Crónica Macaense

A FESTIVIDADE DO ANO NOVO

Luís Gonzaga Gomes*

Ao texto de Luís Gonzaga Gomes (excerto do antologiado no livro "Chinesices ") e com o objectivo de o tornar mais claro e explícito, foram introduzidas algumas emendas de grafia, pontuação e sintaxe e acrescentadas algumas notas explicativas.

* Ver notas no final.

Em chinês, o dia do Ano Novo é, vulgarmente, designado por nintch'ó iât 年初一 (o primeiro dia um do ano), dia este que se denomina porém, com mais rigorosa propriedade, ün tán 元旦 (primeira alvorada), ou ün-iât 元日 (primeiro dia), ou ainda lei tün 履端 (princípio de acção), designação esta extraída da frase lei-tün u-tchí 履端於始, de um passo do Tchó-Tchün 左傳, um dos treze clássicos chineses, e que significa "princípio com rectidão".

Esta festiva data exerce no ânimo chinês uma arrebatadora sensação de gáudio e de ventura, e galvaniza-o com um entusiasmo tão exuberante, que o leva a relegar, momentaneamente, para o oblívio, todas as suas aflições e a memória de quaisquer tribulações, caso as tenha, para se entregar, durante uns efémeros dias, a largas expansões de franca alegria, juvenil satisfação e pleno regozijo.

É por isso que os ausentes, por muito longe que se encontrem, esforçam-se por regressar para junto das suas respectivas famílias, nas proximidades do Ano Novo, a fim de participarem, em intimidade doméstica, da expansiva alegria dos seus entes queridos; esquecerem juntos, os seus desalentos ou renovarem as suas esperanças dum melhor porvir, bem como para renderem as suas respeitosas homenagens e manifestarem, comovida e enternecidamente, a sua profunda e sincera gratidão aos espíritos dos antepassados que possibilitaram a sua procriação.

Tão importante festividade não pode, por tal motivo, deixar de ser rija e aparatosamente festejada, gastando com prodigalidade os abastados e os remediados, alardeando aqueles, nas suas casas, nas suas pessoas e nas dos membros mais achegados da sua família, luxo e fartura, e estes, dispendendo com extravagância as economias, somiticamente realizadas durante meses de forçados sacrifícios e ridículas privações.

A entrada do astro-rei no Aquário é saudada, na manhã da data do início de Láp-Tch'ân 立春 (Começo da Primavera) com contínuo estralejar de panchões (estalos da índia), logo após a cerimónia de aposição, no meio dodintel das principais portas da casa, dum rectângulo de papel auspiciosamente encarnado e salpicado a ouro, o hông mun-tchín (frente da porta vermelha), bem como da colocação na parede, junto da porta principal, doutro rectângulo de papel encarnado, pincelado com os seguintes caracteres: T'in-Kun tch'i-fôk 天官賜褔 (que o Senhor do Céu nos conceda a felicidade), e ainda de mais uma folha, também de papel encarnado, no pé da porta da entrada principal da habitação, onde figuram os seguintes caracteres invocativos: mun-hâu t'ou tei tchip uáng-tch 'ói-sân 門口土地接橫財神 (que os deuses locais da porta acolham os espíritos indirectos da sorte); esta cerimónia é acompanhada de libações e ofertas de pitéus aos espíritos invisíveis e termina com a colocação de vários pivetes acesos e a queima de vários pacotes de panchões.

O Láp-Tch'ân é o período em que os princípios masculino e feminino se plasmam homogeneamente, conjugando-se num supremo amplexo espasmódico com o fim de produzirem, novamente, a estabilidade do universo e em que as forças da natureza são estuantemente rejuvenescidas, bem como a harmonia que rege o mundo, sendo, portanto, próprio para os trabalhos de lavoura, isto é, no caso de o tempo se apresentar límpido e brilhante, e termina quando o Sol, passando para o signo zodiacal do Peixe, dá início ao Ü-Sôi 兩水(Água e Chuva), o período das grandes chuvadas. Por ser esta a época em que se inicia uma nova vida, a ressurreição duma fase livre de preocupações, por terem sido saldadas todas as dívidas com o último dia do ano que passou, é de admirar que os quatrocentos e tantos milhões de seres que povoam esta parte do globo se reúnam, espiritual e momentaneamente esquecidos de mesquinhas rezingas e injustificados amuos, para, num frémito do mais vivo júbilo, acolherem ruidosamente o despontar do novo ano com o ensurdecedor estralejar de panchões, continuamente cortado pelos troantes estampidos de grandes cartuchos de pólvora e de formidáveis estouros produzidos pelos fogos de artifício, que rematam a queima das intermináveis fitas desses estalos.

Na China, porém, nem sempre o primeiro dia de lân, que é como se denomina o primeiro mês lunar, a Lua de Feriados, foi considerado como dia de Ano Novo. A escolha da data para a celebração desta festividade importantíssima na vida social, religiosa, comercial e agrária chinesa, pois dela dependia a fixação dos dias para a comemoração doutras festividades do ano, das estações e das épocas apropriadas para as diversas culturas e colheitas, sofreu, com o tempo, variada fortuna.

Assim, na recuada dinastia Sèong 商 (1766-1122 A. C.) adoptava-se o primeiro dia de Tch'âu 丑, o 12° mês lunar, a Lua de Amargura, também considerada como a Lua de Oferendas, para se celebrar a entrada do Novo Ano. Na dinastia seguinte, a de Tchâu 周(1122-255 A. C.), festejava-se o nascimento do Novo Ano no primeiro dia de Tchi 子, o 11° mês lunar, a Lua Branca, e só na dinastia Hón 漢 (206 A. C.-221 A. D.) é que esta tão importante data foi fixada para o primeiro dia do primeiro mês lunar.

Ora, para que as celebrações do Ano Novo alcancem o almejado êxito, é necessário que os preparativos sejam iniciados com grande antecedência. Assim, já no dia 20 da última Lua, ou seja do último mês chinês, tanto as apalaçadas residências dos ricos como as humildes mansardas dos pobres são varridas e lavadas, e ai de moça que se desleixe no varrer, pois as partículas de pó cegá-la-ão, inexoravelmente, para castigo da sua incauta negligência.

Entretanto, nas moradias dos humildes, todos os membros da família se encontram atarefados. Uns consertam, apressadamente, os velhos trastes, outros ajeitam as desengonçadas portas, e outros remendam os papéis que servem de vidraça.

Nas dos ricos, os criados brunem com entusiasmo e vigor os paus-pretos, redouram pacientemente as rendilhadas talhas, reenvernizam o portão da entrada principal, enquanto que as donas de casa vão buscar, às arcas, as almofadas de juta revestidas de seda de auspicioso encarnado, para as colocar sobre os duros e frios assentos das cadeiras e bancos, bem como os admiráveis bordados de exóticos desenhos de intrigante simbolismo, destinados a servir de reposteiros.

Portanto, não é possível passar desapercebida a aproximação da data festiva, tanto mais que, no afã de procederem à lavagem e limpeza do interior das casas, não fazem os seus donos ou os seus serventuários cerimónia nenhuma em levarem, momentaneamente, para o meio da rua, todo o recheio nelas existente.

Assinala também a aproximação do magno dia o ar preocupado ou azafamado: os homens de negócios, que procuram liquidar as suas dívidas; o mulherio que enche as ruas e as lojas, com o fim de adquirir nova indumenta, ricas capas de pele ou casacos no rigor da moda, ou mimos destinados às permutas, ou encomendando bolos e doçarias, que necessitará para obsequiar as visitas do auspicioso dia; e os marítimos, os pequenos empregados de comércio, os serviçais e domésticos, que atestam as pequenas mas bem fornecidas lojas da Avenida Almeida Ribeiro e da Rua Cinco de Outubro, para adquirirem um ordinário mas vistoso chapéu de feltro, produto barato das fábricas de Hong Kong ou de Cantão, um par de peúgas, uma camisola ou um par de sapatos.

Na última semana do ano, ninguém deixará também de tomar um banho geral, sendo o corte de cabelo feito, igualmente, com a devida antecedência, pois nas vésperas do Ano Novo as barbearias costumam levar o dobro do preço da tabela usual. As mulheres que ainda não abandonaram os costumes antigos submetem, nesses dias, o seu cabelo às mãos de hábeis penteadeiras que alisam, primeiramente, com um pente, todo o cabelo para trás, devendo as suas freguesas auxiliá-las, segurando com os dentes os cordõezinhos vermelhos que retesam as duas mechas em que o cabelo tem de ser simetricamente apartado, a fim de poder ser enrolado e aposto em calote, um pouco acima da nuca. O cabelo é, no entanto, conservado impecavelmente liso e luzidio por meio dum óleo fixador.

Chegado o dia 24 da última Lua, não há casa nenhuma que não celebre sacrifícios ao Tchou-Ká P'ou-Sát 灶家菩薩 ou Tchou-Kuân 灶君 (O Senhor do Fogão) cuja imagem, enegrecida pelo fumo, se encontra num nicho escavado na parede, mesmo atrás do fogão. Esta imagem em cartão, conforme a fantasia e imaginação do artista seu autor, é representada por um velhinho, tendo ao seu lado a velhinha, sua companheira, ambos sentados no seu respectivo trono, ou por um homem de meia idade e barrigudo tendo ao lado um cavalo, ou ainda por um solerte jovem em atitude de agente ou fiscal, segurando uma tabuinha numa das mãos, na qual aponta com irritante zelo tudo quanto observa em casa de cada um. Aqueles que não puderem despender uns cobres para a compra desta imagem limitar-se-ão a aplicar, na parede, atrás do fogão, uma folha de papel vermelho, onde pincelarão os caracteres correspondentes ao nome e respectivos títulos da divindade em questão, pois sendo ela o agente de ligação entre os mortais e os celícolas, o espia que tudo vê para ir relatar ao soberano do Céu, quem há que se atreva a deixar de lhe "bater a cabeça", de lhe acender umas velas e de lhe oferecer alguns bolinhos?

Tchou-Kuân foi, primeiramente, cultuado pelo imperador Mou Tâi, 武帝 no ano 133 A. C., devendo ter sido, primitivamente, o Deus do Fogo, o Agni dos brâmanes.

Para cativarem e lisonjearem esta intriguista e coscuvilheira divindade, a fim de ela não ir intrigar junto de lôk Uóng 玉皇, o Imperador de jade, a respeito da conduta moral e outras mazelas dos membros de cada família, que teve oportunidade de observar no decorrer do ano, tratam de lhe apresentar deliciosos manjares e saborosos doces com que julgam poder adoçar-lhe os lábios, e muitos, com o fim de o entorpecerem ou de o porem de bom humor, não se esquecerão de lhe oferecer capitosos e inebriantes licores e ópio, certos de que desta forma o tornarão mais tolerante. Dos que não andam com a consciência tranquila, há quem trate de adoçar os beiços desta divindade com mel ou com dois bocados de jagra*, ou de a embriagar molhando a sua imagem em vinho.

Entretanto, improvisa-se um pequeno altar no átrio, com o fim de se instalar a sua imagem, berrantemente policromada, que é transportada numa lecticazinha*, entre velas, pivetes e incensadores e, depois de a adularem, "batendo-lhe a cabeça" por três vezes e murmuradas umas orações, chega-se-lhe a chama de uma vela, para Tchou-Kuân poder ascender em fumo ao Trono Perlífero.

A imagem deste Deus da Cozinha costuma também ser incinerada com alguns fios de palha e borrifada com água ou chá, para que o cavalo que o transportará para junto do Trono Perlífero não padeça fome nem sofra sede durante a fatigante viagem, que durará sete dias, tanto para a partida como para o regresso. Durante esses dias da ausência do deus-espião, todos respiram, livremente, vivendo despreocupados, pois grande é a sensação de alívio que experimentam com a sua ausência.

Assim como na partida da divindade, o seu regresso é saudado, nas primeiras horas do Novo Ano, com uma ininterrupta salva de panchões. Nova cópia da sua imagem é entronizada, cerimónia que finda com respeitoso "bater de cabeça" e devoto oferecimento de alguns pivetes acesos.

O aniversário desta divindade ocorre, porém, só em 3 da 8ª Lua, ocasião esta em que ela é festejada pelos grémios e associações de cozinheiros que, geralmente, não destroem as baratas que povoam as cozinhas, por as considerarem como os "cavalos de Tchou-Kuân". Os cozinheiros têm também o cuidado de não deixarem passar nenhuma Lua nova ou cheia sem oferecerem, à imagem desta divindade, pivetes acesos e as melhores iguarias de sua confecção.

No norte da China, a cerimónia do culto ao Tchou-Kuân não termina sem que se lancem vários punhados de favas e feijões para o telhado, cujo ruído produzido se supõe corresponder ao galopar do seu cavalo. Tal gesto é, de resto, eficazmente propício à colheita de forragens do ano novo que se aproxima.

Toda a cerimónia de veneração a Tchou-Kuân, isto é, a tché-Tchou 謝灶 (agradecimento a Tchou) só pode ser oficiada por indivíduos do sexo masculino, que terão o cuidado de não permitir que o mulherio se assente, irreverentemente, na cozinha, para pentear o cabelo ou deitar o lixo no fogão. A queima de vários pacotes de estalinhos, com que é saudada a partida da divindade, indica o termo do simples rito.

À medida que se vai aproximando o dia festivo, vão-se animando as ruas. Em lugares mais frequentados, organizam-se feiras, onde os negociantes improvisam as suas tendas repletas de artigos de louça e de todos os objectos adequados ao uso caseiro. Prosperam nesses dias os impressores ambulantes que não cessam de satisfazer os pedidos de numerosos clientes com vermelhos cartões de visita impressos com caracteres de fantasia. As mercearias regorgitam de fregueses que necessitam fazer as suas provisões, pois, durante alguns dias, ninguém trabalhará na China e todas as lojas se conservarão encerradas. Há vendedores ambulantes que percorrem todas as ruas de lés-a-lés com reduzidas miniaturas, em papelão, de arcaicas alabardas, caixinhas recheadas de estalos, mealheiros de barro em forma de potes ou de porqui-nhos, todos pintadinhos de vermelho e salpicados de prata, serviços completos de cozinha em tamanho reduzido e feitos de argila cozida, jogos de glória, enfim uma variedade infinita de tentadores objectos que seduzem os petizes e só custam uns cobres.

É, porém, nas duas ou três noites que precedem o dia do Ano Novo, que o entusiasmo da compra ou venda atinge o seu auge. Os que foram bafejados pela sorte, tendo-lhes o ano decorrido próspero, compram, para proporcionar satisfação e alegria aos seus e a si próprios. Os que não tiveram a dita de aumentar os seus réditos ou de se salvarem do descalabro financeiro e que já estavam condenados pela sua imperícia ou por falta de protecção das divindades, vendem o pouco que lhes resta e, como muitas vezes não chegam a realizar o suficiente para satisfazer os seus compromissos, deixam-se falir fraudulentamente, desaparecendo, discreta e misteriosamente.

Em Macau, é na Rua dos Mercadores que estão situadas as principais mercearias de comestíveis chineses, encontrando-se expostas à porta, em tabuleiros especiais, as mais variadas guloseimas. São tiras de coco, bocados de tomate, sementes de loto, talhadas de gengibre, coquinhos descascados, laranjinhas, pedaços de abóbora, rodelas das raízes do loto, tudo cristalizado, e frituras de variada espécie, primando os tchin-tui 煎堆 de Lông-Kóng 龍江, esferas de massa com recheio adocicado e todas salpicadas por fora com gergelim - os tchin-tui à moda de Káu-Kóng 九江, os u-há 芋蝦, fios de inhame torrados, os azeiteados t'óng-uán 糖環 e os tão apreciados e indispensáveis tái-long-kou 大籠糕 - espécie de pudim seco e compacto, preparado com a farinha de arroz glutinoso.

Fazem-se também, em casa de cada um, grandes provisões de pák-tch'i 白糍, massa glutinosa que se come em caldos ou com melaço, depois de devidamente alourada nas frigideiras; de pák-kou 白糕, massa de arroz que se prepara cortada em pequenos bocados e de mistura com ovos, cebola e pedacinhos de carne de porco assada ao espeto, isto é, os afamados tch'á-siu 叉烧; de pevides de casca encarnada de Sân-Fông 信豐 e de tangerinas, mas muitas tangerinas, porque em chinês o seu nome soa da mesma forma que a palavra kât 吉 (felicidade).

Não pode deixar de se fazer o aprovisionamento de géneros e víveres nos últimos dias do ano, porquanto as mercearias e o talho, como de resto todas as lojas, se conservarão fechadas enquanto durar a festividade do Dia do Ano, visto não ser permitido o uso de nenhum instrumento cortante nessa data, a fim de se evitar o azar de "cortar a boa sorte". Nesses dias, não é raro verem-se nas ruas indivíduos que regressam apressadamente às suas casas com uma galinha ou com um pato. Os peixes frescos são, porém, levados presos pela cabeça por uma chamiça atada em volta das guelras, pois, na China, é raro empacotar-se ou embrulhar, em papel, animais ou carne fresca. Só os grãos e os secos é que são metidos num cone de papel, devidamente dobrado. Há quem leve também lindos peixes doirados, nadando em água contida num globo de vidro e que deverão também fazer parte do adorno das moradias. Terminada a preparação da comida, extrai-se do poço água suficiente para ser consumida durante 48 horas, a fim de dar descanso aos espíritos guardiões dos poços, que têm também o direito de não serem perturbados durante as férias do Ano Novo.

Os amadores de obras de arte vasculham os tintins (bricabraques), na esperança de encontrarem alguma boa pechincha, mas onde mais gente se encontra é no cruzamento da Rua das Estalagens com a Rua dos Mercadores, pois é ali que aparecem expostas todas as peças em porcelana ou vidro da baixela chinesa, jarras, brinquedos para crianças, os fông-pâu, 封包 pequenos sobrescritos encarnados destinados a conter o dinheiro para os lâi-si 禮事 - presente em dinheiro - e onde funcionam as máquinas ambulantes para a impressão dos indispensáveis cartões de bom-ano que são reciprocamente permutados, no meio da rua ou pessoalmente entregues nas mãos dos indivíduos a quem se pretende desejar um próspero Ano Novo.

Na ante-véspera e na véspera do novo ano até à meia-noite, a Praça do Leal Senado, deslumbrantemente iluminada, regorgita de ricos comerciantes que, acompanhados das suas esposas, vão escolher as mais belas flores ou vasos, contendo as plantas mais lindas e exóticas, expostas em improvisados escaparates armados com tábuas de madeira e troncos de bambu, e ninguém abandona o local sem levar consigo umas hastes com flores de pessegueiro, de ameixoeira ou das apreciadas tiu tchông fá 吊鐘花 (flores campaínhas, isto é, as ercaciae), que precisam para ornamentarem a sua casa e que foram especialmente tratadas para desabrocharem nessa quadra festiva.

De dia, cruzam as ruas os criados dos amigos europeus, sentados em riquexós e equilibrando sobre os seus joelhos imponentes tabuleiros circulares de três ou cinco ternos*, recheados das afamadas laranjas, ameixas ou carambolas açucaradas - obra-prima das doceiras de Macau - sendo cada uma dessas frutas garridamente vestida com coloridas e fantasiosas camisas de papel de seda rendilhado, tabuleiros esses com que é costume, de há longa data, retribuírem-se as gentilezas aceites pelo Natal.

Ao anoitecer, depois de ter saído o último freguês, cerram as lojas as suas portas e as contas dos ábacos deslizam rápidas pelas varetas que as seguram aos caixilhos, sendo lestamente movidas pelos frementes dedos dos caixas. Se o resultado do negócio durante o ano for positivo, o patrão sorri de satisfação e chalaça, folgazão e de bom humor, com os empregados, concedendo-lhes uma generosa gratificação; se for negativo... com uns avozinhos se compra um boiãozinho de ópio que, ingerido com água, nunca traiu ninguém, nunca deixou "perder a face" a nenhum negociante insolvente. Outras vezes são os moradores que acordam sobressaltados durante a noite com o estridor de desabalados carros de incêndio, que vão atalhar as chamas de uma loja que ardeu sem se saber como. Porém, no dia seguinte, correrá à boca pequena que o seguro irá pagar a dívida de certo comerciante, cuja falência já estava prevista.

Como é sabido, os chineses costumam liquidar as suas dívidas no período que decorre do dia 15 do último mês lunar, até à véspera do Ano Novo, a fim de poderem continuar a obter créditos no ano que vai iniciar pois lá diz o brocardo nativo Fân-hâu-in; nin-mán-tch 'in 飯後烟,年晚錢 isto é, "terminada a refeição, fuma-se; no fim do ano - dinheiro".

Ora, na China, embora o país não seja pobre, poucos são aqueles que participam, equitativamente, da grande riqueza nacional, que está muito desigualmente distribuída. Sendo os chineses uma raça essencialmente comercial são, no entanto, prejudicados por um certo grau de pobreza, que os leva, quase todos, a deverem dinheiro uns aos outros. Uma grande parte da população é agrária e, como todos os membros da classe rural, os aldeões chineses são obrigados a contrair empréstimos com os prestamistas das suas aldeias, que lhes levam, usurariamente, o mínimo de 3% ao mês, a fim de poderem adquirir sementes, fertilizantes e as indispensáveis alfaias. Além disso, os chineses e principalmente os aldeões, que são extremamente conservadores, necessitam de observar com certa pompa algumas cerimónias verdadeiramente ruinosas, como são os casamentos, os funerais e os aniversários, importando qualquer uma dessas festas realizadas com certo comedimento, mais ou menos, o mesmo que dois máu 畝 (cada máu equivale a 6,75 ares) de boa várzea, pois grande é o número de bolos, de porco assado, de vinho, de pivetes, de panchões, etc. que têm de ser distribuídos e consumidos em tais ocasiões.

Tanto os aldeões como os pequenos comerciantes auferem, geralmente, escasso lucro, que mal chega para o seu sustento e o das suas famílias; e assim é muito natural que vivam, normalmente, de empréstimos. Os dias que precedem o Ano Novo são dias de torturante ansiedade, pois necessitam de satisfazer as suas dívidas ou renovar os seus empréstimos. Como tanto o credor como o devedor necessitam ambos de dinheiro, a última Lua do ano é a data da liquidação anual das contas de toda a nação chinesa, visto que todos precisam de pagar a alguém.

Noutros tempos, um devedor chinês era muito mais feliz, pois podia calotear com desaforo, visto que, no caso de não lhe ser possível, por qualquer dificuldade, saldar os seus compromissos, bastava-lhe recorrer ao expediente, tolerado pelo código consuetudinário de usos e costumes nativos, de se conservar fora das vistas do credor, pretextando doença de grande gravidade, caso fosse procurado em casa.

Mas, até ao dia do ano, o credor podia ainda instar com o devedor pelo reembolso do seu dinheiro, quer perseguindo-o na rua como um cão de fila, quer instalando-se à porta da sua residência, para lá passar o dia, sendo-lhe permitido insultá-lo e ameaçá-lo, acontecendo não raras vezes chegarem os dois a vias de facto, por se tratar, de pessoas de baixa condição. E mesmo depois de ter raiado o sol do novo ano, o credor podia correr atrás do devedor, desde que levasse na mão uma lanterna acesa que, para ele, significaria não ter ainda terminado o último dia do ano, podendo portanto o devedor restituir-lhe ainda o dinheiro que ele lhe emprestara, "sem perder a face". Por isso, um devedor que por necessidade tivesse saído à rua, uma vez que pressentisse estar sendo perseguido pelo credor, procurava alcançar o mais rapidamente possível o templo mais próximo, pois, uma vez refugiado no inviolável recinto sagrado, ninguém mais se atreveria a importuná-lo, sendo-lhe então permitido respirar livremente, pois assim só terá de pagar a sua dívida, no 5° dia da 5ª Lua, data da Festividade do Barco Dragão.

Porém, chegado o dia do Ano Novo, era lícito ao devedor paramentar-se com o seu melhor fato, podendo até ter a desfaçatez de visitar o seu credor ou receber a visita deste, sem sombra de acanhamento e o mais prazenteiramente possível, procurando ambos exceder-se em rasgados cumprimentos e trocarem entre si as maiores amabilidades e as mais corteses saudações, e, não obstante a fúria que remorderá intimamente o credor, ou a inquietação que o devedor se esforçará por dominar, nem um nem outro se atreverá a violar a pragmática, fazendo a mais leve alusão sequer acerca da dívida em questão, que ficará para ser saldada na melhor oportunidade.

Um dos assuntos que mais preocupa o chinês, na véspera do ano, é a substituição dos dísticos agoureiros, que se encontram colados não só nos dois lados e em cima da porta principal, como em quase todas as portas do interior da sua residência, inclusivamente as da cozinha. Tais dísticos exprimem desejos de venturas, sucessos nos negócios, numerosa prole, descendência ininterrupta, longa vida, honrarias e riquezas, ocupando, porém, lugar proeminente o carácter fôk 福 (felicidade), elegantemente caligrafado em grandes recortes de papel vermelho com o formato de losangos.

Segundo dizem, o uso desta letra não data de há muito tempo. Quando os manchus conseguiram subjugar a China, o povo chinês tratou de mostrar, por todas as formas possíveis, o seu desafecto pela dinastia intrusa. Houve, então, quem se tivesse lembrado, levianamente, de colar à porta da sua residência a figura de uma mulher, tendo apertado contra o peito um limão e com pés enormes e descalços, alusão directa à baixa origem da imperatriz. O sentimento de revolta entre o povo era ainda tão grande, que todos aqueles que não podiam conformar-se com o jugo estranho apuseram também a picaresca caricatura na porta principal das suas moradias. Hông-Mou 洪武 (1368-1399 A. D.), o usurpador, indignado com tão grande desacato, e vendo neste acto princípios subversivos, mandou pintar, na porta das residências daqueles que lhe eram leais, o carácter fôk 福(felicidade) e, no dia seguinte, todos aqueles cujas portas de habitação não tinham sido exceptuadas com essa letra, foram degolados.

As tarjas de papel sobre as quais se encontram pinceladas as frases auspiciosas como hói-mun kin-hei 開鬥見喜 (abrindo as portas depara-se com a alegria), e que costumam estar afixadas nas portas dos diversos aposentos, são sempre de cor encarnada, porquanto as de cor azul ou branca indicam que uma família está de luto, não sendo substituídas na época do Ano Novo, se o falecimento ocorreu há menos de cem dias. As tarjas de cor amarela ou alaranjada são usadas apenas nos templos.

Outrora, nas tabuletas das lojas, era costume pendurarem-se várias espécies de imitações de moedas, feitas em papel, que costumam ser queimadas em cerimónias religiosas, destinando-se as mesmas a demonstrar o desejo de bom negócio e prosperidade durante o ano. O mote em evidência nas lojas é mán-si íeng-tong 萬事應當isto é, "que todos os negócios corram com êxito".

Além dos dísticos auspiciosos, os chineses costumam também colar nas suas portas, nessa ocasião, as efígies dos Mun-Sân 門神 (Deuses das Portas), que foram, em época desconhecida, dois irmãos que viveram debaixo dum pessegueiro tão grande, que cinco mil homens de braços estendidos não conseguiam abraçar o seu adansonesco*tronco. Por terem sido amigos dos homens que defendiam, desinteressadamente, contra os ataques dos demónios, lançando ti-gres contra estes, foram muito cedo venerados pelos funcionários do estado, que costumavam colocar as suas estatuetas, fabricadas em madeira de pessegueiro, no alto das portas das suas repartições. Com o tempo, as imagens dessas divindades passaram a ser gravadas em tabuinhas até que, por último, foram substituídas por gravuras em papel, sendo facilmente identificáveis por trazerem, na parte inferior, um pessegueiro em flor. Há, porém, quem conte que os Deuses das Portas foram em vida dois dedicados generais do Imperador T'ái-Tchông 太宗 (627-650 A. D.). Este, após o seu fiasco, na expedição que empreendeu contra a Coreia, passou a ser perseguido por súcubos*. Os dois generais, condoídos com o desespero em que vivia o ilustre amo, resolveram postar-se, cada um, nas portas da sua alcova, prontos a lutar com os demónios que pretendessem franqueá-las para irem perturbar o seu imperial senhor. Estes, que conheciam a indomável bravura daqueles dois guerreiros, não se atreviam a acometê-los. E assim se foi passando o tempo, até que conseguiram atinar com uma porta secreta, por onde puderam penetrar nos aposentos do Imperador. Mas, Uâi-Tcheng 魏徴, outro famoso general, ofereceu-se para ficar de guarda a essa porta. O Imperador, vendo, porém, que não era justo que os seus fiéis generais se sacrificassem perdendo as noites em vigília, só para o seu bem-estar, lembrou-se de mandar pintar nas portas as suas efígies. A obra foi tão bem executada que os demónios, iludidos pela flagrante semelhança dos retratos, continuaram a não se atrever a penetrar nos aposentos imperiais. Ante a indiscutível eficácia de tão simples processo de afastar os espíritos malfazejos, o povo passou também a colar as imagens desses guerreiros nas portas das suas residências.

Ora, salvaguardadas as habitações da invasão dos seres perniciosos com a aplicação de dísticos e imagens, apresta-se então a família chinesa para ir cumprimentar os seus parentes que moram sob outros tectos, sendo praxe realizarem-se tais visitas na antevéspera do dia do ano. Os jovens são também obrigados a visitar os seus mestres que, para os chineses, são as pessoas mais importantes, a quem logo depois dos seus pais devem o maior respeito. Estas visitas realizam-se com o fim de se despedirem do ano e, antes de regressarem ao lar, os indivíduos caridosos e de haveres costumavam deambular pelas ruas, seguidos de um criado com dinheiro miúdo, para ser distribuído pelos necessitados. O código da civilidade chinesa permitia também que se entrasse em casa daqueles que choravam e lamentavam, em voz alta, as suas dificuldades, a fim de os socorrer e consolar.

Entretanto, em casa, são pela última vez limpos os móveis, coisa que ainda muitos chineses só fazem uma vez ao ano, e vão-se buscar debaixo das camas uma série de caixas cilíndricas ou quadrangulares, feitas de folha de Flandres e de diversos tamanhos, donde são extraídas, com grande cuidado, as mais preciosas porcelanas que nelas se encontravam guardadas e envolvidas em algodão, para serem colocadas em lugares onde possam atrair bem a atenção das visitas. Pelas paredes penduram-se também pinturas que levam as assinaturas e os selos das mais afamadas e remotas celebridades. Sobre peanhas e mesinhas dispõem-se vistosas jarras com ramos de pessegueiro em flor, jardineiras com junquilhos, seguros por alvos seixos, e fruteiras com romãs e cidras. Os cozinheiros, por sua vez, apressam-se no preparo de finas iguarias de soante e auspiciosa nomenclatura, como sin-kâi 仙鷄 (galinha de fadas), kâm-tch'ín-kâi 金錢鷄 (galinha de sapecas de ouro), etc. e, no caso de se terem esquecido de algum condimento, as mercearias condescendentes ainda venderão, através de um postigozinho, aquilo que os retardatários necessitem.

Findos os trabalhos da culinária, os poços são fechados, visto que os espíritos que os defendem também têm direito ao descanso. Pelas ruas correm os rapazes gritando: "vendo a minha estupidez", ou "vendo os meus maus hábitos a fim de ter mais juízo para o próximo ano", enquanto que os supersticiosos, antes das oito da noite, vão colocar uma peneira em cima do fogão e, sobre ela, uma bacia de água onde se encontra mergulhado um espelho. Em seguida, postam-se à porta da rua e quaisquer palavras auspiciosas que ouvirem, às primeiras pessoas que passarem, são para eles indícios de grande prosperidade para o ano todo.

Ao crepúsculo da véspera do Ano ou mesmo no próprio dia, compram-se à porta da casa as imagens de Tch'ói-Sân 財神 (Deus da Riqueza) que são apregoadas e vendidas pelos garotos de rua.

Para que os deuses não deixem de proteger os membros da família, no Ano Novo, colocam-se diante da sua imagem cinco espécies de chá, cinco taças com vinho, cinco pares de fái-tchi 快子 (pauzinhos destinados a levar a comida à boca), pois, na China, cinco é o número sagrado e, como já ninguém necessita de sair, a porta principal é selada pelo dono da casa com papel encarnado, para impedir a fuga da felicidade e obstar a entrada dos 72 espíritos malévolos que estão constantemente atrás das portas não defendidas por amuletos ou talismãs, à espera duma oportunidade para entrarem. Em casa de indivíduos que vivem na mediania, a porta é selada com a intenção de evitar a entrada do espírito de P'ei Fu-Tchâi 貔虎仔 um maganão que tira aos pobres o pouco que estes têm, para dar aos ricos, com o fim de retribuir a generosidade dos abastados que passam o ano a auxiliar os pobres.

Antes do galo cantar, anunciando o romper do dia do Ano Novo, são espalhados no pátio ramos de ciprestes, de pinheiro e de sésamo para defenderem a casa da invasão dos demónios, pois estes, ao caminharem sobre tais ramos, não conseguirão evitar que eles estalem, denunciando a sua presença, o que os obrigará a fugir espavoridos.

Na tarde da véspera do dia do ano - o nin sám-sâp mán 年三十晚 (noite de 30 do ano), ou abreviadamente nin-sâm mán, celebra-se em todas as casas e lojas chinesas uma reunião, destituída de qualquer formalidade especial, mas à qual deverão comparecer todos os membros da casa ou empregados da loja, para o t'ünnin 團年, lauto banquete de despedida do ano, que deverá decorrer no meio da maior alegria.

Em rigor, no t'ün-nin que se celebra em casa não poderá participar nenhum indivíduo estranho à família. Antes de se iniciar o banquete, é costume venerarem-se os antepassados e, em certas lojas, fazem-se ofertas de petiscos aos patronos dos respectivos ramos de negócios ou de profissões, ligeira cerimónia que termina com a colocação de vários pivetes acesos em frente das suas imagens, acompanhada duma barulhenta queima de panchões.

Findo o t'ün-nin ,e saudado que seja o ano que nasce, com a queima dos p'au-tchèong 炮丈 e fogos de artifício, os donos da casa dirigem-se para a sala de recepção e, sentados cada um no seu respectivo cadeiral, esperam compenetrados e imperturbáveis os cumprimentos de todos os membros da família que lhes vêm, respeitosamente, "bater a cabeça", um a um, segundo a ordem de ancianidade, ao mesmo tempo que murmuram ieng-tóng 應當 (eu devo, isto é, é da minha obrigação), simples fórmula com que rendem o seu preito de obediência e de submissão aos venerandos chefes da sua casa.

A noite da véspera do Ano Novo é passada em vigília (sâu-sôi 守歲, isto é, vigiar o ano) e, com a aproximação da meia noite, os membros da família juntam-se em frente do altar de sacrifícios, para venerarem os Espíritos do Céu e da Terra, os Penates e as estelas ancestrais, batendo-lhes a cabeça em sinal de despedida do ano que vai passar e, logo à hora zero, para saudarem o novo ano que desponta.

Há, porém, muitos que, por nervosa e incontida precipitação ou quiçá por falta de relógios, muito antes do soar das doze badaladas liquidadoras do ano que expira, chegam o lume a uns pacotes de panchões, para acolherem com apressada servilidade o invisível regresso do Deus do Fogão. Dado este sinal, inicia-se a mais inconcebível barulheira possível, produzida pelo contínuo crepitar de milhões e milhões de panchões que estalam, rebentam e explodem, entremeados com os estrondosos estouros de milhares de petardos que troam, cavamente, como salvas de artilharia. Os argentários, fazendo arder intermináveis fitas de panchões, localmente designadas por "cambadas" e que finalizam em vistosas girândolas, sendo a sua extensão e duração destinadas a patentear o grau da sua divícia*; os remediados, limitando-se a lançar, modestamente, das janelas das suas humildes moradias comezinhos maços de cartuchinhos de invólucros, igualmente encarnados e barulhentos, tudo detonando, tudo explodindo, numa dementada orgia de desenfreado e atroador barulho, enchendo a densa atmosfera duma fumarada sulfurosamente asfixiante, que evola com extrema lentidão, pois a humidade predominante em tal quadra do ano não permite a sua rápida dissipação.

Queimam-se panchões para saudar o regresso do Deus do Fogão, para proporcionar alegria aos outros deuses, para provocar o contentamento e a alegria entre os mortais e para afugentar os espíritos malévolos ou amedrontar os buliçosos demónios.

Dizem que, noutros tempos, os missionários complacentes e tolerantes, compreendendo o lastimável fraco dos chineses pelo barulho, viam-se, algumas vezes, obrigados a condescender também numa queima de panchões, no momento mais solene do sacrifício divino.

O rito litúrgico do Ano Novo Chinês é iniciado logo depois da hora zero. Uma vez concluídos os aprestos do serviço religioso que se vai celebrar, estando já o altar de sacrifícios armado e todos os membros da família devidamente paramentados com a sua melhor vestimenta, o chefe da casa, geralmente um venerando ancião, envergado na sua mais rica garvaia* de seda, dirige-se vagaroso, hierático, com toda a gravidade e ligeiramente curvado pela idade e pelo peso da responsabilidade da sua estema*, pois é ele quem tem de prestar contas às divindades e aos seus avoengos do comportamento moral de todo o seu clã, para uma mesa, colocada no centro da sala principal da casa, onde se encontra exposto um recipiente de madeira ou uma malga de vistosa porcelana, contendo arroz fumegante e entre cinco a dez pratos de diversas hortaliças e duas velas de sebo acesas, pintadas de vermelho e firmemente seguras por altos castiçais de baço estanho. Sobre a mesa encontram-se também espalhadas hastezinhas de cedro ou flores e, no arroz contido no recipiente de madeira, rodeado de fruteiras que ostentam pirâmides de tangerinas ou de mandarinas, encontram-se espetados dez pares de Fái-Tchi, enfiados em imitações de moedas feitas em papel, pendendo dum deles, por meio dum cordãozinho vermelho, um calendário do novo ano. No perfumador de bronze, ardem três pivetes ou um só, cuja massa é, porém, feita de ingredientes odoríferos. Não entra nas oferendas que vão ser propiciadas ao T'in-Sân 天神 (Deus do Céu) e Tei-Tchü 地主 (Senhor da Terra) qualquer espécie de carne, sendo no entanto imprescindíveis dez taças de chá e outros tantos símpulos*. No norte da China, o arroz é substituído pelo sorgo, exprimindo tal oferenda a gratidão pelo sustento proporcionado durante o ano que transitou e a esperança de grande fartura para o ano vindouro.

O patriarca, venerando chefe da família, acompanhado pelo numeroso séquito composto dos membros das diversas sóboles* que constituem a complicada orgânica dos clãs chineses, oficia, então, por observância consueta*, como sumo sacerdote, executando, solenemente, a "oferta do arroz". Prostra-se, com toda a humildade e, genuflectido sobre uma pequena almofada, reverencia as divindades do Céu e da Terra, batendo três vezes com a fronte no chão, cerimónia conhecida em vernáculo, por k'âu-t'âu 叩頭 (bater a cabeça), e que é saudada pelo alacre crepitar de várias fiadas de panchões. Levanta-se em seguida e deposita na mesa um ou três pivetes de que deveria estar munido, antes de se aproximar. Às invísiveis divindades do Céu e da Terra, o patriarca, cônscio da solenidade do momento, com a voz embargada pela comoção, endereça, cheio de mística unção, piedosas palavras de fundo agradecimento pelos benefícios que lhe foram dispensados, bem como à sua numerosa prole, no ano que transitou, e impetra-lhe com fervor a indispensável protecção para os seus futuros negócios ou empreendimentos, bem como a paz e o sossego para o seu lar, cerimónia que termina com outra salva de panchões e que é repetida, durante a primeira vigília, por todos os membros da família que moram ao abrigo do mesmo tecto, por ordem hierárquica descendente.

Há no entanto famílias chinesas que preferem celebrar todo este ritual no pátio, sob a misteriosa luz das estrelas e dos lampiões-balões.

A baixela, com os seus respectivos conteúdos, permanecerá na mesa durante um ou dois dias sem ninguém lhe tocar, pois tudo quanto nela se encontra é destinado ao repasto das duas divindades do Céu e da Terra.

Procede-se, seguidamente, à celebração do segundo rito, oferecendo-se aos numes tutelares, aos penates e aos lares, que são o Tchou-Uóng 灶皇 ou Tchou-Kuân 灶君 (Deus do Fogão), os Mun-Sân 門神 (Espíritos das Portas), o Mun-Kun 門官 (Deus Guarda-Portão), os Mun-Hân T'ou-Tei 門口土地 (Deuses Locais das Portas), os deuses das entradas e a Mou-ku-ku 母姑姑 (Deusa da Costura e das Latrinas) uma bandeja com algumas malgas de arroz, hortaliça e comida preparada com min 麵 (macarrão Chinês) e aletria, de mistura com legumes e plantas secas, isto é, o tchai 齋 (comida vegetariana de abstinência), diversas frutas, três Fai-tchis, três taças de chá e idêntico número de símpulos.*

O mulherio, mais devoto e mais supersticioso que os homens, amplia tais oferendas às outras divindades, como ao Deus da Sala Central, ao Espírito dos Poços e ao Deus e à Deusa do Leito, que protegem as alcovas e impedem as crianças de cair das camas, sendo por isso especialmente venerados durante todo o ano com frutas, vinho, gengibre avinagrado e ovos pintados de encarnado, que se colocam numa mesinha à cabeceira das camas, os Sán Ku 三官 (Os Três Soberanos do Céu da Terra e da Água) do tauismo; e o U-Lôi-Fát 如來佛 (Tatagata), o Sek-Ká-Mou-Ni 释迦牟尼 (Squiamuni), a Kun-lân 觀音 (Deusa da Piedade), do budismo.

Repetem-se, neste acto, os mesmos agradecimentos, impetram-se novamente os mesmos benefícios, acendem-se igualmente velas, pivetes, e paus de sândalo, fazem-se idênticas prostrações e o ofertório termina do mesmo modo que a cerimónia anterior com uma alacre salva de panchões e a queima de imitações de lingotes de prata e de oiro feitas em papel, bem como os tchi-má 纸馬 (cavalos de papel), ou má-tchèong 馬長 (folhas de cavalo), isto é, um maço de 100 imagens de quase todas as divindades chinesas.

O tchi-má representa uma vaga reminiscência do antigo costume de se celebrarem os sacrifícios com animais vivos, principalmente equídeos que foram, com a evolução do tempo, substituídos por figuras de madeira, depois por imitações feitas de trapos e, finalmente, no reinado do imperador Meng-Uóng 明皇. (713-756A. D.) da dinastia Tóng 唐, por cavalos de papel, sendo hoje simples folhas de papel com grosseiras imagens coloridas de heróis divinizados, ou a cavalo, ou tendo este animal ao seu lado.

Os ritos religiosos do Ano Novo Chinês terminam com a veneração dos espíritos dos antepassados, representados pelas estelas dos antepassados, pelas estelas ancestrais, perante as quais se genuflecte, com profundo acatamento, o chefe da família que, em nome de todos os seus descendentes, balbucia uma breve e improvisada oração, tributando gratidão devida aos avitos* por toda a protecção e benesses que os membros da família lhes devem, inclusivamente a própria existência de cada um.

Os rescendentes manjares que foram oferecidos apenas por intenção aos espíritos que habitam tais estelas, e que deles só aproveitam o aroma e os vapores são, em seguida, tragados por todos os que se encontram presentes, de conformidade com as prescrições do arcaico código dos costumes chineses.

As estelas ancestrais, onde figuram os nomes póstumos dos antepassados, costumam, algumas vezes, ser marcadas a tinta vermelha, e outras, com o sangue da crista dum galo, sem o que não se consideram espiritualizadas, e o culto dos antepassados só pode ser praticado por aqueles que deles descendem em linha directa. Os que não possuem as estelas dos seus avitos*, colocam, no alto da parede ocidental do quarto principal, um saquinho preto, contendo um quadrado de papel com os nomes dos seus antepassados.

Entre as grandes famílias do interior da China, onde cada aldeia é formada, exclusivamente, por uma só tribo, as estelas dos antepassados são, porém, guardadas num edifício apropriado, o Pavilhão dos Antepassados, não sendo raro encontrarem-se ali trinta ou quarenta estelas mortuárias que representam outras tantas gerações. Porém, só são retiradas dos seus nichos e expostas no altar dos sacrifícios as estelas dos mais recentes, não chegando nunca a ser tributada a veneração para além dos que pertençam à quinta ou sexta progénie.

Repete-se, em seguida, a liturgia do tríplice culto do Céu e da Terra, das divindades caseiras e dos antepassados e, como os espíritos dos últimos coabitam com os membros da sua família durante duas semanas, são-lhes oferecidos: comida composta de cinco variedades e servida com cinco pares de fái-tchi 快子, cinco taças de vinho, e toalhas humedecidas com água quente, para os habilitar a limparem as faces, bem como um almanaque, para se inteirarem das festividades e dias aziagos do ano em que deverão intervir em benefício dos seus descendentes.

As cerimónias familiares do Ano Novo principiam logo após a celebração do tríplice rito religioso e, outrora, o chefe de família, mal acabavam de soar as doze badaladas, era graciosamente convidado e afavelmente conduzido até junto da cadeira de honra, onde se deixava conservar rigidamente assentado, como prescreve o código de boa compostura, que não permite relaxamento de atitudes, para receber as respeitosas saudações dos membros da sua numerosa prole que, formados aos pares, para ele se encaminhavam, compassadamente, e, uma vez chegados aos seus pés, se prosternavam, curvando a cabeça de forma a tocar três vezes com a fronte no chão, em sinal de submissão, murmurando ainda, genuflectidos, a simples fórmula ieng tóng 應當, (eu devo, ou melhor, é da minha obrigação), ou tch'eng-ón 請安(desejo-lhe sossego).

Na rendição deste preito de humildade e de obediência ao chefe de família, era indispensável a rigorosa observância de hierarquia, sendo cedida a precedência aos descendentes directos, por mais novos que estes fossem, pelos restantes parentes, simples enxertos na vetusta árvore genealógica da sua veneranda estirpe.

Em seguida, os membros mais novos da família reverenciavam, da mesma forma, os parentes mais idosos que encontrassem presentes, sendo os tios obrigados a conservarem-se em pé, por não terem o direito de receber, assentados, tais homenagens.

Os esposos não trocavam entre si quaisquer cumprimentos do Ano Novo, mas as concubinas, eufemisticamente designadas por siu-seng 小星 (estrelas menores ou secundárias) eram obrigadas a desejar o bom ano, executando iguais reverências ao seu concubinário e à mulher legítima deste.

Actualmente, a genuflexão e o acto de "bater cabeça" são substituídos por uma simples vénia, traduzida por uma profunda inclinação de cabeça, o que é, sem dúvida, muito menos complicado e menos servil que as prostrações da antiga etiqueta que prescrevia oito "graus de submissão" dos quais o mais simples e menos importante é o kông-sâu 拱手(junção das mãos) que consistia em unir as mãos e levá-las à altura dos olhos ou alçá-las até à fronte. Seguia-se-lhe o tchèong-iâp 作辑 (fazer saudação), longa mesura com as mãos unidas. O ták-kâu 打救 (o cumprimento era executado fazendo-se a mesura acompanhada da flexão de um dos joelhos). O kuâi 跪 (ajoelhar) era a genuflexão, sendo, porém, o k'âu-t'âu 叩頭. (bater a cabeça) de todos o mais importante. Esta última reverência era executada uma, três, seis ou nove vezes, conforme a importância social das pessoas a quem era prestada. Na presença do imperador todos tinham de executar as três genuflexões e as nove prostrações. Os manchus impuseram mais tarde o costume da flexão dum joelho, ao mesmo tempo que se abaixava a mão direita até tocar o chão.

A cada indivíduo que lhes deseje felicidades, os membros mais idosos, ainda hoje, são obrigados a remunerá-los com uma gratificação, cuja quantia varia conforme a consideração ou estima em que é tido o recipiendário, quantia essa que se entrega embrulhada em uma folha de papel escarlate, ou encerrada num sobrescrito também encarnado, vulgarmente designado por hông-páu 紅飽 (pacote vermelho). Esta dádiva é, em si, uma requintada forma de se exprimirem os desejos de boa felicidade, sendo por isso que, nos dias em que duram as festividades do Ano Novo, os chineses andam com as algibeiras recheadas de pacotinhos ou de pequenos sobrescritos vermelhos, contendo a maioria deles uma simples cédula de vinte avos, com que mimoseiam as crianças e os criados dos filhos dos seus amigos que encontram nas ruas e nas casas destes, quando a elas vão em visita. É acto de insultuosa descortesia o não distribuir lâi-si às crianças dos outros hóspedes que se encontrem presentes em tal ocasião, mesmo quando os seus pais não sejam pessoas das suas relações ou do seu conhecimento. Dá-se também lâi-si a qualquer indivíduo solteiro que, por não ter ainda mulher, é considerado como uma criança.

Os rígidos costumes chineses proibem quaisquer exageradas exteriorizações de sentimentos afectuosos entre parentes e tal abstenção coaduna, de resto, com o feitio pouco expansivo deste povo, sendo por tal facto que as manifestações de alegria pelo Ano Novo são na intimidade caracterizadas por certa frieza.

Entre as três e as cinco horas da madrugada, à hora do Tigre, o chefe de família dirige-se para a porta principal da sua residência, para quebrar os selos, isto é, para arrancar os papéis com que fora selada na noite anterior, e, como existem nada mais nada menos que setenta e dois demónios que aguardam esta oportunidade para invadirem a casa, não se descuidará de murmurar nessa ocasião uma fórmula auspiciosa, como por exemplo, "que o Novo Ano nos traga grandes riquezas", cerimónia esta que se denomina "abertura da porta da fortuna" e que correspondia às cerimónias da "selagem" e "quebra de selos" que se efectuavam, no tempo do império, antes e depois das festividades do Ano Novo, em todas as repartições públicas do país.

Terminadas as cerimónias de saudações e depois de se repetir o tríplice rito, encaminhavam-se todos os membros da família para a sala de jantar para almoçar. Neste dia de rigorosa abstinência, os chineses só comem iguarias vegetarianas como o tchái 齋, prato vegetariano confeccionado com algas, cogumelos, amendoins, gincós, fungos e feijão soja seco, que nem por isso deixam de ser agradáveis e apetitosos, pois, sendo os chineses dotados dum sentido gustativo extremamente apurado, a culinária é praticada no país com inexcedível requinte.

Figura também na ementa dietética desse dia certa espécie de amêijoas chamadas fát-tch'ói-tái-hin 發財大顯 (grande prosperidade), passando geralmente todos a manhã do ano com a sua família, para cumprirem devotamente os deveres do tríplice rito. Nas grandes cidades generalizou-se o costume de se frequentarem os restaurantes e os salões de dança.

Findo o almoço, dirigem-se todos os membros da família para a sala de recepção, onde se deixam ficar para entreter as visitas que não tardarão. Esta sala costuma, em dia do Ano Novo, estar decorada a primor. Os belos reposteiros de seda ou cetím escarlate, profusamente bordados com símbolos e alegorias mitológicas, velando discretamente as portas dos aposentos mais íntimos; o luxuoso mobiliário de laca ou de pau preto, preferindo uns peças elegantes pela sobriedade das suas linhas puras, outros as que se evidenciam pela profusão de relevos e de rendilhados e, ainda outros, as que ostentam, sumptuosamente, admiráveis embutidos de madrepérola; as vetustas aguarelas de afamados autores da antiguidade, desenroladas pelas paredes de forma a cobri-las em quase toda a sua altura; os preciosos exemplares de cerâmica sobre delicadas peanhas, manipulados em recuadas dinastias, e que só se retiram das suas caixas de latão, em que de ordinário costumam ser resguardados, e arrancados em dias tão festivos como os do Ano Novo; e os imponentes ou artísticos lampiões de vidro policromado pendendo do tecto, tudo isso constitui um verdadeiro regalo para os olhos dos visitantes.

Hoje em dia, na maioria das casas chinesas, principalmente nas dos novos ricos, predomina o mobiliário europeu sendo manifesto o mau gosto e disparatada a escolha das peças que o compõem. É verdadeiramente lamentável como se pretende, actualmente, arremedar irrisoriamente tudo o que é estrangeiro, com tão grave detrimento para a requintada arte nativa.

À chegada de qualquer visita, o chinês que se preza de ser educado e de conhecer as velhas praxes, costuma recebê-la, acompanhado da sua esposa, à porta da casa. A visita, ao aproximar-se de um a dois metros dos donos da casa, saúda, sendo simultaneamente correspondida, dizendo, efusiva e mutuamente kông-hei, kông hei 恭喜,恭喜 e kông-hei fát-tch'ói 恭喜發財 que significam "respeitosas alegrias, respeitosas alegrias" e "respeitosas alegrias e que as riquezas se manifestem".

Essas saudações são sempre acompanhadas do respeitoso gesto de se levantarem as duas mãos, arqueando-se os braços de forma a que as extremidades dos dedos duma mão se apoiem ligeiramente nos nós dos dedos da outra, devendo as mãos assim unidas mover-se, airosamente, e três vezes, de cima para baixo, da altura do nariz até ao ventre. Indivíduos pouco conhecedores da pragmática limitam-se, porém, a alçar as mãos até ao peito, sacudindo-as ligeiramente como fazem os jogadores de box, quando agradecem do ring as delirantes aclamações dos seus admiradores. Em casos excepcionais, principalmente quando se trata de saudar uma pessoa extremamente idosa, é costume abaixar as mãos até à altura dos joelhos, fazendo-se acompanhar tais movimentos de profundas vénias, sendo o gesto completo considerado o mais respeitoso.

As mulheres ainda fielmente arraigadas aos velhos preconceitos, dobram-se profundamente, baixando as mãos até quase à altura dos pés e, diversamente dos homens, principiam o acto de saudação descendo as mãos unidas a partir da cintura.

Executados os salamaleques e as mesuras da praxe, a visita é convidada a entrar em casa, sendo acompanhada até à sala de recepção, onde se assenta numa cadeira, em obediência ao insistente convite de tch'eng-tch'o, tch'eng-tch'ó 請座,請座 (convido-o a assentar-se) que os donos de casa lhe formulam, cerimoniosamente. Ao hóspede, é oferecida uma taça de chá simples e a ferver. Este recebe a taça com ambas as mãos, para a depor sobre o tch'á-kei 茶凡 (mesinha de chá), que se encontra ao lado da sua cadeira. Acto contínuo, fazem-lhe servir frutas cristalizadas, repartidas por entre os diversos compartimentos dum tch'ün-hâp 全盒 (caixa completa). Muitos chineses substituem hoje os doces nativos por confeitos e chocolates. A conversa é entabulada por entre o contínuo estalar de cascas de pevides tostadas, que são abertas com os dentes, e o mastigar das suas brancas amêndoas. As pevides encarnadas são muito mais apreciadas em ocasiões festivas, não só pela sua cor, que denota alegria, como porque, em razão da sua quantidade, auguram abundância e prosperidade.

Algumas vezes, a visita é convidada para a casa de jantar, onde lhe fazem servir bolos, pastéis e outros salgados próprios desta festividade, bem como alguma bebida alcoólica.

De ordinário a visita não se demora muito e, se se tornar importuna, o dono da casa indicar-lhe-á, polidamente, que chegou o momento dela se apartar, convidando-a a beber, cerimoniosamente, o chá, cuja taça se encontra depositada na mesa que se encontra ao seu lado. O hóspede não deixará de compreender a finura deste gesto e despede-se, desejando novamente um próspero e venturoso ano ao dono da casa, enunciando a fórmula usual de kông-hei fát-tch'ói que muitos, para acentuarem a sua amabilidade, acrescentam com a de si-si ü-i 事事如意 (que todas as coisas decorram conforme os vossos desejos) ou man-si ü-i 萬事如意 (que dez mil coisas decorram segundo os vossos desejos) ou ainda ü-isan-soi 如意顺遂 (que tudo decorra sem empeço e conforme os vossos desejos).

Entre os que se encontram ainda agarrados à tradição, procede-se, no dia dois, à reabertura dos poços, ocasião esta em que é pronunciada uma oração aos espíritos que os defendem, acendendo-se as velas, os pivetes e os incensos no momento em que é extraído o primeiro balde de água, que é acolhido com uma salva de estalinhos.

No dia três, é adorado o Tch'ói Sân 財神 (O Deus da Divícia)*, cuja imagem se encontra também em todas as casas chinesas, sendo, como a do Deus da Cozinha, renovada todos os anos. Os que não puderem possuir uma cópia dessa imagem limitam-se a escrever o nome da divindade numa folha de papel encarnado, enquanto que outros o vão venerar aos templos.

Passado o dia três, as ruas voltam à normalidade. Em casa, desmontam-se os altares e arrecadam-se as alfaias. As lojas voltam a abrir, depois de terem propiciado o Deus da Divícia e feito libações de vinho em sua honra.

É neste dia que os chineses vão pái-nin 拜年, isto é, desejar aos seus parentes e amigos um bom ano, devendo porém ter o máximo cuidado em não escorregarem, por isso ser de um azar extraordinário, tanto para si, como para as pessoas da casa que visitam. Mas tal calistice não é tão grande como a de a primeira pessoa que encontrarem na rua ser uma mulher ou um bonzo.

As frases usadas para desejarem as boas entradas nessas ocasiões são, geralmente, kông-hei fát tch'ói 恭喜發財 ou simplesmente, kông-hei 恭喜 ou então tch'eng-ón 請安 e, porque as crianças poderão pronunciar, impensadamente, frases que só trazem azar, as solícitas mães tratarão de colar nas paredes uma tira de papel com o dístico "frases proferidas pelas crianças não valem" ou então "o Céu e a Terra, a Iâm 陽 (o princípio feminino) e o léong 隂 (princípio masculino) e todos os seres se encontram salvaguardados do perigo de quaisquer palavras azarentas". Para as crianças renitentes, que se obstinam em pronunciar palavras que só trazem infelicidades, é costume esfregar-se-lhes os lábios com papéis, imitando moedas, ou mesmo com notas.

Por fim, para que as casas fiquem, durante o novo ano, completamente isentas das maquinações dos espíritos perniciosos, são convidados entre as famílias mais supersticiosas os bonzos tauistas para as exorcismarem.

O protocolo nativo limita os dias para as visitas de apresentação de cumprimentos do Ano Bom às duas primeiras semanas, sendo porém raros os que se desleixam, protelando para a segunda semana o desempenho dum tão importante dever de cortesia, pois o indivíduo que for visitado na segunda semana é susceptível de se melindrar, tomando tão tardia visita por uma acintosa falta de consideração para com a sua pessoa. Tão pouco é do agrado do chinês a visita feita no terceiro dia do ano, por a sua superstição o levar a acreditar que isso poderá despertar, num próximo futuro, qualquer desagradável desentendimento, causador de inimizades entre a sua e a pessoa que o visitou.

Quanto às mulheres, estas não costumam sair, a não ser cinco dias após o Ano Novo e, nas visitas que fazem, são acompanhadas por uma criada, levando um kápló 盒籮 (bocetas de charão sobrepostas umas às outras), contendo bolos próprios da época e outros mimos para oferecerem às suas amigas.

Na manhã do segundo dia, a velha imagem do Tch'ói-Sân 財神 (Deus da Divícia)*, que se encontra em todos os lares e estabelecimentos comerciais, por ser uma divindade de extraordinária estima, é retirada do seu nicho, incinerada no pátio ou no meio da rua e substituída por uma nova cópia, adquirida na véspera do dia do novo ano, acto este que é assinalado por uma prolongada salva de panchões e oferta de pivetes e incensos, bem como de sacrifícios, que variam conforme as posses de cada um.

Os ricos dedicam-lhe um porco, um carneiro ou cabrito, um peixe - a predilecção desta divindade é pela carpa - e uma galinha, ou então um porco, um peixe e uma galinha. Indivíduos menos abastados limitam-se a oferecer-lhe um porco; os remediados, simplesmente a cabeça deste animal ou um peixe ou uma galinha, e os destituídos da sorte, somente um pouco de arroz, acompanhado de alguma hortaliça.

Propiciadas as oferendas e aceso o vinho contido num simpúvio*, o chefe da família, ou, na sua ausência, qualquer parente masculino, venera a imagem, executando, em frente dela, três prostrações. Este culto pode igualmente ser celebrado pelas mulheres, na falta de qualquer indivíduo masculino na família.

Consumidos os pivetes e os incensos, as oferendas são removidas para a cozinha, onde vão ser preparadas para o repasto da família.

A origem do Deus da Divícia* perde-se na bruma dos tempos. Talvez fosse o Espírito do Norte ou quiçá um dos irmãos dos Deuses Regionais da Riqueza. A tradição, porém, refere-se-lhe como tendo sido um mágico chamado Tchu-Kông-Meng que vivia como um eremita, no monte sagrado de Ngó Mei 娥媚, sendo seu costume andar montado num tigre negro, motivo porque, iconograficamente, o representam ao lado de uma tal fera. O mágico morrera, por um seu inimigo ter feito a sua efígie em palha e disparado, certeiramente, contra o sítio do coração, uma seta feita com pau de pessegueiro. O povo urdiu inúmeras lendas em volta da memória do falecido mágico, conferiu-lhe virtudes e poderes, que ele, em vida, decerto nunca tivera e acabou por venerar a sua imagem, entronizando-a nos seus altares e considerando-o como Deus da Divícia.*

Neste segundo dia do ano são reabertos os poços, cerimónia esta que é precedida de uma oração e o primeiro balde de água que se extrai é saudado com uma salva de panchões, sendo nesta ocasião oferecidos pivetes e sacrifícios aos espíritos incumbidos de manter a vigilância dos poços.

O terceiro dia é, geralmente, passado em casa e os subsequentes em visitas aos templos, a fim de se proceder à renovação dos votos e apresentação de pedidos ao Deus da Divícia* e lançar, nos enormes braseiros de bronze e nos fogões sobre os quais se encontram construídos os altares, grande quantidade de imitações de lingotes de prata e de ouro, que ardem incessantemente, produzindo, com a lenta combustão de grossos e intermináveis pivetes que pendem do tecto,e de incensos e paus de sândalo, uma densa fumarada que sufoca, que faz lagrimar e que entontece, não obstante "serem os templos chineses constituídos por séries de capelas separadas por pátios e terreiros abertos ao ar livre, provavelmente com o preciso fim de se facilitar a renovação do ar. Aos devotos são oferecidas velas de sebo, pintadas de encarnado, para estes as acenderem e deixarem espetadas nos grandes cinzeiros de bronze que se encontram nos altares.

Entretanto, ninguém consegue refrear a curiosidade de conhecer em tal ocasião o seu horóscopo e, para isso, encaminham-se para junto duma mesa, atrás da qual um bonzo agita com vigor um tubo de bambu, para fazer cair umas varetas, onde se encontram marcados os caracteres prenunciadores da sina de cada um e que são interpretados com o auxílio dum esfarrapado e sebento volume de decifrações. Se a resposta causar perplexidade, por ser absurda ou incompreensível a sua significação, pode o interessado fazer repetir a revelação da sua sina, mediante nova espórtula.

Nas aldeias, durante esses dias, realizam-se feiras e levam-se para o tch'i-t'óng 祠堂 (Pavilhão Ancestral) lampiões globulares de papel azeiteado e com letras encarnadas, representando, cada um deles, um filho nascido durante o ano, os quais ficam pendurados no interior do pavilhão enquanto durar a época das festividades, cerimónia esta que é conhecida por tim-teng 添丁 (acréscimo de indivíduos) sendo por tal facto que, ao desejarem-se felicidades a um amigo, costuma-se entremear esta frase com a fórmula usual, dizendo-se kông kei fim-teng fát-tch 'ôi 恭喜添丁發財 que significa "desejo-lhe felicidades, que tenha filhos e que seja beneficiado com riquezas».

No quinto dia, são recolhidos os altares, as imagens e toda a parafernália do culto, arrecadadas as peças que serviram para aformosear o interior das habitações, destruídos os dísticos auspiciosos e varrida a casa.

Na manhã do sexto dia, os donos dos estabelecimentos comerciais, que não conseguem manter-se, por mais tempo, em férias, levantam-se muito cedo para venerarem uma colecção de todas as divindades, representadas em dourado numa folha de papel amarelo, que tiveram o cuidado de adquirir na véspera do ano, e perante a qual cultuaram, durante os cinco dias precedentes, e que é levada nesse dia para o pátio ou para o meio da rua, a fim de ser queimada no meio do estralejar de vários maços de panchões, ao mesmo tempo que se fazem novas libações ao Deus da Divícia,* a quem se implora que entre nos seus estabelecimentos.

Terminada esta cerimónia, recolhem-se os cartazes, onde figura em grandes caracteres a frase Kông-hó sân-hei 恭賀新禧 (respeitosas congratulações e novas felicidades) ou Kông-tchôk tch'ân-lei 恭祝春釐 (respeitosas congratulações e prosperidades primaveris). Pelas ruas, desfilam procissões entusiasticamente organizadas em honra do Deus da Divída,* acompanhadas de vigorosas percussões de bátegas*, de estridentes silvos de charamelas, do rítmico rufar de atabales* e de contínuo estralejar de panchões, e seguidas de atletas incumbidos de fazer bailar o leão de alguma sociedade de cultura física, e empunhando enormes estandartes de seda, cobertos de vistosos caracteres.

Noutros tempos, esses cinco dias de feriado comercial eram estritamente observados. Hoje, porém, até há lojas que se permitem fazer negócio no próprio dia do ano.

O sétimo dia do Ano Novo é novamente celebrado em grande escala, por ser o suposto dia do aniversário universal de todos os seres humanos.

É o lân-tât 人日(Dia do Homem). Os seis primeiros são os dias em que foram criados a galinha, o porco, o cão, o carneiro, a vaca e o cavalo. No oitavo, nono e décimo dias foram criados o trigo, o céu e a terra. Por este motivo, o Ano Novo é considerado o aniversário legal de todos os indivíduos, indistintamente da data do seu nascimento. Assim, uma criança que veio à luz um ou dois dias depois do Ano Novo, é considerada como tendo dois anos de idade.

Na tarde do oitavo dia, costuma realizar-se a cerimónia da dispersão das calamidades, que se destina a levar os deuses a afastarem as calamidades daqueles que lhes são fiéis. Fazem-se então várias torcidas com papéis verdes, encarnados ou brancos, de seis centímetros de comprimento, e rasga-se uma das extremidades às tiras, a fim de o pavio se poder assentar no chão. Ensopam-se, em seguida, esses pavios em óleo e, à medida que vão sendo acesos, vão sendo colocados no chão, a partir do sítio onde se encontra a cama, até à porta principal da casa, e distanciados uns cinquenta centímetros uns dos outros. Sobre uma mesa, que se encontra no meio do pátio, coloca-se um prato com a quantidade de pavios correspondentes à idade do chefe da família. Algumas pessoas só realizam esta cerimónia na tarde do dia 15 do primeiro mês lunar.

De noite, entre as 20 e a 1 hora da manhã, dispõem-se numa mesa colocada no meio do pátio e voltada para o norte, três ou cinco malgas de arroz ou de bolas de farinha em calda, os t'óng-un 湯圓 (esferas adocicadas), em frente da imagem do Deus das Estrelas e uma folha de papel com os signos zodiacais e outras informações místicas respeitantes às constelações, para se prestar o culto às estrelas. Fazem-se arder os incensos e os pivetes e o chefe da família, depois de executar três prostrações, come o arroz e os t'óng-un com o resto dos seus parentes.

Noutros tempos, na tarde do dia 13, os estabelecimentos comerciais costumavam pendurar nas suas fachadas muitos e variados lampiões coloridos. Actualmente, tal costume é somente observado pelas pastelarias e estabelecimentos que vendem folhas de chá, sendo estes lampiões destinados a atrair simplesmente a atenção da multidão de pessoas que passeia pelas ruas, entre os dias 13 e 17, a fim de as levar a entrar nas suas lojas, para adquirirem qualquer mimo destinado a ser oferecido aos seus amigos.

Um dia das férias do Ano Novo é determinado pelo dono da casa como o dia do começo das actividades normais do ano - hói-nin 開年 (abrir o ano) - sendo geralmente escolhido o último dia do feriado, em que as estelas dos antepassados, que foram veneradas todos os dias em que duraram as festividades com ofertas de incensos, pivetes e cinco espécies de comestíveis, são guardadas, e arriados e queimados todos os lampiões de papel, removidos quaisquer outros sinais de festas e queimados os últimos panchões, após um grande banquete que marca o regresso da vida à normalidade.

NOTAS

Jagra - Açúcar mascavado, de palmeira ou de cana.

Lecticazinha - Dim. de léctica (liteira). De lecti, elemento etimológico que exprime a ideia de leito. Lectícula: cadeirinha, pequeno leito.

Ternos - Talhões; pequenos compartimentos ou divisões em gomos que justapostos se encaixam num tabuleiro circular. Segundo alguns autores, estes tabuleiros simbolizam a carapaça da tartaruga, augúrio de longa vida.

Adansonesco - Relativo a Adanson, botânico francês que estudou o imbondeiro (por isso também conhecido como adansónia), árvore de tronco de grande diâmetro.

Súcubo - Designação antiga do demónio que toma a forma de mulher para se entregar a um homem. Demónio a que se atribuíam os maus sonhos. Súcuba: barregã, concubina.

Divícia - Riqueza (poético)

Garvaia - Sub. etim. obscura; há quem tenha mesmo posto em dúvida a existência do vocábulo, considerando-o um erro de leitura resultante do étimo garnacha, que se lhe propunha. Também se lhe atribuiu (Elsa Paxeco) o étimo latino granatica ("Dic. Etim. da Língua Portuguesa", de J.J. Machado, Livros Horizonte). O "Dicionário da Língua Portuguesa" (Editora) regista garnaoha - "Vestimenta talar de sacerdotes e magistrados" (do latim gaunaca, "espécie de manto", pelo prov. ant. ganacha ou garnacha). O "Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa", de António Morais e Silva (Horizonte/Confluência) inclui garnacho (S. m. Pop.) com significado de gabão ("espécie de capote com mangas, capuz e cabeção"). Com significado afim, a palavra garvaia surge na que é considerada a primeira poesia escrita em língua portuguesa (ciclo afonsino), atribuída a Paio Soares de Taveirós, e grafada garvaya, seg. lição de Correia de Oliveira e Saavedra Machado ("Textos Portugueses Medievais). Trata-se da "cantiga" "No mundo non m'ei parella", que alguns especialistas aventam inspirada na bela e célebre cortesã conhecida como a "Ribeirinha". Seg. Carolina Michaëllis de Vasconcelos, o termo continuava em uso ainda em 1340.

Estema - Árvore genealógica.

Símpulo -Tacinha para libações

Sóbole - Gomo vegetal, rebento, vergôntea; fig. descendentes, posteridade, raça, linha.

Consueta - Fundada no costume; tradicional.

Avitos - Avós; antepassados.

Simpúvio - Vaso sagrado, em que os romanos faziam libações nos sacrifícios.

Bátegas- Pratos; címbalos.

Atabales - Antiga designação dos tímbales.

* Investigador e historiador de temas da História de Macau; escritor e sinólogo.

desde a p. 89
até a p.