Ethnos

TÁN-KÁ, Ü-LÁN:
Dois termos de relacionamento económico-financeiro no Sul da China

Rui Brito Peixoto *

ILUSTRAÇÃO DE VICTOR MARREIROS © COPYRIGHT 1982

"(...) Se desejamos compreender a natureza dos laços sociais, não devemos tomar uma série de objectos e tentar imediatamente estabelecer relações entre eles. Invertendo a abordagem tradicional, devemos encarar as relações como termos e, depois, os próprios termos como relações. Por outras palavras, na malha de laços sociais, os nós têm prioridade lógica sobre as linhas, não obstante, empiricamente, as linhas formarem nós pelo seu entrecruzamento (...)"

Claude Lévi-Strauss, Le Regard Éloigné

Num artigo recente sobre a população flutuante do Sul da China, considerámos prioritário analisar a oposição entre esta e a população de terra, e a atitude de desqualificação sociológica inerente à definição da primeira pela última (Brito Peixoto 1987). Assim, a comunidade piscatória de Macau pertence à categoria Tán-ká (蛋家) palavra chinesa empregue para referir a população cantonense que vive e trabalha em barcos - formando um grupo étnico claramente demarcado por limites impostos pela prática da endogamia e cujo modus vivendi, tradicionalmente vítima de opróbrio, é supostamente responsável por um certo isolamento social que teria impedido a sua aculturação pelos Han (漢) - estatuto ou origem que é reivindicada exclusivamente pelos outros cantonenses. Contudo, como vimos, a polaridade cultural entre gente do mar e gente de terra oculta uma relação de complementaridade social - condição necessária à intensa especialização profissional daqueles - em consonância com um padrão de exploração de certos recursos do meio (cf. Brito Peixoto 1988 ). Por conseguinte, conforme o referido, a imagem corrente do isolamento dos Tán-ká não leva em conta que as comunidades piscatórias do Sul da China têm vivido numa relação simbiótica com as suas congéneres de terra, das quais dependem, particularmente no campo económico. De facto, o pescador está ligado por um complexo sistema de trocas ao Ü-lán (魚欄) - que é o intermediário de terra através do qual se processa a comercialização por grosso do produto das pescas, sendo também o agente tradicional do seu financiamento.

O objectivo deste texto é retomar e expandir estas considerações, aprofundando as questões que daqui decorrem.

Os recursos marítimos, explorados pela indústria das pescas, não asseguram, por si mesmos, a subsistência do pescador, que tem de colocar os seus produtos no mercado, a fim de poder obter alguma retribuição pelo seu trabalho. Muitos destes produtos devem ainda ser sujeitos a diversas operações - salga, secagem, enlatamento, etc. - que de uma maneira ou de outra visam satisfazer as necessidades do consumidor, e, adicionalmente, têm de ser distribuídos através da complexa rede de comércio local e de exportação. Quer as operações de transformação, quer as acções de distribuição dos produtos marítimos, levantam problemas específicos cuja resolução ultrapassa a capacidade e a disponibilidade de tempo do pescador. Por conseguinte, dado que o sector primário se limita a assegurar a primeira fase na cadeia comercial dos produtos do mar, uma sociedade desta natureza requer intermediários capazes de os colocar no mercado mais vasto.

Reciprocamente, o sector primário não só necessita de vender os seus produtos, como de comprar equipamento e bens, o que, uma vez mais, requer intermediários no sector de distribuição, e que vão dos grandes importadores aos pequenos revendedores.

Rampa para limpeza do casco das embarcações. Vila de Coloane, Macau.

A necessidade de intermediários não explica, contudo, a sua ocorrência, na prática, em número elevado. Só Macau, que conta com uma frota pesqueira estimada em cerca de 800 embarcações, dispõe de 69 firmas de Ü-lán (comerciantes de peixe por grosso) (Serviços de Estatística e Censos, 1987). Esta multiplicação de esforços é muitas vezes interpretada, à luz dos conceitos ocidentais, em termos de 'irracionalidade' ou de 'laissez-faire' económico, ou pura e simplesmente, encarada com um encolher de ombros e a afirmação de que 'em Macau as coisas se processam de maneira diferente' - várias formas de não se dar conta da natureza intrínseca do fenómeno. Alternativamente, ocorre-nos sugerir que estas leituras têm subestimado o facto destes intermediários actuarem como agentes de crédito. Recorde-se que esta multiplicidade de pequenas firmas de negociantes de peixe emerge no contexto de uma indústria em que o capital escasseia, de modo que uma proporção significativa das transacções comerciais - aquisição de embarcações, de equipamento, venda e revenda dos produtos - e mesmo o pagamento de uma diversidade de serviços (inclusive algumas despesas de natureza 'social', tais como funerais e casamentos) - se processam sob a forma de sistemas de crédito. Na maioria dos casos, a própria parte credora dispõe de um capital diminuto, o que implica que só pode financiar um número necessariamente restrito de partes devedoras. Mais ainda, estas transacções assumem geralmente a forma de um compromisso na base da confiança, ou seja sem a garantia de um fiador ou de uma entidade bancária, e desprovido de outras formalidades que não sejam as de um acordo verbal estabelecido entre indivíduos que se conhecem de longa data. Daí que o número de devedores com quem o credor se possa relacionar desta maneira seja forçosamente limitado, mesmo na eventualidade de dispor de capital avultado - o que, como se constata, não é frequente.

Enquanto que noutras partes do mundo existe a expectativa de que o pescador regresse sempre a um porto onde se encontra a sua família, no Sul da China - onde aquele vive em barcos e em que esta é a própria tripulação (cf. Brito Peixoto, 1987b) - o pescador é encarado como um nómada errante, desenraizado de qualquer localidade específica. Esta atitude, partilhada simultaneamente por ocidentais e chineses, está patente na ideia de que os Tán-ká são 'ciganos do mar', 'hoje aqui, amanhã acolá', tal como 'folhas à deriva', etc.. Porém, contrariamente a estas posições - que denunciam uma profunda ignorância acerca da natureza das comunidades piscatórias - é o próprio modo de vida do pescador que dita a sua necessidade de localização. Analisemos sumariamente alguns dos factores que convergem neste sentido.

Do ponto de vista tecnológico, o pescador precisa de um ancoradouro seguro e abrigado - tal como é oferecido pelas condições naturais do Porto Interior de Macau - o que é particularmente premente numa região assolada por tufões e outras tempestades tropicais capazes de provocar pesados danos materiais e humanos. O pescador necessita ainda de um local apropriado à limpeza regular do casco da embarcação, que é ameaçado pelo ataque de depósitos marinhos (cf. fig. 1). Até há bem pouco tempo, era necessário encontrar áreas em terra, apropriadas à execução dos trabalhos de fabrico de velas, cabos e redes, assim como à sua limpeza e secagem (cf. Barbosa Carmona 1953). Com o aparecimento do nylon e de outras fibras sintéticas, o pescador passou a dispor de equipamento pré-fabricado, tecnicamente mais vantajoso, embora com isso tenha aumentado a sua dependência para com os estabelecimentos de apetrechos navais em terra. O mesmo se aplica à troca da propulsão eólica pela mecanização que, para além do equipamento, requer assistência técnica e combustíveis, o que mais vincula o pescador aos aglomerados urbanos junto dos quais opera. Como é óbvio, cada um destes requisitos não tem de ser satisfeito no mesmo local, embora seja natural que daí advenham vantagens quando tal acontece.

Outro factor de carácter relativamente recente, mas de importância crescente, é a necessidade de educação das crianças. Muitos pescadores têm outras embarcações que ficam fundeadas no porto e que, geralmente, servem de residência aos membros da família cujo declínio físico já não lhes permite participar nas árduas fainas de pesca, mas ainda capazes de olhar pelas crianças que, deste modo, podem ir à escola. Esta tendência à fixação em terra assume, por vezes, a forma de residência em casas construídas sobre estacas junto à margem e, se os condicionalismos económicos o permitem, em apartamentos urbanos.

Interrogado a este respeito, o pescador poderá dizer que a sua ligação a um determinado local lhe advém do seu bom fong sôi (風水). Com isto, não se refere apenas à propiciatória configuração geomântica das colinas, água, rochas e outros acidentes no solo (cf. Topley 1964: 171), mas engloba ainda a influência benéfica que a divindade (sán 神 ) do templo local exerce em seu proveito. Em Macau, o Templo de A-Ma, Ma Kok Miu (媽閣廟) é um dos mais belos e carismáticos do Sul da China (cf. Teixeira 1979, Batalha 1987) e o pescador é escrupuloso na observação dos rituais associados ao templo, com que despende somas avultadas. A gente do mar entende que Tin Hau (天后) - a divindade protectora a quem se dirige por 'Mãe' (A-Ma 阿媽) - lhe dispensa prosperidade e sucesso na pesca, boa saúde e descendência numerosa, benesses que, de uma maneira ou de outra, têm reflexos imediatos no seu modo de vida. Em contrapartida, os marítimos visitam regularmente o templo, onde voltam impreterivelmente por altura de certas festividades cíclicas cujas cerimónias são consideradas obrigatórias para todos.

"Lane" - Ü-Lán (魚欄) - estabelecimento de comércio de peixe por grosso. Note-se a multiplicidade de estabelecimentos que oferecem serviços idênticos.

Porém, os requisitos mais importantes para a localização das comunidades piscatórias são os de carácter económico-financeiro, condição sine qua non da sua própria existência. O pescador depende da extracção de recursos naturais que, por sua vez, estão sujeitos a variações sazonais e a flutuações de natureza imprevisível. Neste contexto, os sistemas de crédito desempenham um papel crucial. Porém, o crédito só é conferido na base de relações pessoais, alicerçadas num conhecimento de longa data e alimentadas por contactos regulares e frequentes. Quer dizer, sem uma base fixa, o pescador seria incapaz de obter o financiamento que lhe é essencial. Assim, por exemplo, temos encontrado casos de famílias provenientes da República Popular da China que se deslocam a Macau a fim de tentar penetrar no mercado local. As dificuldades com que deparam ultrapassam o inconveniente de não disporem de documentos que os autorizem a vir a terra. O primeiro problema consiste, desde logo, em encontrar um Ü-lán disposto a comprar-lhes os seus produtos - o que não é fácil devido, sobretudo, às pressões dos pescadores locais nesse sentido - e a hipótese de obter crédito está fora de questão. Muitas vezes, estas frustradas expedições terminam com os pescadores da R.P.C. a serem forçados a recorrer aos pescadores de Macau, que actuam como seus intermediários na descarga do pescado junto dos Ü-lán locais, não obstante a transacção ser tão desvantajosa que acaba por desencorajar posteriores tentativas de fixação no Território.

Temos assim que os pescadores do Sul da China não estão apenas dependentes de um mercado que é externo às suas comunidades, como também de uma classe especializada de intermediários-financiadores - os Ü-lán - que vivem em terra, e podem pertencer a outro grupo étnico e linguístico. Tudo se passaria como se o Ü-lán - que dispõe de algum capital- funcionasse como banqueiro e investidor, enquanto que o Tán-ká - que não dispõe de nenhum - constituisse a mão-de-obra especializada. Assim, por exemplo, quando o pescador necessita de adquirir uma nova embarcação, a forma mais usual é o Ü-lánadiantar uma parte substancial do capital sob a forma de empréstimo. Em contrapartida, o pescador não dá outra garantia que não seja a de um 'penhor' sobre o pescado - quer dizer, não é a embarcação que fica 'hipotecada', mas sim os produtos marítimos que aquele extrair, e que se compromete a vender ao Ü-lán. Este recupera o investimento por pagamentos a prestações, que vão sendo efectuados, segundo a tradição, por altura do Ano Novo Lunar. É curioso notar que, questionado a este respeito, o Ü-lán afirma peremptoriamente que não cobra juros. Esta resposta faz o exaspero dos agentes da administração, que nela vêem uma tentativa de iludir o fisco. O facto é que as coisas se passam de outra maneira: o Ü-lán cobra um 'juro' que deduz do valor do pescado que adquire com uma redução do valor da sua venda ao comerciante retalhista, que o faz chegar ao consumidor. A natureza relativamente indefinida da taxa deste juro levanta problemas. Tradicionalmente, o Ü-lán cobra uma comissão de 6% sobre o preço de venda do pescado, que é acrescida da comissão de 6% do retalhista, o que significa que o pescador deveria receber o valor da venda dos seus produtos depois de deduzida uma percentagem de 12% (Gonzaga Gomes 1949; Ward 1955). Porém, a comissão do Ü-lán não é fixa, podendo oscilar com o montante do débito, a proximidade das suas relações com o pescador, etc.. Isto fomenta acusações de fraude, tal como são sugeridas pelo ditado Tán-ká 'o cate do Ü-lán tem 18 taéis' (1), embora seja difícil apurar factos, visto que a contabilidade destas transacções é mantida no mais estrito segredo. Pouco se sabe acerca das quantias emprestadas, do pescado descarregado e das comissões praticadas. Trata-se, contudo, do tipo de informação que, de qualquer dos modos, não seria facilmente obtida no terreno.

Convém ainda referir que o credor não pressiona o devedor no sentido do saldo cabal da dívida. Assim, através do pagamento de prestações que cobrem apenas uma fracção do débito, o pescador consegue renovado crédito no futuro. Na prática, o devedor pode nunca repor o empréstimo na totalidade, mas, reciprocamente, o próprio credor não espera que ele o faça. Quer dizer, parece do interesse de ambas as partes que a relação se perpetue enquanto que, paradoxalmente, saldar as dívidas seria pôr-lhe termo; o Tán-ká conta com o Ü-lán como fonte de financiamento, e, por sua vez, este sabe que tem naquele uma fonte de rendimento. Nem o Ü-lán espera reaver todo o montante dos seus empréstimos, nem o Tán-ká tenciona honrar os seus compromissos na totalidade.

Ü-Lán, (魚欄) Porto Interior, Macau.

Entretanto, tínhamos já visto que o sector primário necessita não só de vender os seus produtos, como de comprar equipamento e bens. Acontece que o Ü-lán não dá resposta a este último requisito. Daí que o pescador mantenha, geralmente, outro tipo de relação de crédito. Ou seja, o empréstimo adquirido junto do Ü-lán para - retomando o exemplo já dado - adquirir uma embarcação, pode cobrir apenas uma entrada inicial do custo dos serviços dos estaleiros e da aquisição de equipamento. O restante é feito a crédito, e pago a prestações de modo algo semelhante ao já referido. Em teoria, por altura do Ano Novo Chinês, todas as dívidas deveriam ser pagas. Às vezes são. Na prática, e na maior parte dos casos, o pescador entra em contacto com os credores, com quem negoceia o pagamento de uma prestação que lhe mantém o crédito em aberto para o ano seguinte. Geralmente, os preços de venda a crédito não são superiores aos de venda a pronto pagamento (King 1954) embora seja adicionada ao total uma percentagem que pode variar com a relação entre credor e cliente. Finalmente, tudo se passaria como se a relação de empréstimo com o Ü-lán tivesse como reverso a relação de crédito com os fornecedores.

Importador e retalhista de apetrechos navais, Porto Interior.

O lado negativo da possibilidade de 'crédito' é, como é óbvio, a situação de 'débito'. O pescador de Macau vive continuamente numa situação de débito para com o Ü-lán, para quem a relação parece particularmente vantajosa. Esta situação pode, efectivamente, dar lugar a exploração sem escrúpulos (cf. Anderson 1970, Kani 1967). Porém, sublinhar apenas este lado da questão, e os perigos verdadeiros que encerra, em detrimento da necessidade do intermediário e da importância do seu financiamento neste contexto, seria assumir uma posição irrealista. Assim, começamos por abordar as razões da necessidade do intermediário que, de seguida, tornamos extensiva à existência igualmente indispensável de um sistema de crédito. O sector primário das pescas não seria capaz de produzir sem ter a viabilidade de acesso a um mercado para venda dos seus produtos, e sem, simultaneamente, ter a possibilidade de compra de equipamento e bens de consumo, pois, à partida, não dispõe de capital. Nestas circunstâncias, este sistema de crédito funciona como um lubrificante que assegura o andamento da produção. Por outro lado, com isto não se pretende ter a ingenuidade de sugerir que aqueles que facilitam empréstimos, ou concedem crédito ao sector primário, o façam com o objectivo social de fomentar a indústria das pescas. Com certeza que estes agentes tentam auferir o maior proveito e extrair o máximo de dividendos que a sua posição de credores lhes confere. No entanto, é um facto que desempenham um papel económico essencial, para o qual não existe, presentemente em Macau, qualquer outro tipo de entidade, ou de organização, para isso vocacionada. Mais ainda, estes agentes económicos constituem, na sua maioria, pequenos estabelecimentos, muitas vezes eles próprios em situação de débito e de risco, e, em última instância, tão dependentes dos devedores quanto estes o estão dos seus credores. Ora, é justamente nesta multiplicidade de credores que reside, em parte, a segurança do próprio devedor.

Aspecto da descarga do pescado, Porto Interior.

Aspecto da descarga do pescado, Porto Interior.

As considerações que temos vindo a desenvolver devem ser lidas à luz do caso específico de Macau, onde a atitude da administração portuguesa de não intervenção no sector das pescas, permite que este se reja, ainda hoje, segundo os moldes tradicionais da organização social chinesa. Na vizinha colónia de Hong Kong, desde o fim da Segunda Guerra Mundial que se têm vindo a operar mudanças significativas. Após o termo da ocupação japonesa, o Department of Agriculture and Fisheries avançou com a criação de organizações de comercialização dos produtos do sector primário, que restringiram seriamente o poder tradicional do intermediário (cf. Topley 1964). No caso das pescas, o aparecimento da Fish Marketing Organization, controlada pelo governo, tornou ilegal o comércio por grosso de peixe fora dos mercados oficiais. Deste modo, visava-se assegurar que o pescador pudesse auferir de pesagens justas, de cotações de preços publicamente difundidas e dos serviços de lotas onde o peixe era arrematado - a fim de estimular a competição de preços entre os intermediários. Estas medidas foram seguidas de perto da implementação de cooperativas de pescadores, com a assistência da administração britânica, no sentido de apoiar a Fish Marketing Organization no processo de libertação daqueles dos empréstimos do Ü-lán. Com isto em vista, foram previstos fundos de fomento que concedem empréstimos a taxas de juro fixas e de contabilidade aberta (cf. Department of Agriculture and Fisheries; Petersen 1970).

Por conseguinte, presentemente, o Ü-lán compete com o sistema de empréstimo oficial, uma vez que perdeu o monopólio do comércio de peixe por grosso, e, concomitantemente, viu derrubada a sua posição de controlo sobre o desenvolvimento da indústria. Paralelamente, o governo da colónia britânica reivindica que, sem a sua intervenção, a rápida mecanização da frota pesqueira não teria sido possível. Daqui não se deve concluir que o papel tradicional do Ü-lán tenha sido completamente extinto. Algumas das razões apontadas pelos pescadores para a manutenção do sistema tradicional são: o empréstimo do Ü-lán processa-se sem as burocracias impostas pelo sistema oficial; as cooperativas impõem limites nos empréstimos para certas despesas de carácter 'social', tais como casamentos e outras cerimónias; a reposição do empréstimo oficial processa-se segundo esquemas inflexíveis, mesmo em circunstâncias adversas para o pescador (Anderson 1970).

Finalmente, seria do maior interesse conhecer os moldes da evolução dos termos deste processo de relacionamento económico-financeiro na República Popular da China, após quatro décadas de regime socialista com implantação de um sistema de comunas. Infelizmente, a ausência de dados é total a este respeito.

A indústria das pescas no Sul da China tem vindo a ser alvo de um processo de inovação tecnológica, que partilha do boom económico e da industrialização que tem vindo a atingir esta região; por exemplo, muitos juncos estão hoje equipados com sondas de eco, navegação por satélite, e outro equipamento sofisticado. No entanto, este incremento de racionalidade instrumental continua a desenrolar-se num pano de fundo de relações sociais que se processam em moldes ditados por valores tradicionais.

De facto, os pescadores do Sul da China permanecem uma categoria étnica distinta - os Tán-ká - cuja especialização profissional continua a representar um elemento primordial da sua identidade. A visão tradicional relega o pescador para o nível mais baixo da estratificação social local, de modo que a sua posição de inferioridade económica é frequentemente explicada em termos do seu alegado nomadismo e isolamento social, originados pela sua vida em barcos, que lhe dificulta o acesso à educação e lhe atribui um estigma de ignorância e superstição. Esta atitude, própria da 'Gente de Terra' - mas parcialmente partilhada e interiorizada pela 'Gente do Mar' - subestima o facto desta ter estado intimamente relacionada com aquela, através de relações de crédito a longo prazo, que podem ser apontadas como a fonte da alegada pobreza e do estatuto de inferioridade do pescador.

Pesagem do pescado, Porto Interior.

Sumariando, podemos dizer que, em Macau, estas relações de crédito têm, essencialmente, duas fontes: o intermediário (comerciante por grosso) e o fornecedor (comerciante retalhista). Em qualquer dos casos, o tipo de sistema de crédito implica um número limitado de devedores por credor. Este limite é definido por dois factores: por um lado, o pouco capital de que o credor dispõe; por outro lado, a necessidade, neste contexto, do credor ter conhecimento pessoal das circunstâncias do devedor. Daí, a ocorrência de um número relativamente elevado de credores, associado a uma multiplicidade de intermediários e de fornecedores. Finalmente, este tipo de mercado não é regulado nem pela política do governo, nem pela livre concorrência, mas sim por relações inter-pessoais, das quais depende a economia das pescas e sem as quais a produção não seria viável. Este sistema, altamente localizado, é, por sua vez, um dos factores mais determinantes da estabilidade das comunidades piscatórias, contrariamente às caricaturas grosseiras que as apresentam como nómadas errantes.

À primeira vista, é difícil imaginar que o minúsculo Território de Macau, de multissecular presença portuguesa e vertiginoso crescimento económico, possa ser um centro de tradição chinesa (cf. Brito Peixoto 1987). Mas o facto é que, nomeadamente no que diz respeito à indústria das pescas, Macau é um dos poucos lugares do mundo onde ainda é possível observar a organização social dos pescadores do Sul da China, em moldes tradicionais. A principal razão por detrás deste fenómeno, deve-se ao facto destes padrões terem sido abolidos na China, por se revelarem incompatíveis com os princípios de um estado marxista. Por conseguinte, a posição de Macau como encruzilhada entre o tradicional e o moderno, é singularmente ilustrada pela sua própria demarcação face à R.P.C. e a Hong Kong. Sem se aperceber, o observador é levado, através de uma circunvolução no tempo, a ter uma imagem de um mundo que já desapareceu na China, mas que antecipa outro mundo, o de Hong Kong, em vias de invadir Macau. Daí a oportunidade de o estudar.

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NOTA

(1) Cate: medida de peso chinesa (kan 斤) que corresponde a 610 gramas. Cada cate tem 16 taéis.

* Dipl. Psicologia Clínica (ISPA), Lic. Ciências Etnológicas e Antropológicas (ISCSP). Mestrado em Antropologia Social (King's College, Cambridge); bolseiro do ICM.

A pesquisa subjacente a este texto foi realizada com apoio de uma bolsa do Instituto Cultural de Macau, a quem estamos muito gratos.

As considerações que aqui se tecem são apresentadas com grandes reservas: o presente artigo, elaborado a fim de satisfazer uma contrapartida acordada com o ICM, corresponde à etapa inicial de um projecto de investigação em Antropologia Social e Cultural sobre a comunidade piscatória de Macau. Assim, o período da sua redacção surgiu apenas como uma breve pausa no decorrer do trabalho de campo presentemente em curso no Território. De momento, limitar-nos-emos a esboçar os problemas em análise, recorrendo a observações de carácter provisório. Para os presentes fins, foi adoptado um estilo de comunicação dirigido a um público informado, mas não necessariamente especializado em Antropologia, ou familiarizado com a área etnográfica que o texto versa.

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até a p.