Intervenção

MACAU Em busca das suas fontes e da sua História

Tereza Sena*

"A paz que temos com o Rey da China he conforme elle quer, porque como está tão desviado da Índia, e (elle) tem hum poder tão avantejado a todo o mayor que os Portugueses puderão lá ajuntar em numero de gente, nunca por mais escan-dalos que tivessemos delles ouve hum pençamento de chegarmos a rompimento, porque só com nos tolher o mantimento consumirá a nossa Cidade... nunca nos está bem levantarmos guerra a China, porque só com nos negamos o comercio ainda que alcançaramos grandes vitorias he o mayor mal que nos podeím fazer..." (1)

Macau, cidade do Nome de Deus ou Ou-Mun, terá sido, ao longo dos tempos, o produto de um entendimento ora tácito ora explícito entre portugueses e chineses. Será talvez um dos únicos testemunhos mundiais de coexistência e convivência seculares entre dois povos em tudo diferentes, que nem por esse facto perderam as suas próprias identidades. Talvez por isso também se tenham perpetuado, ao longo da nossa história comum de mais de quatrocentos anos, legitimidades jurídico-institucionais paralelas sobre um mesmo território, sucessivamente adaptadas aos novos tempos.

Talvez por isso ainda seja difícil precisar-se com clareza as origens da realidade embrionária conducente ao Macau actual, se delas tivermos a noção meramente factual. Os defensores de cada uma das teses correntes sobre o estabelecimento dos portugueses em Macau - a da doação, a da usurpação e a do arrendamento (2) - poderão continuar a apresentar as suas provas sem que nada de definitivo se venha a concluir porque, naturalmente, sobrevalorizarão as que podem comprovar cada uma delas.

Parece estar-se, assim, perante uma barreira historiográfica e na iminência de se proceder à transferência de poderes no Território sem se compreender muito bem o que para trás se passou... Serão mais de quatro séculos de história comum, de convivência cultural e miscigenação, que explicaremos aos nossos filhos com frases tão lacónicas e sucintas como aquelas que sobre Macau ouvimos, e apenas nos tempos da primeira escolaridade - uma pequena península no Sul da China dada aos portugueses em troca da ajuda prestada aos mandarins na defesa dos mares. E... mais nada.

Será preciso dizer-se algo mais, preparando-os e educando-os para ainda meio século de intensa e empenhada colaboração, que se espera venha a perpetuar-se numa amizade duradoura.

A compreensão do passado é, pois, imprescindível na preparação do futuro. Dele deveremos ter uma visão dinâmica, despreconceituada, relativista e genética, encarando-o como o produto de um sistema de relações bem diversas, onde permanências estruturais são, a cada momento, questionadas e adaptadas às novas realidades conjunturais. Não haverá, portanto, uma realidade única que, a cada momento, nos explique Macau. Muito antes pelo contrário, Macau deve ser encarado como uma construção, um produto de causalidades várias em cada dia inter-cruzadas, de alguma forma contidas nestas três grandes problemáticas:

A Presença dos Portugueses na Zona do Índico e do Pacífico;

As Relações da China com o Ocidente;

Macau nas Relações Históricas Portugal-China.

Por isso, o Instituto Cultural de Macau empenha-se, neste momento, num projecto de grande amplitude que é não só o de constituir uma Base de Dados sobre aqueles temas, a que se deu o nome de Nanyang (3), como o de identificar, reunir, seleccionar e divulgar em português e chinês (e, nalguns casos, também em inglês) as fontes - tanto ocidentais, sobretudo portuguesas, como chinesas - que se considerem relevantes para a elaboração futura de uma História de Macau, despreconceituada e cientificamente fundamentada.

NANYANG Reconstruir a Insulíndia

Este projecto de Pesquisa e Publicação Bilingue de Fontes Comparadas da História de Macau integra-se, como referimos, num plano mais vasto de acções complementares, também elas plenas de significado no sentido da preservação de um património histórico - cultural único, que envolvem e implicam a colaboração estreita entre o Arquivo Histórico e a Biblioteca Nacional de Macau e o Grupo de Pesquisa de Fontes, constituído por investigadores e técnicos portugueses e chineses, sob a direcção do Presidente do Instituto Cultural de Macau.

Pela informatização das espécies bibliográficas depositadas na Biblioteca Nacional e no Arquivo Histórico de Macau - em curso — reunir-se-á a maior parte da bibliografia existente no território. Estuda-se, neste momento, a possibilidade de registar, por idêntico processo, toda a documentação que compõe os diversos fundos do Arquivo Histórico, tendo como ponto de partida os roteiros, inventários e índices já publicados no respectivo boletim, os "Arquivos de Macau", como se sabe.

Através do diálogo e intercâmbio que o Instituto Cultural de Macau desenvolve com outras instituições (nomeadamente as bibliotecas e arquivos nacionais) tanto da zona do Índico e do Pacífico, como da Europa e América, aduzir-se-ão às já existentes as indicações bibliográficas e arquivísticas dispersas pelo Mundo que integrarão a Base de Dados, ou serão fornecidas à Biblioteca Nacional e ao Arquivo Histórico de Macau.

Naturalmente que, para além das espécies seleccionadas de entre os acervos documentais da Biblioteca Nacional, com especial destaque para a "Sala Macau", e do Arquivo Histórico de Macau, os principais alimentadores dessa Base de Dados serão os arquivos e bibliotecas portuguesas, a quem já foi solicitada colaboração.

O Grupo de Pesquisa de Fontes será não só o utente primordial dessa Base de Dados como o mediador deste diálogo entre países e instituições, canalizando para o Arquivo Histórico e Biblioteca Nacional todas as informações que, por essa via, ou pela da pesquisa, puder recolher. A estes organismos competirá todo o tratamento técnico e documental, bem como o acomodamento das espécies que, em qualquer suporte (papel, xerocópia, filme, etc...), se venham a adquirir, centralizando a Biblioteca Nacional a documentação impressa e o Arquivo Histórico a manuscrita (V. Fluxograma).

O NEBULOSO SÉC. XVI

Não tendo de perfilhar qualquer das teses historiográficas existentes sobre Macau, considerando-as e analisando-as igualmente, com base numa postura crítica descentrada e cientificamente fundamentada, o Grupo de Pesquisa de Fontes tem aos seus ombros a não fácil tarefa (V. Fluxograma da Investigação) de identificar, localizar, analisar, classificar, reunir e publicar as fontes históricas, primárias ou secundárias, ocidentais e orientais, que possam servir de base a futuras investigações sobre a História das Relações Portugal - China centradas e viabilizadas em e por Macau, garantindo-se o acesso (4) dos historiadores aos documentos que, até agora, lhes eram inacessíveis pela intransponível barreira linguística.

A garantia da existência de uma vontade política e de uma utilidade social subjacente à concretização deste projecto permitem encará-lo numa perspectiva de continuidade, a única que pode resolver algumas das dificuldades com que se debate a médio prazo, de entre as quais se referem a escassez de pessoal especializado, o início do processo de informatização e a dispersão da documentação.

Se os resultados do tratamento descritivo e informático das espécies bibliográficas, e sobretudo das arquivísticas, ainda se farão esperar algum tempo (5), a principal dificuldade a ultrapassar será a da luta contra a dispersão dos documentos referentes a Macau, para já não referir o extravio ou destruição de parte deles — pelas intempéries, formiga branca ou acontecimentos políticos - como, ainda recentemente, foi frisado por Jorge Arrimar (6) nesta mesma revista.

Nesta circunstância, ao estabelecer a sua própria metodologia, o Grupo de Pesquisa de Fontes (equipa portuguesa) sentiu a necessidade de assegurar o diálogo e a colaboração com o Arquivo Histórico e a Biblioteca Nacional, cujos responsáveis integram a equipa directora do Projecto, e de optar por uma delimitação cronológica. Restringindo-se, por ora, o âmbito da pesquisa, evita-se a dispersão, garante-se uma mais rápida localização e selecção das espécies a consultar e, naturalmente, a própria publicação das fontes. Iniciando-se esta primeira fase da pesquisa com a identificação, selecção e leitura das obras e documentos referentes ao séc. XVI, podem-se obter, recolher e tratar, de imediato, as fontes referentes à mesma época, ao mesmo tempo que se elaborará uma cronologia-base para o período.

PROJECTO DE PESQUISA E PUBLICAÇÃO DE FONTES COMPARADAS DA HISTÓRIA DE MACAU FLUXOGRAMA DA INVESTIGAÇÃO FLUXOGRAMA DA INFORMATIZAÇÃO

Ressalve-se que a esta delimitação cronológica não corresponde, naturalmente, nem uma perspectiva historiográfica nem uma visão compartimentada do processo histórico, resultando ela apenas de uma opção metodológica que tem em conta os condicionalismos a que está sujeita a pesquisa e o próprio fim, não analítico, a que se destina. Por isso mesmo se assumirão os riscos de dar à estampa colectâneas de fontes antes de concluído todo o processo de levantamento documental, ressalvando-se não só o aparecimento posterior de outras fontes sobre uma mesma época ou de diferentes versões de quaisquer delas, uma vez que os sistemas de classificação e de armazenamento de dados adoptados permitem a sua reunião a qualquer momento. De outra forma talvez nada de coerente se chegasse a reunir, se atentarmos no facto de que a pesquisa envolve um período de mais de quatro séculos.

Deste trabalho resultou já a identificação das principais discrepâncias historiográficas relativamente ao período em estudo, a recolha de algumas fontes com interesse, para além de referências bibliográficas e, sobretudo, o balanço da documentação portuguesa existente no território referente ao séc. XVI, por sinal bem escassa.

Afora alguns alvarás, talvez referentes à Misericórdia (7), o Regimento do Ouvidor de Macau (1587) e o treslado tardio (8)do "Foral, Regalias e Privilégios Concedidos à Cidade de Macau na China, 1596 a 1756" (9), estes dois microfilmados, e escassíssimas espécies bibliográficas (10), parece não estarem ao nosso dispôr muitos documentos originais do séc. XVI.

Tanto quanto pudemos apurar, através da consulta sistemática dos índices dos "Arquivos de Macau", é a partir do séc. XVIII que se avoluma a documentação primária disponível referente a Macau. Assim, os diversos fundos do Arquivo Histórico, comportam as épocas (11):

Adm

Adm.ção Civil

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- Sécs. XVIII a XX (1734-1931)

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Fazenda                    

- Sécs. XVII a XIX (1672),

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(1734-1839)

Finanças                 

- Sécs. XVIII a XX (1734-1954)

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Leal Senado                

- Sécs. XVII a XX (1630-1952)

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Marinha                    

- Sécs. XIX a XX (1809-1971)

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Misericórdia             

- Sécs. XV a XX (1499-1937)

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Resumindo, os documentos (originais e cópias) mais antigos (sécs. XVI e XVII) referentes a Macau presumivelmente (12) existentes no seu Arquivo Histórico serão títulos e ordens régias, legados à Misericórdia, termos dos Conselhos Gerais do Leal Senado e alguns processos de teor Administrativo.

Os Registos Paroquiais encontram-se repartidos pelo Arquivo Histórico e pelo Arquivo da Câmara Eclesiástica, sendo os mais antigos, até agora identificados, do séc. XVIII (freguesia de S. Lourenço), tendo-se verificado casos de pura destruição, como aconteceu com os da freguesia de Sto. António anteriores a 1874, os quais arderam na sequência de um tufão.

Conclui-se, pois, que grande parte da documentação mais remota respeitante a Macau está, na melhor das hipóteses, por localizar, não obstante saber-se que o Arquivo Histórico Ultramarino possui uma boa parte dela (1583-1926) e crer-se que, na Índia, ainda residirá alguma.

O facto de Macau ter estado na dependência da jurisdição de Goa até 1884 e da de Manila durante o período filipino, terá favorecido a permanente diáspora dos respectivos títulos e documentos originais pelo mundo, tal como aconteceu com o famoso Cartório dos Jesuítas (13), expedido para Manila aquando da expulsão da Companhia de Jesus dos territórios nacionais, levada a cabo por Pombal. Sabe-se igualmente da existência de documentação sobre Macau em Londres, Haia e no Brasil, mas crê-se que ela se reportará a uma época mais tardia (14).

Cabe pois ao Instituto Cultural de Macau, em geral, e ao Grupo de Pesquisa de Fontes, em particular, a reconstituição do que resta deste grande acervo documental, do qual não estarão ausentes a fértil literatura de viagens portuguesa e ocidental e as obras dos cronistas nacionais — a que se seguirá todo o subsequente trabalho de crítica histórica e de divulgação.

Por seu turno, a equipa de investigação chinesa já procedeu à inventariação de toda a bibliografia existente no território concernente à História de Macau e, também, à presença dos portugueses no Sueste Asiático. Para o efeito, além dos contactos, particulares e oficiais, desenvolvidos com historiadores e instituições chinesas (Universidade de Cheong-San, Instituto de Ciências Sociais de Cantão), o Grupo de Pesquisa de Fontes trabalhou nas principais bibliotecas de Macau - Sir Robert Ho Tung, Associação Comercial de Macau, Universidade da Ásia Oriental, Escolas Pui Cheng e Pui Tou, Colégio Yuet Wah, Instituto Salesiano, Colégios do Sagrado Coração de Jesus e Sta. Rosa de Lima, para além de Biblioteca Nacional e Arquivo Histórico de Macau, naturalmente.

Neste momento, a equipa chinesa estabelece contactos em Pequim, tendo em vista não só a aquisição de espécies bibliográficas como a inventariação, microfilmagem e transcrição de documentos antigos, dialogando com as Universidades de Pequim (Faculdade de História), do Povo da China, com a Academia das Ciências Sociais da China (Instituto de Estudos de História), com a Biblioteca de Pequim e, ainda, com os Arquivos nacionais chineses.

É, pois, com o maior empenho que o Instituto Cultural de Macau se propõe tornar disponíveis as fontes sobre o passado de Macau, enquanto produto de um diálogo secular entre Portugal e a China - e também na esfera da sua identidade própria - consciente do pleno significado, presente e futuro, da tarefa que chamou a si.

NOTAS

(1) António Bocarro, "Livro de Estado da Índia Oriental, 1635-45", apud Boxer, "Dares e Tomares nas Relações Luso-chinesas - Durante os Séculos XVII e XVIII através de Macau", in "Arquivos de Macau", t. I, Janeiro de 1981, pg.229.

(2) V. Jorge Morbey, "Para um Futuro Sem Complexos", in "Revista de Cultura", Macau, (3), Out.-Dez.1987, pp.3-8.

(3) Nanyang: Designação chinesa para uma zona que incluía o Sueste Asiático e a Insulíndia.

(4) Pela publicação e, também, pelo registo que, em disco óptico ou microfilme, se fará das fontes seleccionadas (V. Fluxograma).

(5) Na Biblioteca Nacional só há cerca de um mês começou a ser testado o"software", cuja chegada se aguardava a todo o momento, não obstante o trabalho já desenvolvido na "Sala Macau" que permite, actualmente, um arrolamento das espécies por autores e títulos.

No Arquivo Histórico a situação é mais melindrosa porquanto a documentação, precariamente instalada há cerca de dois anos, será em breve transferida para o novo edifício, em fase de acabamento, facto que a tornará inacessível por mais algum tempo. Contudo, iniciar-se-á em breve o processo de informatização das espécies bibliográficas que possui.

(6) "Macau - Suas Bibliotecas e Documentos", in "Revista de Cultura", No 3 cit, pp.46-60.

(7) No roteiro referente ao respectivo fundo inserto nos "Arquivos de Macau", Macau, (5), Jan. - Jun. 1981, regista-se a existência de um livro de Alvarás, Cartas, Provisões Régias que, embora datado de 1809, contém cópias de títulos referentes ao período que vai de 1499 a 1812, sendo os primeiros, naturalmente, apenas concernentes a Lisboa.

(8) Do Séc. XVIII.

(9) O próximo número dos "Arquivos de Macau" incluirá a transcrição desta resenha dos privilégios da cidade de Macau, cujo original se encontra no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Outras compilações semelhantes, mas não tão completas, já haviam sido reunidas no mesmo boletim, salientando-se a de 1758, existente no Arquivo Histórico de Macau, como certamente melhor se explicará na introdução que antecederá a transcrição do texto supra-citado.

(10) Jorge Arrimar, art. cit..

(11) Todas estas indicações resultam apenas da consulta das descrições referentes às espécies depositadas no Arquivo Histórico de Macau não se tendo ainda dado início à fase de consulta directa da própria documentação.

Contudo foram já aferidas, no que respeita ao séc. XVI, com os principais reportórios da documentação de Macau publicados por Gonzaga Gomes no "Boletim da Filmoteca Ultramarina Portuguesa", Lx, (19), (25), (27), (28), (29), (30), (31) e (32), 1961,1963 - 1966.

(12) n. anterior.

(13) A colecção depositada na Biblioteca da Ajuda sob a designação de "Jesuítas na Ásia" comporta originais e cópias elaboradas por volta de 1744 -1746 (segundo Braga e Boxer), de alguns desses documentos, que abrangem os sécs. XVI a XVIII. Grande parte dos originais encontra-se hoje em Madrid, conforme o atesta um artigo de Josef Franz Schutte incluso na revista "Brotéria", Lx, 72, (1), Jan 1961, pp.88-90.

(14) Pelo menos não encontrámos ainda qualquer referência para o séc. XVI nos inventários de documentos depositados no British Museum, e é provável que a situação seja generalizada.

* Licenciada em História, Mestrado em História dos Séc. XIX e XX. Coordenadora do Projecto de Pesquisa e Publicação de Fontes. Bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Da direcção da Sociedade Portuguesa de Estudos do Séc. XVIII. Autora de diversos trabalhos de investigação sobre a estrutura político - económica senhorial (Séc. XVIII), Inquisição (Sécs. XVI e XVIII), Regeneração (Séc. XIX), Sidonismo e Renascença Portuguesa (Séc. XX).

desde a p. 79
até a p.