Artes

OS OLHOS DO DRAGÃO PINTADO

José Figueiredo

Barreira entre Corpos. Guilherme Ung Vai Meng. Acrílico sobre papel—110×79cm—1995.

Guilherme Ung Vai Meng apresentou recentemente um livro e uma exposição que marcaram a temporada artística local. Uma exposição que segue para o outro lado do planeta, até Portugal. Aqui neste espaço tentar-se-á esboçar uma análise das forças motrizes que regem a sua obra.

"Pôr os olhos ao dragão pintado". Esta é uma expressão de origem chinesa que nos é descrita no livro recolhido por Fan Weixin. Conta a história de um pintor que, ao trabalhar no desenho de quatro dragões, no muro de um templo, pintou-os sem olhos, pois se o fizesse, os dragões voariam para o céu. Quando pressionado pelos habitantes, pintou os olhos aos dois primeiros dragões, "logo o céu se cobriu de repentinos relâmpagos" e os dragões "esticaram as patas, abanaram a cauda e voaram para o céu por entre nuvens negras". Esta situação é interpretada como: colocar a "palavra ou frase-chave num artigo ou num discurso, indicando o seu tema essencial e atribuindo-lhe maior clareza e acuidade".

"Pôr os olhos ao dragão..." é um sentimento que persegue alguns estados importantes para o criador. Qualquer coisa que se estabelece no momento da dúvida. Esclarecer o sentido da obra.

A origem das coisas não é um mistério insondável, mas sim uma espécie de ingrediente, componente que nos permite desenvolver uma linguagem, uma narrativa, tendo em vista um qualquer sentimento. Esta visão abstracta aplica-se, de modo elaborado, ou não, como destino, em parte alimento, em parte respeito sensível por uma intimidade particular.

A obra de Guilherme Ung Vai Meng exerce simultaneamente esta função activa e passiva, imanente e transcendente, a um tempo sem começo e sem fim. A sua pintura atinge essencialmente uma ideia de intimidade que insiste em inclinar-se para uma comunicação flutuante com o exterior. A linha-contorno do seu desenho permite interpretações coincidentes, cúmplices deste silên-cio-ruído que consolida o paradoxo da sua raiz oriental.

O corpo reflexão

A inconsolável camuflagem da linha na sua pintura descobre directamente o corpo, a montanha, ou outra reflexão natural. Articulada de forma livre, surpreende o suporte como se fosse uma gota de chuva, uma fibra de bambu, uma pele pretexto de alma, um sopro condenado a corrente de ar.

A sua figuração rende-se ao gesto. Percorre o espaço vazio, numa semi-ausência que logo se designa como permanência sensorial, perceptiva e serena. Ou então, quando coisa matérica, divergente da subtileza, reconsidera a recepção desse universo e instintivamente submete-se a um fundo traço, agreste e forte. O espaço de apreciação deste cenário remete para um significante jogo que obedece a uma poética dualista, éter e voo de pássaro.

Aquilo que intriga o observador nas composições de Ung Vai Meng é este elemento de transfiguração, que une o vertical e o horizontal das suas linhas de força. É do corpo que se trata, humano ou não, paralelo físico em que os fundamentos surgem naturalmente. Ao pintor diz respeito o momento de fertilização, no qual o fruto é o aspecto sedutor.

Este momento de fertilização funciona como um estádio intermédio, onde se transporta alguma nostalgia de atelier, onde tudo é secreto, onde a transferência desta sublinhada força espiritual é uma forma de poder, onde a liberdade imprimida ao ambiente de trabalho navega e pacifica, e faz descobrir o ventre que, quando devorado, provoca o espaço pictórico. Enquanto nesta "plataforma", o pintor demonstra-se conhecedor sensível de um estar poético próprio.

A poesia acompanha o estado de sonho do artista, sente-se mesmo uma desistência dessas fronteiras na maior parte das suas composições, principalmente quando a força e o ritmo, subtilmente marcado, das suas pinceladas mais comedidas, desenham paisagens e intensificam transparências. Este estado criticado pelas esferas mais inovadoras funciona no crescer da obra de Guilherme como uma coisa atemporal.

Em certos aspectos, a inclusão da noção de alma poderá ajudar a compreender, como consequência lógica, este espaço de desejada impermanência que, como estado poético na sua forma mais pura, resolve-se, ou não, na incerteza da expressão plástica.

A alma deve ser entendida como uma força incorpórea que sobrevive ao corpo. A clarividência de certos estados de alma é um caminho longo em que preocupa unificar a energia de modo harmónico. O turbilhão é uma categoria que não define nada em particular, suscita antes um qualquer código que liga a energia e a reclama em círculo. A inspiração concilia o factor humano com a alma, e conduz ou desvia o rosto efémero da dúvida, para que determinada expressão ganhe o sentido de experiência mística.

O desenho interior

As posições das mãos e dos dedos no acto de pintar são de extrema importância, devem acompanhar os movimentos do corpo. A este elemento deve-se juntar o processo respiratório. A descoberta destes processos deu-se para Ung Vai Meng em 1975. O encontro com Kam Cheong Leng aconteceu quando ainda miúdo. Só mais tarde, quando a timidez foi vencida pela vontade, o pintor se transformaria no mestre. Mestre que faria despertar em Guilherme o desejo de fazer saltar para o papel formas e sentimentos.

Do papel saltou para uma infinita vontade de expressar. A cidade começou por ser o grande motivo do pintor. A sua peça exposta na Biblioteca é bem demonstrativa da energia e força de expressão que marcaria uma primeira fase da sua produção. É um momento de paixão. A pintura permanece no momento de total descoberta de si própria. Incontrolável, vive do espaço que habita, habita o espaço em que vive. Pintura em tons informais (o peso das cordas); a temática citadina oferecida com grande domínio sobre a matéria.

Entrando já nesta década, as linhas de força do seu trabalho tornar-se-iam mais subtis, mais vazias, como que se o pintor tivesse sentido necessidade de um certo apaziguamento da alma. A escolha deste contexto serviu para as mãos poderem respirar, profundamente, caracterizando um comentário de apreciação sobre o desenho ele próprio, sem todavia capitular a adopção de uma tautologia. O desenho explora o interior.

O aspecto personificado de liberdade, por onde o desenho de Guilherme pretende por vezes escapar-se, remete, por outro lado, para referências históricas. Alusões que englobam a acção directa e descritiva de uma arte rupestre, ou que também poderão remeter para a apropriação contemporânea de discursos sociológicos, em graffitis, ou em legendas publicitárias, identificadoras de sítios ou actividades.

É de recordar a intervenção na galeria Kuarto, no ano que passou, onde o desenho se comprometeu, transcendeu os seus limites e saltou para a parede. As linhas desenvoltas em dimensões que exploravam o dobro ou o triplo da escala revelam, num jogo de proporções, um contexto de auto-citação. Ao estabelecer um compromisso entre o interior da linha e os temas representados, ao alcance da mão, o autor incondiciona a dimensão ficcional do observador. Quais nuvens, qual dragão...

A oportunidade de estudar em Portugal foi uma maneira simpática de explorar o mundo de expressão ocidental. Estudou pintura e serigrafia na ESBAP, desenho e pintura no AR. CO. Tempos de renovação no mundo do artista. Estender as mãos para a frente, à altura da fronte, e fixar o olhar nas pontas dos dedos. A viagem, oportunidade de experimentar sensações, elixir. Inspiração de outro ar. Expiração...

A viagem. O corpo em movimento. O rosto da atenção. O rumo das nossas vidas depende da capacidade de transcender o ego, abrir os olhos e o espírito ao reconhecimento do exterior.

"Pôr os olhos ao dragão pintado".

Para Ung Vai Meng existe na pintura uma oportunidade única de poder contribuir para um mundo melhor, sonho de beleza que se encontra dentro de nós. Para ele a vida corre assim num ritual de esperança. E ninguém lhe há-de roubar essa conquista.

Jardim Luís de Camões.

Acrílico sobre tela - 122 x 92 cm - 1995.

Deliquente Infantil II.

Acrílico sobre papel - 70 x 50 cm - 1993.

Estrutura de Corpos.

Acrílico sobre papel - 110 x 79 cm - 1995.

Decair.

Acrílico sobre papel - 76 x 53 cm - 1993.

Os Bonzos.

Acrílico sobre tela - 122 x 92 cm - 1995.

Hotel II.

Acrílico sobre tela - 122 x 92 cm - 1995.

desde a p. 196
até a p.