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SUN IAT SEN MACAU E A REVOLUÇÃO

João Guedes*

Na página anterior: Foto da primeira família de Sun Iat Sen (primeiro casamento) tirada num estúdio fotográfico em Cantão, no regresso de uma visita a Cuiheng, terra natal de Sun Iat Sen. A seu lado, a primeira mulher, Lu. De pé, à esquerda e à direita, a filha mais velha Sun Yan e a filha mais nova Sun Wan. Com a mãe, viveram sempre em Macau e estão sepultadas no cemitério da Taipa. Ao centro o filho Sun Ke, que foi Primeiro-Ministro em Taiwan e Presidente da Câmara de Cantão. Por trás de Sun Iat Sen, a sua secretária Song-ai Ling, que casou com um ministro das finanças do Kuomintang. Era irmã da terceira mulher de Sun lat Sen (que teve um segundo casamento efémero com uma pei pá tchai da Rua da Felicidade), Song-qing Ling. A irmã mais nova, Song-mei Ling, casou com Jiang Jie Chi, universalmente conhecido como Chiang Kai Tchek (por transliteração do cantonense Cheong Kai Sek).

O "DUPLO DEZ"

Nos primeiros dias do Outono de 1911, a cidade de Hankow na província de Hubei fervilhava de actividade clandes-tina. Um número de conjurados, militares e civis, ultimava os preparativos de mais uma insur-reição republicana que, a ter em conta as treze tentativas frustra-das que a precederam na China desde a revolta de Cantão em 1895, não deixaria antever à par-tida que pudesse ter melhor sucesso. A falta de coordenação de forças a nível nacional persistia como intransponível barreira, bloqueando o curso da vitó-ria aos republicanos. O que faltava em coesão sobejava em militância entusiástica, mas esta chegava apenas para desencadear su-blevações inconsequentes que se extinguiam muito antes de ameaçarem seriamente o trono de Pequim. Sem brilho nem glória, a dinastia arrastava os últimos anos da sua existência, não certamente por mérito pró-prio, mas sim graças à inabi-lidade até aí demonstrada pelas várias correntes da oposição. Fosse como fosse, a militância dos republicanos não esmore-cia, mostrava-se mais uma vez na afanosa organização de Hankow, onde a conjura alastrava pelas ruas tortuosas da cidade, fortalecia-se com a acumulação de armamento em paióis secretos, estra-tegicamente colocados para servir os revoltosos no dia fixado para a insurreição. Numerosas oficinas clandestinas instaladas em toda a sorte de locais, sem preocupações de segurança, mas tão só de se-gredo, manufacturavam grandes quantidades de engenhos explosivos que se acumulavam ali mesmo, onde eram feitos.

Tudo caminhava segundo o calendário previs-to pelos conjurados quando, no dia 9 de Outubro de 1911, uma daquelas oficinas a regorgitar de bombas explodiu fragorosamente. A explosão terá constituí-do talvez apenas o sinal esperado pela polícia de que era chegada a altura de cair sobre os conspiradores, cujas actividades não lhe eram de todo desconheci-das. As operações de repressão resultaram em pleno, fazendo cair nas mãos dos agentes imperiais valio-sos documentos contendo detalhes vitais dos planos e até listas completas de nomes dos principais impli-cados, quase todos militares da guarnição local. O fortuito incidente revelava-se a todos os títulos fatal para os rebeldes, tanto mais que apenas tinham sido dados alguns passos incipientes no sentido de coor-denar as ligações a outros centros revolucionários do país, com vista a um pronunciamento simultâneo que oferecesse verdadeiras garantias de sucesso. Aos conjurados civis, quase todos revolucionários profis-sionais, restava o caminho da fuga e a esperança de um futuro reagrupamento de forças para nova ofen-siva. Os militares, porém, ficavam subitamente isolados e expostos. Vender cara a derrota, ou acei-tar passivamente os bárbaros castigos que a justiça imperial fazia cair sobre os desobedientes em casos semelhantes, era o dilema crucial. Cientes de que não lhes restavam de facto alternativas convincentes, os oficiais rebeldes optaram então por levar até ao fim os seus planos, amotinando-se nos quartéis. Po-rém, e para seu próprio espanto, em vez da dura luta esperada, a guarnição da cidade aderiu ao golpe. Mas não só. Também com surpreendente celeridade outras unidades militares de Hubei secundaram o movimento que assim se assenhoreou de todas as cinco províncias. E não parou ali. Contra todas as previsões estendeu-se, num efeito de dominó, às províncias centrais da China de Hunan e Anhwei. A incredulidade dos rebeldes atingiu o clímax quando o marechal Yuan Shi-kai, enviado à frente de nume-rosas forças para esmagar a revolta, decidiu esquecer a missão que o imperador lhe tinha confia-do, abrindo negociações com os sublevados, apesar do jogo de forças lhe ser claramente favorável. Com a conquista do poderoso marechal para o campo dos revoltosos, concluía-se a história de uma intentona marcada por incidentes e acasos que transformaram uma completa improbabilidade histórica no epílogo de dois milénios de império. O pronunciamento de Hankow ocorreu no décimo dia do décimo mês (10 de Outubro), segundo o novo calendário gregoriano que os republicanos oficializaram banindo a milenar contagem do tempo lunar. "Duplo Dez" ficaria, por isso, a designar para sempre a revolta de Hankow.

Muito longe da província de Hubei e da sua capital revolucionária, um jovem de pequena estatu-ra, fino bigode e malares salientes, sentava-se imóvel, mergulhado na leitura de um jornal no compartimento de primeira classe de um comboio que percorria as planícies californianas. Envergava um fato de fazenda cinzenta, sobre o qual contrastava o brilho da prata de uma corrente de relógio que se perdia em arco no pequeno bolso do colete, salien-tando-lhe a figura de discreta distinção ocidental. Tendo em conta a sua origem, este oriental poderia ser tomado, quando muito, por um dos raros imi-grantes chineses que tivera a sorte de concretizar o sonho americano, sabia-se lá como! A maioria es-magadora dos seus compatriotas de compridas tranças e longas cabaias continuava penosamente a desbravar, a troco de magros dólares, os novos ru-mos do caminho de ferro norte-americano, em que aquele viajava em primeira classe.

Ninguém adivinharia que esse homem, absor-to na leitura do jornal, estava longe de ser um burguês americanizado, mas era antes um revolucio-nário profissional, que pouco antes de se inteirar das notícias sensacionais que vinham da China, contem-plava as paisagens de algodão do sul dos Estados Unidos, a dois passos de uma crise de desalento que poderia ser a última.

Havia mais de uma década que, incansavel-mente, percorria o mundo angariando junto das comunidades chinesas de emigrantes as simpatias e os fundos necessários para fazer a revolução na Chi-na. Ao longo desse período, os sonhos que prometera tinham-se esfumado um a um, em deze-nas de golpes fracassados. E com eles tinham-se esgotado também os argumentos convicentes que fa-ziam largar os cordões às bolsas dos que, no estrangeiro, sonhavam com a abertura ao mundo e a modernização do seu país. Agora, através dos títulos a negro do matutino comprado da janela do vagão em que seguia, punha termo ao desalento conhecen-do os pormenores do triunfante "Duplo Dez". Ironicamente tinha sido esta a única revolta que não registara o seu concurso directo...

Mas a revolução prestava-lhe justo reconheci-mento: "Sun Iat Sen vai ser o primeiro presidente da nova república chinesa", afirmava o jornal, in-digitando para o mais alto cargo da nova China o anónimo passageiro. A república reconhecia, assim, o seu mais estrénuo e dedicado campeão, optimista sem fronteiras e sonhador incorrigível. Haveria de despertar primeiro o Mundo para a angustiante reali- dade das misérias do seu país. Depois seria a vez da China despertar e a China despertou.

O pai de Sun Iat Sen (Sun Da Cheng) e a mãe (Sun Yang Shi). O pai de Sun Iat Sen trabalhou numa sapataria (pequena fábrica de sapatos) que existia aproximadamente em frente ao local onde hoje é a Livraria Portuguesa.

O velho Império exalava fumos fétidos de po-dridão milenar, que se acentuavam à medida que o Século XIX caminhava para o fim. O regime man-chu, moribundo, dava apenas sinais de vida quando se abatia cruel sobre o seu próprio povo, reagindo convulso a cada avanço do vírus revolucionário. Mas a infecção fatal alastrava.

Se é certo que os acasos garantiram em gran-de parte o triunfo de Hankow, não é menos certo que este apenas foi possível graças ao longo processo de agitação e amadurecimento da consciência política da China. Sun Iat Sen participou quase desde o iní-cio nesse processo agitando o país e amadurecen-do-se politicamente, ele próprio também. Desde os primeiros tempos de reformista hesitante até ao corte decidido com a tradição, abraçando a república como a única solução para os seculares males do velho "Império do Meio", mediou um longo perío-do.

O facto de ter sido surpreendido no estrangei-ro pelos acontecimentos está imbuído também de um inegável valor simbólico, mostrando até que ponto o processo revolucionário. de mudança na Chi-na foi, como em nenhum outro país, conduzido com êxito a partir de comunidades nacionais residentes no estrangeiro.

Pode dizer-se que, após a liquidação da revol-ta dos Taiping em 1862, nada restou na China de oposição à dinastia. Os principais líderes da grande revolução, ou foram mortos, ou refugiaram-se no es-trangeiro.

No interior do país a resistência tinha sido efi-caz e radicalmente decepada. Se algumas bolsas rebeldes haviam escapado, diluíam-se nas gigantes-cas dimensões do império. Mas essa liquidação sistemática não pôde abranger todo o continente chi-nês. De facto, os refugiados encontraram santuário no delta do Rio das Pérolas, em dois pequenos terri-tórios que fugiam à jurisdição da dinastia de Pequim: Macau e Hong Kong. Não admira, por isso, que fossem esses dois enclaves os terrenos em que germinou a revolução e onde se podem encontrar hoje algumas das raízes mais antigas do "Duplo Dez".

Se é verdade que tanto Hong Kong como Macau deram abrigo aos remanescentes dos Taiping, não deixava de ser o território português o que, pelas suas características específicas, melhores condições oferecia não só de abrigo, mas também de base onde com mais à vontade, os banidos do Império podiam tecer as malhas da resistência e fomentar a semente da revolta. Se isto foi certo para o processo revoluci-onário chinês, também o foi para o seu principal protagonista que, num discurso proferido em 1923, reconheceu terem as suas ideias revolucionárias nas-cido em Macau, e sido postas em prática em Hong Kong.

SUNIATSEN E MACAU

O Mundo conhece ainda hoje bem esta figura adaptada ao gosto do imaginário Ocidental espartilhado entre dois séculos e duas guerras - que forjaram do mesmo modo Khemal Ataturk, porque já não havia heróis na velha Europa. E foi por os não haver, que adoptou o mustafá turco e o republicano chinês, modelando-os ao gosto da decadência ro-mântica. Desde que o professor James Cantlie e o jornalista Sheridan Jones publicaram a célebre obra, "Sun Iat Sen and the Awakening of China", após a tentativa de rapto de que foi alvo em Londres pela polícia secreta chinesa, em 1896, que os seus passos foram seguidos exaustivamente por jornalistas, ensaístas e escritores de todo o mundo, dando lugar a uma verdadeira profusão bibliográfica sobre a sua personalidade, o seu pensamento e a sua acção. Noentanto um ponto obscuro permanece ainda na sua vida: Macau.

De facto, ao longo das infindáveis páginas que lhe são dedicadas, o local onde Sun Iat Sen afir-ma ter germinado a sua consciência política merece apenas vagas e diminutas referências. No entanto, Macau desempenhou na sua vida e obra um papel de relevo, tão importante como desconhecido, que é preciso revelar.

O pequeno território português do Sul da Chi-na não só constituiu o berço do pensamento revolucionário de Sun Iat Sen como foi também o centro conspirador, irradiador da propaganda e for-necedor de armas, dos recursos financeiros, dos militantes e soldados que tornaram possível o "Du-plo Dez".

Poderia dizer-se que tal lacuna bibliográfica seria o resultado de uma cabala universal contra Macau, se não se soubesse que nada existe escrito em português, quer sobre Sun Iat Sen, quer sobre Macau e o seu tempo, para além de apagados artigos de jornal ou referências avulsas inseridas em contex-tos diversos. Paradoxalmente, o herói republicano da Europa do princípio do Século nunca mereceu a atenção da inteligência portuguesa, nem mesmo da de Macau, que com ele tão de perto privou.

Seja como for, o certo é que para Sun Iat Sen tudo começou verdadeiramente quando pisou pela primeira vez Macau, em 1878. Todavia, nessa data a pequena colónia não era já para ele de todo em todo estranha. Bem pelo contrário. Desde sempre se habi-tuara a ouvir pronunciar à sua volta o nome da pequena península a que os "Diabos Ocidentais" (1)chamavam Macau, e os chineses Ou Mun. O espírito de precoce e insaciável curiosidade que o tornava diferente de todas as outras crianças da aldeia, cedo o levou também a descobrir que os ditos "Diabos Ocidentais", referidos com desprezo ou com temor pelo seu povo, eram gente portuguesa. Gente chega-da do outro lado do mar para abrir, a pouca distância da sua aldeia, uma porta que até poucas décadas antes, quando ainda não existiam nem Hong Kong nem as concessões estrangeiras de Xangai e Tsingtao, tinha sido a única do seu país para o Mun-do.

Apesar de não ser mais do que um pequenino ponto geográfico de menos de dezasseis quilómetros quadrados na imensidão da China, Macau era um cofre de mistérios encerrando tesouros fabulosos de esperança que atraíam pobres e exilados, marginais e desertores, negociantes empreendedores, campo-neses ou senhores feudais desapossados das terras das planícies e condenados à miséria pelas inunda-ções impiedosas do Grande Rio.

Bandos de piratas e bandoleiros, de mistura com sumptuosos séquitos dos mandarins, adormeci-dos nas suas cadeirinhas baloiçantes de sedas vermelhas, afluíam à miragem que os recebia sem inquirir quem eram, nem de onde vinham. Desde os idos de quinhentos, o correr dos anos criara um flu-xo contínuo de multidões que, reagindo às cala-midades cíclicas dos elementos ou ao ruir das dinas-tias, engrossava em torrentes ou corria gota a gota, como os ribeiros dos desertos.

Muita dessa gente tomava o caminho do vale de Cuiheng, onde Sun nascera, arrastando, num mo-vimento magnético, outros camponeses que tro-cavam a miséria cinzenta dos búfalos e da lama do arroz pelo arco-íris que os atraía. Neste movimento, terão certamente ido também, antes de Sun, alguns dos seus parentes e ancestrais mas, para a história, importa saber apenas que seu pai foi um deles. Fica assim explicada, não só através da proximidade geo-gráfica, mas também das ligações familiares, a presença mítica da cidade portuguesa na sua pré--consciência. Sun Dacheng e Sun Yang, os pais de Sun Iat Sen, deixaram a aldeia de Cuiheng, situada no distrito de Xiangsan na província de Guangdong, a cerca de 30 quilómetros de Macau, impelidos por algum dos tantos motivos que aos outros levavam também. Qual ao certo? Não se sabe. Todavia, a fixação do casal em Macau seria apenas temporária. Após uma curta permanência ambos regressariam a Cuiheng. Sun Dacheng preferira trocar a profissão de sapateiro na rua do Hospital (2), pela de guarda na sua aldeia. Na sequência deste regresso nasceu Sun Iat Sen no dia 12 de Novembro de 1866. Corria então o quinto ano do reinado do Imperador Tongzhi, da Dinastia Ching.

Dotado de um espírito irrequieto, mas essen-cialmente romântico, Sun parece ter sido pro-fundamente influenciado, ainda antes da adolescên-cia, por um dos seus tios, que participara na ci-clópica utopia dos Taiping, precisamente a meio do Século XIX. Esse exército de 20 milhões de ho-mens, desajustado no tempo, marchando contra Pequim para pulverizar o trono usurpador dos tárta-ros e fundar o reino da igualdade e da harmonia universal. Após 14 anos de épicas batalhas, os Taiping quase chegaram ao coração do império mas, a dois passos da Cidade Proibida, a roda do destino mudou de curso, esmagando os rebeldes no seu re-fluxo. No final da odisseia, Nanquim, a Capital Celestial Taiping, caía nas mãos dos manchus. O vi-sionário líder da revolta punha então termo à vida. Com o seu suicídio morria também a esperança da China que parecia irremediavelmente condenada à tragédia e ao fracasso. Toda esta aventura ouviu-a Sun de seu tio, nas noites quentes de Guangdong, muito antes de aprender história nos manuais clássi-cos que enalteciam o amor filial ao trono do Céu, mas não referiam os Taiping.

Sun Iat Sen deixaria os limites do seu vale, verde de arroz e emoldurado de pinheirais, com ape-nas doze anos de idade, empreendendo a jornada que o levaria a Macau. Num dia primaveril de Maio de 1878 cruzou pela primeira vez o arco em granito das Portas do Cerco sob o qual, antes dele, seus pais tinham ido e vindo várias vezes. Mas o seu destino final não era Macau, mas antes o longínquo Havai, onde seu irmão Sun Mei prosperava à frente de uma casa comercial.

Ao dar os primeiros passos no interior das ruelas de Macau, mergulhava também num emara-nhado de formas onde surpreendia e se surpreendia com desconhecidos arcos redondos, de templos de outro mundo, unidos aos austeros ângulos rectos dos pagodes. Mas, apesar dos seus doze anos, Sun Iat Sen preferia perscrutar as silhuetas moventes dos cules, encaixados nos varais das cadeirinhas. Estu-pefacto, observava os movimentos velozes daqueles homenzinhos pequeninos e escuros, semelhantes aos camponeses da sua terra, trotando em simbiose com as armações que arcavam aos ombros, através das multidões dos bazares que, instintivamente, se fur-tavam por milímetros às pontas dos varais. Esquálidos, reflectiam no suor dos dorsos nus o ful-gor das sedas e o brilho dos cetins dos passageiros. Por vezes divisava Sun as fardas amarelo-tórridas das patrulhas do exército colonial, constituídas por homens negros de hirsutas barbas, oriundos da Índia e que passeavam pachorrentamente ao Sol. De quan-do em quando, chapéus brancos de abas largas assomavam por sobre as cabaias cinzentas do formi- gueiro humano. Eram os burgueses ocidentais que caminhavam resolutos ou displicentes pelo Largo do Senado, ou pela Rua da Felicidade. Das igrejas saí-am em grupos mulheres de origem indistinta, envoltas em grandes xailes negros que lhes encobri-am os rostos, protegidas do sol escaldante por vastos guarda-sóis, empunhados por jovens criados chine-ses. Nos pisos térreos, abertos de par em par, concentravam-se pequenos magotes de pessoas que jogavam a sorte, debruçados sobre mesas de fan-tan. Originais croupiers seguravam numa das mãos ba-lanças artesanais onde pesavam o valor das sapecas dos apostadores. Dos tectos obscuros desciam e su-biam, movidos por mágicos cordéis, pequenos cestos de verga carregados de moedas, notas e taéis de prata. No Porto Interior, centenas de juncos acos-tados uns aos outros albergavam a cidade flutuante que alguns afirmavam ter cem mil habitantes, três ou quatro vezes mais do que a cidade em terra. Por entre as embarcações cruzavam as sampanas, trans-portando toda a sorte de cargas entre os juncos e o cais. Ao largo, lorchas e veleiros de grande porte dobravam o promontório da Barra, sob a mira dos canhões de bateria do fortim de S. Tiago.

Song-qing Ling, a terceira mulher de Sun Iat Sen.

"As intervenções cirúrgicas na China não são feitas no ambiente de privacidade que caracteriza es-sas delicadas funções entre nós (no Ocidente). Às efectuadas por Sun, compareciam não só a Comissão de Leigos do hospital - que se sentavam próximo da mesa de operações - como também os parentes e ami- gos do paciente que se mantinham de pé, seguindo atentamente todas as fases da intervenção. De parti- cular interesse para a assistência revestiam-se especialmente as operações destinadas a remover cál- culos, já que tal padecimento era frequente naquela região do país. A série de incisões que o cirurgião necessitava de fazer para atingir os ditos cálculos, suscitava uma ansiosa necessidade de renovação de ar por parte da assistência que, nessas ocasiões de clí-max, abanava vigorosamente os seus pequenos leques, assim produzindo a ventilação suficiente para evitar desmaios dos espectadores (note-se que, no Sul da China, todos os cavalheiros traziam consigo um pe- queno leque). Quando por fim, os cálculos eram removidos e mostrados à assistência, todos se sentiam amplamente recompensados do sofrimento e suores frios suscitados pelas sangrentas manipulações do operador, premiando a exibição dos ditos com exclamativos Hi-ays e outras expressões de aliviado fascínio".

À medida que as operações iam tendo êxito e que as drogas da medicina ocidental produziam efeito numa população chinesa endemicamente afectada pela tuberculose, pelo tifo e, muitas vezes, pela peste bubó-nica, Sun ia ampliando o seu prestígio. Para ele, aliás, o exercício da medicina era apenas um instrumento que utilizava como forma de propagandear as vanta-gens das técnicas e conhecimentos ocidentais, numa vertente marcadamente política. No entanto, provavel-mente para melhor poder garantir a sua subsistência, decidiu abrir um consultório de doenças pulmonares e, simultaneamente, uma farmácia, num pequeno edifício de dois pisos na estreita Rua das Estalagens. Mas, ao contrário do que seria de esperar, tanto o consultório como a farmácia, muito mais do que centros de atendi-mento de saúde, passaram de imediato a constituir locais de reunião de conjurados, e sede partidária dos reformistas, a quem Sun se encontrava então forte-mente ligado.

No campo da militância, Sun Iat Sen também não perdeu tempo. Ao chegar a Macau, lançou-se na fundação de um jornal que pudesse difundir as ideias da reforma constitucional da China e da necessidade de ocidentalização do país. Para isso, recorreu ao seu amigo Francisco Fernandes, com o qual pôs de pé, em pouco tempo, o projecto. Tendo o próprio Sun como redactor principal, as máquinas da Tipografia Mercantil passaram então a publicar o jornal reformista em chinês, sendo as matérias mais importantes traduzidas para português nas páginas do "Echo Macaense", am-pliando-lhes os efeitos. O jornal ganhou projecção, e em breve era vendido não só em Xangai, Cantão e noutros pontos da província de Guangdong, mas tam-bém no ultramar, nomeadamente nas colónias chinesas do Pacífico. O papel do "Echo Macaense" junto da comunidade portuguesa de Macau era acompanhado, em Hong Kong, pelos jornais ingleses "China Mail" e "Telegraph", que apoiavam a causa reformista e pro-moviam a figura de Sun Iat Sen.

Enquanto o periódico se encarregava de levar mais longe o pensamento de Sun e seu pequeno grupo de correligionários, (onde ainda não pontificava), o jo-vem médico desdobrava-se em actividades preparando activamente os espíritos para uma tentativa arrojada: derrubar o governo de Cantão.

Para que tal fosse possível, apesar do estado de exaustão de todo o império (incluindo Guangdong) e da completa indisciplina militar reinante, seria preciso muito mais que os poucos ideólogos do movimento reformista liderado por Kang Iu-vai e o seu reduzido grupo de activistas, entre os quais se contava Sun. Mas para este (a quem não faltava optimismo e entusiasmo) era quanto bastava para arregimentar as massas contra um regime que não cedia às correntes do progresso nem às lições da história. Fosse como fosse, no entan-to, Sun ainda acreditou por algum tempo que as advertências feitas às autoridades chinesas, designadamente através dos jornais, fossem capazes de abrir os seus espíritos ao mundo, não se coibindo, por isso, de escrever pessoalmente ao governador de Guangdong dando-lhe conselhos sobre administração pública no intuito de contribuir para que se pusesse termo à situação catastrófica que se vivia na agricultu-ra em Guangdong. Mas as suas esperanças em breve cairiam por terra.

Entretanto, em Macau, a notoriedade de Sun Iat Sen foi-se acentuando ao fim de poucos meses de acti-vidade, passando a ser visto com maus olhos pelos sectores tradicionais da comunidade portuguesa. Do seu lado apenas tinha Francisco Fernandes e o advoga-do Joaquim Basto, contando através destes, diga-se, com a simpatia do próprio governador Horta e Costa. No entanto, outros sectores - entre os quais a Igreja Católica - opunham-se não só às actividades do jovem médico chinês, como às suas ideias políticas que afec-tavam (ainda que indirectamente) o statu quo. À medida que os meses passavam e a fama de Sun au-mentava, crescia não só a polémica mas acentuava-se o confronto, o que levou, finalmente, a que fossem to-madas medidas contra ele. Assim, aproveitando o facto de Sun Iat Sen não possuir diploma de médico passa-do por qualquer universidade portuguesa, como exigia a lei, o caso foi levado formalmente às autoridades, que não tiveram outra alternativa senão proibir a Sun, ainda que a contragosto, o exercício da profissão em Macau. Confrontado com os factos, Sun foi obrigado a tomar a decisão que iria precipitar os acontecimentos da sua vida: mudou-se para Cantão. Desiludido pela ineficácia da oposição que se limitava à estéril exposi-ção de teorias políticas e nada mais, Sun Iat Sen decidiu por algum tempo abandonar a actividade mili-tante dedicando-se exclusivamente à medicina. Abriu então uma cadeia de farmácias em Cantão, ao mesmo tempo que escrevia as suas ideias políticas a fim de as levar ao Grande Secretário Imperial (primeiro-minis-tro) Hung Cheng, cuja chancelaria se encontrava na cidade de Tientsin. Escusado será dizer que a tentativa estava, à partida, condenada ao fracasso. Mas mesmo assim Sun não desistiu, conseguindo fazer chegar o seu trabalho a Tientsin, embora não ao Grande Secre-tário, que não parece ter tido nunca oportunidade de se debruçar sobre as ideias de Sun e muito menos ter considerado a hipótese de o receber pessoalmente. Sun ainda era uma figura demasiado anónima para fazer dispender um segundo que fosse da atenção do chefe do governo imperial. Cansado de esperar por uma res-posta que não vinha, Sun Iat Sen acabaria então por reformular os seus princípios e considerar seriamente a revolta como única forma de se fazer ouvir.

No entanto, as massas, na China, continuavam como sempre tinham estado: miseráveis e ignorantes, constituindo um campo onde a política não colhia. Mas, se estes eram os factos, nada impedia porém que o lançamento da revolta acordasse o povo amorfo, pensava Sun. Assim, decididamente, abandonou de novo a medicina para se lançar agora na preparação activa de um golpe que derrubasse o governo de Can-tão, peça chave para a transformação do Império. Para o efeito, contava com pouco mais de uma centena de conjurados distribuídos por Cantão, Macau, Hong Kong e Honolulu, que constituíam um grupo de fiéis arrebatados, dispostos como ele a derrubar a autocra-cia, ou morrer. O embrião da conjura nasceu na capital havaiana para onde Sun se deslocou, fundando ali em Novembro de 1894 uma associação secreta denomina-da "Sociedade para Restaurar a Prosperidade da China" (Hsing Chung-hui), com o propósito de derru-bar o regime Ching. Uma filial desta associação seria formada em Hong Kong em Fevereiro de 1895. E tudo indica que pela mesma altura (1895) a Hsing Chung--hui tenha sido estabelecida também em Macau. Ao que parece, a sede estaria situada no número 11 do Pátio da Gruta (edifício demolido em 1988), onde resi-dia o comerciante Ho Sui Thin, um dos que contribuiu financeiramente para os preparativos da revolta. Outra hipótese em aberto para a localização da sede é tam-bém a residência de Yang He-ling na Travessa dos Santos, antigo ponto de encontro do "Bando dos Qua-tro".

Os conjurados, incluindo Sun, eram todos jo-vens ocidentalizados formados em escolas protestantes de Hong Kong e do Havai. Nenhum deles pertencia à aristocracia reformista, que ostensivamente se divorci-ara progressivamente das suas actividades na sequência da guerra sino-japonesa (1894-1895). To-mando a seu cargo os planos concretos do assalto a Cantão, a Hsing Chung-hui iniciou a compra de armas e o recrutamento de homens entre os filiados nas di-versas associações secretas da "Tríade" (a que Sun também pertencia), os quais iam sendo incorporados com um salário mensal de 10 dólares de Hong Kong por cabeça. Apesar da exiguidade de forças e da duvi-dosa capacidade de combate dos mercenários da sociedade secreta, os planos prosseguiram até à marca-ção da data da insurreição, prevista para o dia 26 de Outubro de 1895. Coincidindo com o dia dos Fiéis Defuntos na China, os revoltosos contavam que os seus movimentos fossem menos notados, devido ao facto de se encontrarem então, tradicionalmente, nas ruas, grandes multidões que se dirigem aos cemitérios a fim de honrar os seus mortos. O ataque a Cantão partiria coordenadamente de várias direcções, tendo como alvo diversos departamentos do governo, consi-derados estratégicos, que deveriam ser ocupados.

No entanto, nos dias que antecederam o golpe, tudo começou a correr mal. Uma lista de conjurados bem assim como a Proclamação dos revoltosos, caiu nas mãos da polícia obrigando à tomada de medidas de segurança de emergência, o que dificultou o prosseguimento das operações, a menos de uma semana da data marcada. Finalmente, na véspera da insurreição, os líderes dos mercenários - que deveriam embarcar num ferry-boat em Hong Kong com destino a Cantão juntamente com os seus homens - envolveram-se numa disputa pela partilha das armas, deixan-do o navio partir sem eles. Este facto provocou a descoor-denação que viria a ser fatal aos planos. Em Cantão, Sun Iat Sen manda suspender as ope-rações depois de ter recebido um telegrama com as más no-tícias, enquanto em Hong Kong os chefes da "Tríade", re-solvida a disputa, embarcavam no navio do dia seguinte, tentando uma atabalhoada reactivação dos planos. O adiamento, no entanto, revelou-se irreparável para os insurrectos, já que, após algumas hesitações, a polícia britânica de Hong Kong (que se encontrava a par de todos estes movimentos) decidia informar o governo de Cantão sobre o que se passava. O massacre foi, por isso, inevitável. À chegada do navio ao porto de Cantão tropas chine-sas tomaram-no de assalto, apreendendo as armas que vinham dissimuladas nos porões, no interior de tambo-res ostentando a marca de cimentos "Portland". A maior parte dos mercenários foi detida embora alguns tivessem conseguido escapar na confusão do momento. No entanto, os membros da Hsing Chung-hui eram to-dos presos, ou mortos, pela polícia no navio e nos esconderijos onde se refugiavam, na cidade de Cantão. Todos seriam barbaramente executados, na sequência de processos sumaríssimos, com apenas uma ex-cepção: Sun Iat Sen, que conseguira escapar, es-condendo-se em casa de um missionário protestante americano, seu amigo.

Nos dias subsequentes à tentativa frustrada de golpe, Cantão viveu sob lei marcial, registando-se prisões em massa. Enquanto isso Sun aguardava oportunidade de poder fugir da cidade. Logo que ela surgiu, discretamente auxiliado por simpatizantes e amigos, Sun Iat Sen iniciou um percurso de fuga de mais de 200 quilómetros, utilizan-do as sampanas que cruzavam os canais dos arredores e escon-dendo-se por onde podia em abrigos provisórios até alcançar Macau - único ponto de refúgio possível.

Foto tirada no Japão, em 1914.

Depois de uma verda-deira odisseia rodeada de perigos e ciladas, Sun alcançou as Portas do Cerco entrando em Macau disfarçado de mulher, re-colhido no interior discreto de uma cadeirinha carregada aos ombros de três cules que o trans-portaram até casa do seu amigo Francisco Fernandes, na Rua da Casa Forte número 3.

Antes de fugir de Cantão, no entanto, Sun era já o mais procurado inimigo do império, e a polícia chinesa esquadrinhava os quatro cantos de Guangdong em sua perseguição. Macau não constituía excepção. Com efeito a polícia imperial percorria as ruas da colónia portuguesa alertando informadores, e distribuindo os cartazes anunciando a recompensa pela sua captura.

Sobre os acontecimentos que tinham tido lugar em Cantão, a população portuguesa em geral pouco ou nada sabia. A imprensa fizera-se eco apenas nas pági-nas interiores do "Echo Macaense" de 30 de Outubro de 1895 de que, no anterior dia 10, "embarcaram em Hong Kong grande número de chineses maltrapilhos que disseram à polícia de Hong Kong que se iam alis-tar em Cantão como soldados". O jornal informava também que os tais "maltrapilhos" pertenciam a várias sociedades secretas, e eram oriundos de Chiu Chao. E a concluir, a notícia avisava: "Convém que as nossas autoridades tomem as devidas precauções porque, se a notícia for verdadeira, podem contar como certo que esta cidade será velhacouto de refugiados e malan-dros. Depois já aqui estamos sofrendo as consequências de grande aumento da população chi-nesa e de casos de roubo".

O articulista, que contava apenas uma ínfima parcela do que na realidade se tinha passado em Can-tão, não se enganava porém, no aviso que fazia às autoridades de Macau, embora não incluísse no rol dos "refugiados e malandros" o chefe da revolta, cuja identidade afirmava ser desconhecida, mas que o di-rector do jornal conhecia bem.

Francisco Fernandes franqueou a porta a Sun Iat Sen, mantendo rigorosamente em segredo a sua presença, enquanto iniciava diligências a fim de lhe preparar a fuga para o Japão. As iniciativas que tomou não se conhecem, mas provavelmente terá utili-zado os bons serviços do advogado Joaquim Basto, e conseguido a garantia do Governador de que manda-ria a polícia fazer ouvidos moucos a quaisquer rumores sobre a presença do revolucionário chinês na cidade. Enquanto isso, dispunha igualmente a sua rede de influências no seio da comunidade portugue-sa de Hong Kong, a fim de garantir a passagem discreta de Sun Iat Sen pela colónia britânica o tempo estritamente necessário a fim de que pudesse embarcar rumo ao Japão. Até Hong Kong o seu per-curso estava já assegurado pelos serviços dos juncos piratas, cujos patrões pertenciam, como Sun, à "Tríade".

Não se sabe ao certo quanto tempo terá o re-volucionário permanecido escondido em Macau, mas é certo que os esforços de Francisco Fernandes e seus amigos foram coroados de êxito. Sun Iat Sen conseguiu embarcar discretamente até Hong Kong e dali para Kobe, no Japão, onde o governo do Sol Nascente lhe dispensaria toda a protecção.

O jornal Shing-hai Tsung Pao ("Echo Macaense"). À esquerda a primeira página do número inaugural. Jornal de que era proprietário Francisco Fernandes, cujo nome surge escrito em chinês no cabeçalho, e colaborado por Sun Iat Sen. O texto da página da direita faz a apreciação e o elogio da figura de Sun Iat Sen.

A LIGA UNIDA

Após a fuga de Cantão através deMacau, inicia-ria verdadeiramente Sun Iat Sen a sua peregrinação revolucionária pelo mundo, mobilizando simpatizantes e recolhendo fundos para as sucessivas insurreições que despoletaria nos anos seguintes na China. Logo após o rapto de que foi alvo em Londres pelos agentes secretos da embaixada da China, o professor James Cantlie, juntamente com o jornalista Sheridan Jones, publicam o livro "Sun Iat Sen and the Awakening of China", obra que internacionalizava o prestígio do jo-vem revolucionário e lhe ganharia as simpatias ocidentais. Sun manter-se-ia, assim, afastado de Ma-cau durante cerca de 17 anos mas, na colónia portuguesa, as sementes revolucionárias que plantara cresciam e davam frutos.

Na sequência da desastrosa tentativa de Cantão, o partido Reformista de Kang Iu-vai, defensor da ma-nutenção da monarquia, apenas queria tomá-la num sistema constitucional moderno excluindo o ideário re-publicano que começava a ganhar cada vez mais adeptos. Em Macau, eram os reformistas que domina-vam claramente a situação. Leong Kai-chiu, um dos lugares tenentes de Kang Iu-vai, encarregava-se de li-derar a actividade dos reformistas através de uma outra associação secreta, a Huang Ti Hui (Sociedade para a Protecção do Imperador), que tinha sido fundada em Vancouver no Canadá em 1899, por Kang. A associa-ção mantinha, pelo menos, duas escolas em funcionamento e intervinha a vários níveis no domínio da assistência social, nomeadamente através da pode-rosa Associação de Beneficência Tong Sin Tong. Além disso, criara um jornal, "O Reformador da Chi-na", que se distribuía profusamente em Hong Kong e Cantão e chegava também a várias cidades do norte e às colónias chinesas no estrangeiro. Publicado em Ma-cau, o "Reformador da China" era o órgão central do Partido, suportado financeiramente pelo magnate Ho Sui-tien, líder em Macau. O facto de a impressão do "Reformador da China" ser feita na colónia portuguesa permitiu que se continuasse a publicar e a chegar à China mesmo após o golpe de 1898 da imperatriz Tsü Hsi, enquanto outros jornais partidários, nomeadamen-te em Cantão, eram violentamente encerrados e os seus promotores presos.

Face às características menos radicais dos re-formistas, as suas actividades eram encaradas de outra maneira pelas autoridades portuguesas que não interfe-riam, protegendo mesmo quando era caso disso os que caíam na mira do governo de Cantão. Pertencendo na sua maioria aos sectores da burguesia comercial ou da aristocracia mandarínica, os reformistas ofereciam à partida garantias de menos embaraços aos sucessivos governadores da colónia portuguesa onde as activida-des dos simpatizantes do radical Sun Iat Sen eram vistas com desconfiança e susceptíveis de causar da-nos nas relações com o governo de Cantão, ou mesmo com o governo central, com quem havia que manter sempre pelo menos uma aparência de boa harmonia e cooperação. Embora os correligionários de Sun Iat Sen fossem na sua esmagadora maioria jovens ocidentalizados, e em grande parte cristãos, constituíam um perigo maior pois defendiam não só as ideias republicanas que o governo português também comba-tia, como se revelavam hostis à presença estrangeira na China, pelo menos sob a forma de colónias (como eram exemplos Macau e Hong Kong), apesar de se servirem destes dois territórios como importantes bastiões de apoio, locais de refúgio e centros de agita-ção. Por outro lado, a sua associação com os bandos de piratas e com a "Tríade" constituía outro motivo de preocupação. Esta política do governo português de Macau, não impedia no entanto que fosse prestada dis-creta protecção aos oposicionistas chineses que eventualmente aqui se refugiavam, ou se tomavam no-tados pelo governo da província de Guangdong que frequentemente pedia a extradição de inimigos políti-cos ao governador português, ao abrigo de acordos existentes.

Neste âmbito é exemplar o caso do mandarim Keng Ling-san que fugiu para Macau na sequência do golpe de estado da imperatriz Tsü Hsi e que o gover-nador Rodrigues Galhardo, foi obrigado a mandar prender face a um pedido formal de extradição do vice-rei T'an Chung-lin. Decidido a conceder-lhe pro-tecção e não a cumprir o pedido de Cantão, o governo português criou no entanto tantos embaraços jurídicos quantos pôde à formalização da extradição utilizando toda a sorte de manobras dilatórias até encontrar a melhor forma de resolver a situação. A táctica adopta-da resultou em pleno e, no final de dois anos de moratórias, o mandarim pôde ser libertado sem criar já tensões no relacionamento com o governo de Cantão que na prática perdeu a causa. Refira-se, no entanto, que o processo não decorreu inteiramente sem sobres-saltos e que a complacência do governo português esteve longe de ser espontânea. De facto o mandarim teria sido mesmo repatriado se a sua prisão não tivesse tido eco na imprensa de Hong Kong, que considerou o caso um escândalo e se, simultaneamente, os comerci-antes locais não tivessem ameaçado o governador com uma paralisação geral.

Apesar da política de tolerância do governo português para com os revolucionários chineses, a ad-ministração colonial permanecia tão atenta quanto podia aos seus movimentos e actuava mesmo quando as suas acções ultrapassavam os limites considerados aceitáveis de modo a não porem em risco as relações entre Portugal e a China. Encarregava-se da vigilância do mundo chinês a Repartição dos Assuntos Sínicos (RAS), um departamento administrativo do governo que podia considerar-se como uma espécie de serviços secretos de Macau. Dotada de um quadro de agentes chineses e de intérpretes tradutores, a RAS complementava os serviços de polícia, os quais man-tinham também uma secção de investigação, permanecendo, tanto quanto podia, atenta essencial-mente aos fenómenos políticos internos que iam desde a censura aos jornais, teatros e cinemas até ao controlo dos comícios e de figuras suspeitas de actividades subversivas. A RAS era directamente tutelada pelo próprio governador, que decidia sempre em última ins-tância, sobre os processos em curso. Na sua actividade de manutenção da estabilidade e dos instáveis equilí-brios que se verificavam no seio da comunidade chinesa, tendo sempre em atenção a vizinha e podero-sa China, a RAS confrontava-se com um volume demasiado grande de serviço burocrático acabando por dispender grande parte dos seus esforços no domínio da tradução de documentos, licenciamentos e fiscaliza-ções rotineiras. Restava-lhe, assim, pouco tempo para um efectivo controlo político da comunidade chinesa.

A situação manteve-se todavia sob relativo con-trolo até ao final do Século XIX, momento em que a agitação revolucionária se incrementou com a decidida ascensão dos republicanos de Sun Iat Sen no seio do movimento revolucionário chinês e o consequente iso-lamento dos reformistas, cujas teses perdiam terreno à medida que a irredutibilidade do governo central de Pequim se acentuava, rejeitando quaisquer veleidades constitucionais. O corte radical entre reformistas e republicanos seria selado em 1900, na sequência da se-gunda tentativa de Sun Iat Sen para derrubar o governo de Cantão e proclamar a independência das províncias gémeas de Guangdong e Guanxi.

ALARME NO EXPIRAR DO SÉCULO

A tentativa revolucionária de Sun Iat Sen, no Verão de 1900, mais uma vez contou com o apoio da "Tríade" que se dividia por quantos bandos de piratas cruzavam o rio das Pérolas, muitos dos quais manti-nham os seus quartéis generais em Macau. Através de Macau passavam também as espingardas e munições que armavam esses grupos, cujo número chegava a ser de 200 a 300 homens, em pequenas armadas que asso-lavam a província de Guangdong. A suspeita levantada já em Macau em Maio de 1896 de que tais "quadrilhas armadas se poderiam combinar sob um chefe forte para derrubar o governo", confirmava-se três anos de-pois, quando Sun decide reactivar a sua organização revolucionária em Hong Kong e Macau empenhando--a na arregimentação desses bandos para uma opera-ção semelhante à insurreição fracassada de 1895. Encarregou-se do recrutamento dos insurrectos Cheng Shi-liang, que estabeleceu quartel general em San Chou-t'ien, uma ilha conhecida por ser abrigo de pira-tas, situada no rio das Pérolas a cerca de dez quilómetros da costa chinesa e a menos de vinte da fronteira dos Novos Territórios de Hong Kong. A re-volta aproveitava o estado de confusão reinante no país pelo pronunciamento dos Boxers no norte, que tinha lançado a China no caos e servido os apetites colonialistas das potências ocidentais que ameaçavam dividir o velho continente em várias esferas de influên-cia desintegrando o trono. As hesitações de Sun Iat Sen, que chegou a considerar, juntamente com o go-vernador de Cantão, Li Hung-chang, a hipótese de proclamar a independência das províncias do sul, leva-ram a que as movimentações dos rebeldes em San Chou-t'ien chegassem ao conhecimento das autori-dades imperiais, o que fez com que o exército improvisado de Cheng Shi-liang fosse obrigado a pro-nunciar-se marchando sobre a capital distrital. Ali, num confronto com um destacamento imperial, obteve uma decisiva vitória que lhe permitiu ganhar aderentes e continuar em direcção a Cantão, objectivo designado pelo próprio Sun Iat Sen. Esse exército cresceu rapi- damente para cerca de dez mil homens, conquistando as vilas e aldeias que se interpunham no percurso em direcção à capital provincial. Quando se encontravam porém a pouca distância das muralhas de Cantão rece-beram ordens de Sun Iat Sen para alterarem os planos e marcharem para norte com o objectivo de capturar Amoy. A razão para tal alteração prendia-se com o facto de o Japão ter prometido assegurar apoio militar aos revoltosos se estes dirigissem os seus esforços contra a capital fuquinense, onde os japoneses se pre-tendiam instalar também a partir das suas bases em Taiwan. As forças revoltosas foram então reagrupadas marchando com destino ao novo objectivo a 17 de Outubro. Logo no dia 20, porém, confrontavam-se com um batalhão do exército imperial comandado pelo capitão Wu Hsiang-ta, que lhes infligia a primeira e fatal derrota. Três dias depois Sun Iat Sen, que se encontrava em Taiwan, informava Cheng Shi-liang de que afinal não poderia contar com qualquer auxílio japonês. Ciente então da inutilidade dos seus esforços, Cheng decidiu finalmente desmobilizar as tropas e pôr termo à insurreição, que durara duas semanas e meia.

Desta vez os acontecimentos de Guangdong re-flectiram-se no entanto com mais intensidade em Macau, onde chegavam várias famílias de refugiados. A população civil chegou mesmo a ser armada en-quanto a guarnição militar era reforçada por destacamentos vindos da Metrópole. A defesa maríti-ma intensificava-se também com a chegada do Cruzador Adamastor. O clima de tensão explodiu em Julho de 1900 com um incidente nas Portas do Cerco que provocou viva troca de tiros entre as guarnições portuguesa e chinesa através da fronteira durante dois dias consecutivos. Apesar dos confrontos não se regis-taram movimentações de tropas de qualquer dos lados e a vida continuou por isso a decorrer com alguma normalidade na cidade, que rapidamente voltaria ao sossego absoluto. O regresso da paz permitiu ao go-vernador Horta e Costa, que havia chegado no Cruzador da Armada Portuguesa, reassumir o posto que tinha ocupado já anteriormente (1894/1896) e de-dicar-se às tarefas administrativas internas mais urgentes: urbanização nova da cidade, saneamento bá-sico e erradicação das epidemias cíclicas que afectavam o pequeno território. A insurreição do Ve-rão de 1900 teve no entanto importantes repercussões. Nos anos seguintes, o governo de Guangdong enveredaria pelo caminho das reformas, seguindo as orienta-ções de Pequim, o que provocou uma cisão inelutável entre os reformistas de Kang Iu-vai, que se passaram declaradamente para o campo da dinastia Ching (a qual na prática abraçava as suas propostas reformistas) e as correntes antimanchu entre as quais se contavam os correligionários de Sun Iat Sen, então ainda um nacionalista indeciso, e os republicanos.

Sun lat Sen e a mulher, em Cantão, nos jardins do Palácio do Governador (1917).

Em Macau, os reformistas mantiveram ainda por algum tempo uma certa influência que, no entanto, se foi desvanecendo. O seu declínio final foi assina-lado com a publicação do último número do "Reformador da China" de Leong Kai Chiu, no Outo-no de 1901.

Apesar da perda de importância dos reformadores, inclusivamente em Macau, o panorama revolucionário na colónia portuguesa não esmoreceu. Bem pelo contrário, acentuou-se com a crescente in-fluência que as correntes radicais, ligadas cada vez mais ao sector do trabalho, manifestavam. Sun Iat Sen continuava longe de Macau, mas os seus homens orga-nizavam-se através das associações secretas que dominavam a cidade flutuante, das associações comer-ciais que ganhavam peso, dos grémios de trabalhadores e dos clubes que se registavam legalmente, cada vez em maior número.

A influência das novas correntes revolucionári-as da China foi particularmente sentida em finais de 1905, por ocasião do boicote dos portuários contra os Estados Unidos da América. À semelhança de Hong Kong, os comícios e manifestações de protesto anti--americanos foram proibidos em Macau. Em alternati-va, os grémios e associações locais levaram a efeito manifestações nas vilas de Wan Chai e Zhouhai, bem à vista do Território.

É nesta altura que Sun Iat Sen, reconhecendo a deserção dos reformistas, decide aliar-se aos estudan-tes radicais que pontificavam nas cidades do norte da China, nomeadamente em Xangai e funda a "Liga Unida" (Tongmenghui) que congregava as diversas correntes revolucionárias não reformistas. A Tongmenghui era um movimento genuinamente repu-blicano que teria a sua sede no número 41 da Avenida da Praia Grande, em Macau, na residência de Lao Si--fock, um conhecido revolucionário, que durante os anos seguintes encheria de dores de cabeça a Reparti- ção dos Assuntos Sínicos.

A "Liga Unida" de Macau, que se encontrava sob a direcção do Departamento do Sul da sua congénere de Hong Kong, era inicialmente chefiada por Xie Yingbo, possuindo uma filial activa no núme-ro 21 da rua do Volong que funcionava sob a capa de um Centro de Estudos oficialmente registado na Conservatória do governo.

OS NACIONALISTAS REIVINDICAM MACAU

O estabelecimento da Liga Unida na colónia portuguesa, promovido por Feng Zyiou, enviado especial de Sun Iat Sen a Macau e Hong Kong em Setem-bro de 1905, marca também a entrada em cena de uma nova figura no seio da comunidade chinesa, que have-ria de condicionar os seus destinos e determinar o relacionamento daquela com as autoridades coloniais ao longo das duas décadas seguintes: Lou Lim Iok.

Lou Lim Iok era o primogénito de uma família de artistas e letrados originária de Chiu Lin (uma loca-lidade do distrito de San Wui) que se fixara em Macau por volta de 1862. De abastados recursos, Lou Lim Iok mantinha interesses económicos não só em Macau, mas também em Hong Kong, Cantão e noutros locais da província de Guangdong e enfileirava com os refor-mistas. O seu espírito progressista revelava-se no apoio que fornecera ao governador Horta e Costa na expropriação dos pantanais da zona de Mong Há, os quais o chefe da administração de Macau pretendia transformar em terra firme e urbanizar em seguida. Tal veio a suceder com o precioso concurso de Lim Iok, construindo-se as infra-estruturas do que ainda hoje é considerado como a zona nova da cidade com rasga-das avenidas paralelas e pondo-se finalmente termo aos constantes focos de epidemias que afectavam a cidade.

Lou Lim Iok, que ficaria para a posteridade as-sinalado no jardim com o seu nome na Estrada Adolfo Loureiro, não era apenas um capitalista diletante como alguns o pretenderam descrever. Bem pelo contrário. Ao longo da sua existência consagrou-se não só a uma intervenção social na cidade onde nascera (nomeada-mente pelo apoio às associações de socorro mútuo), mas também ao desenvolvimento do seu país numa óptica política, apoiando os movimentos de reforma que se esboçavam. Naturalmente que, para preservar os seus interesses económicos, Lim Iok não deixava igualmente de ter um relacionamento privilegiado com as autoridades de Guangdong, particularmente com os seus governadores e vice-reis. Seja como for, o seu percurso político mostra ter sido inicialmente um apoiante dos reformistas, evoluindo mais tarde para o campo dos republicanos, quando estes começaram a ascender claramente no jogo de forças da China. Em sua casa, abrigavam-se, como diz Jaime do Inso, "imi-grados políticos, amigos de várias partes da China, etc." Um dos biógrafos de Lim Iok acrescenta ter sido no jardim da residência que se promoviam reuniões políticas e que ali sob a influência "dos seus argumen- tos persuasivos se compuseram rivalidades e se resol-veram questões entre pessoas que hoje não podem deixar de prestar homenagem à sua feliz interferên-cia."

Envelope (com endereço escrito em português) e respectiva carta, escrita pelo punho de Sun Iat Sen, no Japão (1914) para a sua primeira mulher Lu Hou Chan, Macau. Anuncia--lhe o envio de dinheiro, pensão de sustento com que nunca deixou de lhe assistir.

Carta de Sun Iat Sen para a mulher, Lu (Macau), escrita no Japão em 1915. Pede à mulher para ficar em Macau e enviar um tio a Cuiheng, para as obras de restauro de sua casa.

Embora não pareçam existir documentos que o possam provar com evidência, essa "interferência" terá sido tida em conta nos quatro anos anteriores à procla-mação da república, que se caracterizaram pela forte pressão desenvolvida sobre Macau pelas correntes na-cionalistas chinesas, as quais levantavam bandeiras contra a presença ocidental na China. A inexistência de acordo sobre limitação de fronteiras em Macau constituiu o pretexto para que, a partir de 1907, se começassem a levantar dúvidas acerca dos direitos de soberania nas ilhas da Taipa e de Coloane, multipli-cando-se as exigências de que o Território regressasse aos limites originais, ou seja, à área ocupada pela cida- de na pequena península de Macau, no Século XVII.

À medida que os republicanos cresciam em for-ça e o ideário nacionalista ganhava terreno na China (particularmente em Guangdong, correspondendo aos esforços doutrinários e propagandísticos dos correligi-onários de Sun Iat Sen), a contestação da presença portuguesa crescia também, levando mesmo a que os governos de Portugal e da China (1908) encetassem negociações a fim de, uma vez por todas, serem defini-dos os limites de Macau, que o tratado de 1887 tinha deixado em aberto. Ao mesmo tempo que uma comis-são era oficialmente nomeada para o efeito por Pequim, a opinião pública de Guangdong agitava-se, formando-se espontaneamente uma autodenominada Comissão Auxiliar para a Delimitação de Fronteiras no distrito vizinho de Zhong San. Três semanas mais tarde uma comissão semelhante formava-se em Can-tão, integrando figuras dirigentes da burguesia comercial, intelectuais e jornalistas. O apresamento do navio japonês Tatsu Maru, que se encontrava fundea-do no Porto Interior, pelas autoridades chinesas, e a humilhação sofrida pelo governo de Cantão ao ter não só que o devolver como ainda pedir desculpas públicas pela ofensa feita a um navio da armada imperial do Sol Nascente, contribuiu para fazer crescer a indigna-ção popular e aumentar o peso da opinião das comissões espontâneas para a delimitação das frontei-ras de Macau.

Desde logo as conversações, que se realizaram em Hong Kong, entraram num beco sem saída, com a China a pôr em dúvida a soberania portuguesa sobre as duas ilhas de Macau e o governo português a rejeitar liminarmente as alegações de Pequim contrapondo que a soberania portuguesa se estendia não só à Taipa e Coloane, mas também às ilhas da Montanha e da Lapa, fronteiras, respectivamente, a Coloane e a Ma-cau. O grupo chinês às conversações, que parecia à partida decidido a resolver a questão pelo diálogo, en-durecia a sua posição cedendo à pressão das comissões que exigiam o uso da força contra Macau e propondo nomeadamente o boicote contra Portugal. A titubeante posição oficial da China começou a ser também vee-mentemente atacada, havendo acusações de capi-tulacionismo contra o chefe da delegação Kao Erch--ch'ien que chegou a sugerir a Pequim a mudança do local de reuniões para qualquer cidade do norte da China a fim de se libertar das pressões a que estava a ser submetido. Felizmente as negociações terminaram a pedido de Portugal a 13 de Novembro sem que tives-se sido resolvida coisa alguma. Ao resultado das discussões não terá sido alheia mais uma vez a inter-venção de Lou Lim Iok, pouco interessado em que a posição das comissões extra-oficiais de delimitação de fronteiras vingasse, criando situações de facto. Mas a contestação organizada à presença portuguesa não ter-minou ali.

Um dos constantes motivos de conflito era a acção fiscalizadora da marinha portuguesa sobre a na-vegação nas áreas do porto Interior e Exterior e em tomo das ilhas da Taipa e de Coloane.

PIRATAS OU REPUBLICANOS?

Portugal tolerava a existência de piratas que, nas primeiras décadas do Século XX, infestavam o rio das Pérolas e embora essa tolerãncia fosse notória eram tomadas medidas destinadas a manter pelo me-nos as aparências, a fim de satisfazer principalmente as autoridades britânicas de Hong Kong que levavam a cabo uma difícil luta contra o banditismo chinês no Delta. Muitas vezes embarcações suspeitas eram abor-dadas pelas autoridades portuguesas e as suas tripulações detidas, o que invariavelmente provocava os protestos formais de Cantão e dava azo a novas campanhas na imprensa nacionalista, que considerava tais actos violadores da soberania chinesa, tendo em conta a inexistência de águas territoriais em Macau. No Território os bandos de piratas, divididos em várias associações secretas, tinham as suas sedes em clubes espalhados pela cidade de Macau, devidamente legali-zados, onde indiscriminadamente se discutiam planos de rapina e movimentos subversivos contra a monar-quia chinesa. O tráfico de armas para os movimentos revoltosos em Guangdong e noutros locais da China, bem como o abastecimento dos exércitos dos vários senhores da guerra emergentes pelo país, era feito tam-bém em grande parte através desses clubes, cujas actividades as autoridades portuguesas fingiam igno-rar. Também em todos eles era notória a influência das correntes ligadas a Sun Iat Sen que, embora reconhe-cendo a importância dos países ocidentais como aliados na sua luta pelo derrube do regime (não esque-çamos a importância vital de Macau e Hong Kong no despoletar das várias insurreições), não podia deixar de ceder à força da opinião do seu próprio movimento cuja componente anti-estrangeira era significativa.

Apesar do constante perigo que representava a presença dos piratas em Macau, as autoridades portu-guesas não pareciam capazes de levar a cabo aquilo que o governo britânico pretendia: a erradicação pura e simples dos marginais. Uma complicada teia de inte-resses que passavam pelo jogo e pelo contrabando (nomeadamente de ópio), fazia com que se tornasse praticamente impossível exercer uma acção eficaz de policiamento sobre a cidade, sem pôr em perigo os fundamentos da sua pequena e frágil economia. Além disso, estabelecer as diferenças entre motivações polí-ticas e acções de banditismo desses homens revelava-se uma tarefa impossível, mesmo para os agentes da RAS, excelentes conhecedores do meio. Por outro lado, a experiência mostrava que a coexis-tência entre autoridades e os piratas acabava por manter na generalidade a cidade em paz. Daí não se estranhar, por exemplo, que uma das mais notórias chefes de piratas do Rio das Pérolas (3) auxiliasse a guarda costeira na fiscalização e protecção da frota de pesca de Macau, com o título oficioso de "Inspectora", mesmo que essa protecção fosse concedida a troco de elevadas taxas, como as autoridades bem sabiam.

À medida porém que a primeira década do nos-so século se esgotava, a situação tornava-se cada vez mais insustentável, impondo-se ao governo a tomada de medidas que fizessem ver à Grã-Bretanha que nem tudo era complacência em Macau. O pretexto surgiu em 1910, com o rapto de várias crianças de uma escola de um distrito vizinho de Macau por piratas cujas ba-ses se sabia serem em Coloane, onde a soberania portuguesa, como se disse, era abertamente contestada pela China. Actuar decisivamente contra os bandidos permitiria ao governo português satisfazer por um lado os protestos britânicos e por outro afirmar claramente a soberania nacional sobre Coloane.

Embora o rapto das crianças não fosse mais de que um dos muitos episódios semelhantes, frequentes na região, a sua importância foi amplificada através do eco concedido ao caso pela imprensa, nomeadamente através do jornal "A Verdade" do advogado Constâncio José da Silva. Este tinha sido também soli-citado a dispensar os seus serviços jurídicos em defesa das crianças raptadas. Por outro lado, a China mostra-va-se disposta a intervir militarmente na ilha a fim de dar caça aos piratas, o que representava para o governo português a perigosa possibilidade de poder ser defini-tivamente posta em causa a sua soberania sobre aquele território. Estes dois factores combinados levaram à mobilização de forças da marinha e do exército, prepa-radas para pôr fim ao reino dos piratas em Coloane através do lançamento de operações militares de gran-de envergadura. O assalto definitivo começou em Julho de 1910 com o bombardeamento da vila margi-nal de Coloane por canhoneiras da marinha, como protecção ao desembarque das forças de infantaria e artilharia de montanha. As manobras demoraram al-guns dias, saldando-se no final pela recuperação de algumas das crianças raptadas (outras tinham sido mortas nas escaramuças) e na detenção de vários sus-peitos de pertencerem aos grupos de piratas. O principal dos seus chefes, Leong Ngi Va, conseguiu no entanto escapar.

Leong Ngi Va, figura lendária em Macau, que ainda hoje é recordada em Coloane, onde a sua casa que sobreviveu aos bombardeamentos se ergue, embo-ra em ruínas, é uma das figuras que tipifica a dificuldade em distinguir entre um revolucionário pro-fissional e um bandido. De facto, Leong Ngi Va poderia comparar-se aos guerrilheiros liberais e miguelistas do Século XIX português como João Brandão, Cavalaria, ou "Remexido", através de cujas vidas o crime e a política andavam muito a par. Prova-velmente pertencente a um dos grupos da "Tríade", Leong Ngi Va era também um militante republicano pertencente à "Liga Unida" de Sun Iat Sen, que cola-borava nas actividades subversivas contra a monarquia. Na sequência da revolução republicana de 1911, parte com os seus homens de Macau, onde con-tinuava a viver despreocupadamente (apesar de ter contra ele pendentes mandatos de captura), a fim de ocupar a cidade de Seak-key, capital do distrito de Hsiang-shan. Por ocasião do ataque dos voluntários de Macau a Seak-key, o governador de Cantão ainda se encontrava indeciso quanto à posição a tomar e apenas alguns regimentos imperiais se tinham alinhado for-malmente com os republicanos. Leong Ngi Va é por isso um dos primeiros a tomar frontalmente a bandeira da república em toda a província, conseguindo em se-guida aliciar a guarnição de Zong San, a cidade fortificada adjacente a Macau que desertou em massa.

Na sequência da conquista da capital regional Leong Ngi Va foi integrado no novo exército republi-cano sendo-lhe posteriormente oferecido o comando de uma força da cidade de Seak Key. Seria já na sua qualidade de oficial do exército nacional que, numa lancha da marinha de Cantão, visitaria Coloane, sen-do recebido com as honras devidas a qualquer oficial estrangeiro pelo comandante militar portu-guês da ilha. O ex-pirata depois de rever a família, que continuava a viver na pequena vila mal refeita ainda dos bombardeamentos, regressou ao seu posto em Seak Key sem ser incomodado.

O percurso político-militar de Leong Ngi Va em Guangdong não é conhecido. Provavelmente, no entanto, terá passado à disponibilidade juntamente com milhares de outros oficiais sargentos e solda-dos, na sequência da dissolução do exército popular republicano da província, em 1912. Ao certo sabe-se que pouco tempo depois passaria a viver de novo em Macau onde continuaria as suas actividades políticas através do Clube Chôk Chu, com sede na Rua do Gamboa, número 20, de que era, juntamente com Leong Tai Chau (outro ex-pirata de Coloane), um dos fundadores. O clube era na realidade um centro conspirativo que beneficiava do apoio que lhe era dado por Lao Hong Siu, um dos chefes da Polícia Secreta macaense, juntamente com três ou quatro outros funcionários públicos portugueses bem colo-cados na Administração. O clube seria finalmente ilegalizado pelo governo de Macau em Setembro de 1913, através de um despacho que chamava a aten-ção para o facto de Leong Ngi Va continuar a viver impunemente no Território, apesar dos tribunais exi-girem desde 1910 a sua prisão. O despacho concluía ordenando a abertura de inquéritos disciplinares aos funcionários públicos frequentadores da agremiação. Não consta, no entanto, que Leon Ngi Va tenha tam-bém por esse facto sido preso, mas consta sim o arquivamento por falta de provas do processo disci-plinar instaurado aos funcionários públicos envolvidos, bem como ao chefe da Polícia Secreta.

Embora o êxito das operações militares contra os piratas de Coloane continue hoje ainda a ser duvi-doso, o certo é que a ilha passou pelo menos a ter uma efectiva ocupação militar estendendo-se ali também a partir de então os serviços de polícia de Macau. Lentamente a vila de Coloane voltou a ser reocupada pelos seus habitantes e provavelmente pe-los piratas, que continuaram a utilizá-la como base nas suas andanças pelo rio das Pérolas.

Actualmente um edifício relativamente moderno, esta casa albergou o chamado "Bando dos Quatro" e, mais tarde, serviu de centro de recrutamento militar da Segunda Revolução da China.

A acção militar portuguesa de 1910 voltou a provocar de novo inflamados protestos por parte da imprensa nacionalista de Cantão, mas o assunto fica-ria por ali: a China estava a dois passos da revolução relegando para segundo lugar reivindicações de ou-tra natureza. A questão da delimitação de fronteiras de Macau parece ter sido a última das grandes con-trovérsias antes da revolução do "Duplo Dez". Embora não se tenha verificado qualquer diminuição no grau de consciência nacional, a população de Guangdong virava, a partir de então, todas as suas atenções para os graves problemas internos que se avizinhavam.

Foto do "Bando dos Quatro", no interior da casa da Travessa dos Santos, onde se reuniam. O primeiro da esquerda é o anfitrião Yan He-ling.

O CASO DAS CANHONEIRAS DO SAL

No Verão de 1911 a situação em Guangdong era de total caos político-social. Segundo o governador de Cantão, Chang Ming-chi, apenas duas prefeituras se encontravam em relativa tranquilidade. No resto da província não havia lugarejo que não fosse reino de bandidos e piratas. A situação fazia com que um gran-de número de refugiados se deslocasse em massa para Hong Kong e Macau, fugindo das terras devastadas pela insurreição. A 2 de Agosto (data em que os boa-tos davam como certo o estalar da revolta republicana) cerca de dez mil pessoas afluíram à colónia portuguesa com os seus haveres, tentando escapar ao que adivinhavam ser um banho de sangue. Oito dias depois do pronunciamento de Wuhan, na cidade de Macau os desfiles tradicionais do aniversário de Confúcio (no dia 18 de Outubro) revelavam a ausência dos pendões amarelos com o dragão, símbolo imperial da dinastia Ching, que chegava ao fim. Em Hong Kong a sede do jornal "Commercial News" do reformista Kang Iu-vai, o único órgão de imprensa afecto à monarquia na coló-nia britânica, era destruída por uma multidão em fúria. Entretanto, no número 41 da Avenida da Praia Grande, a "Liga Unida" coordenava esforços a fim de apoiar o assalto final dos republicanos aos pontos estratégicos vitais da região, enviando destacamentos de voluntári-os que desalojaram as forças fiéis ao trono das principais cidades do distrito.

Os republicanos de Macau actuavam no entanto agora numa outra conjuntura política prevalecente na Colónia, que desde o ano anterior tinha deixado de ser monárquica, facilitando um pouco as suas actividades. O governador Eduardo Augusto Marques, monárquico convicto, tinha sido afastado da chefia da Administra-ção na sequência de um pronunciamento militar, sendo substituído pelo republicano Álvaro de Melo Macha-do. Oficial de Marinha que cumpria serviço militar em Macau, sendo ao mesmo tempo membro do Conselho Consultivo da Colónia, Álvaro de Melo Machado sim-patizava com a causa dos seus correligionários chineses.

Loja de tecidos Kam Seng, na Rua das Estalagens. Foi aqui, ao que se pensa, que Sun Iat Sen montou consultório (no primeiro piso) e uma farmácia (no rés-do-chão).

Apesar de tudo, porém, impunha-se a necessi-dade de continuar a agir com cuidado face à volátil situação na China. O caos do outro lado das Portas do Cerco era demasiado para permitir ao governo de Macau uma informação correcta sobre a situação. Da-qui a tendência para a tomada de atitudes legalistas que nem sempre se revelavam produtoras dos melho-res resultados. O governo de Macau confrontava-se com situações delicadas sobre as quais tinha de decidir sem pôr em causa o relacionamento institucional com a China, totalmente dividida num conjunto confuso de forças que tomavam indistinto qualquer vislumbre da existência de um poder central com o qual lidar.

Como tratar por exemplo o comandante dos serviços administrativos da guarnição de Seak Key, Vong Kai Meng, que na sequência da revolução se aboletara com os fundos militares do distrito fugindo para Macau? Prendê-lo e repatriá-lo poderia tomar-se num embaraço político, tanto mais que de um momen-to para o outro a facção a que pertencia poderia emergir no contexto do poder regional, transformando um crime de peculato em acto patriótico. Face à sensi-bilidade do caso, a decisão tomada foi ignorar o assunto, permitindo que Vong Kai Meng fixasse resi-dência em Macau e deixando-o ficar sem mais perguntas.

Registar os acontecimentos e evitar tomar medi-das parece ter sido aliás uma constante durante os primeiros tempos subsequentes ao "Duplo Dez", mas não só. Esta política manter-se-ia ainda pelos anos se-guintes, como o prova o caso ocorrido em Abril de 1916, quando o governo de Cantão pediu a inter- cepção de duas canhoneiras da Marinha que tinham fugido para Macau depois de as suas tripulações se terem apoderado de cinquenta mil dólares pertencentes ao tesouro de Cantão. Aproveitando a demora regista-da no pedido de intercepção, as autoridades de Macau limitaram-se a informar que de facto as canhoneiras tinham pernoitado no Porto Interior, tendo no entanto zarpado com destino desconhecido pelas dez horas da manhã do dia seguinte, pouco antes da chegada do pedido de apreensão chinês.

No entanto, nem sempre a situação se prestava a subterfúgios e o caso das lanchas fiscalizadoras do monopólio do sal veio a provocar graves dissabores ao governo de Macau, contribuindo para cimentar a hosti-lidade das novas autoridades republicanas da China que continuavam a ver com maus olhos a presença portuguesa.

O comércio do sal na província de Guangdong constituía um verdadeiro império que se estendia por várias regiões. A sua extracção estava concessionada pelo governo provincial a um monopólio que se encar-regava de todos os aspectos de comercialização do produto, desde a sua extracção até à entrega ao comér-cio a retalho em toda a China. A companhia ma-nipulava os preços e dava naturalmente por isso tam-bém origem ao contrabando que atingia grandes dimensões. Este contrabando era activado principal-mente pelos bandos de piratas que operavam no Rio das Pérolas. Para combater o fenómeno, o monopólio do sal, a quem o governo de Cantão concedia latos poderes, organizou a sua própria polícia que não só se encarregava da vigilância das salinas, mas também de reprimir o contrabando no Delta do Rio das Pérolas. Para isso possuía uma moderna frota de canhoneiras a vapor aptas a dar combate aos piratas bem armados que assolavam a região.

Na sequência do "Duplo Dez", o monopolista do sal, receando pela segurança dos quatro navios que faziam a fiscalização na área de Macau, decidiu orde-nar aos respectivos capitães que rumassem à colónia portuguesa entregando-os à guarda das autoridades marítimas locais. Pouco tempo depois, tendo em conta o futuro incerto da empresa, o monopolista preferiu assegurar o seu próprio futuro vendendo as canhoneiras em Hong Kong onde o esperava um bom negócio, pelo que pediu à Capitania a devolução das embarcações. Foi nesse momento que o governo de Cantão tomou conhecimento do paradeiro das canhoneiras que considerava pertencerem por direito à Marinha Chinesa. Através do Comissário dos Negóci-os Estrangeiros Ho Pun Wai, o governo provincial fez chegar uma nota ao embaixador António Patrício exi-gindo a devolução dos navios, invocando a conti-nuação da amizade luso-chinesa.

Em resposta à solicitação de Cantão, o Governo de Macau informa então o embaixador António Patrício de que as lanchas não se encontravam apresa-das mas somente entregues à guarda da Capitania dos Portos, como tinha sido "solicitado pelo representante da arrematação do sal de Cantão que se apresentara como proprietário das referidas canhoneiras a fim de as colocar ao abrigo de qualquer tentativa de ataque por parte de malfeitores". O governo de Macau acres-centava que uma das lanchas já tinha aliás sido retirada da doca pelo proprietário, o qual a enviara para Hong Kong a fim de a alugar a um particular.

Tendo em conta a contestação apresentada pelo governo de Cantão, a Capitania dos Portos de Macau decidiu entretanto agir de outra maneira relativamente às restantes três canhoneiras ainda ancoradas na Doca da Barra, exigindo ao representante do monopolista do sal a entrega de documentos comprovativos de que pertenciam à companhia a fim de poder satisfazer o pedido de devolução. A decisão constituía na verdade um movimento dilatório, destinado a permitir que o governo de Cantão apresentasse documentos convin-centes de que as embarcações lhe pertenciam de facto. Entretanto os representantes do ex-monopólio do sal apresentavam-se perante a Capitania portuguesa a 2 de Maio de 1912, apresentando por seu turno documentos de propriedade de oito embarcações entre as quais se incluíam as três lanchas fundeadas em Macau. Perante os factos, o Governador decidiu fazer esperar os reivindicantes informando de novo António Patrício de que o caso requeria urgência e formulando um pra-zo de quinze dias para o governo de Cantão apresentar a sua contestação. Recebida esta nova informação do governo de Macau, o Comissário dos Negócios Es-trangeiros, Franck Li, prometeu dar celeridade ao caso enviando um representante oficial a Macau no prazo de três dias a fim de resolver de uma vez a questão. No entanto, alguns dias depois, quem se apresentaria pe-rante a Capitania dos Portos afirmando-se mandatado por Cantão seria um súbdito britânico de Hong Kong (Vaham Cureen) o qual não convenceu as autoridades portuguesas que mais uma vez adiaram qualquer deci-são, embora aquele tivesse apresentado documentos comprovativos da compra dos navios ao monopólio do sal. Todavia, por precaução contra os tufões e tam-bém para evitar qualquer tentativa de as arrebatar pela força, o capitão dos portos decidiu remover as canhoneiras para a Doca do Patane e retirar-lhes algu-mas peças essenciais de modo a impedir que navegassem. Face à complicação da questão e à en-trada em cena do advogado Nolasco da Silva, que representava o monopolista do sal Vong Kio, o Go-vernador de Macau decidiu então entregar o caso aos tribunais que acabaram por dar razão a este. Mesmo assim, após decisão judicial, o governador ainda embargou por mais alguns dias a entrega das canhoneiras a pedido do consulado português em Cantão. Finalmente, a devolução, ao representante do monopolista do sal Vong Kio, efectuar-se-ia a 2 de Outubro de 1912. Desafiando explicitamente o governo republicano de Cantão, que para além do mais tinha verdadeira necessidade de reaver as mo-dernas canhoneiras a fim de reequipar a sua débil marinha, incorporando-as na campanha de pacifica-ção do Delta, conduzida pelo general Cheng Chiu-ming, Macau tomava uma atitude hostil relati-vamente a Sun Iat Sen, de quem Cheng Chiu-ming era aliado. Ainda que a coberto de uma decisão do poder judicial independente, Macau cometia um erro grave que os republicanos chineses registavam so- mando-o a outros anteriores.

Segundo alguns, teria sido o caso das canhoneiras do monopólio do sal que teria estado na base da hostilidade política que Sun Iat Sen revela-ria a partir de então relativamente à colónia portuguesa. No entanto, embora a gravidade da situ-ação e o erro de cálculo das autoridades portuguesas tenha sido evidente, não parece ter sido essa a razão fundamental da contínua hostilidade dos republica-nos que se acentuaria desde então, até explodir com violência nos distúrbios de 1922, que puseram a ci-dade a ferro e fogo. Por detrás de quaisquer problemas de percurso estava de facto subjacente a força das correntes nacionalistas que combatiam a presença portuguesa em Macau, primeiro surdamente e desde 1907 abertamente. Essas corren-tes evidenciavam-se em força no partido de Sun Iat Sen, que não só naturalmente as perfilhava como não possuía outra alternativa, independentemente dos seus sentimentos pessoais relativamente a Ma-cau.

De facto, o reconhecimento de Sun Iat Sen relativamente à pequena colónia portuguesa mani-festava-se exactamente no momento em que o caso das canhoneiras do sal estalava.

O REGRESSO ÀS ORIGENS

Na sequência do triunfo dos republicanos na China, Sun Iat Sen assumiu em 1 de Janeiro de 1912 a presidência da república estabelecida em Nanking, que ocuparia todavia por um curtíssimo período. De facto o poderoso general Yuan Shi-k'ai continuava a domi-nar Pequim, entrando em negociações com Sun Iat Sen sobre a questão da abdicação do imperador P'u-i, então com apenas seis anos de idade. As conversações chegaram a bom termo a 14 de Fevereiro de 1912, terminando não só com a retirada do imperador mas também com a resignação de Sun Iat Sen em favor de Yuan Shi-k'ai, que transferiu a Presidência da repúbli-ca de Nanking para Pequim. A difícil decisão de Sun Iat Sen pode ser entendida em diversas vertentes sali-entando-se a necessidade que o primeiro presidente da república sentia em preservar a unidade nacional en-tregando a chefia do estado à figura mais poderosa da China de então, já que o seu próprio poder se encon-trava minado pela falta de unidade do partido, no seio do qual se confrontavam as mais diversas sensibilida-des políticas e ainda os senhores da guerra individualistas e carentes de ideologia. Este gesto de inegável generosidade política, que só um romântico como Sun Iat Sen poderia ter, não significava porém uma retirada política. Bem pelo contrário. O ex-presi-dente da república preparava-se, sim, para uma retirada estratégica com destino a Cantão onde espera-va reorganizar as suas forças e preparar o regresso a Pequim. É que Yuan Shi-k'ai estava longe de ser um republicano e as suas ambições de vir a ocupar o trono imperial vago eram evidentes confirmando-se, em 1915, quando se auto-proclamou imperador. Somente a morte, ocorrida pouco tempo depois, lhe pôs fim às ambições e evitou a restauração da monarquia na Chi-na. Entretanto, na Primavera de 1912, Sun Iat Sen decidiu tomar fôlego para a segunda fase da sua luta, encetando uma romagem à sua terra de origem que otrouxe também a Macau onde foi recebido em Maio. No Território, Sun Iat Sen instalou-se no palacete deLou Lim Iok, cumprindo um programa oficial em suahonra que incluiu um arraial no Bairro de S. Lázaro euma recepção no Clube Militar. Doze anos depois, Sun Iat Sen tinha assim oportunidade de rever os ami-gos e correligionários de Macau que tanto apoiotinham prestado à sua causa, nomeadamente FranciscoHermenegildo Fernandes, a quem devia a vida e ao qual num gesto de generosidade tinha oferecido o car-go honorífico de ministro da república chinesa comoprova de reconhecimento, mas que o editor macaensediscretamente recusou. Enquanto parte de Macau pres-tava homenagem ao fundador da República da Chinaoutra parte criticava surdamente o revolucionário cujapresença em Macau, nomeadamente para os sectorestradicionalistas e monárquicos chineses e portugueses, não era grata. As mais francas manifestações de ami-zade foram-lhe dispensadas pela comunidadeportuguesa através do governador interino, Álvaro deMelo Machado, e dos republicanos macaenses entre osquais se distinguia o poeta Camilo Pessanha.

O ex-presidente da república pouco tempo sedemorou em Macau, deixando o território quatro diasdepois com destino a Xangai. No entanto voltaria ain-da a Macau em 20 de Junho do ano seguinte (1913), oficialmente para visitar a irmã mais velha que residiano Território e que se encontrava seriamente doente(viria a falecer em 25 de Junho). Mas esta estada ino-pinada em Macau terá também servido de pretextopara contactar com os militantes e simpatizantes dorecém formado Kwomintang, o novo partido de Sun Iat Sen saído da extinta "Liga Unida", entre os quaisse contava Lou Lim Iok e vários membros da suafamília. Em Macau encontrava-se ainda o irmão maisvelho de Sun Iat Sen (Sun Mei), também ele membroda "Liga Unida" que se tinha transformado já emKwomintang, partido ao dispor do qual colocou a suafortuna e os seus serviços até falecer no Território por-tuguês em 1915.

O que restava do número 11 do Pátio da Gruta foi demolidoem 1988. Curiosamente, este portal manteve-se intacto atravésdas décadas mesmo após, uma a uma, as restantes casas quese erguiam a seu lado terem sido demolidas.

Concluída a jornada que o levou a Chuiheng, Macau, Xangai e várias outras cidades do Japão ondecontinuava a beneficiar de amplos apoios, Sun Iat Senregressou ao terreno concreto de luta na sequência daofensiva de Yuan Shi k'ai contra Guangdong, que pôstermo aos cerca de dois anos de governo secessionistacantonense. A situação tinha vindo a radicalizar-se emCantão, à medida que em Pequim o velho marechalYuan Shi-k'ai mostrava com cada vez maior clareza assuas verdadeiras intenções e que os seus exércitos con-solidavam o poder pelas províncias. Reagindo contraos desígnios do marechal que queria ser imperador, ogeneral Li Lieh-chiu declara a secessão da provínciade Kiangsi, enquanto na Assembleia provincial deCantão Ch'eng Chiu-meng, o jovem senhor da guerra, de 33 anos, formado pela escola de administração pú-blica da cidade, acusava Yuan Shi-k'ai de 12 grandescrimes, entre os quais o de trair a república. O levanta-mento coordenado de Kiangsi e Guangdong deuorigem à fugaz aventura republicana que ficou conhe-cida como "Segunda Revolução", sufocada pelastropas bem organizadas de Yuan Shi-k'ai, que a 14 deAgosto de 1913 ocupam Cantão e põem fim à seces-são das províncias rebeldes. A crise instala-se então nacidade levando a nova fuga em massa de refugiados, muitos dos quais escolhem Macau como ponto deabrigo.

LOU LIM IOK A CONTAS COM A POLÍCIA

Entre os que procuravam abrigo em Macaucontavam-se muitos cabecilhas republicanos que ti-nham participado no governo cantonense durante osúltimos dois anos. Segundo o novo governo de Cantãoo próprio Sun Iat Sen, seu irmão Sun Mei e o generalCh'eng Chiu-meng encontrar-se-iam refugiados na ci-dade portuguesa. Se quanto a Sun Iat Sen e ao generalCh'eng Chiu-meng a suspeita poderia ser de facto in-fundada (quando muito os dois teriam estado por umcurto período em Macau deixando imediatamente oTerritório) já o mesmo não se passava com os restan-tes líderes republicanos em fuga. Por isso as novas autoridades de Cantão não tardaram a enviar os res-pectivos pedidos de extradição dos suspeitos, colocando mais uma vez em embaraços o governoportuguês de Macau.

O Governador-Geral de Guangdong, LongChai-kuang, era claro afirmando numa comunicaçãoao cônsul português em Cantão que os republicanosprocurados se encontravam indubitavelmente em Ma-cau e acrescentando ter podido verificar com certeza"que às ocultas se reúnem ali para aliciar adeptostendo fixado até o dia para virem a Cantão fazer arevolução." O pedido formal de extradição desenca-deou o consequente inquérito a cargo da RAS, dirigidaentão pelo advogado Constâncio José da Silva, o mes-mo que três anos antes tinha despoletado o caso dospiratas de Coloane. Qualquer ideia de zelo no cumpri-mento do pedido do Governador-Geral de Cantãoestava à partida afastada, mas mesmo assim as forma-lidades legais tinham que ser cumpridas e os agentessecretos da RAS puseram-se em campo, concluindoque Sun Iat Sen, Ch'eng Chiu Meng e Sun Mei nãoresidiam no Território, conclusão óbvia quanto aosdois primeiros, mas que já o não era relativamente aoirmão mais velho de Sun Iat Sen, que de facto tinhanão só a sua residência em Macau, como esta era bemconhecida dos agentes e até do próprio chefe da RAS.

As diligências policiais concluíram apenas pelapresença em Macau de dois elementos menores dopartido republicano, os irmãos Chan Chang-iu eChang Chec-iu. Segundo as investigações, apenas osegundo destes dois irmãos tinha sido localizado nasua residência da rua da Praia Grande número 101, onde se encontraria doente e sem receber visitas. Numa tentativa para fazer parar o processo, Constâncio José da Silva remeteu o inquérito ao Go-vernador Sanches de Miranda com a indicação de quea falta de mais elementos sobre a preparação de umarevolução impediam a continuação das investigações.

Sanches de Miranda, no entanto, não parece terficado satisfeito com o resultado das diligências noto-riamente simplistas para a gravidade do caso, ordenando a Constâncio José da Silva que continuasse. Ao mesmo tempo chama ao Palácio da Praia GrandeLou Lim Iok a fim de debater o caso. As conclusõesde tal encontro ficariam para sempre no segredo dosdois interlocutores, mas Lou Lim Iok acabaria por serouvido nos autos a 14 de Outubro de 1913, afirmandoter tido conhecimento apenas pelos jornais que Sun IatSen, Sun Mei e o general Ch'eng Chiu-meng tinhamde facto sido banidos de Hong Kong dois meses atrás, desconhecendo a sua presença em Macau. Como com-plemento às suas declarações Lim Iok deixa apenasregistado o facto de saber que Chang Chec-iu era umfrequentador assíduo do Clube China, centro de reu-nião de militantes e simpatizantes republicanos deMacau, sobejamente conhecido.

Por seu turno o irmão de Lou Lim Iok, Lu I Iok, responde também em processo indo mais longe aoafirmar que de facto tinha conhecimento de reuniõessecretas entre Chang Chec-iu e três outros indivíduos, reuniões estas de carácter claramente subversivo. Lu I Iok acrescentava no entanto que todos os inter-venientes eram conhecidos republicanos há muitoadversos ao regime de Yuan Shi k'ai, duvidando noentanto do sucesso de qualquer tentativa revolucioná-ria por parte de qualquer deles.

De facto, tanto Lou Lim Iok como seu irmão limitavam-se a verter formalmente para o processo in-formações inócuas que eram do conhecimentopúblico, mas que ao mesmo tempo permitiam ao go-verno de Macau mostrar uma aparência de cooperaçãorelativamente ao governo de Cantão. É assim que, a 20de Dezembro de 1913, Sanches de Miranda pode res-ponder ao governador da província de Guangdong, dizendo que os principais suspeitos não se encontra-vam em Macau e que os outros que tambémconspiravam "se encontravam sob vigilância não per-mitindo qualquer acto de desestabilização contra a China." Toda esta encenação policial parece ter sidoditada essencialmente pelo facto de a passagem de Sun Iat Sen e dos seus correligionários não ter passadodespercebida à imprensa que, através nomeadamentedo jornal "Chung Ngoi San Pou", teria revelado a pre-sença em Macau dos chefes revolucionáriosprocurados.

Este processo continuava a tipificar a atitudepolítica do governo de Macau que vinha sendo adopta-da desde antes da revolução do "Duplo Dez": protegerna medida do possível as actividades subversivas chi-nesas em Macau procurando ao mesmo tempo manter, pelo menos formalmente, uma postura de boa coopera-ção e harmonia com as autoridades que reinavam emCantão, fossem elas qual fossem.

O CASO DO "LOBO BRANCO"

No entanto, manter as aparências muitas vezesnão era suficiente e o governo de Macau confrontava--se frequentemente com acusações claras de estar afazer o jogo dos inimigos do regime, particularmentequanto ao abastecimento de armas e munições aos re-beldes do "Lobo Branco" (4) que na sequência da"Segunda Revolução" punham o norte da China a fer-ro e fogo, causando sérios receios ao governo de YuanShi-k'ai. Esta acusação tinha sido claramente expressaa 21 de Novembro de 1913 pelo Ministro dos Negóci-os Estrangeiros da China, Sun Pao, ao embaixador dePortugal, responsabilizando o governo de Macau deenvolvimento directo. Esta denúncia levou mais umavez a que fosse desencadeado um processo formalpara salvar as aparências (levado a cabo pela RAS)que concluía pela garantia expressa do tenente Antó-nio Vidigal, responsável pelos paióis militares, de quede estes "apenas tinha saído pólvora em barricas parao armamento de protecção das embarcações de pescadesde Abril de 1912". Mas as acusações não se fica-vam por aqui.

Na sequência da resignação de Sanches deMiranda, o recém governador José Carlos da Maiateve de haver-se com novos protestos de Cantão queafirmavam que as forças do "Lobo Branco" não sóeram abastecidas de armamento a partir de Macau, como o seu exército engrossava com os recrutamentosque eram feitos na colónia portuguesa. O protesto dePequim ia mais longe, chegando a indicar concreta-mente o local onde esses recrutamentos eram feitos, num sinal evidente de que o regime chinês mantinhaem Macau eficazes agentes.

Perante tais incriminações, a RAS é de novoencarregada de efectuar as respectivas investigações, chegando à conclusão de que de facto estavam a serefectuados recrutamentos a partir de uma residênciasituada na discreta Travessa dos Santos (onde em fi-nais do Século XIX Sun Iat Sen reunia com o famoso"Bando dos Quatro"). As conclusões constituíram umembaraço para o fundador da República Portuguesa, que tinha sido nomeado para o governo de Macau nadifícil conjuntura internacional que precedeu a Primei-ra Grande Guerra Mundial. Mas Carlos da Maia nãosó não se embaraçou como decidiu tirar os dividendospossíveis da situação. Relativamente às conclusõesdos agentes da RAS, Carlos da Maia não encontroumelhor solução do que considerar que o que de factose passava na Travessa dos Santos não era mais do querecrutamento de trabalhadores para a China, mandan-do por isso encerrar o processo com ordem aosServiços de Finanças para taxar os responsáveis deacordo com as leis relativas a contratação de mão-de--obra em vigor. Quanto à existência de "Lobos Bran-cos", como afirmava o governo chinês, o assunto foialvo de um relatório dirigido ao embaixador de Portu-gal em Pequim, no qual Carlos da Maia, para além denegar a existência de tal seita em Macau, admite queos recrutas do "Lobo Branco" possam ser aliciados aolargo entre os piratas pelos enviados do revolucionáriochinês que Pequim afirmava terem estado em Macau eHong Kong. Mas, nesta ordem de ideias, diz o Gover-nador: "a passagem dos enviados teve quaseindubitavelmente por fim exclusivo chamar a si os pi-ratas que infestam os mares do Sul da China e quetantos estragos causam nas aldeias servidas pelo rio das Pérolas e seus afluentes.

"Desta forma e em virtude de tão lisongeirassolicitações o pirata acumulará na maior parte doscasos o seu odioso mister com a função não menosodiosa de promover perturbações políticas na Chinaoperando segundo as circunstâncias e indistintamente, mas sempre sob um aspecto perigoso e prejudicial àtranquilidade da China".

Carlos da Maia sugere em seguida ao embaixa-dor português que por seu turno sugira à China aefectivação de acções conjuntas com as autoridadeschinesas das imediações de Macau no caso de seremdescobertos "Lobos Brancos", que "naturalmente ten-tarão fugir para a China se forem perseguidos, ouvice-versa. Assim Portugal poderá ter ensejo de pres-tar um grande serviço à China do qual em trocapoderíamos esperar vantagens de outra ordem".

Carlos da Maia não especifica quais as vanta-gens que poderiam ser extraídas da sugestão que deixaà consideração do plenipotenciário português em Pe-quim. Seja como fôr, a revolta do "Lobo Branco"estaria condenada ao fracasso, diluindo-se na guerracivil que se seguiria e que mergulharia a China numcaos de que somente se começaria a refazer em 1949.

Para Macau, um dos períodos mais conturbadosda sua existência foi sem dúvida o dos anos subse-quentes à instauração da República chinesa. Asactividades subversivas contra a China desenrolavam--se sem que na prática fosse possível pôr-lhes termo, ou sequer controlá-las. Na China o panorama político--social dividia-se entre partidos embrionários (desdeanarquistas a monárquicos) e os senhores da guerraque se revezavam no domínio de Cantão com umafrequência demasiado vertiginosa para poder ser mini-mamente acompanhada. Para além dos serviços deinformação da RAS e dos agentes secretos pertencen-tes ao corpo de Polícia de Segurança Pública, aAdministração colonial não possuía qualquer tipo deserviços de inteligência capazes de garantirem um mí-nimo de informações que habilitassem osgovernadores a decidir correctamente nos momentoscertos. Daí o facto de as decisões políticas serem to-madas de acordo com o quadro geral fornecido pelolongínquo Ministério do Ultramar e de acordo tambémcom o instinto político dos próprios governadores. Agir bem, ou agir mal, era no fundo uma questão desorte.

UMA MISSÃO BEM SUCEDIDA

O consulado geral de Portugal em Cantão e ospoucos agentes secretos destacados na capitalcantonense faziam o que podiam como exemplarmen-te consta do relatório do Segundo-Tenente da MarinhaManuel Ferreira de Andrade, Imediato da lancha--canhoneira "Macau", transformado pelo governadorSanches de Miranda em espião improvisado, a fim deverificar asintenções da China na sequência do alarmedado em Macau pela observação de um vaso de guerrachinês nas imediações da cidade. Diz Manuel deAndrade no seu relatório datado de 16 de Agosto de1912:

"- Saí de Macau na noite de 24 para 25 deJulho acompanhado por um polícia secreto que figu-rou sempre como meu "boy".

"Desembarquei em Cantão na manhã de 25 pe-las 7 horas no cais do vapor Tai Shan em que tinhaseguido viagem.

"Na ponte estava à minha espera o polícia se-creto que está fazendo serviço destacado em Cantão. Este tomou conta da bagagem e eu com o "boy" segui-mos em cadeirinhas para o hotel em Lam Sheng. Durante o pequeno trajecto até ao hotel através deumas ruas da parte exterior da cidade chinesa nadanotei de anormal. Apenas maior número de soldadosem serviço de polícia.

"Chegados ao hotel entrevistei o chinês políciasecreto em Cantão, que falando a sua língua e respon-dendo-me a várias perguntas me disse que não eraagora táo fácil obter informações através dos que ro-deiam o Governador, pois não só este como o pessoaldas diferentes repartições oficiais tinha mudado e den-tro destes novos funcionários não possuir muitosconhecimentos particulares, constando que guardavammais ou menos tudo em segredo.

"Sobre tropas de Cantão enviadas nestes diaspassados disse não lhe constar absolutamente nada.

"Algumas semanas atrás afirma que se falavaem, de Chin Ham, mandarem algumas tropas paraColoane e ilha da Lapa.

"Não podendo nesta ocasião fornecer-me maisesclarecimentos encarreguei-o de procurar obter infor-mações pelo menos do passo em que se espalhamboatos, para assim poder analisar de algumas informa-ções que tem havido. Ficou com ordem permanente para todos os dias às 9 horas da manhã me vir encon-trar ao hotel sob pretexto de visitar o meu "boy".

"Como fosse ainda cedo para visitar o consula-do, aproveitei para dar uma volta a Nam Cheu eobservar assim directamente as obras de fortificaçãoque estão feitas nas duas concessões, inglesa e france-sa. Na concessão inglesa há bastiões de defesaprincipais, obras de fortificação constituídas por abri-gos feitos com sacos de areia dispostos alguns paraartilharia e outros apenas para atiradores. A porta norteda concessão está defendida em toda a sua extensãopor arame farpado.

"Na concessão francesa não estão sendo feitasobras de fortificação, limitando-se a protecção a aramefarpado em toda a volta. Passando pelo "bond" daparte inglesa vi fazendo exercícios uma companhia desoldados da Índia inglesa. Era formada por 5 pelotõesde 18 homens cada um e comandada por um capitão edois tenentes.

"No fim deste passeio fui até ao Consulado. Eram perto de 10 horas da manhã quando ali cheguei ecomo ainda fosse cedo para falar ao cônsul estive con-versando com o intérprete do consulado, ValentimRosário, pessoa minha conhecida e com quem seriainteressante falar. Um velhote macaísta, um tantoinglesado, falando pouco português, mas correctamen-te o inglês e o chinês. Gordo, pachorrento, de óculosgrossíssimos e olhos profundos quase fechados. Comos seus modos inalteráveis e franqueza de pessoa co-nhecida falou-me logo nas novidades que havia sobreMacau. Mostrando ele o desejo de saber como sediziam tantas coisas e se espalhavam tantos e tão ex-traordinários boatos disse-me que os chineses estavammuito atrevidos e falavam muito.

"Com respeito ao boato que correu do ataque aMacau, constava-lhe ter este vindo de Macau e não serboato espalhado em Cantão. Podia vir de um ex-ele-mento da Polícia Secreta de Macau e que hoje é espiãodo governo de Cantão e também de um súbdito portu-guês chamado vulgarmente "Pedro Sapateiro", que vive em Macau.

"O primeiro destes, cujo nome não me sabiadizer apresentava como razão para ser infiel ao seugoverno o facto de ter sido polícia em Macau e conser-var gratas recordações do governador português. Osegundo como bom português aproveita os seus inú-meros conhecimentos e boas relações em que está comdiferentes autoridades chinesas, especialmente o co-mandante da polícia de Cantão Chang Ken Wa(Ch'eng Ching-hua que viria a ser assassinado) pres-tando assim informações que no consulado lheparecem ser tidas como as melhores.

"A propósito, contava-se a semana passadauma cena entre este e o comandante da polícia deCantão por onde procurava mostrar as boas relaçõesentre estes: - Numa das partes da cidade interior deCantão, um chinês roubou o chapéu ao "Pedro Sapa-teiro". No dia seguinte, contando o Pedro aocomandante o que lhe tinha acontecido deu este ordempara que a polícia secreta lhe apresentasse imediata-mente o ladrão. Passadas algumas horas era trazido "àpresença dos dois um chinês que a diligente políciasecreta tinha conseguido prender como sendo o autên-tico gatuno. Sem mais reconhecimentos foi o ladrãofuzilado dizendo o comandante ao Pedro que fosse àmelhor loja comprar o melhor chapéu, custasse o quecustasse, pois a despesa seria por sua própria conta. Éclaro que o Pedro agradeceu e creio que não aceitou acompra do novo chapéu. Esta maneira de fazer justiça, é hoje a mais corrente em Cantão, onde, segundo di-zem, o comando da polícia é todo poderoso nãofazendo atenção das ordens do governador de quem oPedro não gosta e reputa como imbecil.

"Atendendo a esta importância junto do coman-dante da polícia, declara o meu amigo Valentim quevai diligenciar a fim de travar conhecimento com elepara assim poder saber novidades.

"Passava já das 11 horas quando o cônsul sa-bendo que eu o procurava me mandou entrar.

"Compreendendo as razões da minha vindaatravés da leitura da carta de V. Exa. mostrou-se inte-ressado em me dar todas as informações. Logo deentrada me falou S. Exa. em vários assuntos que repu-tava como principais causadores do estado de irritaçãoem que os chineses pareciam estar.

"São estes os seguintes:

"1 - Caso das lanchas do sal. Diz S. Exa. que osúbdito inglês que dizia tê-las comprado, não as regis-tou em seu nome nem no consulado inglês, onde nãolhe aceitaram o registo, nem em Chong Keng, como sevê do documento que o cônsul inglês mandou ao se-cretário Li e que por intermédio do consuladoportuguês foi enviado ao governo de Macau.

"Dado isto, por que não foram entregues as canhoneiras ao governo de Cantão, apesar das repeti-das reclamações feitas?

"2 - Caso da ordem dada por uma lancha portu-guesa para que barcos de pesca que estavamencalhados na ilha da Lapa recolhessem no dia 29 aMacau.

"3 - Cobranças em Coloane.

"O governo de Cantão insiste que não se fezapenas o que nos meses anteriores se fizera de acordocom o status quo. S. Exa. apresentou estes factos. Nãotendo eu elementos para o esclarecer sobre qualquerdeles e também não sendo este o assunto da minhamissão limitei-me apenas a apontá-los como acima fi-cou dito para conhecimento de S. Exa. o Governador.

"Fiz sentir a S. Exa. que disso era ciente, masque lhe não me era fácil pelos meios de que dispunharesponder satisfatória e completamente às perguntas. Pedi entretanto a S. Exa. que por intermédio do con-sulado me conseguisse fornecer os elementos para quena minha volta pudesse informar mais porme-norizadamente o Exo. Governador.

"Sendo já tarde recolhi ao hotel.

"No dia 26, pelas 9 horas da manhã e de acordocom as ordens que tinha recebido veio ao hotel o polí-cia secreto de Cantão trazendo mais informações queconseguiu colher. Tinha falado com o chefe dos solda-dos, Meng Pak On, que ia hoje partir com 500 homenspara Ngai Chan. O mesmo chefe lhe disse que para odistrito de Tang Kun tinham ido no dia 24, 2. 000soldados por causa dos barulhos que ocorreram entre opovo e as tropas ali em serviço e destes terem sidomortos 500 soldados. Da província de Guangxi parti-ram também 1000 soldados para manter a ordem. EmWushan (Cinco Ilhas), constava que tinham roubadoduas lanchas de guerra. Sobre boatos e notícias recen-tes de Macau nada tinha ouvido. Para o dia seguinteficou encarregado de indagar a respeito do cruzadorchinês, fazendo para isso tudo o que fosse necessário, inclusivamente alugar uma lancha para Wanpoa a fimde ver os navios que lá estavam e mais de perto podercolher informações seguras. Cerca das 11 horas fui aoconsulado, onde encontrei S. Exa. pronta para retomaros assuntos que estivéramos tratando. Referindo-se àpergunta do cruzador disse S. Exa. que ainda não pu-dera obter nenhum esclarecimento sobre o assunto, mas que tinha já dado ordens e que esperava no diaseguinte poder informar-me do que havia.

"Entrando depois nas questões referentes a Ma-cau, relatou S. Exa. que por várias vezes formularamameaças, primeiro em ofício em que o Comissário dosNegócios Estrangeiros de Cantão lhe dizia que nãocessando as cobranças dos impostos em Coloane have-ria um sentimento de revolta pelo qual o tornavaresponsável.

"S. Exa. referiu também ter sido assediado porjornalistas enviados pelo Foreign Office porque eraconhecido como funcionário do consulado, que tinhama pretensão de o sondarem sobre uma guerra que dizi-am eminente entre Portugal e a China. Recordando-sedepois S. Exa. de mais entrevistas afirmou ter recebidopassado algum tempo o Comissário dos Negócios Es-trangeiros Franck Li que falando com S. Exa. ealudindo à possibilidade de uma intervenção armadada China em Coloane recebeu a contestação a essapossibilidade apresentada por S. Exa. que se serviu dosargumentos conhecidos (impossibilidade de antes doreconhecimento da república chinesa reatar questõesde delimitações, manter o statu quo, etc. etc.).

"No dia 27 de manhã voltou ao hotel o políciasecreto trazendo as seguintes informações sobre o cru-zador chinês:

"Não tinha vindo a Cantão nenhum cruzadorpois estes são apenas usados nas esquadras do Nortedo País e desde que rebentou a revolução ainda ne-nhum navio de guerra do Norte tinha vindo ao Sul. Que do movimento de navios que Cantão dispõe seresumem praticamente ao transporte de guerra Kai Saique habitualmente está fundeado em Wanphoa. Estepartira há já bastante tempo para Nai Chan e dali tinharegressado a Cantão no dia 13, ou 14 do corrente, devendo portanto ter passado à vista de Macau. Comodetalhes para identificação do navio apresentou os se-guintes: era do tipo dos nossos antigos transportes paraÁfrica, mas maior. Tem deck corrido e dois mastros. Épintado de preto e com uma chaminé amarela. Nãotem artilharia e arvora a bandeira das listas.

"De acordo com o que fica dito é para crer queseja este transporte o suposto cruzador chinês que este-ve à vista de Macau.

"Sobre movimentos de tropas, soube mais que500 soldados que no dia 26 tinham dito que partiriampara Ngai Chan ainda não foram. Estão esperando porseis peças de artilharia. Logo que estas estejam pron-tas, o que deverá acontecer dentro de 2 ou 3 dias embarcarão no transporte Kang hai, seguindo entãopara Ngai Chan.

"Quanto ao polícia secreto Lun Chan Chun, não conseguiu saber com verdade quem era, mas cons-tava que seria um empregado de confiança doComissário dos Negócios Estrangeiros de Cantão. Arespeito do movimento de tropas e mais de-talhadamente sobre os boatos que corriam de enviaremtropas para Coloane e da possibilidade de fazerem al-guma coisa contra os portugueses, respondeu ter-lhesido dito que não se poderiam meter com os portugue-ses, pois certamente os ingleses tomariam o partidodestes. Terminam aqui todas as informações que pormeio do polícia secreto de Cantão coadjuvado peloque veio de Macau consegui obter.

"Mais tarde fui ao consulado para saber o queconseguira apurar o Cônsul sobre o cruzador chinês, informando-me S. Exa. de que não tinha ainda recebi-do qualquer comunicação dos seus informadores. Navolta que fiz pela cidade chinesa, parte em cadeirinha, parte a pé e num passeio em tancar que dei pelo rio aolongo da cidade fiquei, com a impressão que o estadode aparente sossego que em tudo se encontra é depouca segurança.

"Tendo conversado com vários chineses de al-gumas lojas que conhecia, todos mais ou menos sequeixavam da falta de mantimentos na cidade e dopouco negócio. A pirataria desenfreada por todo o in-terior da província e ainda diferentes abusos por partedas autoridades oficiais de Cantão traziam comoconsequência o medo para uns e a exaltação para ou-tros, não podendo portanto assim conservar-se pormuito tempo o aparente equilíbrio que até agora se temmantido. Dizem que em Outubro e para alguns isso éum facto, se prepara nova revolução, cujo carácter nãoconsegui apurar mas que terminará pela vitória, oupelo incêndio da cidade de Cantão. No final do pas-seio voltei ao hotel de onde segui em cadeirinha para ovapor de Macau.

"Largando às 4, 30 horas no vapor Tchai Hunge seguindo o rio abaixo pelo lado de Iat Ti notei umdesusado movimento de embarcações com soldadosque eram rebocadas por lanchas a vapor. Mais tardequando se passou por altura de Powder Island, vi emWamphoa o transporte de guerra Keng Hai, podendoagora confirmar pessoalmente as informações queatrás deixei mencionadas.

"Entrámos na Boca do Tigre pela duas horas e10 minutos, depois de uma magnífica viagem."

O tenente da Marinha Manuel Andrade cum-priu com êxito a sua missão informando com rigor ogovernador Sanches de Miranda de que não tinha quese preocupar com um eminente desembarque de tropaschinesas em Macau, ou mesmo em Coloane. O alega-do cruzador que passara à vista de Macau era de factoum transporte de tropas mais ou menos inofensivo, que contribuía para acorrer aos focos de conflito queexplodiam um pouco por todo o litoral da província deGuangdong. Pese embora o desempenho da missão dojovem oficial da armada, que falava fluentemente ocantonense, o governo de Macau continuaria mais oumenos desinformado sobre a verdadeira situação naChina que, de acordo com o seu próprio relatório, esta-va longe de ser compreendida também pelo próprioconsulado de Portugal em Cantão, que dependia dasinformações do "Pedro Sapateiro" e de um ex-políciaque conservava gratas recordações do governador deMacau.

Terá sido essa falta de informação global sobreas origens e os objectivos das diversas forças em con-fronto na China, e particularmente na província deGuangdong, que terá levado ao acumular de erros decálculo que desembocaria nos conflitos internos doVerão de 1922, os quais poderiam ter terminado pelaerradicação da presença portuguesa em Macau se ascircunstâncias políticas e a presença britânica na Chinanão tivessem contribuído para ultrapassar in extremis o que terá sido a mais grave crise da história moderna deMacau.

NOTAS

(1)Diabos Ocidentais. Designação genérica dada pelos chineses aosprimeiros portugueses que atingiram as costas da China no SéculoXVI.

(2)Rua do Hospital. Actual Rua Pedro Nolasco da Silva.

(3)Otítulo oficiosode "inspectora das pescas"foi dado a Lai Choi San, uma mulher pirata que nos anos 30 dominava a foz do rio das Pérolascom uma frota de setejuncos armados de canhões. As tripulações dosseus barcos estavam armadas com modernas carabinas Winchester. Lai Choi San possuía residência em Macau.

(4)Lobo Branco. General republicano que participou na chamadaSegunda Revolução(1912). BatidoemCantão, este general sublevouvárias províncias do interior da China mantendo-se em guerra contrao poder central durante cerca de quatro anos. Era ao mesmo tempo olíder de uma associação secreta que adoptou o seu nome.

*Jornalista e investigador da História de Macau.

desde a p. 63
até a p.