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XIE QING GAO E PORTUGAL

Zhang Wen Qin*

Xie Qing Gao1 (1765-1821), navegador do Século XVIII, foi o primeiro chinês a apresentar suas experiências, directas e indirectas, em viagens a países estrangeiros aos seus compatriotas.2 O livro intitulado Hai lu [Registos marítimos], crónica de viagens narrada por Xie Qing Gao, faz referências a 95 países e regiões em que Xie esteve ou que ouviu falar, durante os 14 anos de sua actividade no mar, de 1782 a 1796.

Xie Qing Gao era natural de Jin Pan Bao, na região de Jia Ying Zhou (hoje distrito Mei), província de Guangdong. Em criança, era inteligente, tendo vastos conhecimentos e boa memória. Quando estava mais crescido, acompanhou um comerciante que o havia introduzido nos negócios à ilha de Ainão, aí estabelecendo-se. No ano em que completou 18 anos, o navio em que viajava afundou-se, apanhado por forte tempestade. Foi salvo por um barco comercial estrangeiro, através do qual começou a negociar para além fronteiras.

Todos os anos, navegava entre os países costeiros orientais e ocidentais, aprendendo as línguas, conhecendo e retendo na memória os nomes das ilhas e fortalezas, assim como os hábitos, costumes e produtos dos locais por onde passava. Mais tarde, após perder a capacidade visual, estabeleceu-se em Macau.

Na Primavera de 1820, Yang Bing Nan, um juren (grau dado aos que, durante a dinastia Qing, haviam passado no exame provincial) conterrâneo de Xie, encontrou-o em Macau. Ouvindo-o contar sobre o que tinha visto e ouvido nos países estrangeiros, logo apercebeu--se do valor dessas informações. Yang delas fez apontamentos que coligiu nos Registos marítimos.

Entre os 95 países e regiões apresentados nesta narrativa, encontram-se o Sueste Asiático, a Índia, a Europa, a América, a África, a Oceania e as ilhas do Pacífico. Naquela altura, a China encontrava-se em finais do período feudal, numa época de auto-isolamento e afastamento do resto do mundo. Registos marítimos fala sobre a situação dos países estrangeiros, sobretudo dos países ocidentais, pelo que despertou, na China, a atenção dos homens cultos, lúcidos e de ideias avançadas, que desejavam conhecer o Mundo. Quando Lin Ze Xu, mandarim de alta hierarquia, dirigiu, em Guangdong, a luta anti--inglesa de proibição do ópio, leu Registos marítimos3 e dele comenta que "relatava, de maneira relativamente pormenorizada, os assuntos estrangeiros".4

O livro Hai guo tu zhi [História ilustrada dos países litorais], da autoria de Wei Yuan, e o livro Ying huan zhi lue [História resumida do Mundo], da autoria de Ku Ji She, também transcreveram informações dos Registos marítimos, que continua a ser uma fonte importante para o estudo sobre a história do relacionamento e do transporte sino-ocidental, assim como sobre a história dos chineses do Sueste Asiático.

Registos marítimos fala-nos sobre a relação entre Xie Qing Gao e Portugal, a qual não foi, até aos nossos dias, profundamente investigada, nem esclarecida, pelos estudiosos chineses e ocidentais. Baseando-me nos estudos já feitos, tentaria, inicialmente, investigar e esclarecer essa questão relativamente significante na história do intercâmbio cultural sino-português.

Registos marítimos relata, de maneira muito pormenorizada, assuntos relativos a Portugal, explicando, em alguns casos, que foram os próprios portugueses a fonte primeira do que ali se escrevia. Ao falar sobre o encontro dos portugueses, numa montanha de Bantam, ilha de Java, com os "bárbaros antropófagos", por exemplo, o livro assim o descreve: "Um estrangeiro de Xi Yang [Portugal] contou: 'Os navios do seu país visitavam com frequência esse lugar. (Uma vez), os homens do navio subiram, às escondidas, a montanha perigosa, para dar uma espreitada e viram, ao longe, que os bárbaros montanheses estavam, numa gruta, a comer peixes crus. Percebendo que estavam a ser espreitados, (os bárbaros) puseram-se a perseguir (os portugueses), soltando altos brados, e estes fugiram em debandada. Os que não conseguiram escapar foram mortos (pelos bárbaros), que disputavam entre si os despojos. Ao voltarem para o navio, os sobreviventes totalizavam apenas dezasseis. Apressaram-se em içar velas. A partir daí, ninguém mais teve coragem de voltar a esse lugar'.5 História como essa só pode ter sido ouvida directamente dos sobreviventes que tiveram a sorte de escapar à tragédia antropófaga.

O livro também registou que Banjermasin, da ilha de Kalimantan, produzia abundantes diamantes, e os comerciantes portugueses disputavam sua aquisição, gastando todo o dinheiro de que dispunham. Eram grandes os grãos de diamante que, "apesar de serem postos, à noite, em sala bem fechada, lançavam um brilho intenso, e todos os estrangeiros consideravam-nos tesouros. Um grão podia custar mais de cem mil taéis de prata. Os de Xi Yang, quando encontravam diamantes extremamente grandes, mesmo tendo de despender tudo o que possuíam, não hesitavam em comprá-los".6

Xie indicou que a rota marítima que os navios portugueses seguiam, da China ou do Sueste Asiático a Goa, ficava "a oeste de Padang e a leste de Nias".7 Isso quer dizer que, depois de atravessarem o estreito de Sunda, os navios seguiam rumo a noroeste, ao longo da costa, para sair do Índico. No texto sobre Xiao Xi Yang [Goa], Xie refere que "quando ele chegou a esse lugar com um navio estrangeiro de Xi Yang, um taiyiyuanzhe [termo chinês usado para se referir aos médicos da casa imperial], que se encontrava no navio, foi informado de que morrera a sua esposa. Então, (o médico) mandou um indígena levar uma carta a Xi Yang, solicitando ao rei que entregasse metade de seu vencimento à família, para sustentar os filhos".8 Esse taiyiyuanzhe, possivelmente, era médico da casa real portuguesa. Os relatos acima mencionados eram, na sua maioria, factos que o próprio Xie havia testemunhado.

Muitos topónimos extraídos do livro não escondem a origem portuguesa, os quais foram registados por Yang Bing Nan, claro está em caracteres chineses, em conformidade com sua pronúncia portuguesa. O texto que se refere ao "País Tai Ni" [Patani, Tailândia] diz que se produzia ouro na maior parte das suas montanhas e que "o cume onde se produzia ouro chamava-se A Luo Shi".9 Nesse caso, A Luo Shi deve ser "ouro" em português e significar "mina de ouro". Tendo apresentado Bombaim, Su La [Surate], Dan Xiang [Diu?], Ji Du [península de Kathiavar], entre outros, da costa ocidental da Índia, o livro refere: "De Ming Ya La [Bengala] até aqui, os de Xi Yang deram o nome de Ge Shi Ta e nós, Xiao Xi Yang".10

A região costeira da Índia costuma ser dividida em golfo e costa. "Golfo" refere-se ao litoral do golfo de Bengala e "costa", costa ocidental da Índia, em que se encontram Goa e Diu. Desde o Século XVII, os chineses passaram a chamar Portugal Da Xi Yang [Grande Oceano Ocidental] e chamar Goa e Diu, zonas administradas pelos portugueses, Xiao Xi Yang [Pequeno Oceano Ocidental]. Xie cometeu um erro ao dizer que Bengala pertencia à "costa". Apesar disso, Ge Shi Ta a que ele se referiu é, sem dúvida, tradução fonética do termo português "costa".11 No livro, a capital do Brasil é Yan Ni Lu, também tradução fonética de "Janeiro", termo contido no topónimo "Rio de Janeiro".12

Quando Xie narrou os Registos marítimos, usou nomes portugueses para designar não só os lugares, como também os países, sendo o número destes superior àqueles. No prefácio ao livro, Yang Bing Nan diz que, quando Xie "mencionou os nomes dos países estrangeiros, seguiu a pronúncia dos dialectos de Xi Yang [Portugal], cujos sons não têm, às vezes, correspondentes (em chinês), representados pelos caracteres". Ya Li Pi Hua é tradução fonética do português Antuérpia. Outros exemplos: Dui Gu [Turquia], yi da nian [Italiano], Sui yi gu [Sueco].13 Quando Yang transcreveu os nomes portugueses mencionados por Xie, "limitou-se a usar os caracteres de sons semelhantes, para que (o nome estrangeiro) não perdesse o som original".14

Este método de empregar os caracteres chineses para fazer tradução fonética dos nomes portugueses fora aplicado na lista de termos intitulada Ao ye [Traduções de Macau], anexa ao volume Ao fan pian [Sobre os estrangeiros em Macau], pertencente ao livro Ao Men ji lue [Registos resumidos de Macau], publicado em 1751, da autoria de Yin Guang Ren e Zhang Ru Lin.15 Mas, em Ao ye [Traduções de Macau], o número dos topónimos é muito limitado, enquanto que, nos Registos marítimos, Yang Bing Nan fez tradução fonética de uma grande quantidade de nomes das localidades, países e outros termos da língua portuguesa, dando um grande passo, comparativamente falando, o que representa um mérito inegável para a história do intercâmbio linguístico sino-português.

O que devemos estudar de maneira mais aprofundada é a origem do navio a que Xie Qing Gao esteve ligado. A que país pertenceria o navio em que Xie navegou durante 14 anos? Quanto a essa questão, os estudiosos chineses nunca chegaram a um consenso. Quando Feng Cheng Jun, famoso estudioso especializado na história do relacionamento e do transporte sino-ociden-tal, anotava Registos marítimos,16 corrigiu os nomes traduzidos em chinês, fazendo todo o possível para encontrar, na língua ocidental, os nomes correspondentes, o que tornou esta a melhor entre as edições do livro. Mas disse apenas, quanto ao navio estrangeiro a que Xie pertencia, tratar-se "(...) provavelmente de navio inglês ou português". Outro especialista, o professor catedrático Zhu Jie Qin, disse também que Xie "foi aos países estrangeiros, aos 18 anos, num navio inglês ou português, e passou 14 anos fora (da pátria)". No livro intitulado Rumo ao Mundo, Zhong Shu He fornece o seguinte parecer: "Os países sobre os quais Xie Qing Gao falou de maneira relativamente pormenorizada eram Da Xi Yang [Portugal], Ying Jie Li [Inglaterra] e Mei Li Gan [América]; sobretudo Da Xi Yang, do qual deu mais informações, por isso, pode-se deduzir que o navio em que Xie navegava pertencia aos portugueses".17 Assim se referindo, Prof. Zhong também não chegou a uma conclusão definitiva.

Nos Registos marítimos, podem-se encontrar suficientes provas de que Xie tenha navegado em navio português. Yang Bing Nan diz que Xie "foi salvo por um navio estrangeiro, após naufragar devido a uma tempestade, e nele ficou para fazer comércio". Isto quer dizer que o navio que navegou era precisamente "o navio estrangeiro" que o salvara do mar. O próprio Xie disse sempre que navegara num "navio estrangeiro de Xi Yang" [Portugal]. No texto sobre Xiao Xi Yang [Goa], atrás mencionado, encontra-se a seguinte passagem: "Xie Qing Gao disse que antes ele chegara a esse lugar com um navio estrangeiro de Xi Yang". O texto sobre Kai Yu [Curilhas?] diz: "Xie Qing Gao disse que antes ele chegara a esse lugar com um navio marítimo de Xi Yang, para comprar peles de esquilo cinzento e de raposa".18

Para saber se o "navio estrangeiro de Xi Yang", ou "navio marítimo de Xi Yang", mencionado por Xie, é ou não navio português, é preciso saber primeiro se Xi Yang, relatado nos Registos marítimos, é ou não Portugal. Nos Registos marítimos, o texto sobre Da Xi Yang refere-se exclusivamente a Portugal; esta é uma afirmação sólida. Mas desde os finais da dinastia Ming, a palavra Xi Yang [Oceano Ocidental] tem sempre dois sentidos. Em sentido lato, esse termo refere-se aos países europeus e americanos que se encontram às duas margens do Atlântico (em chinês, o Atlântico é chamado Da Xi Yang, cuja tradução literal é Grande Oceano Ocidental), daí, os habitantes dos países europeus e americanos serem tratados por Xi Yang ren [pessoas do Oceano Ocidental]; em sentido restrito, esse termo refere-se a Portugal e funciona como abreviatura de Da Xi Yang. Nesse aspecto, podemos citar um exemplo: o navegador português de Macau foi chamado, na dinastia Qing, Xi Yang bing tou [cabeça, ou chefe, dos soldados de Xi Yang].

Fiz repetidas análises sobre o sentido do termo Xi Yang, no livro, e descobri que, em todos os casos, ele refere-se exclusivamente a Portugal. O livro faz uma clara distinção entre os países ocidentais, tais como a Inglaterra, a França, a Holanda, a Espanha e os Estados Unidos, entre outros, e considera Xi Yang um país, pondo-o ao lado dos países acima mencionados ou comparando-o a eles. Por exemplo, o livro diz que Di Wen [Timor] é uma grande ilha no mar sueste; "a parte ocidental da ilha é Di Wen, sob administração de Xi Yang, e a parte nordeste da ilha é Kupang, administrada pela Holanda".19 Timor fica na parte leste da ilha de Timor e Kupang, na sua parte sudoeste. Xie confundiu a posição geográfica das duas zonas, mas distinguiu muito bem a colónia portuguesa Timor da colónia holandesa Kupang. O texto sobre Xiao Lu Song [Lução, ou Manila] diz que esta terra "era administrada por Lu Song, por isso ganhou o nome de Xiao [Pequeno] Lu Song... seus costumes e hábitos são iguais aos de Xi Yang, (os habitantes) são violentos, sem escrúpulos, e gostam dos combates". O texto sobre Da [Grande] Lu Song diz que esta terra "fica a norte, um pouco a oeste, de Xi Yang".20 Nesses casos, Lu Song [Da Lu Song] e Xi Yang [Da Xi Yang] referem-se, obviamente, a dois países vizinhos, na Península Ibérica — Espanha e Portugal. O texto sobre Ying Jie Li [Inglaterra] diz: "Os seus costumes e hábitos são mais ou menos semelhantes aos de Xi Yang". O texto sobre Sui Yi Gu [Suécia] diz que "o seu território é mais ou menos igual ao de Xi Yang".21 Nesses casos, Xi Yang refere-se a Portugal, pelo que se pode afirmar que o "navio estrangeiro de Xi Yang" ou "navio marítimo de Xi Yang", que Xie embarcou, era português.

Quanto à função de Xie Qing Gao no navio português, há duas hipóteses. Segundo Yang Bing Nan, Xie "foi salvo por um navio estrangeiro e nele ficou para fazer comércio", o que já foi atrás citado. Segundo o próprio Xie Qing Gao, chegara a Kai Yu, junto com o navio estrangeiro de Xi Yang, para comprar peles. Analisando essas referências, parece que Xie trabalhava como comerciante no navio português. Mas Li Zhao Luo, baseando-se na opinião de Wu Lan Xiu (que, como Yang, era juren de Jia Ying e também anotou as narrações de Xie, não chegando, porém, a vê-las publicadas), afirmou, no prefácio ao Hai guo ji wen xu [Informações sobre os países costeiros] que Xie "acompanhou desde pequeno um navio comercial estrangeiro a viajar pelos países costeiros (...) tendo perdido completamente a vista, não pode mais manobrar o navio e dedica-se ao comércio para sustentar-se".22 A expressão "manobrar o navio" dá a ideia de que Xie trabalhava como marinheiro no navio português, razão pela qual Chen Xin Hua, em texto de sua autoria, assim o tenha afirmado.23

No Século XVIII, por falta de mão-de-obra, era frequente os navios comerciais ocidentais recrutarem chineses para marinheiros, quando vinham à China fazer negócios. Quando embarcou pela primeira vez naquele navio, Xie tinha apenas 18 anos. Era muito provável que trabalhasse como marinheiro. Os navios comerciais estrangeiros permitiam aos seus marinheiros dedicarem-se a pequenas transacções particulares. Pode-se supor também que, ao atingir a maioridade e às custas de algumas economias, Xie exercesse algum comércio ou ajudasse aos comerciantes portugueses, aproveitando-se de seus bons conhecimentos linguísticos e geográficos; donde a possibilidade de, mais tarde e em Macau, "dedicar-se ao comércio para sustentar-se".

O relato sobre Da Xi Yang [Portugal] é o mais extenso e completo entre os textos dos Registos marítimos. O livro compõe-se de aproximadamente 19 mil caracteres, sendo o seu 3° volume — sobre a Europa, América, África, Oceania e ilhas do Pacífico — composto de cerca de 4900. Da Xi Yang encontra-se no início do 3° volume e perfaz uma média de 1900 caracteres, ou seja,um décimo do número total do livro e um terço do 3° volume. O capítulo sobre Da Xi Yang descreve o seu território, portos, produtos, hierarquia civil e militar, habitação, vestuário, religião, casamento, formalidades, etc. A descrição é mais directa, portanto mais pormenorizada e mais correcta que a descrição sobre Portugal feita no Ao Menji lue [Registos resumidos de Macau], volume Aofan pian [Sobre os estrangeiros em Macau].

Ao falar sobre o sistema de fiscalização e a forma de aplicação de medidas profilácticas, nos portos portugueses, relatam os Registos marítimos: "(...) assim que chega um navio, fiscais são enviados para ver se há vario-losos. Se os há, não permitem a atracagem até que a epidemia desapareça". Falando do vestuário, o livro descreve: "Os homens usam jaquetas curtas a cobrir o tronco e para a parte inferior, calças. Todas as peças são muito justas, apenas dão para cobrir o corpo. Quando têm alguma actividade (importante) a fazer, põem outro casaco, curto na parte da frente e cumprido, atrás, como se fossem asas de cigarra. Os funcionários levam aos ombros algo parecido a uma cabaça e, conforme tratar-se de cor dourada ou prateada, representando uma hierarquia mais alta ou inferior respectivamente. O chapéu é redondo, recto nas laterais e chato no topo, e tem abas que o circundam. A roupa superior das mulheres também é curta e justa. Não vestem calças, mas saias, podendo usar até 8 ou 9. As pobres usam saias de algodão e as ricas, de seda, e todas consideram que as (saias) leves e finas são as melhores."

O livro fala sobre a situação próspera da Igreja Católica em Portugal, descreve o casamento e a confissão aos padres, e diz: "Os que foram para a China, como cintianjian [especialistas em astronomia e astrologia] e para Macau, como monges (bispos), são geralmente desta terra." Xie também relata que, naquela altura, havia em Portugal uma bem marcada distinção entre ricos e pobres e que existia uma relação completamente fria, determinada pela posse, entre as pessoas. Diz, por exemplo: "Têm o hábito de apreciar os ricos e desprezar os pobres. Estes, mesmo possuindo uma relação próxima de parentesco, não ousam entrar na casa de uma pessoa rica, nem ousam com elatomar suas refeições."24

Do capítulo sobre Da Xi Yang, percebe-se que uma grande quantidade de termos são tradução directa do português. Abundam os topónimos, títulos, escalões civis e militares, etc. Pode-se encontrar, em português, a origem da maior parte desses termos, muitas vezes traduzidos com sons exactos ou semelhantes. Vamos citar alguns: Bulujishi (Português), Yujiwoya (Lisboa), Jimbala (Coimbra), li (rei), bilin-xipi (príncipe), bilinsoushi (princesa), gandie (conde), shanshili (chanceler), mingnishilu (ministro), weiyi-duo (prefeito), youyishi (juiz), diezoulilu (tesoureiro), malajizha (marechal), guoluo (coronel), manyou (major), gabidan (capitão), gabidanmalarela (capitãode-mar-e-guerra), gabidandielindi (capitão-tenente), etc.25 Apesar desses termos portugueses, translitera-dos para caracteres chineses homófonos, fazerem lembrar mais uma forma dialectal do que propriamente o português — o que também pode ser encontrado em Traduções de Macau, representam uma novidade, ou seja, um conteúdo completamente novo que Traduções de Macau não alcançou. Esses termos portugueses foram assimilados por um navegador chinês, analfabeto em ambas as línguas, que os aprendeu em Portugal e registou-os, através do auxílio de letrados chineses, depois de ter percorrido, por várias vezes, durante 14 anos, os oceanos.

Ao completar 31 anos, Xie Qing Gao passou a viver em Macau. Lê-se, de Yang Bing Nan, que Xie "perdeu mais tarde a vista, [que] não pôde trabalhar mais, [e que] passou a viver em Macau e servia de intérprete para sustentar-se"; enquanto Wu Lan Xiu afirma que "tendo perdido hoje a vista, não pode mais manobrar o navio e dedica-se ao comércio para sustentar-se".26Zhong Shu He achava que era impossível um cego servir de intérprete profissional, afirmando que provavelmente Xie fizesse uso de seus conhecimentos da língua portuguesa apenas para poder abrir seu próprio comércio. Por esta razão, Zhong não nega a afirmação de Yang.27 Tanto Yang como Wu eram conterrâneos de Xie, e ambos anotaram Registos maríti- mos; o que afirmam não é sem fundamento e, por outro lado, também não se nota contradição irreconciliável nessas duas versões.

Antes de meados do Século XVIII, o português era a língua comum na lida do comércio sino-ociden-tal, no porto de Cantão. Para os chineses que queriam ser intérpretes ou agentes dos comerciantes estrangeiros, conhecer a língua portuguesa era um requisito importante. Esta situação só se inverterá mais tarde, à medida que os comerciantes ingleses começam a se impor na região, mantendo-se o valor da língua portuguesa em Macau, em finais do Século XVIII e começos do Século XIX. Apesar de, por razões relativas à sua capacidade física, ser difícil para Xie servir de intérprete profissional às autoridades portuguesas e chinesas, era bem possível que, com a sua experiência de vida, fosse remunerado pela tradução oral feita nas actividades comerciais e contactos sino-portugueses não oficiais. No entanto, como Xie não era intérprete profissional e não tinha receita fixa, precisava fazer negócios que envolviam pequenos capitais.

O professor catedrático Fang Hao encontrou, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, um documento oficial sobre um litígio entre Xie e dois portugueses residentes em Macau. O documento foi despachado pelo mandarim do distrito de Xiangshan, aos 3 de Agosto (calendário lunar) do 11° ano do reinado de Jiaqing (1806). O documento diz que Xie arrendara ao português Yan Duo Ni Ge Chao [António Gonzaga?] uma loja situada em Jue Zai Yuan, por ela pagando anualmente mais de 7 moedas de prata. O sobrinho de Ge Chao, chamado Yan duo Ni Fang Xi Jia [António Francisco?], fez negócios com Xie e ficou a dever-lhe 150 moedas de prata estrangeira. Impedido de quitar a dívida, Fang Xi Jia entregou a Xie uma loja situada em Hong Chuang Men, para que Xie pudesse cobrar a renda e ficasse com os juros. Mas Ge Chao não só não permitiu a Xie que cobrasse a referida renda, como também queria que este continuasse a pagar a renda da loja situada em Jue Zai Yuan. Sem poder recuperar o capital, Xie não teve outra alternativa senão pedir ao mandarim de Xiangshan, cujo gabinete localizava-se na aldeia de Mong-Há, para negociar com as autoridades portuguesas de Macau o pagamento da dívida.28 Quando se deu este litígio, Xie tinha 41 anos, estando a residir em Macau, portanto, há dez anos. O documento é prova irrefutável de que se dedicava ao negócio de pequenos capitais.

Para concluir, Xie Qing Gao foi chinês comum, iletrado, mas a pretender imortalizar-se, tal como é demonstrado por Yang Bing Nan, quando diz que Xie, através dos Registos marítimos, "pensando que o que ele fez, viu e ouviu, durante toda a sua vida, poderiaser passado à posteridade".29 Acreditamos que o tenha conseguido, já que com a sua obra conseguiu ocupar um importante lugar na história do intercâmbio cultural sino-português.

Traduzido do original chinês por Wang Suo Ying.

NOTAS

1 Xie Qing Gao é pronúncia do mandarim. Em dialecto cantonense, este nome é pronunciado Che Cheng Kou. Neste texto, todas as transliterações são feitas pelo sistema pinyin, segundo a pronúncia do mandarim. — Nota da Tradutora.

2 Sobre a afirmação aqui constante de ser da lavra de Xie Qing Gao a primeira crónica de viagens chinesa sobre Portugal e os mares e países ocidentais, aconselhamos e remetemos o leitor para o n° 21 da "Revista de Cultura", na íntegra dedicada à história e acção dos Jesuítas na China. Especificamente para os textos de Paul Rule, Louis Fan Shouyi e Macau, pág. 243, e de Manuel Teixeira, O túmulo de um jesuíta, embaixador imperial, pág. 250.

Muito antes de Xie Qing Gao, terá sido Fan Shouyi o autor do único grande relato de viagem de um chinês à Europa até ao Séc. XVIII, à semelhança do que aconteceu com os quatro delegados dos dáimios japoneses no último quartel do Séc. XVI.

Acompanhando o Pe. Provana, enviado do Imperador Kangxi ao Papa em defesa dos Jesuítas na Questão dos Ritos, chegou a Lisboa em 1708 e iniciou a viagem de regresso em 1719. Passou pela Baía, Lisboa, Génova e Roma. Depois da morte de Provana, no cabo da Boa Esperança, foi ele o grande relator ao Imperador do que observou na Europa em onze anos. Deixou as suas impressões de viagem no Shen jian lu [Um relato do que eu vi]. Ele é, segundo Paul Rule, "o autor do mais antigo relato sobre a Europa, feito por um chinês, que chegou até nós". — Nota da Redacção.

3 XIE Qing Gao, Hai lu [Registos marítimos], anot. por Yang Bing Nan, Yuedong, 1820, xilografado.

4 LIN Ze Xu, Lin Ze Xu ji: zou gao zhong [Obras de Lin Ze Xu: memoriais apresentados ao Imperador], China, 1965, parte 2, p. 680.

5 XIE Qing Gao, Hai lu [Registos marítimos], anot. por Yang Bing Nan, notas de Feng Cheng Jun, China, 1955, p. 47.

6 Id., p. 54.

7 Id., p. 41.

8 Id., p.32.

9 Id., pp. 7-8. O texto sobre Jie Lan Dan [Kalimantan] refere que este país "tem. no Oeste um pequeno rio que leva a A Luo Shi de Tai Ni" [Ouros de Patani], sendo também, nesse caso, um topónimo o termo A Luo Shi. Id., p. 11.

10 Id., pp. 33-5.

11 Em Ao fan pian [Sobre os estrangeiros em Macau], último volume de Ao men ji lue [Registos resumidos de Macau], da autoria de Yin Guang Ren e Zhang Ru Lin, há, na página 24, um poema escrito por Wang Zhen: "Triste, cansada e lânguida / continua sozinha amanhã (que é Domingo) / pensa rezar à igreja / pois o marido não voltou de Ge Si De". O poema descreve como uma mulher portuguesa, que vivia sozinha em Macau, desejava, impacientemente, que o marido retornasse o mais cedo possível da viagem comercial por terras longínquas. Nesse caso, Ge Si De é obviamente outra forma de tradução fonética da palavra "costa" e refere-se, tal como Ge Shi Ta, a Goa e outros lugares da Índia portuguesa.

12 XIE Qing Gao, op. cit., 1955, p. 77.

13 Id., pp. 71-2, 74.

14 Id., p. 1, do prefácio de Yang Bing Nan.

15 Cf. o meu artigo Estudos sobre 'Registos resumidos de Macau', "Wen Shi", (33).

16 XIE Qing Gao, Hai lu [Registos marítimos], anot. por Yang Bing Nan, notas de Feng Cheng Jun, China, 1955.

17 Id., p. 2, do prefácio de Feng Cheng Jun; ZHU Jie Qin, Estudos sobre a história do relacionamento sino-estrangeiro, Henan, 1984, p. 28; ZHONG Shu He, Rumo ao Mundo: história das investigações dos intelectuais modernos sobre o Ocidente, China, 1985, p. 47.

18 XIE Qing Gao, op. cit., 1955, pp. 32, 80.

19 Id., p. 57.

20 Id., pp. 59, 68.

21 Id., p. 74.

22 YANG Yi Qi, Yang Yi Qi wen ji [Obras de Yang Yi Qi], 4° ano do reinado de Guangxu [1879], vol. 2, pp. 23-4.

23 CHEN Xin Hua, O primeiro operário chinês que viajou pelo mundo inteiro: Xie Qing Gao, marinheiro da dinastia Qing e 'Registos marítimos', livro por ele narrado, "Diário dos Operários", 18 Ago. 1962.

24 XIE Qing Gao, op. cit., 1955, pp. 63-7.

25 Id., pp. 63-4, 67-8. Alguns termos portugueses foram encontrados pelo autor deste texto no Dicionário chinês-português e Dicionário por-tuguês-chinês, ambos publicados em Macau, pela Imprensa Oficial.

26 XIE Qing Gao, op. cit., 1955, p. 1, do prefácio de Feng Cheng Jun; p. 1, do prefácio de Yang Bing Nan.

27 ZHONG Shu He, op. cit., p. 45.

28 FANG Hao, História do relacionamento e transporte sino-ocidental, Taipé, Hua Gang, 1977, vol. 4, pp. 119-20.

29 XIE Qing Gao, op. cit., 1955, p. 1, do prefácio de Yang Bing Nan.

*Bacharel em História pela Universidade de Zhongshan, onde é professor associado no Departamento de História. Membro da Associação de História Chinesa na Região do Pacífico, e da Associação de História de Guangdong. Tem publicados ou em vias de publicação Notas e comentários aos poemas sobre Macau, Documentos sobre história e cultura de Macau e é responsável pelas edições críticas, em Chinês, de: Bits of old China, W. C. Hunter; The Fankwae at Canton, W. C. Hunter; The chronicles of the East India Company trade with China, H. B. Morse; e An historical sketch of the Portuguese settlements in China and the Roman catholic church and mission in China, A. Ljungstedt.

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