Artes

CRÓNICA DA MORTE DE UM ANJO

Veiga Jardim*

Na página anterior: Retrato "muito parecido", pintado em Viena um ano antes da chegada de Mozart a Paris (encomenda do P.e Martini para a sua galeria de Bolonha). Mozart, com 21 anos, exibe a cruz da ordem da Espora de Ouro, conferida por Clemente XIV em Roma, em Julho de 1770 (tinha Mozart 14 anos).

"No dia 5 de Dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus Mozart entrou no céu, como um artista de circo, fazendo piruetas extraordinárias sobre um mirabolante cavalo branco.

Os anjinhos atónitos diziam: Que foi? Que foi?

Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares superiores da pauta.

Um momento se suspendeu a contemplação inefável.

A Virgem beijou-o na testa

E desde então Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anjos"

Manuel Bandeira, in "Lira dos Cinquent'Anos"

Que personalidade foi esta tão extraordinaria-mente plural e instigante que, até hoje, provoca po-lémicas sobre a sua existência, suas obras e faça-nhas? Na realidade, que homem foi este? Liberto, incansável, genial, rebelde...

Um sem-número de adjectivos poder-se-iam adequar a Wolfgang Amadeus Mozart mas, muito provavelmente, nenhum deles seria capaz de "rotular"ou definir completamente esta personagem que, sem ter sangue nobre, foi um dia chamado de "príncipe" pela posteridade.

Através dos documentos que chegaram até nós (especialmente a correspondência particular) conseguimos reconstituir, em parte, um perfil comportamental do homem e do artista, o qual pre-sume-se ser possuído de um carácter introvertido e misterioso, apesar das aparências, em muitas ocasi-ões da sua curta existência, terem demonstrado o contrário. Entretanto, as cartas e as crónicas da épo-ca nem tudo conseguem revelar como, por exemplo, os últimos anos da sua vida quando então, pobre, doente e angustiado, Mozart não quis dividir com quase ninguém a miséria que o cercava. Deste perío- do sabe-se muito pouco, e mesmo a causa da sua morte bem como o túmulo onde o seu corpo foi depositado são, ainda hoje, motivo de sérias contro-vérsias.

O RETRATO INACABADO

Um dos mais belos e fi-éis retratos de Mozart, pintado em Viena por seu cunhado Joseph Lange, no período com-preendido entre 1782 e 83, é considerado por muitos como um simbólico reflexo da sua vida: inacabada, suspensa, cortada bruscamente a meio, à espera, quem sabe, das incons-tantes mãos do destino para um último retoque, uma conclusão mais lógica ou, pelo menos, um final feliz... Não se sabem as razões que levaram Lange a deixar a pintura inacabada pois, desde 1782 (ano em que iniciou a obra) até 1791 (ano da morte de Mozart) teve, sem dúvida, tempo suficiente para concluí-la.

A tela mostra-nos um perfil que se impõe, que se destaca e evidencia, ainda mais pelo contraste com o fundo escuro. A basta cabeleira - costume da época - emoldura o rosto de traços finos, lábios e faces rosadas que denunciam um certo ar de "meni-no-grande", de perplexidade e surpresa quase infan-tis diante dos 26 anos já vividos. A parte de baixo da figura, inacabada, forma uma pálida barreira - que parece isolá-lo, cortando-lhe os laços com o mundo e, ao mesmo tempo, sugerindo-nos a imagem das suas mãos sobre um piano invisível.

O tempo escorreu-lhe pelos dedos como areia, ou como o dinheiro pelo qual exauriu as for-ças durante a sua breve existência; finalmente a morte, inexorável, inclemente e egoísta que, prema-turamente, o roubou à humanidade calando, assim, toda a música que ainda trazia dentro de si.

Apesar de tudo, Mozart, aos 35 anos, deixou--nos um gigantesco conjunto de cerca de 600 traba-lhos (número, diga-se de passagem, proporcional-mente muito superior ao de qualquer outro compositor que tenha tido uma vida mais lon-ga); quantidade que talvez pos-sa ser esclarecida por uma fra-se: "... limito-me a passar para o papel as obras que já tenho prontas dentro da minha cabe-ça". Foi este, provavelmente, o segredo da sua aparente veloci-dade e facilidade em criar mú-sica. Um interessante episódio, passado em Praga no ano de 1787, por ocasião da estreia de "Don Giovanni", ilustra bem a rapidez com que Mozart com-punha música: dois dias antes da encenação, ocorrida em 28 de Outubro, a abertura ainda não estava concluída e a orquesta, na noite da "pre-mière", acabou por executá-la à primeira vista e com a tinta dos manuscritos ainda fresca...

O "retrato inacabado"

Mozart viveu exactamente 35 anos e dez me-ses, de 27 de Janeiro de 1756 a 5 de Dezembro de 1791, e a sua música, conseguindo ultrapassar as fronteiras do tempo, conserva ainda hoje a mesma frescura que possuía há dois séculos.

" PAI TIRANO..."

Filho de Johann Georg Leopold Mozart (1719-1787), violinista e Vice-Mestre de Capela da corte arquiepiscopal de Salzburgo, Johannes Chrysostomus Wolfgangus Teophilus (assim consta da sua certidão de baptismo!) foi, sem dúvida, o maior compositor do seu tempo e, como tal, atingiu o mais alto nível de qualidade em todos os géneros de música aos quais se dedicou: sinfonia, concerto, música de câmara, vocal, coral, enfim, tudo. Foi o maior pianista da Europa e, também, o melhor direc-tor de orquestra. Caso se empenhasse mais, muito provalmente, seria um grande violinista e, além dis-so, não havia absolutamente nada, em música, que Wolfgang não conhecesse ou não desempenhasse com maior aptidão que a maioria. Era capaz de es-crever uma melodia ao mesmo tempo que pensava noutra ou, ainda, ouvir uma única vez uma longa peça musical e, em seguida, reescrevê-la de memó-ria, nota por nota!

Os primeiros anos da vida de Wolfgang de-correram em condições normais de serenidade estu-diosa e alegria infantil, entre o afecto da mãe e o da irmã mais velha, virtuosa do cravo, com a rotina da casa assegurada por uma criada e pela autoridade competente de um pai atento. Entretanto, Leopold, consciente do grande talento musical do filho, tra-tou, logo que Wolfgang completou 6 anos de idade, de exibi-lo em público, explorando desta forma os extraordinários dotes da criança, facto que viria a trazer sérios prejuízos ao seu carácter ainda em for-mação.

As crianças-prodígio muito raramente se con-vertem em pessoas com vida normal. Desenvolvem--se, geralmente, na condição de crianças que culti-vam uma determinada aptidão passando a maior par-te do tempo ao lado de adultos, descuidando-se a sua educação geral e recebendo excessivos mimos. O drama da vida de Wolfgang foi o de ter sido criado exclusivamente apoiado no seu pai, não tendo de-senvolvido, assim, mecanismos de defesa que lhe dessem meios para confrontar-se com as exigências da sociedade e da vida. A propósito, o primeiro bió-grafo de Mozart, Friedrich Schlichtegroll, escreveu em 1793: "Apesar daquela extraordinária criatura ter amadurecido muito rapidamente como artista, continuou sempre — a bem da verdade — a compor-tar-se como uma criança em quase todos os outros assuntos. Nunca aprendeu a controlar-se. Não tinha sentido para a organização doméstica, nem para a administração razoável do dinheiro e, tam-pouco, moderação na escolha dos prazeres da vida. Neces-sitava sempre de uma mão que o guiasse". Os ho-mens que se dedicaram a anotar estes aspectos da vida de Mozart sabiam, assim como muitos outros contemporâneos do compositor, que Wolfgang era o pior inimigo de si mesmo.

O pai de Mozart, homem acomodado, bom servidor, músico correcto, sem dúvida, viu na genialidade do filho a fiança de uma velhice tranqui-la e segura. Através de Wolfgang, Leopold não só poderia auferir lucros financeiros mas também -quem sabe? - compensar-se de uma existência artís-tica até certo ponto frustrante. Investiu intensamente na educação musical do pequeno e, assim que o sen-tiu preparado, obrigou-o, ao lado da irmã mais velha, Maria Anna, a digressões por toda a Europa, com o intuito de os dar a conhecer e fazê-los brilhar fora de Salzburgo.

Retrato do pai de Mozart, Leopold (1712-1787); pintado por Pietro António Lorenzoni em 1765.
Anna Maria Mozart (1720-1778), mãe do compositor (pintura de Maria Rosa Hagenauer-Barducci, c. 1775).

O depoimento de um magistrado inglês, Daines Barrington, em relatório enviado à Royal Society de Londres, durante a estadia da família Mozart naquela cidade, no período compreendido entre 1764 e 1765, ilustra bem a forte impressão que o menino-prodígio deixava em todos os que o co-nheciam: "... Fui testemunha do extraordinário ta-lento deste jovem artista e músico. Ouvi-o em con-certos públicos e em casa do pai, onde passei um longo momento a sós com ele; por isso vos envio este relatório, por mais surpreendente e incrível que pareça [...]. Dei-lhe intencionalmente um texto ma-nuscrito, para saber qual era a sua habilidade na leitura, pois assim tinha a certeza de que ele não poderia conhecer a partitura. Mal pôs a música na estante atacou o prelúdio como um mestre, fiel à intenção do compositor tanto no tempo como no es-tilo. Relato este facto porque, muitas vezes, mesmo os grandes mestres cometem erros numa primeira leitura. Terminado o prelúdio, tomou para si a voz mais aguda, deixando a outra para o pai. A sua voz tinha o timbre débil de uma criança, mas cantava de uma maneira magistral e inigualável. O pai, que ficara com a voz grave do dueto, desafinou uma ou duas vezes, embora não fosse mais difícil que a voz aguda. A criança mostrou-se então um pouco des-contente, apontou os erros com o dedo e corrigiu o pai [...]. Quando terminou este exercício aplaudiu-se a si próprio pelo êxito obtido e perguntou viva-mente se eu não tinha trazido outra música [...]. Ouvi dizer que ele, por vezes, tinha ideias musicais que executava ao cravo, mesmo em plena noite. Formulei, então, ao pai o meu desejo de ouvir um desses improvisos. O pai abanou a cabeça e disse-me que isso dependia totalmente da sua inspiração mas, se eu quisesse, podia pedir-lhe. A criança con-tinuava sentada ao cravo. Olhou maliciosamente à sua volta e começou imediatamente a cantarolar um recitativo, perfeitamente adequado para introduzir uma ária de amor; depois tocou no cravo um prelú-dio que correspondia a uma ária sobre a palavra affetto [...]. Mesmo não sendo perfeita a ponto de provocar espanto, esta composição improvisada si-tuava-se, no entanto, muito acima da média e reve-lava uma riqueza de invenção absolutamente extra-ordinária. Como achei que estava em momento de boa disposição, pedi-lhe, em seguida, que compu-sesse uma ária de fúria, como para uma ópera [...] que durou aproximadamente o mesmo tempo que a canção de amor e a criança, no meio da ária, ficou de tal maneira excitada que batia no teclado como um possesso e, de tempos em tempos, levantava-se da cadeira. Escolhera como motivo de improviso a palavra perfido. Depois tocou ainda um trecho mui-to difícil que escrevera um ou dois dias antes. A sua execução era extraordinária, pois os seus dedinhos mal eram capazes de abranger cinco teclas [...]. Apesar de tudo isto, o seu aspecto era o de uma criança da sua idade. Por exemplo, num momento em que executava um prelúdio entrou um gato do qual gostava muito; abandonou imediatamente o cravo e só voltou depois de algum tempo. Por vezes, montado num pedaço de pau, cavalgava pela sala...".

Wolfgang Mozart: pintura de P. Krafft, 1819.

E assim a Europa curvava-se diante daquele menino maravilhoso.

Um músico tão bem dotado, com certeza, não deveria encontrar dificuldades em arranjar um em-prego lucrativo. Entretanto, apesar de se ter esforça-do toda a vida, Mozart jamais conseguiu um traba- lho estável e rendoso. Transformou-se num homem complicado, com uma vida embaraçada pelo seu próprio modo de ser. Faltava-lhe tacto, falava de maneira impulsiva, dizia exactamente o que pensava acerca dos seus colegas músicos conseguindo, as-sim, granjear a antipatia da comunidade musical. Teve muito poucos amigos sinceros e, apesar disto, nunca deixou de se comportar de maneira altiva, obstinada, temperamental e arrogante. Todavia, se quisermos, podemos, retrospectivamente, olhar com simpatia e generosidade para todos estes arrufos de garoto malcriado: era Mozart, o genial artista que, na verdade, era muito maior do que os seus contem-porâneos; sabia identificar com clareza a mediocri-dade que o rodeava, bem como as grandes figuras; Mozart nutria, por exemplo, uma enorme admiração por Joseph Haydn.

Título do manuscrito da partitura do "Idomeneo", escrita e emendada pela mão de Mozart (Idomeneo Ré di Creta-K.366). Segundo Einstein, "uma daquelas obras que mesmo um génio de primeira grandeza como Mozart não logra senão uma vez na vida ". O figurino representa Anton Raaf, amigo de Mozart e intérprete do "Idomeneo", sua última actuação em cena.

Durante muitos anos, Wolfgang lutou para escapar do domínio paterno mas, quanto mais luta-va, mais Leopold o bombardeava com bons conse-lhos: "sê económico, não confies em pessoas estra-nhas, não saias à noite, faz bons amigos, comporta-te dignamente...", ao que o filho replicava:"... pou-co a pouco minha situação melhorará. Não se preo-cupe!" O pobre Wolfgang, provavelmente, estreme-cia quando recebia cartas do pai cheias de recomen-dações: "O propósito das minhas observações é transformar-te num homem honrado. Milhões não possuem esse dom que Deus te concedeu. Que res-ponsabilidade! E que vergonha se tanto talento esti-ver destinado ao fracasso!"

O resultado foi que Leopold nada conseguiu fazer e, cada dia, o filho tornava-se mais arredio e distante; Wolfgang, instigado por um génio musical que lhe impunha uma constante inquietação criado-ra, jamais poderia ser o burguês sóbrio, prudente e trabalhador que seu pai, sinceramente, desejava que fosse. Leopold não atinava diante de uma genia-lidade que escapava à sua compreensão e ignorou quão tenso esteve Wolfgang durante toda a vida, quão necessitado de alento, de simpatia, de apoio e ternura, em lugar de quilométricas epístolas e infindáveis sermões e homílias. Wolfgang, efectiva-mente, possuía as deficiências de carácter que Leopold constantemente apontava. Entretanto, mui-tos desses defeitos tiveram origem na infância antinatural que ele mesmo lhe impôs. E assim os dois, pai e filho, torturaram-se mutuamente durante anos, numa desgastante relação de amor e ódio.

VIAGENS

Depois de adulto, Wolfgang viria a fazer, por conta própria, outras viagens e o resultado foi que, dos quase 36 anos que viveu, 14 foram passados fora do lar. Se, por um lado, esta vida nómada teve vários inconvenientes, por outro, deu a Mozart a oportuni-dade de se relacionar com todos os músicos impor-tantes do seu tempo e, também, de conhecer todas as vertentes do pensamento musical da época. Em Lon-dres, por exemplo, Mozart ainda menino encontra-se com Johann-Christian Bach, filho mais novo de Johann-Sebastian. O homem dedica à criança um grande interesse e uma verdadeira amizade; formado em Itália, Johann-Christian transmite-lhe a luz do Sul, os ares meridionais, o gosto pelo melodismo livre, mas sobretudo incute-lhe a paixão pelo canto e pela ópera, paixão esta que viria a desabrochar, mais tarde, em "Don Giovanni", "Le Nozze di Fígaro" e "Così FanTutte".

Mapa das viagens de Mozart pela Europa (14 dos 36 anos da sua vida foram passados por Mozart fora da terra natal).

É importante lembrar que hoje, na era do avião, quando as deslocações se realizam confortavelmente em horas, é quase impossível avaliar o quanto devem ter sido difíceis as viagens empreendidas pelos Mozart. Calor, poeira, lama, solavancos e, sobretudo, dias e dias sem repouso e sem estudo. Enquanto crian-ça, Wolfgang encarava aquelas viagens como um pas-satempo sem consequências, como se verifica através das suas cartas à família, escritas durante as viagens a Itália, realizadas entre 1769 e 1773:"... O meu coração está louco de alegria porque me divirto tanto nesta viagem!... Porque faz tanto calor na carruagem!... e porque o nosso cocheiro é um excelente rapaz que nos conduz bem depressa logo que a estrada o permite". Em Nápoles: "... Hoje o Vesúvio fumega muito. Tro-vões e relâmpagos! Eu ainda estou vivo e alegre como sempre. Já naveguei pelo mar Mediterrâneo...". Em Bolonha: "... Hoje deu-me na veneta andar de burro: é um hábito em Itália, e pensei que também devia expe-rimentar".

Para além dos países, com suas tradições, usos e costumes, Wolfgang conhece, nessas viagens, jovens como ele, que o ajudam, através do convívio, a encon-trar a sua própria individualidade. Assim, aos 15 anos de idade, Mozart já é um artista maduro. Acaba de receber a encomenda para escrever uma ópera, "Mitridate, Re di Ponto", que, por sua vez, daria ense-jo a mais duas, "Ascanio in Alba" e "Lucio Silla". Ao mesmo tempo recebe, em Itália, o título de "Cavaleiro da Espora de Ouro" conferido pelo Papa, um diploma da Academia Filarmónica de Bolonha, conquistado após um difícil exame e, finalmente, o diploma de director de orquestra honorário da Academia Filarmó-nica de Verona.

Após completar 17 anos, Mozart passará um largo período sem viajar. Permanece em Salzburgo, ao lado do pai, trabalhando na corte do Príncipe-Arcebis-po Hieronymus Colloredo, com um simples cargo de "Chefe de Concertos", ganhando a soma de 150 florins por ano. Não será difícil imaginar que, depois de tantas experiências adquiridas sobre o mundo, os homens e a música, Wolfgang iria achar bem estreitos os horizontes profissionais dentro da sua terra natal. Em carta ao Padre Martini, seu professor em Bolonha, escrita no Outono de 1776, Mozart, já com 19 anos, queixa-se da asfixia que sente, enclausurado na casa dos pais e limitado pela insonsa rotina de trabalho na corte: "... Vivo num país onde a música não faz grande fortuna [...] No teatro sofremos da falta de cantores [...] Neste momento divirto-me a escrever música de câmara e de igreja. Meu pai é director da orquestra da Catedral e isso dá-me a oportunidade de escrever toda a música de igreja que quero. Por outro lado, ele já tem 36 anos de serviço nesta corte e, com os direi-tos adquiridos pela antiguidade, não leva o seu traba-lho muito a sério, tendo-se entregado à literatura, que já era, aliás, o seu estudo favorito [...]. Ah! Por que estamos tão afastados um do outro, meu caro Padre e Mestre! Tinha tantas coisas para lhe falar!"

Após reiterados pedidos de licença (não conce-didos) para viajar, Wolfgang, através de uma irónica carta, consegue finalmente, em 1777, permissão do autoritário Colloredo para se ausentar de Salzburgo e -o que é melhor! - sem a companhia paterna! Leopold deveria, por determinação do arcebispo, ficar na corte "compensando" a ausência do filho.

Feliz por ter a possibilidade de dar os seus pri-meiros vôos, Wolfgang, ao lado da mãe (encarregada por Leopold de velar pelo filho durante a viagem) par-te, a 23 de Setembro de 1777, para Paris, via Munique, Augsburgo e Mannheim, à busca de um emprego mais atraente.

Em Augsburgo, Mozart trava conhecimento com o fabricante de pianos Andreas Stein, homem inovador, responsável pela introdução de novas técni-cas no mecanismo dos pianos (nomeadamente o siste-ma de "escape", que atenua as ressonâncias e extingue o som no exacto momento em que se deixa de premir a tecla) que revolucionariam o fabrico destes instru-mentos e que, até hoje, são utilizadas pela mais impor-tante casa construtora de pianos do mundo, a Steinway & Sons, detentora actual da antiga patente de Andreas Stein.

Entretanto, é em Mannheim, na corte do Prínci-pe Karl Theodor, que Mozart vai ter a revelação musi-cal essencial desta viagem: uma orquestra como nunca tinha visto! Com cerca de 50 músicos (número espan-toso para a época) e apresentando um naipe completo de instrumentos de sopro (incluindo o, até então, inusi-tado e desconhecido clarinete), esta orquestra "moder-na" abriu perspectivas extraordinárias à escrita sinfóni-ca. Some-se a tudo isto o estilo de interpretação (co-nhecido pelo nome de "escola de Mannheim", cujo principal expoente foi Johann Stamitz) que era pratica-do e que evidenciava os contrastes entre forte-piano e o efeito arrebatador do crescendo e do decrescendo.

Mozart sensibiliza-se diante dos progressos al-cançados por aquele agrupamento instrumental e, gra-dualmente, começa a incorporá-los nas suas próprias obras, o que muito contribuirá para o encontro de uma linguagem sinfónica pessoal.

Durante os meses em que permaneceu em Mannheim, Mozart, já amigo dos músicos da orques-tra e do maestro Christian Cannabich, tenta, de todas as formas, conseguir emprego na corte. O Príncipe Karl Theodor ouve-o com interesse mas a resposta faz-se esperar até ao dia 9 de Dezembro: é negativa, apesar de todas as amabilidades do Príncipe e do apoio dos amigos.

Restava, portanto, rumar para Paris onde, tal-vez, profissionalmente, algo de bom poderia aconte-cer. Anna-Maria, sua mãe, estava perfeitamente cons-ciente de que não tinha quaisquer influências nas inici-ativas e comportamentos do filho, até porque Wolfgang deixou-a, tanto em Munique como em Mannheim, à margem das suas actividades profissio-nais e relações sociais. Resignada, uma vez mais, reú-ne forças e acompanha-o a Paris onde, ainda mais só que antes, vem a adoecer e, em seguida, a morrer, no dia 3 de Julho de 1778.

Wolfgang suporta o golpe com resignação sere-na. Paris, a partir de então, revela-se muito menos aco-lhedora ao músico de 22 anos do que fora ao Mozart--criança, pequeno pianista prodígio. A sociedade é frí-vola e Wolfgang dá concertos em salas vazias, com alguns elogios, mas sem nenhum proveito monetário. Consegue um posto de organista em Versalhes, mas em condições que lhe parecem inaceitáveis. Só, endi- vidado e com problemas de consciência, agravados pela chuva de cartas recriminatórias do pai: "Uma via-gem não é para brincadeiras e perdas de tempo! Há que se perseguir as metas planeadas!...", Wolfgang não tem outra saída senão regressar a Salzburgo. En-tretanto, Leopold conseguiu amolecer o coração do Arcebispo Colloredo no sentido de obter a reintegra-ção de Mozart no lugar de "Chefe de Concertos", com um ordenado, desta vez, de 450 florins anuais.

Aterrorizado, à medida que faz a viagem de volta, Mozart escreve ao pai: "Devo confessar-lhe, com toda a franqueza, que chegaria a Salzburgo com o coração mais aliviado, se não soubesse que deveria entrar em funções [...] Coloque-se no meu lugar! [...] Em Salzburgo não sei quem sou [...] Considere o pai a questão [...] O arcebispo não me paga o suficiente por esta escravatura. Espero que ele não se faça de gran-de comigo, como era seu hábito. Eu seria bem capaz de lhe fazer uma grande careta!..."

Hieronymus, Conde de Colloredo, Príncipe-Arcebispo de Salzburgo (1732-1812); pintura de Johann Michael Greiter, datada de 1780. "Homem das Luzes", amador de música, tocando o violino nos serões da sua residência, exigiu mais a Mozart o cumprimento das suas obrigações de executante talentoso do que estimulou o seu génio de compositor.

Seja como for, Wolfgang derrotado em todas as frentes, inclusivé a nível afectivo (perdera o amor da cantora Aloysia Weber, irmã daquela que viria a ser sua esposa, Konstanze), mortificado no mais íntimo de si, vê-se obrigado, aos 23 anos, a dobrar-se de novo à vontade paterna e à autoridade do Príncipe-Arcebispo.

Todas estas figuras autocráticas, prezado leitor, ficarão para sempre gravadas no subconsciente de Mozart e, mais tarde, reflectir-se-ão em personagens das suas óperas. Por exemplo, a figura punitiva do Comendador, que ressuscita sob a forma de uma está-tua de pedra, na ópera "Don Giovanni", é, sem dúvida, uma clara alusão ao autoritarismo paterno.

ENFIM, A LIBERDADE

Wolfgang, obcecado por compor uma grande ópera, género musical que considerava perfeito pois englobava drama, bailado, vozes e orquestra, aceita o novo contrato de trabalho com a condição de "ser au-torizado a ausentar-se caso receba a encomenda de uma ópera".

Subitamente as grades da prisão abrem-se: o Príncipe-Eleitor Karl Theodor, que Mozart conhecera quando reinava em Mannheim, tomou-se Príncipe da Baviera transferindo-se com toda a corte para a cidade de Munique. No final do Verão de 1780, encomenda oficialmente a Mozart um ópera séria para ser encena-da durante o Carnaval de 1781. Colloredo, naquelas circunstâncias, não poderia negar a sua promessa de dispensa e Mozart, finalmente, parte para Munique onde produzirá a ópera "Idomeneo".

A 29 de Novembro de 1780 morre a Imperatriz Maria-Theresa e Colloredo, após vários adiamentos, parte para Viena (sede do Império) a fim de apresentar as suas condolências a Joseph II, que sucederia à mãe no poder central.

Enquanto isso, Mozart, instalado em Munique, liberto do ambiente que detestava, imerso no seu tra-balho preferido e rodeado de amigos, esquece-se do tempo. Em Março de 1781 chega-lhe uma carta inti-mando-o a apresentar-se imediatamente na corte de Colloredo, então provisoriamente instalada em Viena. Com efeito, Mozart apresenta-se e o atrito é inevitável. Brigas, rabugices e desaforos, de parte a parte, culmi-nam com a sua demissão, em 8 de Junho de 1781 quando, na altura, o compositor foi expulso do palácio a pontapés!

Leopold, para surpresa do filho, toma o partido de Colloredo provocando, com este gesto de submis-são, um esfriamento de relações que viria a prolongar--se pelo resto das suas existências.

Apesar de tudo, Mozart estava livre; livre como um pássaro a pairar pelas ruas da efervescente Viena. Aos 25 anos de idade, sem as pressões do pai e sem os grilhões de Colloredo, Wolfgang, mais amadurecido pelo sofrimento, iria entrar na vida, na dura competi-ção por um lugar ao sol. Só lhe restariam onze anos de vida e é neste curto espaço de tempo que deixará as suas maiores obras. Pode parecer estranho dizer que um compositor como Mozart (que começou a compor aos 6 anos de idade) se tenha desenvolvido tardiamen-te; mas é verdade. Apesar da sempre presente elegân-cia, são poucas as obras do início de carreira que exi-bem a personalidade, a concentração e a riqueza que se manifestaram na sua música depois de 1781. Obras como a Sinfonia em Lá Maior, K201, e a Sinfonia em Dó Maior, K338, são excepções. (O "K", que aparece depois dos títulos das obras de Mozart, alude a uma numeração feita por Ludwig Kochel que, em 1862, preparou um catálogo cronológico de todas as obras do compositor).

Em Viena, Mozart não estava ligado a nada nem a ninguém; poderíamos até arriscar-nos a dizer que, naquelas condições, o compositor parece ter ultra-passado um certo bloqueio psicológico que o atormen-tava. Começou a escrever uma música muito mais pro-funda, segura, enérgica e brilhante. Isto não significa que a sua música fosse aceite incondicionalmente. Afirmavam que era excessivamente complexa e difícil de seguir. Mesmo profissionais como Karl Dittersdorf (1739/1799), eminente violinista, compositor e admi-rador de Mozart, escreveu preocupado: "... Nunca co-nheci um compositor que tivesse tanta riqueza de idei-as. Quase chego a desejar que ele não as usasse tão generosamente: deixa o ouvinte sem fôlego pois logo que inicia um belo pensamento musical, outro de mai-or fascínio aparece a cobrir o primeiro, e isto no de-correr de toda a obra, de tal forma que é impossível reter sequer uma destas melodias maravilhosas". Hoje, no século XX, com as gravações, a rádio e as orquestras modernas, que incluem regularmente Mozart nos seus programas, tendemos a esquecer que em 1780, mesmo um músico profissional, não tinha a certeza de que a primeira vez que ouvisse uma música, não fosse também a última! Não havia tantos concer-tos. Uma obra musical deveria ser assimilada de ime-diato e, antes de Beethoven, nenhum compositor teve a possibilidade de ver as suas principais obras edita-das, o que foi, sem dúvida, um enorme obstáculo à divulgação e consequente entendimento das criações musicais de então.

Praça e catedral de Salzburgo.

Tudo isto vem confirmar, uma vez mais, o quanto Mozart estava adiantado em relação ao seu tempo e aos seus contemporâneos.

CENAS DE UM CASAMENTO

Mozart casou-se com Konstanze Weber a 4 de Agosto de 1782 e dividiu com ela, durante os nove anos que lhe restavam, os altos e baixos da sua vida artística.

Leopold, intransigente, não abençoou a união do filho com aquela mulher que considerava "medío-cre", apesar dos reiterados esforços de Wolfgang para reabilitar a imagem da futura esposa.

Mozart, alguns anos antes estava apaixonado pela irmã mais velha de Konstanze, Aloysia, então uma jovem cantora com um futuro promissor e que, mais tarde, viria a contrair matrimónio com Joseph Lange, autor do retrato inacabado do compositor. Não estão, a nosso ver, bem esclarecidas as razões que le-varam Mozart de volta ao lar dos Weber e a iniciar o seu namoro com Konstanze. Ela, segundo os críticos mais severos, era desleixada, desarrumada, fútil, volú-vel e de uma mediocridade física que não oferecia "sequer uma fealdade conseguida" (Adolphe Bochot). O único ponto positivo que os historiadores são unâni-mes em reconhecer, era a forte atracção física que os uniu e lhes proporcionou uma intensa vida sexual, como podem atestar as seis vezes que Konstanze engravidou (viveu, portanto, grávida mais de metade da sua vida conjugal com Mozart) bem como as cartas de Wolfgang à mulher descrevendo, crua e precisa-mente, as manifestações do seu desejo, no momento em que lhe escrevia, assim como as expectativas do reencontro.

Manuscrito autógrafo, assinado e datado por Mozart, Paris, 1778. Esta sonata para piano em lá menor (K. 310), a primeira grande sonata da maturidade, tem uma tonalidade trágica, que se associa ao drama da morte de sua mãe e aos amores contrariados nesse Verão parisiense.

Aloysia, irmã de Konstanze e primeiro amor do compositor, era o símbolo da afinidade espiritual e musical; a admiração e o encantamento paralisantes. Konstanze, ao contrário, foi a realização física do ho-mem, ardente, ansioso pelo amor mas, ao mesmo tem-po, concentrado na sua criação artística. Na sua última ópera, "A Flauta Mágica", Mozart expõe-nos muito claramente esta dualidade do seu carácter através das personagens Tamino/Pamina, par que se realiza espiri-tualmente pelo amor, e Papageno e Papagena, homem e mulher aves, vivendo mergulhados na riqueza da vida terrena e na relatividade do destino.

IDEAIS E FÉ

Em 1784 Wolfgang filiou-se na Maçonaria, não por problemas de fé (professou até à morte, e bastante sinceramente, o catolicismo) mas, provavel-mente, por questões de identificação com o seu pró-prio modo de ser liberal e igualitário.

Convém lembrar que, no Século XVIII, a Ma-çonaria era vista com desagrado pela Igreja mas não sob o aspecto condenatório em que viria ser enquadra-da posteriormente. Intelectuais e artistas daquele perí-odo partilhavam muitos dos ideais de solidariedade, fraternidade e igualdade presentes no pensamento ma-çónico.

Juntar-se à Maçonaria, para Mozart, foi mais uma demonstração de ascensão social, de aceitação dentro de um selecto grupo constituído essencialmente pelos espíritos esclarecidos da aristocracia e da intelectualidade, do que por convicções políticas ou religiosas.

Mozart, com o seu temperamento "sui generis", fruto de uma vida recheada de experiências inusitadas, decorrentes da sua condição de génio e trazendo dentro de si os traumas resultantes do seu difícil convívio com o autocrático Príncipe-Arcebispo Colloredo buscou, pela via do convívio maçónico, um ideal de fraternidade humana, de respeito mútuo, de amizade, admiração e companheirismo, no sentido ilustrado pela frase de Confúcio: "Entre homens edu-cados e sinceros não há classes".

Mais tarde acabou por convencer o pai, bem como Joseph Haydn, a filiarem-se, como ele, na Ma-çonaria. Este ambiente de segredos, mistério, arte e ideias nobres, não deixaram de influenciá-lo no campo musical e, com temática maçónica, escreveu, entre ou-tras obras de menor importância, a "Flauta Mágica", "A Alegria Maçónica", K471 (cantata para tenor, coro e orquestra), "Música Fúnebre Maçónica", K477 (só para orquestra) e "Pequena Cantata Maçónica", K623 (para vozes masculinas), baseada em texto de Emanuel Schikaneder, seu "irmão" na Maçonaria e também au-tor do libreto de "A Flauta Mágica".

"Músico da Corte", pintura de Peter-Jacob Horemans (1700--1776). Instalado em Munique, Horemans executou uma série de pinturas que registam o ambiente e os instrumentos em uso na corte dos Eleitores da Baviera. Pintada em 1762, ano em que Mozart, criança, passou a primeira vez em Munique.

FINALE

Os dois últimos anos da existência de Mozart desenrolaram-se num ambiente difícil, no qual se mis-turavam as dificuldades financeiras, provocadas por uma má gestão de bens (os Mozart eram capazes de, durante 6 meses, viver como milionários num palacete alugado e, em seguida, com os recursos esgotados, mudarem-se para um pardieiro), uma intensificação das suas crises depressivas e, a nível físico, uma pali-dez e fraqueza que seriam, talvez, os indícios do de-senvolvimento do mal que lhe roubaria a vida.

A despeito da sua melancolia e do agravamento da sua doença, Mozart foi extraordinariamente produ-tivo musicalmente; fez poucas concessões à enfermi-dade, dormindo poucas horas, comendo pouco e be-bendo demasiadamente.

Na segunda metade de 1791 as suas condições de saúde agravaram-se drasticamente. Emagreceu, a sua depressão piorou e Wolfgang tomou-se um ho-mem obcecado por ideias sinistras, a ponto de, num passeio no Prater, com Konstanze, desfazer-se em lá-grimas e declarar à mulher que tinha sido envenenado. Trinta e quatro anos mais tarde, António Salieri (1750--1825), compositor italiano que também vivia em Vie-na, no meio de um delírio senil diz que teria sido ele próprio quem teria envenenado Mozart. Confrontada com as suspeitas de Wolfgang, esta hipótese fornecerá à posteridade material suficiente para romances que põem em evidência um Salieri invejoso e que quer vingar-se a ponto de cometer um assassinato...

Único cartaz conhecido, dos que faziam publicidade às sessões do "Concerto Espiritual" nas paredes de Paris, onde "(...) les Virtuoses les plus renommés de l'Europe venaient y briller tour à tour". Nada dava mais prazer a Mozart que o Concerto Espiritual, nessa época. Neste cartaz anuncia-se o programa de 2 de Fevereiro de 1779, que fecha com uma ária italiana de Guglielmo interpretada por M.me Todi.

Os nomes de Mozart (1799, 80,82 e 83) e de Luísa Todi (Madame Todi, Hotel de Brétagne) surgem amiúde no calendário histórico dos teatros de Paris, sendo de presumir que aí tenham convivido em 1779.

Voltemos ao ano de 1791. A situação emocio-nal do compositor tomou-se ainda mais crítica, após a visita de um "forasteiro" que não quis identificar-se e que trazia a encomenda de uma Missa de "Requiem". Este episódio é um dos mais conhecidos da vida de Mozart e, também, viria a dar margem a uma série de especulações.

O "forasteiro" chamava-se Anton Leitgeb, cria-do de um certo Conde Franz Walsegg-Stuppach que desejava apresentar o "Requiem" como sendo de sua autoria. Na mente transtornada de Mozart, o visitante assumiu a dimensão de um mensageiro da morte. A partir de Outubro, a sua saúde piorou ainda mais e, quando Leitgeb voltou para recolher a encomenda, em meados de Dezembro, o compositor já estava morto. O "Requiem" viria, mais tarde, a ser concluído pelo seu discípulo e amigo Franz Xaver Sussmayr (1766--1803), segundo esboço e indicações deixadas por Mozart. Wolfgang caíu de cama a 20 de Novembro de 1791 e a sua agonia durou perto de 15 dias. No Do-mingo, 4 de Dezembro, o seu médico assistente, Nicholas Closset, foi chamado. Recomendou com-pressas frias para abaixar a febre. Um sacerdote mi-nistrou-lhe o sacramento da Extrema Unção e, na ex-pectativa de uma melhoria para, então, receber a San-ta Comunhão, Mozart tomba no leito, cinquenta e cin-co minutos depois da meia-noite, a 5 de Dezembro de 1791.

Nos assentos da Catedral de Santo Estevão, em Viena, está o registo onde se lê "febre alta", como sendo a causa da sua morte. Não foi feita autópsia e a certidão de óbito foi perdida.

Muitas hipóteses foram levantadas no sentido de se averiguar a causa exacta da morte de Wolfgang Amadeus Mozart. Para além do delírio de Salieri (que poderia, entretanto, significar o seu conhecimento de alguma trama que pretendesse assassinar o composi-tor) há, segundo alguns historiadores defensores da tese do envenenamento, uma outra pista que levaria, pretensamente, à confirmação desta teoria: o suicídio de Franz Hofdemel, marido de uma das alunas de Mozart, ocorrido no dia do seu funeral. Contudo, ne-nhum desses indícios resistiu a análises mais profun-das e, hoje, à luz da medicina moderna, concluiu-se que a sua morte foi causada por uma insuficiência renal (provocada por uma nefrite estreptocócica segui-da, na fase terminal, de uma bronco-pneumonia), com-binada com anemia e hipertensão.

No dia 7 de Dezembro um funeral de terceira classe (que custou somente 8 florins e 56 kreutzer) foi realizado. O corpo de Mozart ficou em casa. Posterior-mente foi removido para a Catedral de Santo Estevão, onde foi consagrado por um sacerdote. Depois da con-sagração, o corpo foi levado, através do subúrbio de Lendstrasse, ao cemitério de São Marcos onde, provi-soriamente depositado numa capela funerária, acabou por ser enterrado numa vala comum, antes da chegada de um amigo que viria para localizar o túmulo e colo-car sobre ele uma cruz.

Uma gravura célebre representa a entrada no cemitério da carroça que transportava o corpo do com-positor, seguido apenas por um cão solitário, com a cabeça baixa, demonstrando tristeza: uma verdadeira alegoria ao abandono do génio pelos homens.

Na verdade, cerca de uma dezena de admirado-res e amigos, entre eles Salieri e Sussmayr (Konstanze não estava, provavelmente impedida por alguma en-fermidade) acompanharam o corpo até à Igreja. Foi dito - mas não comprovado historicamente - que os acompanhantes abandonaram o cortejo a meio, afu-gentados pelo mau tempo. Relatos da época revelam que apesar do dia 7 de Dezembro ter amanhecido nu-blado, teria soprado mais tarde o vento norte que lim-pou o céu, tomando o dia claro e agradável; além do mais, recentes estudos demonstram não fazer parte do costume vienense de então acompanhar-se os corpos até ao cemitério.

Konstanze, que recebe uma pequena pensão da corte, vai gerir a publicação das partituras de Mozart, tirando daí rendimentos legítimos e contribuindo para divulgar a sua obra. Ao mesmo tempo preserva, à sua maneira, a imagem do marido, através de correspon-dência e testemunhos. Dos seis filhos que tiveram, so-mente dois, Karl Thomas e Franz Xaver, sobreviveram até à idade adulta mas, infelizmente, sem deixar des-cendentes.

O carácter de Mozart continua, até hoje, a intri-gar-nos. Foi um homem de vida discreta e os seus biógrafos tiveram de lidar com uma massa de rumores, afirmações contraditórias e escândalos para tentar tra-çar um perfil mais real do homem. A sua personalida-de talvez seja revelada mais fielmente através da sua música do que através dos ensaios biográficos. Para terminar, vale a pena lembrar a mensagem que Wolfgang escreveu a seu pai doente, em Abril de 1787, a propósito da morte:

Gravura de Vigneron, alusiva ao enterro de Mozart.

"Como a morte (considerando as coisas de per-to) é o verdadeiro objectivo final da nossa existência, forjei, desde alguns anos, laços tão estreitos com esta verdadeira e perfeita amiga do homem que a sua ima-gem, não só já nada tem de terrível para mim, como me tranquiliza e consola! E agradeço a Deus por, na sua Graça, me ter dado a oportunidade (o pai com-preende-me) de aprender que a morte é a chave de acesso à verdadeira felicidade. Nunca me deito sem pensar que, por muito novo que seja, talvez já não esteja cá no dia seguinte. E no entanto ninguém, de todos os que me conhecem, pode dizer que eu seja uma companhia melancólica ou triste. E por esta feli-cidade agradeço, diariamente, ao meu Criador e dese-jo-a de todo o coração a cada um dos meus semelhan-tes".

* Diplomado em Direcção de Orquestra e Composição pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; actualmente, exerce as funções de Director Artístico e Maestro Titular da Orquestra de Câmara de Macau/Macau Sinfonietta.

desde a p. 155
até a p.