oriental, têm a ver os dois valiosos ensaios de Yvette Centeno e de Fátima Gomes, sobre o Messianismo em Portugal e o Budismo em Antero de Quental.

São também de destacar os textos de John Correia-Afonso sobre a Arte Cristã da Índia e de Veiga Jardim sobre a vida de Wolfgang Mozart.

Pioneira na proposta da identidade cultural de Macau como nuclear e polarizante das realizações das políticas culturais, foi com ânimo tenente dessa finalidade que a RC rumou durante estes cinco anos. De princípio, repudiámos a concepção "burguesa" que se compraz nas vagas declinações teóricas de um abstracto "encontro de culturas".

Com entendimento animado nos comprometemos até à medula com uma Terra, uma História, uma Tradição a haver. Escolhemos, dentre tantas as nocionadas, a ideia da Cultura que se revê na sua concretização histórica — de um mover, para um haver, pela escatologia de um ser. Como Spengler, opôr a Cultura à História, como a alma ao corpo. Isto com a lucidez perceptiva e a razão simples de que, nas suas várias existências, Macau não existe, e agora transita de uma existência para outra, porque a História que se lhe esboça no futuro é força de radical cisão com a sua cultura do passado.

A recolha, aprofundamento e exaltação de todas as diferenças identificadoras, da pura tradição ocidental à extrema tradição chinesa macaense, será a tarefa cultural desta geração, na amorosa urdidura de uma Alma a legar.

É nos cenários diluvianos que à salvação das águas sempre surge o símbolo da nau, ou arca, sede de arcanos, a varar em nova terra. Em fim, e derrotando dos rumos da diáspora que é tentação da dispersão, deviam os portugueses largar a derradeira nau ao abrigo de A Má, deusa complacente e santificada por ter caminhado também sobre as águas.

Quedámo-nos longe ainda, ao fim destes cinco anos, de alguns objectivos iniciais.

Não foi portanto com requebros de vaidade que escutámos a bondade dos aplausos que nos foram chegando. Mas não foi por se ter concentrado no aprofundamento de temas específicos de Macau que a RC viu prejudicada a sua dimensão, solicitação e aceitação internacionais.

Neste campo, espera-nos ainda uma jornada interminável. Não operámos ainda na prática a profunda reconversão da edição em Chinês, de modo a dar-lhe mais abertura ao intercâmbio cultural luso-chinês e, sobretudo, a dar-lhe eficácia como instrumento de identificação cultural comunitária. Está nos começos a maior assunção erudita e internacional da RC. Preparámos apenas a introdução de secções de Orientalismo e Sinologia, visando o estímulo e o apoio à enxertia destes ramos do saber no tronco e no movimento da cultura portuguesa, afinal a primeira a chegar ao Oriente e às partes extremo-orientais. Mas conforta-nos a consciência de que fizemos algo, e o quantum satis para que a RC fique já registada na pequena história editorial do género em que se filia.

Agradecendo a colaboradores e saudando leitores, expomo-nos em contricção por atrasos sofridos, sobretudo ante aqueles espíritos que no silêncio mais nos esperaram, para acolher com préstimo as vozes dos nossos colaboradores.

Sabe-se, porém, que a Cultura não é para ser emprazada por almotacés do tempo ou contínuos do calendário. O seu próprio caminho é ser-lhes adversa, por isso que ela é factor de paternidade e adunação espiritual das nações em trânsito nos tempos, fundadora de Tradição.

Destinando-nos sobretudo às gerações que o Futuro acolherá, só falharíamos se não chegássemos a tempo às suas mãos.

O Presidente do Instituto Cultural

Carlos Alberto dos Santos Marreiros

O Director da Revista de Cultura

Luís Sá Cunha

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