Crónica Macaense

ALGUMAS NOÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DE MACAU

Luís Gonzaga Gomes*

Nota prévia

O Resumo da história de Macau que segue é, suponho, a última produção de Luís Gonzaga Gomes. Foi-lhe encomendada durante o governo de Garcia Leandro, quando se projectava incluir nos programas de História, a nível secundário, e com especial relevo, a História de Macau, nas escolas do Território.

Pouco depois de concluída a tarefa, Gonzaga Gomes morria, sem poder dar ao seu trabalho estrutura didáctica de obra destinada a servir de compêndio escolar.

Tal como se encontra, não dividida em capítulos e parágrafos, sem espaços que a arejem e figuras que a ilustrem, poderá dar, à primeira vista, uma sensação de peso. A sua leitura, porém, desmente esta primeira impressão, e surpreende até, pela maneira como o autor encarou o desenvolvimento histórico da sua terra, dando relevo especial a acontecimentos e personagens que lhe pareceram marcantes. Os eruditos poderão pronunciar-se acerca do rigor da obra ou do seu sentido crítico; seja como for, é um trabalho que enriquece a cultura regional, e que seria pena ficar inédito. O Instituto Cultural de Macau presta, assim, serviço sem dúvida valioso à terra que justifica a sua existência, e com isso homenageia alguém que foi figura marcante de Macau, e que profunda, amorosa e desinteressadamente trabalhou para que a sua terra tivesse expressão cultural original e própria.

Túlio Tomás

Há mais de quatro séculos que os Portugueses se encontram estabelecidos em Macau, sendo esta cidade, que rapidamente se criou, o ponto de encontro, durante muito tempo, de duas civilizações: a ocidental e a oriental.

Mais povos do Ocidente tentaram, por outros caminhos e por outras latitudes, relacionar-se com os Chineses, mas estes, ciosos da sua civilização e cultura, que consideravam superior às de todos os outros, rejeitaram contactar com o exterior.

Firmados em Goa, trataram os Portugueses de, em busca de novos produtos alimentares e artigos de consumo, entrar em contacto com os povos do Extremo-Oriente, principalmente com os Chineses e foi assim que, quinze anos depois de Vasco da Gama ter descoberto o caminho marítimo para a Índia, Jorge Álvares fundeava no ancoradouro de Tamão (屯門 Tunmen), na ilha de Lin Tin (零丁 Lingding), ilha Isolada, onde era permitida a entrada dos barcos de Malaca, Manila, Bor-néu e Léquias (ilhas de Luozhou 羅洲).

Jorge Álvares foi bem acolhido e a ele se seguiram outros comerciantes portugueses. Incumbido de iniciar comércio com a China, pelo rei D. Manuel, Fernão Peres de Andrade, comandante de uma frota de oito velas, chegou, em 20 de Agosto de 1517, à mencionada ilha de Lin Tin ou Lem Tem, que os Portugueses passaram a denominar ilha da Veniaga. Na sua frota, viajava o primeiro embaixador português do Celeste Império, o boticário Tomé Pires, que, embora tivesse sido recebido na corte, em Pequim, não chegou a avistar-se com o imperador Zhengde (正德) que viera a falecer três meses após a sua chegada à capital da China. Devido a xenófobas maquinações, teve de retomar a Cantão, vindo a morrer na China, pois a condição imposta para a sua libertação e do seu séquito era a restituição de Malaca aos malaios.

Apesar deste fracasso, foi enviada, em 1521, nova embaixada à China, chefiada por Martim Afonso de Melo, que teve de voltar a Malaca, por causa da sua frota ter sido derrotada pela esquadra chinesa.

Desde então, os portos chineses ficaram interditos ao comércio português, mas os persistentes comerciantes portugueses conseguiram, com o tempo, estabelecer feitorias de Liampó (寜波 Ningbo), no norte da China, na costa da província de Zhejiang (浙江) e em Chinchéu (漳州 Zhangzhou) na província de Fuquiém (福建 Fujian). A existência dessas feitorias foi efémera, pois aos comerciantes de Cantão interessava desviar os negociantes portugueses para os portos da costa da província de Guangdong (廣東) e, assim, após o assentamento de Leonel de Sousa, em 1553, conseguiram os negociantes portugueses autorização dos Chineses para se estabelecerem em Sanchoão (上下川岛 Shanxiachuandao) e Lampacau (浪白滘 Lanbaijiao), mudando depois para Macau, uma pequena península, situada ao sul da ilha de Xiangshan (香山 Montanha Odorífera), hoje Zhongshan (中山). A pequena aldeia de pescadores, que, segundo a tradição, foi dada aos portugueses por terem derrotado um célebre e poderoso pirata de nome Zhang Si [Xi] Lao (張四老 ou 張西老), era conhecida pelos chineses por Haojing (濠鏡 Espelho do Fosso), mas os Portugueses deram-lhe o nome de Povoação e, mais tarde, de Cidade do Nome de Deus de Macau, derivando o nome de Macau de Ma Ou (媽澳) que, em pe-quinense, se pronuncia Ma Ao e significa a baía da deusa Má (媽)ou Ni Ma (妮媽), a protectora dos navegantes que se venera no Templo da Barra.

A data geralmente admitida da fundação de Macau é o ano de 1557, mas fontes chinesas afirmam que a pequena cidade, transformada em feitoria pelos Portugueses, já era frequentada pelos comerciantes desta nacionalidade desde 1535.

É de crer que os mercadores lusitanos organizaram a primeira feira de Macau, em 1558, e, segundo a tradição, exerceu nesta incipiente povoação o cargo de Provedor Mor dos Defuntos e Ausentes o grande poeta nacional Luís de Camões.

Ao princípio, esses mercadores armavam e desarmavam as suas improvisadas barracas de lona ou de colmo, ou provisórias tendas de oina, todos os anos em Dezembro, mas, com a intensificação do comércio com os Chineses, motivada pelo facto de ser proibida, aos chineses, a saída do país, e por a frequência do porto de Cantão estar interdita, pelo imperador, ao trato estrangeiro, Macau, de simples acampamento ou feitoria, pas--sou, rapidamente, a ser um importante porto comercial, cidade com óptimos edifícios e esplêndidas igrejas.

Para o desenvolvimento de Macau muito contribuiu o comércio sino-nipónico, que tinha por intermediários os negociantes portugueses, visto que os Chineses não podiam comerciar com os Japoneses e estes não podiam pisar o solo chinês, pois que a China e o Japão estavam em estado de guerra, em consequência das desenfreadas depredações praticadas pelos corsários ni-pões ao longo de todo o litoral chinês.

Os comerciantes portugueses gozavam, assim, do exclusivo da aquisição, transporte e venda de seda chinesa, tão avidamente procurada pelos Japoneses e colocavam, depois, as barras de ouro e prata, na Índia e China, onde havia grande procura desses metais preciosos. Era tremendo o lucro desta transacção, à qual se juntava o escambo de especiarias e madeiras aromáticas da Indonésia com panos e fazendas da Índia.

De 1550 em diante, o comércio com a China e o Japão passou a constituir um monopólio, cujo direito de exploração era concedido pelo Rei de Portugal ou pelo Vice-Rei da Índia, em seu nome, a um fidalgo que se distinguisse por serviços prestados à coroa ou à nação, com o título de Capitão-Mor das Viagens da China e do Japão ou, por simplificação, apenas Capitão-Mor das Viagens do Japão, que gozava do direito de ceder os seus privilégios a outrem.

Este Capitão-Mor era chefe de todos os barcos e estabelecimentos, desde Malaca até ao Japão, sendo representante oficial de Portugal perante as autoridades chinesas e japonesas.

O ponto de partida das suas viagens era, normalmente, Goa, com escala em Malaca, ou, ocasionalmente, Jacarta, então conhecida por Batávia, antes de demandar a costa da China.

Era o Capitão-Mor das Viagens do Japão que, como única autoridade existente, dirigia, durante a sua estadia em Macau, os assuntos dos portugueses, procurando man-ter, dentro do possível, a ordem entre a gente turbulenta e indisciplinada, sempre pronta a armar sangrentas rixas.

Como com o tempo foram surgindo assuntos cuja resolução não podia aguardar o regresso do CapitãoMor das suas viagens ao Japão, formou-se uma espécie de república mercantil ou cidade livre, sendo os assuntos políticos dirigidos por três representantes da população, escolhidos por votação, com o título de eleitos, os quais desempenhavam as funções administrativas e judiciárias, existindo, já em 1560, uma embrionária municipalidade.

Em 1562, um dos eleitos passou a ser, por escolha, Capitão de Terra. As despesas feitas com as feiras eram pagas por meio de uma colecta voluntária, incidindo ainda uma percentagem sobre as fazendas provenientes da Índia. Liquidadas as despesas, o excedente era devolvido, proporcionalmente, segundo a quota-parte com que cada um tinha concorrido para o cofre comum, denominado caldeirão.

Para a conversão dos povos da África e da Ásia, D. João III insistiu com o Papa Paulo III para lhe enviar missionários da Companhia de Jesus, recentemente fundada, mas só o Padre Francisco Xavier foi mandado para a Índia, donde seguiu para o Japão, onde logrou êxito espectacular, vindo a morrer, em 2 de Dezembro de 1552, na ilha de Sanchoão, sem nunca ter conseguido entrar na China, como era seu desejo.

Os Jesuítas alcançaram grande preponderância em Macau, intervindo, frequentemente, em complexos casos de administração e melindrosas crises políticas, salvando a periclitante existência de Macau, em alguns momentos de maior perigo, pois sendo os mareantes e negociantes que a povoavam gente inculta na sua quase totalidade, não era de admirar que procurassem ouvir pessoas de mais saber e ponderação.

Diogo Pereira, que fora enviado como embaixador para conseguir do Imperador da China permissão para a entrada dos missionários, encontrou, porém, dificuldades por parte das autoridades chinesas e, antevendo que não seria respeitada a imunidade do seu cargo, como sucedera com o malogrado Tomé Pires, desistiu da embaixada, para ficar em Macau, onde foi eleito Capitão de Terra, cargo que foi abolido, em 1563, pois a sua eleição não oficial causara grande desagrado à corte de Lisboa.

Diogo Pereira exerceu, todavia, o cargo de Capitão de Terra até 1587, cargo de que, abnegadamente, renunciou em favor de João Pereira, que viera de Sunda, ao mesmo tempo que Luís de Melo, ambos providoscom a viagem do Japão e ambos com provisão para mandar nos habitantes de Macau, formando-se, então, dois partidos cuja rivalidade prometia transformar-se numa luta sanguinolenta.

Pouco depois, encontrando-se a cidade de Cantão ameaçada por piratas, aceitaram os Chineses a oferta de auxílio dos Portugueses. Luís de Melo e Diogo Pereira organizaram, à sua custa, cada um a sua esquadra e derrotaram, facilmente, os piratas. Pretendiam, em troco desse auxílio, conseguir a admissão da embaixada portuguesa e permissão para o exercício da propaganda católica na China. Embora o padre Francisco Peres conseguisse ser admitido, em Cantão, onde discutiu diversos pontos de religião com os mandarins, estes responderam não existir o costume de permitir que os estrangeiros residissem na China e o Imperador da China escreveu ao rei de Portugal, dizendo que a embaixada não podia ser tolerada, em virtude do temor existente pelas desordens causadas pelos Portugueses, nos anos passados.

Não obstante Macau ter sido doada, incondicionalmente, aos Portugueses, como uma dádiva isenta de qualquer ónus e livre de qualquer dependência jurisdi-cional chinesa, no entanto, acostumaram-se os Portugueses a presentear as venais autoridades chinesas de então, com subornos, designados por sagoates que, em pouco tempo, passaram a ser uma obrigação anual, denominada foro do chão. Desmascarada a venalidade do mandarim, que cobrava este suborno em seu proveito, foi ele oficializado num tributo anual de 500 taéis, portanto, pagos ao governo chinês, até ao ano de 1849, em que foi abolido, pelo governador José Ferreira do Amaral.

No ano de 1565 edificaram os Jesuítas a primeira igreja, de madeira, e anexa a ela uma pequena casa conventual, para servir de hospício aos missionários que seguiam para o Japão. Três anos depois, isto é, em 1568, chegou a Macau o bispo D. Melchior Carneiro, homem de grande iniciativa e cheio de dinamismo, o qual fundou, no ano de 1569, o Hospital de S. Rafael, com leprosaria anexa, a Santa Casa da Misericórdia e o Hospital de S. Lázaro, para os conversos chineses.

Em 1575 foi criada a Diocese de Macau, sendo D. Leonardo de Sá o seu primeiro titular. Para dar cumprimento à bula de Gregório XIII, foi a igreja matriz de Nossa Senhora da Esperança de S. Lázaro erecta em sé catedral e por ser ela a primeira catedral de Macau é ali que se realiza a recepção de qualquer novo bispo da cidade.

A construção do Convento de S. Francisco data de 1579 e deve-se aos Franciscanos espanhóis ou castelhanos, motivo por que tal local é designado por Ka si lan ( 嘉思欄 jiasilan), achinesação cantonense da palavra "castelhano". Com a fixação dos Portugueses em Macau, os mandarins foram estendendo a sua autoridade pelas terras confinadas com a cidade e, em 1621, guarneceram, militarmente, a aldeia de Qianshan (前山), a mais próxima da fronteira norte da península, onde, em 1648, estabeleceram um posto militar com 500 homens. Em 1573 ou 1574, sob o pretexto de impedirem as incursões dos fugitivos escravos negros, construíram uma barreira no istmo, no sítio onde hoje se encontra a Porta do Cerco, com o receio de que os Portugueses expandissem o seu domínio pela ilha de Xiangshan (modernamente Zhong-shan) e para fiscalizarem a cobrança das taxas de mercadorias que entravam ou saíam da cidade bem como para controlarem o seu abastecimento.

Entretanto, religiosos espanhóis, vindos das Filipinas, tentaram penetrar na China, causando com isso grande inquietação aos Portugueses, por parte dos eclesiásticos, que passariam a ter inevitável concorrência, na sua obra de expansão da fé e conversão, e também por parte dos negociantes, que não poderiam evitar o surto duma prejudicial rivalidade comercial.

Formularam, então, os Portugueses, em 1580, que fosse concedida a Macau a categoria de uma cidade metropolitana, pedido esse que não mereceu a devida consideração. Em 1582, o vice-rei das duas províncias de Guang-dong e Guangxi (廣西). Chenrui (陳瑞), intimou a comparência em Zhaoqing (肇慶). que era então a sede vice-real, das principais autoridades, civil e eclesiástica de Macau, alegando que não obstante a doação feita pelo Imperador da China, abstivera-se este de conceder aos Portugueses direitos soberanos sobre o território de Macau.

Não sendo possível esquivar-se a tal exigência, devido à forte pressão, mas não convindo, por receio de qualquer armadilha, que fossem o capitão-mor D. João de Almeida e o bispo D. Leonardo de Sá Fernandes, resolveu-se enviar, em substituição, o experimentado ouvidor Matias Penela e o jesuíta italiano Pe. Miguel Rug-gieri com deslumbrantes presentes que aniquilaram por completo a agressiva petulância vice-real. Estabilizou-se, destarte, a situação de Macau.

Em 31 de Maio de 1582, chegou a Macau o padre Alonso Sanchez, incumbido pelo governador de Manila, D. Gonzalo Ronquillo de Penalosa, de proclamar Filipe I, por os dois reinos de Portugal e Castela se terem unido, em 1580, em consequência da desastrosa derrota de Alcácer Qui-bir, onde encontrou a morte o último rei da dinastia de Avis.

Previdentemente, o Pe. Alonso Sanchez que, antes de chegar a Macau, ficara retido, em Cantão, por naufrágio do barco que o trouxera de Manila, escrevera des--sa cidade ao visitador da Companhia de Jesus, o Pe. Alexandre Valignano - que aqui se encontrava, para acompanhar os embaixadores japoneses dos reis de Bun-go a Roma, pedindo-lhe para, com toda a cautela, predispor a opinião pública e as autoridades que, não obstante terem hesitado de princípio em acreditar na união ibérica, acabaram por se conformar com a verdade dos factos.

O reconhecimento de Filipe II de Espanha como rei de Portugal foi celebrado com grande recato, porquanto, como Macau fora doado pelos Chineses aos Portugueses, receava-se violenta reacção da parte daqueles. Com a fusão das duas coroas de Portugal e Castela, viriam os Espanhóis comerciar também a Macau, sendo de prever declarada hostilidade da parte dos Chineses que não queriam manter relações senão com os Portugueses, motivo que levou o capitão-mor D. João de Almeida a escrever ao governador de Manila uma carta de felicitações pela reunião das duas coroas, insistindo que não fosse permitida a vinda de nenhum cidadão espanhol, e se dissimulasse quanto fosse possível o comércio entre Manila e Macau, para evitar o agressivo antagonismo chinês. E até, para evitar a desconfiança dos Chineses, o Pe. Alonso Sanchez, em vez de regressar directamente a Manila, seguiu, primeiro, para o Japão, a fim de aí embarcar para as Filipinas.

O jugo espanhol não se fez, então, sentir em Macau, nem jamais foi hasteada a bandeira castelhana, não tanto por conveniência política, mas porque, nas cortes de Tomar de 1581, ficou taxativamente expresso que se manteriam a administração e a bandeira nacionais, em todas as possessões portuguesas do ultramar.

O reconhecimento oficial de Filipe II de Espanha como rei de Portugal efectuou-se só em 18 de Dezembro de 1582.

A fim de sofismar o facto de terem de tratar, no seu próprio país, com uma autoridade estrangeira, conferiram os Chineses, em 1584, ao Procurador do Senado, o grau de mandarim de 2. å classe, com o tratamento de Yi- mu (夷目), superintendente dos estrangeiros, ficando, assim, salvaguardada "a face".

Como, não obstante as promessas da corte de Tomar, os castelhanos e o governo de Manila persistissem em interferir nos negócios da administração de Macau, o bispo D. Leonardo de Sá Fernandes convocou um conselho geral dos principais cidadãos que decidiu dever a cidade reger-se por uma administração senatorial, com a criação de um conselho denominado Senado da Câmara, baseado nos privilégios municipais concedidos a diversas cidades da Metrópole e composto de três vereadores eleitos, dois juízes ordinários e um procurador da cidade.

Em 10 de Abril de 1586, o vice-rei da Índia, D. Duarte de Meneses, conde de Tarouca, por ordem de Filipe I, aprovou o pedido feito, em 1580, pelos moradores de Macau ao seu antecessor, D. Francisco de Mascarenhas e renovado, no ano anterior, ficando, oficialmente, reconhecida a eleição dos vereadores, juízes e oficiais da Câmara; portanto, a própria existência do Senado Municipal.

A eleição do Senado foi, ao princípio, feita por pelouros e, mais tarde, por pauta, de três em três anos.

Todos os portugueses, quer nascidos em Macau quer noutras possessões portuguesas, desde que satisfizessem os requisitos exigidos por lei, tinham o direito de voto. Aos portugueses nascidos fora de Macau, era, porém, exigida a condição de serem casados e estabelecidos em Macau. Apurados os eleitos, a sua eleição ficava, porém, dependente da confirmação do vice-rei da Índia.

O procurador da cidade era o representante do Senado em todos os assuntos sínicos, junto das autoridades chinesas de Xiangshan e uma espécie de juiz de primeira instância, em questões verbais entre portugueses e chineses, com poderes para aplicar penas em casos menores. Os casos de maior gravidade, sendo de chineses, eram remetidos ao mandarim do distrito, e sendo de portugueses, ao juiz de direito.

Quando houvesse assuntos de gravidade a tratar, era convocado um conselho geral das principais autoridades eclesiásticas e de moradores mais categorizados, na sua maioria antigos senadores, isto é, os chamados Homens Bons, para deliberarem sobre as medidas a adoptar. Os conselhos gerais eram presididos pelo capitão de terra, que dispunha de voto de qualidade.

Com a fusão das coroas de Portugal e Castela, acentuou-se a hostilidade dos inimigos de Castela contra as possessões portuguesas do ultramar e Macau, que gozava do exclusivo do comércio com a China e o Japão, portanto de uma prosperidade sem par.

Macau foi alvo da cobiça dos Holandeses, que tentaram tomá-la várias vezes, mas a tentativa mais séria ocorreu em 24 de Junho de 1622, quando os holandeses desembarcaram, na antiga praia de Cacilhas, hoje aterrada, 800 homens, duma armada de treze barcos, comandada por Comelis Reijersen, que tinha às suas ordens um total de 1.300 combatentes. Cerca de 150 portugueses e mestiços, comandados por António Rodrigues Cavalinho, barraram o avanço holandês e, durante esta acção, o almirante holandês apanhou, em cheio, um tiro no ventre, pelo que teve de abandonar a luta e recolher-se a bordo. A perda de 40 homens durante o desembarque não desanimou os holandeses que, sob o comando do capitão Hans Ruffijn, organizaram duas companhias de reserva que, na praia, deveriam proteger a retirada, no caso de qualquer desaire. Com 600 mosqueteiros avançaram, afoitamente, até ao sopé da Guia, onde uma bala disparada duma bombarda, pelo padre Jeronimo Rho, da fortaleza de S. Paulo, que ainda não estava concluída, fez explodir um barril de pólvora, causando devastadores resultados nas fileiras holandesas, cujos combatentes, tomados de pânico, trataram de fugir, sendo perseguidos pelo Capitão-mor Lopo Sarmento de Carvalho e os seus homens. As duas companhias de reserva na praia de Cacilhas, assustadas com a debandada dos homens do capitão Hans Ruffijn, que fora morto, precipitaram-se para os barcos, sem dispararem um tiro sequer. O dia desta retumbante vitória foi escolhido para Dia da Cidade.

No ano anterior a esta invasão dos holandeses, isto é, em Outubro de 1621, pediram os chineses a Macau, por ordem do Imperador da China, um auxílio de cem homens com peças de artilharia, para combater os tártaros invasores. Foram enviadas quatro peças de bronze com 30 homens, que chegaram em Maio de 1622 a Pequim. Este pequeno contingente regressou sem ter sido empregado em qualquer combate.

Após o susto da invasão holandesa e restabelecida a tranquilidade, trataram os moradores de Macau de pedir um governador e, em 17 de Julho de 1623, Dom Francisco Mascarenhas tomou posse do cargo de capitão-geral e governador de Macau, sendo ele o primeiro, porquanto Francisco Lopes Carrasco, que fora nomeado capitão de guer--ra e ouvidor de Macau e, em 28 de Novembro de 1615, provido no cargo de governador, não chegou a exercer tal cargo e tais tropelias cometeu este goês, no exercício da ouvidoria, que teve de voltar a Goa, pouco depois.

Quanto a D. Francisco Mascarenhas, quando chegou a Macau, estava a fortaleza de S. Paulo, construída pelos jesuítas, guarnecida por soldados castelhanos, sob o comando do capitão espanhol Dom Francisco da Silva. Pouco tempo depois, quando este se retirou com os seus homens para Manila, pediu a D. Francisco Mascarenhas que mandasse vigiar tanto a fortaleza do Monte como a da Guia, por soldados seus, o que se fez, até ao dia em que a cidade se revoltou contra o seu governador, fechando, então, os padres as portas da fortaleza e impedindo, assim, a entrada dos soldados. Os padres jesuítas fizeram ainda cinco tiros para o outeiro de S¶ Agostinho, onde se encontrava D. Francisco Mascarenhas. Apesar de um acidentado governo e da constante oposição dos moradores às suas medidas, D. Francisco Mascarenhas conseguiu concluir o seu triénio, sendo sucedido por D. Filipe Lobo, contra quem houve muitas queixas por parte do Senado.

Desgostosos das arbitrariedades desses dois governadores, os moradores acabaram por pedir ao rei para abolir o cargo de capitão-geral e governador, e voltar a cidade a ser governada pelo capitão das viagens do Japão, petição esta que não foi atendida.

Em 31 de Maio de 1642, chegou a Macau, António Fialho Ferreira com a nova do êxito da revolução de 1640 e da ascensão de D. João IV, notícia esta que foi recebida, ao princípio, com certo cepticismo mas, semanas depois, desfeitas todas as dúvidas, seguiram-se retumbantes festas populares, com touradas, desfiles de cortejos, acções de graças, procissões, etc. A cidade vivia ainda em relativa prosperidade com o comércio que mantinha com Manila e outros portos do sudeste asiático e nela medravam 40.000 habitantes, na sua grande maioria refugiados chineses das guerras civis na China. Dos 600 portugueses que habitavam, havia grande número de cristãos-novos, pois a Inquisição, por razões políticas, i. e. para não se envolver em desastrosas questões com os chineses, mal fazia sentir a sua presença.

Nesse tempo, a população, constituída na sua maioria por mareantes e traficantes que, pelo seu irregular comportamento, se refugiavam em Macau, não era, certamente, das mais disciplinadas. Assim, sem se conhecer bem o motivo mas, possivelmente, por falta de pagamento do pré, revoltaram-se os soldados, que se apoderaram da fortaleza da Guia, assestando as peças contra o edifício do Senado. Assaltaram, em seguida, a residência do governador e capitão-geral, Dom Diogo Coutinho Docem e, tendo-o encontrado escondido debaixo de uma escada, puseram o desgraçado em postas.

Evidentemente, Macau estava no declínio. A China, expulsa a dinastia Ming, tratou de pôr todos os obstáculos à influência dos estrangeiros. A agravar a situação de uma Macau empobrecida, desencadeou-se uma terrível peste que causou mais de sete mil vítimas, paralisando por completo o comércio. Neste comenos, Zheng Zhi Long (鄭芝龍), que tendo sido criado de servir em Macau, onde fora baptizado com o nome de Nicolau Iquão, tornara-se temível pirata e conseguindo reunir poderosa esquadra e numerosos adeptos, esforçou-se por expulsar os intrusos manchus. Estes conseguiram atraí-lo, com várias promessas, a Pequim, onde o encarceraram. Seu filho Koxinga jurou vingá-lo e, em 1662, a ameaça tornou-se tão grande, que o imperador Kangxi (康熙) decretou, sob pena de morte, a evacuação de toda a população do litoral para o interior, numa profundidade de 30 léguas, incluindo os portugueses de Macau, a quem foi ordenada a destruição das fortalezas, para evitar que elas caíssem em poder do temível Koxinga. Movimentaram-se, então, os jesuítas da corte de Pequim, que conseguiram a suspensão da aplicação deste decreto com respeito a Macau.

A situação económica de Macau tornara-se, entretanto, tão aflitiva que houve de se contrair um grande empréstimo com o rei do Sião, no ano de 1660, o qual só veio a ser amortizado em 1722.

Agravaram-se as exacções chinesas, cujos mandarins procuravam extorquir quanto podiam, chegando a imporem a cessão de todo o tráfico marítimo e a permitirem a abertura da Porta do Cerco, para o trânsito do abastecimento, só de quinze em quinze dias.

Para sanar todas estas dificuldades, pediu o Senado, e conseguiu, que o vice-rei da Índia enviasse ao imperador Kangxi, em 1667, uma luzida embaixada, que foi bem recebida, conseguindo o embaixador Manuel Saldanha alguns privilégios e o reconhecimento do monopólio português do comércio com a China, através de Cantão. Não lograram os macaenses desfrutar por muito tempo este monopólio pois, em 1685, foi proclamado um édito imperial, declarando a China aberta ao comércio de qualquer nação estrangeira. A intervenção dos mandarins era constante e não tinham fim as suas exigências, vindo a impor, em 1688, o estabelecimento do ho-pu (河舶 hebo) ou alfândega chinesa sob o pretexto de se evitar a subida a Cantão dos navios de longo curso, mas a verdadeira intenção era participar dos lucros dos moradores de Macau.

No Século XVIII, a existência de Macau continuou agitada, com prepotências das autoridades chinesas, dissidências entre as várias ordens religiosas, desentendimentos entre os governadores e o Senado e perturbações de vária natureza.

Em 1719, um decreto do Imperador Kangxi eximiu Macau de quaisquer tributos. Então, em dois anos, a navegação aumentou de oito para 21 navios, limitando o imperador Yongzheng (雍正), em 1725, o número de navios a 25. Este Imperador recebeu, em 10 de Janeiro de 1726, o embaixador Alexandre Metelo de Sousa Menezes, pedido pelo Senado a D. João V, para conseguir, principalmente, o ate-nuamento da perseguição contra os cristãos e missionários na China. Este embaixador não conseguiu que o Imperador Chinês diminuísse a severidade contra os cristãos, nem arranjar facilidades para os moradores de Macau.

Com o recrudescimento da opressão chinesa e a imposição, em 1736, duma autoridade nativa com a designação de tchó-tõng, que passou a exercer autoridade na cidade só a partir de 1797, foi pedido ao rei D. José novo embaixador, sendo Dom Francisco Xavier Assis Pacheco e Sampaio magnificamente recebido na corte do Imperador Qianlong (乾隆), em Pequim, aonde chegara a l de Maio de 1753. Após cinco semanas de banquetes e festas, o embaixador deixou a capital chinesa com ricos presentes, mas sem nada conseguir, devido à animosidade das autoridades chinesas.

Durante as guerras napoleónicas, em consequência da aliança anglo-portuguesa, pretenderam os ingleses ocupar várias colónias portuguesas, para as defender dos franceses e, assim, com a aprovação do governo de Goa, despachou o marquês de Wellesley, em 1802, um transporte com tropas inglesas a Macau, cujos serviços foram rejeitados, livrando-se o governador José Manuel Pinto de inevitáveis complicações, por ter chegado, oportunamente, uma fragata espanhola com a notícia da Paz de Amiens. Com a confirmação desta notícia, vinda de Bombaim, os ingleses não tiveram outro remédio senão abandonar as águas de Macau.

A segunda tentativa de ocupação de Macau pelos ingleses ocorreu em 1807, queixando-se o Ouvidor Miguel de Arriaga Brum da Silveira ao Príncipe Regente, por dois vasos ingleses invadirem Macau contra todos os direitos, ultrajando os oficiais da alfândega e causando graves prejuízos ao comércio. Em 11 de Setembro de 1808, uma esquadra inglesa, comandada pelo almirante Drury, surgiu nas águas de Macau, exigindo do governador Bernardo Aleixo de Lemos e Faria facilidades para o desembarque. O governador, não obstante todas as suas argumentações dilatórias, não logrou impedir o desembarque das forças inglesas. Um destacamento de 300 homens ocupou a fortaleza da Guia e o forte de Bom-parto e os restantes homens instalaram-se no velho seminário, nos prédios da Companhia das Índias Orientais e Inglesas e em tendas de campanha armadas no Campo de Vitória e em diversos cais. Os distúrbios causados pela indisciplinada tropa inglesa, que violava os domicílios particulares e profanava sepulturas chinesas, indignaram a população, provocando hostil reacção por parte dos chineses. Sob o pretexto de defender contra a eventualidade dum ataque chinês, o almirante pretendeu ocupar a fortaleza do Monte. Falhadas todas as medidas conciliatórias, Lemos Faria declinou todas as responsabilidades e o Ouvidor Arriaga conseguiu manobrar de tal forma os mandarins que estes se opuseram, terminantemente, à ocupação dos ingleses, tornando de tal forma insustentável a posição do almirante Drury, que este resolveu partir para Cantão, a fim de concitar o vice-rei para a sua causa. Mal recebido, regressou a Macau onde, ameaçado com fome e guerra por parte dos chineses, viu-se obrigado a deixar a cidade, em Dezembro de 1808, por assim lhe ter ordenado o Imperador Jiaqing (嘉慶).

Mal refeita deste incidente com os ingleses, viu-se a cidade obrigada a auxiliar as autoridades chinesas, ameaçadas por Kam Pau Sai (张寶仔 Zhang Bao Zai), chefe de temíveis piratas chineses que, tendo-se tornado poderosíssimo, ameaçava a própria dinastia chinesa. Lutando com grandes dificuldades financeiras, o negociador português do convénio de auxílio mútuo luso-chi-nês, não obstante prever a má-fé dos mandarins que prometiam mundos e fundos, conseguiu armar seis navios com 118 canhões, e equipá-los com uma guarnição de 730 homens, sob o comando do capitão de artilharia José Pinto Alcoforado de Azevedo e Souza. Após várias batalhas perto de Lantau, a frota de Kam Pau Sai, composta de mais de 16.000 homens com 1.200 bocas de fogo, é derrotada em 21 de Janeiro de 1810, mas Kam Pau Sai entrega-se a Arriaga por se ter recusado a render-se às autoridades chinesas. Estas não honraram, evidentemente, as suas promessas para com Macau, e Jiaqing, o Imperador da China, elevou Kam Pau Sai, em 10 de Abril de 1810, à dignidade de mandarim.

Por oposição dos chineses, Lucas José de Alvarenga, que fora nomeado, pela segunda vez, governador de Macau, em 1814, não conseguiu tomar posse do cargo. Tinha querido, quando governou da primeira vez, impedir a realização da expedição contra os piratas e frustrou a capitulação de Kam Pau Sai, com a sua esquadra e seus homens, em Macau.

Com a proclamação dum governo constitucional na metrópole, desencadearam-se, em Macau, as lutas entre conservadores e constitucionais, sendo os primeiros chefiados pelo Ouvidor Arriaga. Macau exigia a restauração do antigo sistema senatorial, a dissolução do batalhão do Príncipe Regente, criado em 1820, e a sua substituição por uma Guarda Municipal, bem como a isenção dos subsídios aos governos de Goa e Timor. Queria, também, que os cargos civis e militares fossem desempenhados somente pelos seus naturais. Em 15 de Fevereiro de 1822 foi jurada a nova Constituição, pelos cidadãos, reunidos em sessão solene na Câmara, mas a opção da desejada reforma foi adiada, esperando-se ordens do rei e das cortes. Esta demora desagradou, havendo uma facção que entendia não dever ter-se jurado a Constituição, num governo em que predominavam elementos oficiais de carácter anticonstitucional. Após azedas discussões, Arriaga renunciou a todos os seus cargos, para poder tratar, mais livremente, com os chineses. O tenente-coronel Paulo da Silva Barbosa assumiu a chefia dos elementos mais avançados do partido liberal, propondo a eleição de uma nova municipalidade.

No meio de grande desassossego, realizavam-se as eleições a 19 de Agosto, fazendo Barbosa votar as prerrogativas do Senado, com poderes legislativos, executivos e judiciais. Governava Macau, nessa ocasião, José Osório de Castro de Albuquerque que, destituído de apoio, teve de ceder, sendo Arriaga preso, como conspirador, para ser mandado para Lisboa, a fim de lá ser julgado. Albuquerque não aceitou o cargo de governador militar que lhe foi oferecido, preferindo regressar à metrópole. Arriaga, que devia seguir na sua companhia, conseguiu escapulir no último momento para Cantão, onde pôs o vice-rei ao corrente dos acontecimentos em Macau.

Para restabelecer o antigo regime em Macau, o vice-rei D. Manuel da Câmara enviou de Goa a fragata Salamandra com tropas. O Senado incumbiu Barbosa de ir a Lisboa protestar contra esta despótica arbitrariedade do vice-rei, mas não chegou a partir pois, cinco dias depois, isto é, em 16 de Junho de 1823, surgia a Salamandra em Macau. O Senado intimou o regresso do navio e, não obstante Barbosa ter ordenado à fortaleza do Monte para fazer fogo sobre o navio, no caso de desembarque, o comandante da Salamandra resolveu desembarcar as suas tropas, enquanto Arriaga, em Cantão, convencia o vice-rei da necessidade de aprovisionar o navio. Este comunicou ao imperador que Arriaga era um homem íntegro e a única pessoa capaz de restabelecer a ordem em Macau. Entretanto, as proclamações de Garcês Palha, comandate da Salamandra, levam o partido constitucional a abandonar a causa de Barbosa, sendo constituído um governo provisório, presidido pelo bispo Chacim. Arriaga voltou a gozar de popularidade, mas veio a falecer, pouco depois, com 48 anos de idade. A Salamandra regressou a Goa, conduzindo Barbosa e os seus correligionários políticos; Garcês Palha voltou a Macau, em 1825, como governador.

As lutas intestinas de Macau só serviram para as autoridades chinesas aumentarem a sua opressão. Em 1829, proibiu o mandarim da Casa Branca aos mercadores chineses de vender cobre aos europeus. No ano seguinte, foi interditada a importação do salitre e enxofre e, como nesse mesmo ano, o vice-rei de Cantão proibisse a entrada de mulheres europeias em Cantão, passaram estas a residir em Macau.

Três ilustres individualidades estrangeiras viveram, nessa época, em Macau: o pintor britânico George Chinnery, que deixou fixados, em quadros a óleo e em esboços a carvão, fantasticamente numerosos, os mais diversos aspectos de Macau e das suas gentes; o sinólo-go Robert Morrison, o primeiro tradutor da Bíblia para chinês; e Sir Andrew Ljungsted, chefe da feitoria sueca e autor de uma história de Macau.

Um novo regime colonial surgiu com as reformas políticas na metrópole, o qual foi também aplicado em Macau, por decreto régio de 1834. Foi, então, abolida a Ouvidoria e, em 22 de Fevereiro de 1835, foi dissolvido o Senado, pelo governador Bernardo José Soares An-drea, que ficou investido com amplos poderes de governador civil, ficando o Senado restringido apenas a assuntos municipais. Este governador deu cumprimento, em 24 de Outubro de 1834, ao decreto que extinguia as or-dens religiosas, que só teve completa execução em Setembro do ano seguinte. No seu regresso à metrópole, os macaenses, gratos a Andrea, ofereceram-lhe uma espada. Era tão pobro que, podendo levar uma fortuna, saiu apenas com cinco patacas, recusando quaisquer confortos que os amigos tinham preparado para a sua viagem de regresso.

Em 1844, Macau foi liberta da perniciosa tutela de Goa, constituindo uma província independente agrupada com as ilhas de Timor e Solor.

A fundação da colónia britânica de Hong-Kong, em 1842, e o seu rápido desenvolvimento motivaram a decadência de Macau.

Em 21 de Abril de 1846, João Ferreira do Amaral assumiu o governo de Macau. Foi grande administrador, tendo mandado guarnecer, militarmente, as ilhas da Taipa e Coloane, para poder proteger a população chinesa contra as frequentes depredações dos piratas. A expulsão do ho-pu e a abertura de estradas, que obrigava à remoção de sepulturas chinesas, criaram-lhe antipatias dos chineses, que acabaram por o assassinarem na tarde de 22 de Agosto de 1849, quando seguia de passeio, a cavalo, com o seu ajudante, pelo istmo das Portas do Cerco. Com o seu assassinato, tropas irregulares chinesas concentraram-se em Passaleão, com o fim de invadirem Macau, mas o forte foi tomado de assalto pelo jovem macaense tenente de artilharia Nicolau Vicente Mesquita, à frente de 26 homens com um morteiro e, desde então, deixou de haver interferência das autoridades chinesas, do distrito limítrofe, em Macau.

Depois deste acontecimento, Macau voltou a fruir de prosperidade, em consequência duma grande revolta na província de Guangdong, enchendo-se a cidade de ricos refugiados chineses, que investiram os seus capitais, principalmente, no fabrico e comércio de sedas e de chá.

Em 13 de Agosto de 1862, o governador Isidoro de Guimarães conseguiu que a China assinasse um tratado em Tientsin, composto de 54 artigos, em que Macau era reconhecida como colónia portuguesa mas, quando em Maio de 1864, o governador e ministro plenipotenciário José Rodrigues Coelho do Amaral chegou àquela cidade, para o ratificar, travou-se azeda discussão sobre a interpretação do artigo nono, objectando os delegados chineses que Macau não podia deixar de ser considerado território chinês, pelo que Coelho do Amaral regressou a Macau, dirigindo um protesto aos ministros de outras potências, residentes em Pequim. Só em 26 de Março de 1887 é que o governador e ministro plenipotenciário Tomás de Sousa Rosa conseguiu firmar o Tratado de Amizade e Comércio, cujo artigo segundo diz: "A China confirma, na sua íntegra, o artigo II do protocolo de Lisboa que trata da perpétua ocupação e governo de Macau por Portugal", ficando a delimitação para ser fixada, por meio de uma futura convenção especial.

No ano de 1890, firmou-se um acordo com a China, para que o terreno compreendido entre a Porta do Cerco e o paralelo médio de Apó Siak (阿婆石 Aposhi) fosse considerado neutro e, em 1908, o oficial de marinha Dio-go de Sá e o engenheiro Miranda Guedes principiaram a trabalhar na delimitação, não sendo, porém, aceites pela China, que alegava serem eles parciais, pois eram altos funcionários de Macau. Em 1901, José de Azevedo Castelo Branco negociou um tratado, que por ser prejudicial aos nossos interesses, não ratificado. O general Joaquim Machado, auxiliado por Norton de Matos e Demétrio Cinati, que se lhes seguiu, em 1909, não foi mais feliz, não tendo a China aceite o recurso à arbitragem de Haia como foi proposto.

Em 1920, o governo de Macau assinou com o governo de Cantão um convénio, inconveniente para Macau, relativo ao porto interior. Mas, em 1922, na Conferência de Washington, os delegados portugueses, visconde de Alte e Ernesto de Vasconcelos, quase conseguiram a solução do problema da delimitação, acabando, porém, por resolverem levar o assunto à Sociedade das Nações, pelo que ficou, mais uma vez, protelada a solução daquilo que a China se havia comprometido, no tratado de 1887.

Em 1923, o Dr. Rodrigo Rodrigues, que governava então Macau, esteve prestes a ver assinada a delimitação pelo fundador da República Chinesa, o Dr. Sun Iat Sen, que viveu em Macau e trabalhou no Hospital Kiang Wu, mas as negociações não resultaram, em consequência, nessa ocasião, de dois governos na China: o do Norte e o do Sul.

Após a implantação da República, todos os governadores se têm esforçado pela introdução de melhoramentos na cidade, sob diversos aspectos. Com a autonomia financeira e administrativa conseguida após o movimento de 25 de Abril de 1974, existem as melhores esperanças de que Macau se encaminhe para uma era de franca prosperidade que, há tanto tempo, almeja.

*Investigador e historiador de temas da história de Macau; escritor e sinólogo.

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