Filosofia

Um músico português do século XVII na corte de Pequim: o Padre Tomás Pereira

Joel Canhão*

"Era dotado de excepcional destreza no manejo dos negócios, de virtude e prudência não vulgar, humilde, zeloso, amante da pobreza e obediência, mas de natureza um tanto insofrida e índole austera ".

É de tal modo relevante a História que os portugueses escreveram no Oriente, a partir de meados do século XVI, que, depois de uma leitura bibliográfica dos mais variados temas sobre estas paragens, não é possível esconder a perplexidade perante o silêncio que rodeia os estudos inerentes à Música. Seria urgente acordar de vez e pôr à luz do dia também esta irmã, companheira do homem na alegria e na tristeza, para revelar nomes grandes, hoje desconhecidos, que ajudaram a erguer o nome de Portugal.

Mais pobre ou mais rico, há nestes longínquos lugares um passado musical construído por figuras notáveis que a Mãe Pátria ignora e às quais o património cultural deve um importante contributo.

Por aqui deambularam gentes alheias a cansaços e traições sem conta, desenhando a traço firme e determinado as marcas da cultura lusíada. Diante de Imperadores, frente aos mais altos dignitários destes vastíssimos reinos ou no diálogo com homens dados ao estudo - os Letrados de antanho - quantos portugueses fizeram prova indiscutível da mais viva inteligência e capacidade de realização, queimando vidas até à definitiva entrega ao pó da terra?

Espalhados pelos mais variados lugares, foi aqui, em Macau ainda, nesta península situada no Extremo Sul da província chinesa de Kuang-Tung, porta de entrada para o Celeste Império, que os Padres Jesuítas assentaram quartel general no famoso Colégio de S. Paulo, notável centro de cultura onde as Letras, as Ciências e as Artes ocupavam lugar de relevo.

Para além das Matemáticas ocidentais, que introduziram na China, da criação do Observatório Astronómico de Pequim - antiga Pei Ping - da Diplomacia e das Artes, galvanizados pelo ardor missionário ao serviço da propagação da Fé Cristã, tornaram-se autênticos obreiros da civilização moderna no Extremo Oriente.

Por este minúsculo e aprazível lugar do Oriente, lambido pelas águas turvas dos grandiosos rios de Oeste e das Pérolas, passou há mais de três séculos o Padre TOMÁS PEREIRA.

"Descendente de uma nobre família de apelido Costa Pereira, filho de Domingos Costa Pereira e de Dona Francisca Antónia da Costa Pereira, nasceu em S. Martinho do Vale, concelho de Barcelos e arquidiocese de Braga" (1), no "dia 1 de Novembro de 1645" (2).

Quando a 25 de Setembro de 1663 (3), com a idade de 18 anos, ingressa na Companhia de Jesus, em Coimbra, para fazer o noviciado, abandona o nome baptismal de Sancho para adoptar o de Tomás (4).

Decorridos três anos, a 15 de Abril de 1666, jovem de 21 primaveras, parte para a Índia, "não se podendo precisar se aí ou em Macau, para onde veio em 1672, terminou o Curso de Letras, obtendo o diploma de Mestre em Artes" (5).

Constatamos pois que, desde a sua partida para o Oriente, em 1666, e até 1672, decorre um período de seis anos em que permanece uma certa dúvida que os documentos consultados não esclarecem.

Seja como for, TOMÁS PEREIRA estava em Macau no ano de 1672, quando o imperador chinês Kam-hi ou Cang-hi, da dinastia Tsing, o mandou chamar à corte, depois de ter ouvido as referências encomiásticas do célebre astrónomo belga Verbiest. O texto seguinte confirma-o: "depois de ter ouvido falar dos seus dotes e qualidades morais, da sua ciência e particularmente da sua perícia e habilidade rara para a música e maquinaria" (6), enviou uma pequena embaixada dirigida por dois mandarins, para o conduzir de Macau a Pequim. "Os mandarins foram recebidos com todas as honras devidas ao príncipe que representavam, desempenharam-se da sua comissão, e o Padre visitador Valgariano ordenou ao Padre TOMÁS PEREIRA que os seguisse. Chegaram a Pequim em Janeiro de 1673, tendo sido alvo de manifestações de respeito por todos os prefeitos das cidades por onde passavam. Logo a partir das primeiras entrevistas, o jovem religioso foi tão bem acolhido pelo príncipe, que durante 36 anos jamais deixou de receber as suas boas graças" (7).

Sabe-se que a Música foi um dos braços direitos no longo processo de evangelização da China. E como poderia ter sido de outro modo se, das mais remotas incantações aos nossos dias, sempre exerceu fascínio sobre o homem? Na verdade, ela é expressão/comunicação como as outras artes, mas escondendo na essência um reduto de mecanismos profundos que, não obstante o avanço dos estudos realizados, ainda hoje não são totalmente claros ao pensamento.

Tendo sido sem dúvida uma das grandes armas ou um dos dons especiais da personalidade de TOMÁS PEREIRA, não podemos deixar de nos interrogar até que ponto teria chegado a sua cultura neste domínio.

Que teria assimilado em Braga, até aos 18 anos? E em Coimbra, no triénio do noviciado, dos 18 aos 21? E também no Oriente - porque não - onde atingiu o mestrado e onde o panorama sonoro era diferente do do horizonte europeu?

Numa pequena mirada histórica, a Europa renascentista tinha levado a polifonia vocal ao seu maior esplendor. Depois, a grande viragem que o barroco marca no homem e nas artes, de conquista em conquista, encontra novas formas musicais, como a Ópera, a Oratória, a Cantata e o Concerto - que assinala o grande desenvolvimento e a independência dos instrumentos, até então sujeitos à tutela da voz.

Nos 21 anos de vida na metrópole, pese embora tratar-se de uma época da cultura portuguesa já de declínio, que marcas desta evolução teria porventura conhecido TOMÁS PEREIRA, músico?

E no que respeita à perícia para construir órgãos, actividade que implica conhecimentos matemáticos - aliás, uma das suas especialidades -, acústicos, de engenharia e outros, como e onde os adquiriu? Há muitas interrogações sobre a carreira polifacetada deste ilustre português quase desconhecido.

Numa das suas cartas, datada de 30 de Agosto de 1681, e que justamente refere a própria actividade de organeiro, com a humildade que os textos afirmam, escreve, escondendo-se na terceira pessoa: "Pello que fez aqui o mesmo Padre, que a sima, outro orgão, que inclúe em si 4 de diversas vozes entre si... cujo mayor canudo será comprido mais de duas varas de medida. Colocou-se este anno na Igreja: e foi tal o aplauso e concurso que teve, que fomos obrigados a por soldadesca na Igreja e seu pateo, para evitar desordens dos gentios; e da muita turba que concurria a ver, e ouvir cousa nunca vista nem ouvida em sua Corte: sendo obrigado o Auctor a tanger mais de hum mez inteiro cada dia muitas horas, e muitas dellas a cada 4° para dar vasão a muita gente que corria e se renovava a cada quarto de hora...... Cousa notavel foi o aballo que fez nesta Corte o som do nosso orgão nos ouvidos dos gentios, dos quaes muitos, deixando-os penetrar aos da alma, dedusindo della argumento para a ley com a paridade das suas, tomão muitos resolução de seguir a verdadeira, que he o mais desejado fim de nossos desejos" (8).

Há nesta carta, pelo menos três passagens dignas de comentário:

1a: "... outro orgão que inclúe em si 4 de diversas vozes entre si... cujo mayor canudo será comprido mais de duas varas de medida".

"Quatro de diversas vozes entre si" significa que o órgão possuía quatro jogos ou famílias de tubos, a que correspondiam quatro timbres diferentes, obtidos mecanicamente por quatro registos.

Quando refere que "o mayor canudo será comprido mais de duas varas de medida", informa que o comprimento do tubo mais longo excedia 2,20 metros (a vara corresponde a 1,10 metros), donde se deduz que acusticamente emitia o som mais grave do instrumento. Esta indicação não permite, entretanto, determinar a altura exacta desse som, visto que necessitaríamos de outras medidas como a do diâmetro interior do tubo, da altura e largura da boca, da espessura e do orifício do pé.

2a: O passo em que afirma "sendo obrigado o Auctor a tanger mais de hum mez inteiro cada dia muitas horas", pode levantar a questão sobre o tipo de música que teria executado. Música sacra portuguesa? Música improvisada no momento? Música sobre melodias chinesas? Quem o sabe?

3a: ... "Cousa notavel foi o aballo que fez nesta Corte o som do nosso orgão nos ouvidos dos gentios, dos quaes muitos, deixando-o penetrar aos da alma, tomão muitos resolução de seguir a verdadeira, que he o mais desejado fim de nossos desejos".

Esta passagem é muito curiosa porque, revelando-nos uma estratégia de consequências auditivas e psíquicas nos gentios, vem em abono da afirmação que inicialmente fizemos sobre a importância da música no processo de evangelização na China. Testemunha ainda o almejado fim do missionário, cúpula de toda a acção de TOMÁS PEREIRA, para atingir a liberdade da lei de Deus, por cujo édito teria que esperar ainda cerca de onze anos.

Numa segunda carta, de 10 de Junho de 1682, remetida de Pequim, escreve ao Padre assistente de Portugal em Roma, acerca de "uns orgãos que fabricara para o Imperador" e onde diz: "Bem sei que, primo intuitu será extranho ao olho portugues o Apóstolo na missão, entre tantas gaitas; mas espero no Senhor, cuja mayor gloria se canta com ellas, e a cujo fim se temperão, que entre ellas me levaría com outros muytos a gozar de si, ultimo e adequado fim de todos nossos intentos" (9).

Ária chinesa Exemplos de escalas pentatónicas chinesas
modo de Kang modo de Chang modo de Yu
AIRS CHINOIS
Ária chinesa - Fac-simile da notação musical integral de ária chinesa (com clave de sol em 1ª linha) - in "Description Géographique, Historique, Cronologique, Politique et Physique de l'Empire de la China et de la Tartarie Chinoise"- J.J. Du Halde (Tomo III, pag.328).

Aqui, é o ardor missionário que se exprime, traduzindo a procura da expansão da Igreja de Cristo, o seu mais alto ideal.

Ainda uma terceira carta, datada de 1 de Agosto de 1683, acerca de um dos órgãos que muito satisfez o monarca e que TOMÁS PEREIRA descreve assim: "... Dava tãobem... principios a novos orgãos, que o Emperador depois de muitos já, quiz lhe fizesse de novas invenções: hum dos quaes levantado em altura de 12 braças tange de si sem tangedor mudanças chinas, a que o Senhor, cuja gloria, in cymbalis benesonantibus, (de que também constava a machina, incluindo em sy huma ordem de campaynhas bem temperadas, que ao som do orgão tocão de si as mesmas mudanças a compaço) tãobem se acha, deu o sucesso desejado. Foi notavel o applauso que teve a novidade ajuntando-se-lhe a occorrencia de publicas comedias, a que o Emperador por 10 dias assistia, congratulando-se com o povo a paz universal do Imperio, a cuja vista, na sobredita altura, tangendo o nosso orgão de si mesmo com suas campaynhas, fasia soberba figura, da qual se disserão cousas tais, quais a mim me não convem escrever..." (10).

Tal como a primeira, esta terceira carta merece também algumas considerações.

Em primeiro lugar ficamos a saber que TOMÁS PEREIRA tinha já construído vários órgãos para a corte de Pequim. Não sabemos quantos, mas é ele quem o afirma: "... depois de muitos já"; que este novo órgão solicitado por Kam-hi, dotado de "novas invenções", era diferente dos anteriores. Que inovações? Vejamos as palavras do próprio autor: "... hum dos quaes levantado em altura de 12 braças", altura que corresponde a nada menos de 26,40 metros (a braça equivale a 2,20 metros), "tange de si sem tangedor", isto é, funciona sem executante, o que implica a existência de complexos mecanismos automáticos; e ainda "tange... mudanças chinas", o que interpretamos por fazer ouvir danças ("mudanças") chinesas. Não há dúvida que se trataria de um órgão de excepcional engenho, no qual TOMÁS PEREIRA teria posto o máximo da sua perícia para a maquinaria.

Depois, desde a expressão latina "in cymbalis benesonantibus" (por meio de campainhas afinadas), até ao notável pormenor escrito entre parêntesis, "de que também constava a machina, incluindo em sy huma ordem de campaynhas bem temperadas", presume-se que dispunha de um jogo ou família de campainhas ("huma ordem") bem afinadas, tradução de "bem temperadas", que, acopladas com outros jogos do órgão, automaticamente executavam danças locais, a compasso.

A inclusão de um jogo de campainhas neste órgão de novas invenções, sugere-nos outro problema relacionado com a afinação das mesmas, destinadas à execução de danças chinesas.

Na verdade, sendo as escalas musicais do Celeste Império diferentes das escalas europeias, somos levados a admitir a hipótese da construção de um jogo de campainhas afinadas na base do sistema musical chinês, pois não havia necessidade de obter a mesma sucessão de intervalos musicais que caracterizam as escalas do Ocidente. A ser assim, em vez da sucessão heptafónica europeia, teria optado por qualquer modo pentatónico das escalas da China. (Cf. exemplos de Escalas e Ária Chinesa).

Em conclusão, o novo invento traduziu-se no fabrico de um órgão de mecanismo automatizado, provido de um jogo de campainhas que, com o seu brilho especial, enriqueciam a sonoridade do instrumento. Este facto testemunha a excepcional capacidade de observação e de engenho que Verbiest comunicara ao Imperador, quando TOMÁS PEREIRA se encontrava ainda em Macau.

De 1673, ano da sua chegada a Pequim, até à data da última carta referida, escrita em 1683, decorre um lapso de 10 anos, ao longo dos quais é verosímil supor-se uma experiência cada vez maior, face ao mundo sonoro que o rodeava. Que música percebia o seu ouvido atento?

Numa valiosa obra de Du Halde publicada em 1735, intitulada "Descrição Geográfica, Histórica, Cronológica, Política e Física do Império Tártaro Chinês", encontramos uma panorâmica referente à música desse tempo.

Diz o autor: "Ao ouvi-los, foram eles que inventaram a música e gabam-se de a ter levado, em tempos recuados, à última perfeição. Se falam verdade, não há dúvida que se degenerou, porque é agora tão imperfeita que dificilmente merece o nome, tanto quanto é possível julgar por algumas melodias que fiz transcrever, para dar uma ideia. (Cf. uma das Árias Chinesas inserta na mesma obra).

É certo que nos primeiros tempos era tida em grande estima, e o seu sábio por excelência - Confucius - esforçou-se por introduzir os seus preceitos em todas as províncias, às quais confiava o governo. Os chineses actuais deploram vivamente que os antigos livros de música se tenham, infelizmente, perdido.

Fac-simile pag. ob. cit. J.J. Du Halde
Fac-simile pag. ob. cit. J.J. Du Halde
Fac-simile pag. ob. cit. J.J. Du Halde
Fac-simile pag. ob. cit. J.J. Du Halde

De resto, a música é actualmente empregada apenas nas comédias, em certas festas, nas bodas e noutras ocasiões similares. Os bonzos utilizam-na nos ofícios mas, quando cantam, nunca elevam nem baixam a voz um meio-tom, somente uma terceira, uma quinta ou uma oitava e esta harmonia encanta os ouvidos dos chineses. Cantam todos a mesma melodia, tal como se pratica em toda a Ásia.

A música europeia não lhes desagrada, desde que ouçam cantar a uma voz, acompanhada por alguns instrumentos. Mas o que há de maravilhoso nesta música, quero dizer, o contraste de vozes diferentes, sons graves e agudos, sustenidos, fugas e síncopas, não é de modo algum o seu gosto e parece uma confusão desagradável.

De modo nenhum possuem, como nós, notação musical, nem qualquer símbolo que marque a diversidade dos sons, subidas e descidas da voz, e todas as combinações que fazem a harmonia. As melodias que cantam ou que executam nos seus instrumentos, conhecem-nas apenas pela rotina e à força de as ouvir cantar. Entretanto, de tempos em tempos fazem algo de novo e o próprio Imperador Cang-hi compõe. Estas melodias bem executadas nos instrumentos ou mesmo cantadas por uma boa voz, têm algum agrado, mesmo para os ouvidos europeus (11).

Eis uma importante narrativa para o estudo do mundo musical da China, vivido por TOMÁS PEREIRA, embora escrita sem a agudeza de espírito e a profundidade dos seus conhecimentos musicais, porque Du Halde, ao que sabemos e apesar deste texto, não seria, em nossa opinião, um músico na acepção da palavra. Se o fosse, não teria pedido a alguém para transcrever as árias chinesas que refere e que publica na página 267 da mesma obra.

Porém, há neste texto uma citação do Imperador como compositor, que relacionaremos com outro documento onde o nome de TOMÁS PEREIRA é amplamente citado. Trata-se da obra intitulada "La Libertad de la ley de Dios en el Emperio de la China", de Suarez.

Sabe-se que este príncipe do Celeste Império, homem inteligente, liberal e ávido de cultura, de portas sempre abertas aos europeus que o serviam, dedicava parte do tempo que os negócios de Estado lhe permitiam, ao estudo das Ciências Matemáticas e da Música.

Do novo documento que acabamos de citar, coevo de TOMÁS PEREIRA em Pequim, extraímos o seguinte passo:..."Aos Padres Francisco Gerbillon e Joaquim Bouvet (a quem havia mandado aprender a língua Tártara com os Tártaros que

residiam no Palácio), depois de a dominarem, mandava-lhes que lhe traduzissem em Tártaro, como o vieram a fazer sob a direcção do P. António Tomás (nome que não devemos confundir com o do nosso músico de Barcelos), os princípios de Euclides e a Filosofia; e depois de feitas as traduções, chamava-os frequentemente à sua presença para que lhe explicassem o que haviam traduzido. O mesmo P. António Tomás ia também muitas vezes com proposições de Algebra que, apesar de difíceis, com o seu sublime entendimento o Imperador percebia e nelas se exercitava com o maior gosto. E, ao P. TOMÁS PEREIRA (além da Música, da qual lhe havia já dado lições), o Imperador ocupava-o na sua presença, em várias curiosidades..." (12).

Confrontando estes dois textos, o de Du Halde e o que se refere ao processo da "Liberdade da Lei de Deus no Império da China", julgamos admissível supor que os trabalhos de composição musical do Imperador, a que o primeiro alude, tenham alguma coisa a ver com o magistério de TOMÁS PEREIRA, seu professor, documentado no segundo.

Mas, avançando ainda no relato de Du Halde, encontramos outros testemunhos igualmente importantes. Citamos: "A facilidade com a qual, por meio de notas, transcrevemos uma melodia a partir do primeiro momento em que a ouvimos, surpreendeu absolutamente o Imperador Cang-hi. Em 1679 chamou ao Palácio o P. Grimaldi e o P. Pereira, para tocar num orgão e num cravo que em tempos lhe tinham oferecido. Saboreou as melodias da Europa e mostrou prazer ao escutá-las. Depois ordenou aos seus músicos para executarem uma melodia da China num dos seus instrumentos e, ele próprio, a tocou com muita graça.

O P. Pereira pegou nas suas "tabuínhas" e escreveu a melodia completa enquanto os músicos a cantavam. Quando terminaram, o Padre repetiu-a sem falhar um único som e como se a tivesse exercitado durante muito tempo para a aprender. O Imperador teve dificuldade em acreditar, de tal modo se mostrou surpreendido. Teceu grandes louvores ao rigor, à beleza e à facilidade da música europeia. Admirou sobretudo o facto deste Padre ter aprendido em tão pouco tempo uma melodia, que para ele próprio e para os seus músicos tinha sido tão difícil; e que, pelo recurso a alguns símbolos, se sentiu de tal modo rendido que lhe era impossível esquecê-lo.

Para melhor se convencer, fez ainda várias vezes a prova. Cantou várias melodias diferentes que o Padre transcreveu em compasso e que repetia imediatamente depois com absoluta correcção. É preciso confessar, gritou o Imperador, a música europeia é incomparável; e este Padre (referindo-se ao P. Pereira) não tem igual em todo o Império" (13). "Conduziu o P. Pereira ao seu aposento e ofereceu aos Padres 24 rolos de seda adamascada, dizendo agradavelmente: as vossas togas não valem absolutamente nada; aqui têm com que fazer umas novas" (14).

"Este Príncipe estabeleceu a seguir uma Academia de Música onde fez entrar todos os que se mostravam ser os mais hábeis neste género, dando a direcção ao seu terceiro filho, homem de letras e que tinha lido muito. Começou por examinar todos os autores que tinham escrito sobre a matéria, mandou fazer todos os instrumentos à imitação dos antigos e de acordo com as medidas prescritas. Apareceram defeitos nestes instrumentos e foram corrigidos segundo regras posteriores. Depois foi escrito um livro em 4 tomos, intitulado "A Verdadeira Doutrina do Ly lu", escrito por ordem do Imperador. A estes 4 volumes juntou um 5° com os elementos da Música Europeia, escrito pelo P. Pereira".

Referido o músico, nos aspectos de organeiro, organista, cravista, professor e autor do mencionado Tratado, falta dizer algumas palavras acerca do matemático, do diplomata e do missionário, facetas que completam a sua rica personalidade.

De facto, não foi só nos aspectos musicais que a figura de TOMÁS PEREIRA se evidenciou e que o impuseram às boas graças do Imperador, homem que se "prezava de que ninguem penetrasse os seus pensamentos e os seus desígnios, os quais nenhum dos seus áulicos conseguia devassar. De tal modo era a influência do sacerdote que Kam-hi afirmou um dia que o P. TOMÁS PEREIRA o penetrava até aos ossos" (15).

Quando faleceu o P. Verbiest, Presidente do Tribunal das Matemáticas, o Imperador convidou-o para assumir o cargo. "Excusou-se efficazmente o Padre e de accôrdo com o P. António Tomás, distincto mathematico belga, propôs para aquella Presidencia o abalisado astronomo P. Philippe Grimaldi, por esse tempo ausente na Europa. O imperador, assombrado da excusa, acceitou a proposta e determinou que entretanto ficasse o P. Pereira Presidente interino tendo por adjuncto o P. António Tomás. Desta maneira exercitaram os dois jesuítas o cargo na qualidade de Presidentes substitutos desde 1688 a 1694, anno em que Philippe Grimaldi voltou a Pequim " (16).

Uma outra faceta diz respeito ao seu talento diplomático, cujo estudo foi já objecto de uma tese de doutoramento. A ele ficou a dever Pequim o célebre Tratado Sino-Russo de Nerchinsk, de 7 de Setembro de 1689, no vigésimo oitavo ano do reinado de Kam-hi. É importante sublinhar que se trata do primeiro documento diplomático realizado entre a Ásia e a Europa.

Vale a pena transcrever, traduzindo, algumas passagens colhidas em Suarez.

1a expedição em 1688:

"Para que fossem com estes 2 embaixadores -Tumquekam e Samgotu - deputou o Imperador outros grandes mandarins, e quis que fosse também com eles o P. Pereira (de cuja capacidade para semelhantes negócios já tinha larga experiência) (...) E depois, por outro despacho público lhe deu sua majestade ao Padre um grau superior de mandarina-to, fazendo-o mandarim de 3a ordem (...).

(...) Outras muitas mercês de grande honra lhe fez o Imperador antes da sua partida (...) ao dar-lhe o próprio casaco de peles muito preciosas.

Partiram finalmente (...) os Embaixadores com os Padres (...) e competente soldadesca que entre todos somavam 6.000 homens (...) e estando já não muito distantes da Povoação Selenga, destinada para local das conferências com os moscovitas, se viram obrigados a regressar a Pequim, sacando só por fruto desta 1a viagem, a perca de muitos homens, cavalos e camelos que de fome e de sede se haviam perdido naqueles desertos: chegaram todos os que escaparam mais mortos do que vivos (...) e os Padres quase tísicos."

2a expedição em 1689:

Foi esta 2a viagem um pouco menos trabalhosa (...) os desertos menos faltos de água (...) mas mais arriscada na passagem dos rios (...) ficando muitos (...) afogados (...) e outros afundados no Iodo. Tiveram por três vezes destruído totalmente o negócio da Paz (...) com erros crassos (...) sem aconselhar-se (...) com o P. Tomás Pereira.

(..) Porém o P. Pereira, vendo que não podia aprovar tais desacatos (...), trabalhava por aplicar-lhes remédio, aconselhando os nossos Embaixadores e persuadindo-os daquilo que convinha (...) até que então se resolveram a seguir em tudo o parecer do P. Pereira.

Concluído pois este grande negócio - o Tratado Sino-Russo - despacharam os Embaixadores, dois Próprios para que levassem nova tão feliz ao Imperador; e depois de os haver instruído sobre o que haviam de dizer, concluiram com estas formais palavras: Dizei ao Imperador que para ventura de sua majestade se lhe deve todo o bom fim deste sucesso; e que sua majestade tem olhos prodigiosos para conhecer os homens, pois escolheu o P. Thomás Pereira com seu companheiro; porque estando o negócio várias vezes perdido, eles o conduziram ao bom estado; e verdadeiramente, se não tivessem vindo connosco, não tinham concluído coisa alguma. Dizei isto deste modo e que não haja falta nem esquecimento" (17).

Porém, o ponto culminante da vida deste missionário foi sem dúvida a publicação do Decreto de 22 de Março de 1692 que permitia a liberdade da lei de Deus em toda a China. Foi esta a mais alta inspiração que aos 21 anos lhe determinou os passos rumo ao Oriente, deixando Pátria, família, amigos, abandonando tudo, desde Coimbra até Pequim, onde ficou para sempre. Citamos: "Alcançado o longo favor, longa e ansiosamente esperado pelos Missionários, foram eles ao Paço render as graças a Kam-hi, e o P. Pereira... no discurso que em nome de todos proferiu... desassombradamente... disse estas palavras: Era este o nosso único desejo, a só esperança que nos ia sustentando e o termo a que se encaminhavam dia e noite os nossos pensamentos e aspirações: chegar ao felicíssimo momento em que, por graça de V. Majestade, nos fora outorgada a liberdade de pregar publicamente neste vasto império o culto do verdadeiro Deus. Por este motivo, bem o sabe V. Majestade, deixamos nossas famílias e nossas pátrias e viemos através de tantos perigos colocar-nos ao serviço de V. Majestade. Já nos tinha cumulado de favores sem conta mas a graça que hoje nos faz, excede-os a todos e lhes vem pôr o remate " (18).

Corte do órgão francês do Séc. XVIII, segundo D. Bédos de Celles ("A arte do fabricante de órgãos", Paris, 1766, ss, pl. LII).

Das informações mandadas de Pequim a Roma nos anos de 1700 e de 1703, colhemos este retrato: "Era dotado de excepcional destreza no manejo dos negócios, de virtude e prudência não vulgar, humilde, zeloso, amante da pobreza e obediência, mas de natureza um tanto insofrida e índole austera" (19).

Os últimos anos do P. TOMÁS PEREIRA foram atormentados pela controversa questão dos ritos que gerou um conflito entre o papado e os jesuítas: "Clemente XI que já tinha rejeitado a interpretação jesuítica que procurava adaptar a mentalidade religiosa dos chineses à doutrina da revelação cristã, aproveitando os preceitos de Confúcio" (20), enviou para o Oriente o Cardeal Tournon. Este legado papal teve uma actuação tão desastrosa que se incompatibilizou com o Imperador Kam-hi, pondo em risco um gigantesco trabalho de missionação no qual, entre outros, se empenhou totalmente o P. TOMÁS PEREIRA e a quem acabou por privar de "voz activa e passiva" (21). Por este motivo, como pensava o Imperador, ou por outros, a vida deste homem não resistiu a um segundo ataque de apoplexia, tendo deposto o escudo da batalha terrena a 24 de Dezembro de 1708, noite de Natal, aos 63 anos.

A morte do Padre Liu Se Xim - assim era conhecido no Império - causou consternação geral e o próprio Imperador, numa derradeira homenagem, mandou-lhe edificar um rico túmulo, escrevendo ele mesmo o epitáfio (22).

Além de hinos chineses que escreveu (23), legou as seguintes obras (24):

- "Liu-liu tcheng i, Verdadeira Doutrina da Música", 5 volumes, Pequim, 1713. Os 4 primeiros volumes, compostos por ordem do Imperador, são de autores chineses; o 5° é obra do P. Tomás Pereira e do italiano P. Petrini. É um tratado de música europeia com exemplos da nossa notação musical.

- "Tratado de Música Prática e Especulativa", que o Imperador mandou traduzir em Tártaro.

Finalmente, resta-me confessar a imperfeição deste trabalho. Se, na sua pobreza, ele puder vir a alcançar o mérito de chamar a atenção para uma das maiores figuras missionárias da China, considerar-me-ei sobejamente compensado do esforço e do cuidado que lhe dediquei.

Com o poeta chinês Uang, termino:

"Aqui em baixo o homem desaparece como a luz /que num instante da manhã / se precipita por detrás da montanha.

A vida é como uma lâmpada /quando o óleo falta/extingue-se à terceira vigília" (25).

NOTAS

(1) REGO, José de Carvalho e - Um dos maiores missionários da China, "Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau", 62, 1964, p.999.

(2) PFISTER, Louis - "Notices biographiques et bibliographiques sur les Jésuites de L'ancienne Mission de Chine, 1552-1773", (s. n.), 1932-1934, p. 381.

(3) FRANCO, António - "Ano Santo da Companhia de Jesus em Portugal", 1a ed., Porto, A. I., 1931, p. 765.

(4) PFISTER, Louis - Op. cit., p. 382.

(5) REGO, José de Carvalho e - Op. cit., ibidem.

NOTA. O Padre José Vaz de Carvalho, que gentilmente de Roma nos enviou algumas pistas para o estudo de TOMÁS PEREIRA, informa-nos em carta de 15.04.1987, que "embarcou para o Oriente... tendo-se demorado pouco tempo em Goa, seguindo para Macau, onde no Colégio de S. Paulo concluiu Letras Humanas e fez Teologia; recebeu o grau de Mestre em Artes e ensinou Letras Humanas durante dois anos." Aqui damos testemunho do nosso agradecimento.

(6) RODRIGUES, Francisco - "Jesuítas Portugueses Astrónomos na China", Porto, 1925, p. 16.

(7) PFISTER, Louis - Op. cit., p. 142.

(8) RODRIGUES, Francisco - "A Formação Intelectual do Jesuíta", Porto, (s. n.), 1917, p. 495.

(9) RODRIGUES, Francisco - Op. cit., p. 493.

(10) RODRIGUES, Francisco- Op, cit., p. 494.

(11) HALDE, J. B. Du - "Description Géographique, Historique, Cronologique, Politique et Physique de l'Empire de la Tartarie Chinoise", (s. n.) chez P. G. Le mercier, Imprimeur-Libraire, MDCCXXXV, vol. III, pp. 265-266.

(12) SUAREZ, José - "La Libertad de la ley de Dios en el Imperio de la China", Lisboa, Miguel Deslandes, 1696, Part. II., pp. 70-71.

(13) HALDE, J. B. Du - Op. cit..

(14) PFISTER, Louis - Op. cit..

(15) FRANCO, António - Op. cit., p. 757.

(16) RODRIGUES, Francisco - Op. cit., p. 19.

(17) SUAREZ, José - Op. cit., p. 60 e segs..

(18) RODRIGUES, Francisco - Op. cit., p. 18.

(19) RODRIGUES, Francisco - Ibidem, p. 16.

(20) AZEVEDO, Rafael Ávila de - "Influência da Cultura Portuguesa em Macau", Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1984, p. 16.

(21) BIKER - «Colecção de Tratados... da Ásia..., Relação... do que fez... na missão da China... Tournon», (s. n.), Vol. V, p.44.

(22) REGO, José de Carvalho e - Op. cit., p. 758.

(23) REGO, José de Carvalho e - Ibidem.

(24) PFISTER. Louis - Op. cit., p. 384-385.

(25) HALDE, J. B. Du - Op. cit..

* Musicólogo; Director Artístico do Orfeão Académico de Coimbra (antigos Orfeonistas).

desde a p. 27
até a p.