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IMAGEM DA CHINA NA CULTURA DOS DESCOBRIMENTOS PORTUGUESES1

Rui Manuel Loureiro*

Depois da sua chegada à Índia, em 1498, os Portugueses entraram em contacto com numerosas regiões e povos que até então desconheciam, ou sobre os quais possuíam informações muito vagas e confusas, por vezes mesmo totalmente incorrectas.

Nos anos seguintes, de modo a poderem incorporar devidamente as novas terras e gentes descobertas na sua visão do mundo, tiveram de levar a cabo um enorme e sistemático levantamento de informações sobre a geografia e a antropologia do continente asiático, sobretudo da sua faixa litoral, quer através de um contacto directo com numerosas regiões orientais, quer através do recurso a informações orais ou escritas de origem asiática.

Esta recolha foi de tal modo vasta e rigorosa, que por volta de 1516, para além do proliferar de numerosos textos de carácter parcelar, estavam praticamente concluídas as duas grandes geografias descritivas globais da Ásia produzidas pelos Portugueses no Século XVI: a Suma oriental de Tomé Pires e o Livro das coisas do Oriente de Duarte Barbosa.2

Uma das terras de que logo nas suas primeiras viagens ao Índico os Portugueses ouviram falar foi a China: pelo testemunho um pouco mais tardio de Gaspar Correia, sabemos que, em 1500, a feitoria portuguesa de Calicute foi instalada na Chinacota, a antiga fortaleza dos Chins.3 Garcia da Orta refere nos seus Colóquios que esta fortaleza era um dos muitos vestígios deixados ao longo de todo o litoral asiático pelas grandes expedições chinesas da primeira metade do Século XV 4 — talvez seja interessante assinalar aqui o paralelismo entre as expansões portuguesa e chinesa nas primeiras décadas do Século XV. Segundo afirma Garcia da Orta, "os Chins navegaram esta terra muito tempo há", e "eram tantos os navios da China que navegavam, que contam os de Ormuz que acham em seus livros que em uma maré entraram na ilha de (...) Ormuz quatrocentos juncos".5

Apenas dois anos depois, em 1502, o chamado Planisfério de Cantino, preparado por um anónimo cartógrafo português, que sistematizava os conhecimentos sobre o Oriente então disponíveis em Portugal, mencionava, numa legenda colocada perto de Malaca, "a terra dos Chins".6

Embora a China não fosse ainda muito mais do que um nome, e uma promessa de produtos tão valiosos como a seda e a porcelana, começara a suscitar curiosidade nos meios ultramarinos portugueses, pois vários indícios apontavam para a sua importância no panorama político e comercial asiático. E de tal modo, que Diogo Lopes de Sequeira, ao partir para o Oriente em Abril de 1508, levava no seu regimento instruções bem precisas sobre as investigações que deveria levar a cabo para tentar obter uma imagem minimamente rigorosa dos Chins:

"Perguntareis pelos Chins, e de que partes vêm, e de quão longe, e de quanto em quanto vêm a Malaca (...), e as mercadorias que trazem, e quantas naus deles vêm cada ano, e pelas feições de suas naus, (...) e se têm feitores ou casas em Malaca (...), e se são mercadores ricos, e se são homens fracos, se guerreiros, e se têm armas ou artilharia, e que vestidos trazem, (...) e se são cristãos, se gentios, ou se é grande terra a sua, e se têm mais de um rei entre eles, (...) e se não são cristãos, em que crêem ou a que adoram, e que costumes guardam, e para que parte se estende sua terra." 7

Notem-se os vectores de interesse que orientam esta grelha de questões: comércio e mercadorias, poten-cialidades bélicas, aspecto físico, organização política, crenças religiosas, costumes, limites geográficos. Estamos perante um vastíssimo programa de pesquisa antropológica, como hoje diríamos, que levaria aos Portugueses mais de um século a cumprir. Em 1508, apesar dos indícios já recolhidos, estava-se praticamente num grau zero de informação em relação às coisas da China. A China era ainda uma miragem no horizonte dos Portugueses, sem contornos bem definidos.

A partir de 1509, depois da chegada de Lopes de Sequeira a Malaca, começaram a recolher-se as primeiras informações fidedignas sobre a China e os Chineses, pois no porto desta cidade os Portugueses encontraram vários juncos chineses, com os quais se estabeleceram amistosas relações. Dois anos depois Albuquerque conquistou Malaca, e reforçou as relações com os Chineses ali presentes. João de Barros afirma que Albuquerque lhes "fez gasalhado, e folgou muito de praticar com eles pela fama que tinha a potência do seu Rei, grandeza de terra, polícia e riqueza dela, e no tratamento das pessoas deles viu parte do que se dizia".8 Mas não podemos esquecer que a visão de Barros era bastante posterior aos acontecimentos, e tinha em conta um vasto cabedal informativo, inexistente ao tempo da conquista de Malaca.

De regresso a Malaca, Albuquerque levou consigo um chinês, e organizou o seu envio para Portugal. Importa salientar esta iniciativa, pois prova que existia entre os Portugueses uma curiosidade activa pela especificidade antropológica do outro civilizacional. Albuquerque teve aliás o cuidado de enviar também alguns objectos chineses, que complementariam a imagem transmitida pelas informações escritas: sabe-se que remeteu para a Corte um livro chinês (o qual foi pouco depois oferecido por D. Manuel ao Papa Leão X, por ocasião da famosa embaixada de Tristão da Cunha a Roma, em 1514) e também uma carta representando o litoral da China meridional, copiada de um original javanês.

A partir da conquista de Malaca, a China passou a estar ao alcance da nossa navegação. Em 1513 chegavam ao litoral chinês os primeiros portugueses: Jorge Álvares e dois companheiros aportaram a Tamão, pequena ilha ao largo de Cantão. Em 1515 uma outra expedição portuguesa, comandada por Rafael Perestrelo, visitava novamente o litoral chinês. Os primeiros contactos com a China foram de tal modo encorajadores, tanto do ponto de vista comercial como do ponto de vista diplomático, que em 1517 seguia já para Cantão a primeira embaixada, liderada por Tomé Pires.

Esta escolha teve talvez como fundamento, para além das eventuais qualidades diplomáticas reveladas pelo boticário, o facto de, pouco tempo antes, Tomé Pires, na sua Suma oriental, ter dado a primeira contribuição significativa para o nascimento da imagem da China na Cultura portuguesa. A imagem que a Suma nos transmite da China, para além dos rotineiros elogios que exercem uma função meramente retórica na economia do discurso, não é excepcionalmente valorativa. A China era, antes de mais, um importante mercado, onde seria possível levar a cabo transacções comerciais altamente lucrativas. Aliás, Tomé Pires mostrava-se admirado pois, segundo escreve, as coisas que contavam da grandeza desse reino "mais se creriam com verdade haverem-se em nosso Portugal que não na China". E, na sequência, dedicava todo um parágrafo à discussão das possibilidades de conquista da China; na sua opinião, seria relativamente fácil obter o controlo de todo o litoral chinês: "com dez naus subjugaria o governador das Índias que tomou Malaca toda a China nas bei-ras do mar".9 Sinal de que a imagem que os Portugueses tinham do império chinês era ainda muito imprecisa.

Mas a embaixada de Tomé Pires não chegou a atingir os seus objectivos. O embaixador e a sua comitiva foram aprisionados, e as relações com os Fo-lang-chi foram formalmente interrompidas. Esta situação foi causada, por um lado, por uma certa prepotência e falta de tacto dos portugueses ao abordarem a civilização chinesa e, por outro lado, pelo exclusivismo e deliberada política de isolamento praticados pelos Chineses.

Um dos membros da comitiva do embaixador, Cristovão Vieira, escreveu uma longa carta da prisão de Cantão, e conseguiu fazê-la chegar às mãos de portugueses que comerciavam no litoral chinês, juntamente com uma outra carta escrita por Vasco Calvo, mercador português entretanto aprisionado pelos Chineses. Estas cartas constituem a primeira descrição presencial da China a chegar à Europa desde os tempos de Marco Polo,10 e são especialmente valiosas pelo facto de Cristovão Vieira ter sido o único europeu que no Século XVI conseguiu transmitir para Portugal notícias da sua visita a Pequim.

O valor informativo destas cartas pode ser sistematizado em três núcleos distintos:

a) informações detalhadas sobre a China, e nomeadamente sobre a geografia, a administração local, a organização económica, as potencialidades comerciais, os recursos bélicos em termos humanos e materiais, a vida quotidiana dos Chineses, as prisões e o sistema judicial, etc.;

b) testemunhos sobre a embaixada de Tomé Pires, e sobre o destino dos membros da embaixada;

c) planos detalhados para a conquista de Cantão pelos Portugueses, com vista à libertação dos cativos.

Talvez seja de destacar este terceiro conjunto de informações, pois a parte final da carta de Vieira e praticamente toda a carta de Calvo se destinavam a incitar as autoridades portuguesas a empreenderem uma expedição militar contra Cantão. Para tal, contêm minuciosos planos de ataque, com a localização das posições inimigas, os pontos fracos, locais de desembarque, prioridades estratégicas, estimativas da adesão popular ao ataque português — enfim, um autêntico plano de campanha. A situação desesperada em que se encontravam os prisioneiros portugueses, assim como uma óbvia subesti-mação da realidade chinesa, explicam, sem dúvida, a importância atribuída nestas cartas aos planos para a invasão do sul da China pelos Portugueses.

A imagem da China que emerge destas cartas não é excepcionalmente valorativa. Vejamos só alguns exemplos retirados da carta de Cristovão Vieira.

1) Os mandarins não "têm amor à gente; não fazem senão roubar, matar, açoitar, pôr tormentos ao povo. É o povo mais mal tratado destes mandarins que é o diabo no inferno. Daqui vem o povo não ter amor ao rei e aos mandarins, e cada dia se andam alevantando, e fazem-se ladrões".11

2) "Cada dia prendem muitos e soltam menos, e morrem nas cadeias à fome como bichos. Daqui vem o povo a estar em ódio com os mandarins, e desejam novidades para terem alguma liberdade." 12

3) "O povo é tão sujeito e medroso que não ousa falar. Deste jeito é por toda a terra da China; e muito pior do que digo, pelo qual toda a gente deseja revolta e vinda de portugueses."13

É natural que, depois de três anos de maus tratos nas prisões de Cantão, Cristovão Vieira não estivesse especialmente predisposto para tecer elogios à China.

No primeiro quarto de século da presença portuguesa no Oriente, a quantidade de informações disponíveis sobre a China foi crescendo continuamente, mas a sua imagem não se destacava ainda da de tantas outras regiões: um potencial parceiro comercial e uma eventual zona de fixação para os interesses portugueses.

Nas décadas que se seguiram à malograda embaixada de Tomé Pires, apesar das proibições oficiais, os Portugueses continuaram a frequentar o litoral chinês, praticando um tráfico semilegal com as populações costeiras, chegando inclusivamente a fundar estabelecimentos de carácter permanente em ilhas do sul da China (de que Liampó e Chinchéu são exemplos paradigmáticos), perante a relativa tolerância das autoridades locais.

Em 1543, alguns mercadores portugueses, acidentalmente afastados do seu rumo normal ao largo da costa chinesa, foram aportar ao Japão. Aproveitando-se do corte oficial de relações entre o Japão e a China (1549), os Portugueses tornaram-se rapidamente em intermediários no comércio entre estas duas potências. Como a viagem entre Malaca e o Japão era demasiado longa, tornou-se urgente encontrar um porto de escala seguro no litoral da China, onde, simultaneamente, fosse possível comerciar livremente com os Chineses. Estes factos conduziram, por volta de 1557, à fundação de Macau, em circunstâncias ainda hoje imperfeitamente conhecidas. Apenas se sabe que em 1554 Leonel de Sousa chegou a um acordo com as autoridades de Cantão para a realização de trocas comerciais legais entre Portugueses e Chineses,14 e que no ano seguinte existia já um precário estabelecimento português em Macau.

Segundo a versão mais corrente, mas não documentada, Macau teria sido cedida aos Portugueses em troca de auxílio prestado na luta contra os piratas que assolavam os mares do sul da China. É mais provável que a presença portuguesa fosse tolerada através de uma hábil política de suborno dos mandarins locais. Mas se os Portugueses estavam interessados, essencialmente por motivos de ordem económica, em criar uma base permanente no litoral chinês, os Chineses, por seu lado, desejavam também criar um entreposto onde fossem centralizados todos os contactos com o exterior — o que, por um lado, possibilitaria às autoridades de Cantão um controlo eficaz de pessoas e mercadorias, essencial num estado altamente burocratizado como a China, e, por outro, permitiria circunscrever os contactos com estrangeiros a uma área reduzida e de fácil vigilância, como o impunha a tradicional xenofobia chinesa.

O descobrimento do Japão provocou, pois, a intensificação das actividades portuguesas nos mares da China a partir de meados do Século XVI, com duas consequências importantes: por um lado, Macau cresceu e desenvolveu-se rapidamente, transformando-se no mais importante entreposto comercial do Sueste Asiático; por outro lado, assistiu-se a uma autêntica explosão informativa sobre a China, começando então a aparecer numerosas relações dedicadas à China, escritas quer por mercadores portugueses que tinham estado prisioneiros no interior da China (Galiote Pereira, Afonso Ramires, Amaro Pereira), quer por jesuítas que por essa altura frequentavam a região (Melchior Nunes Barreto, Fernão Mendes Pinto).

A mais importante destas relações é, sem dúvida, o Tratado da China de Galiote Pereira (1557-1561). Muito impressionado com o que viu, Galiote Pereira, para além de se referir à grandeza da China e à infinidade da sua população, elogia abertamente numerosos aspectos da realidade civilizacional chinesa, nomeadamente a perfeição das estradas e das pontes, o impecável ordenamento urbano, a racional organização das estruturas produtivas, (artesanato, pesca, agricultura, etc.), a eficiência da administração local, a imparcialidade da máquina judicial, etc.15

Com o Tratado de Galiote Pereira, e com todo o conjunto de informações presenciais redigidas por volta da metade do século, dá-se início a um processo de idealização crítica da sociedade chinesa, que fará da China, na Cultura portuguesa, o lugar geográfico privilegiado onde se cristalizam todas as imagens de uma sociedade exemplar (em termos políticos, económicos, tecnológicos, administrativos, judiciais e, mesmo, intelectuais). Assim, vamos encontrar ecos das notícias enviadas da China em algumas das mais importantes produções textuais da segunda metade do Século XVI. Vejamos apenas dois exemplos.

João de Barros, na sua Ásia — Década I (1. ḁ ed., 1552), manifesta já uma aberta admiração pela civilização chinesa: "Quanto a el-rei da China bem podemos afirmar que somente ele em terra, povo, potência, riqueza e polícia é mais que todos estoutros. Porque o seu estado contém em si quinze províncias a que eles chamam governanças, cada uma das quais é mui grande reino".16Barros chegou inclusivamente a comprar um escravo chinês culto para lhe traduzir obras chinesas que conseguira adquirir. Alguns anos depois, na Década III (1. ḁ ed., 1563), Barros multiplicava os elogios à cultura e civilização chinesas, que considerava superior à dos Gregos e Romanos: "E verdadeiramente quem vir o modo de sua religião, os templos desta sua santidade, os religiosos que residem em conventos, o modo de rezar de dia e de noite, seu jejum, seus sacrifícios, os estudos gerais onde se aprende toda ciência natural e moral, a maneira de dar os graus de cada uma ciência destas, e as cautelas que têm para não haver subomações, e terem impressão de letra muito mais antiga que nós, e sobre isso o governo de sua república, a mecânica de toda obra de metal, de barro, de pau, de pano, de seda, haverá que neste gentio estão todalas cousas de que são louvados Gregos e Latinos." 17

Também Garcia da Orta, nos seus Colóquios, se mostra perfeitamente fascinado com a China: "São os Chins homens mui subtis em comprar e vender, e em ofícios mecânicos; e em letras não dão vantagem a alguns outros, porque têm leis escritas conformes ao direito comum, e outras muito justas (...); os homens que vão à China vêem lá praticar muita justiça e usar dela; dão-se lá graus e muitas honras aos letrados, e eles são os que governam o rei e a terra".18 Noutra ocasião, respondendo a uma alusão de Ruano, que chamara "bárbaro" ao rei da China, Orta reage logo, respondendo que o rei da China "é um dos maiores reis que se sabe no mundo; e para falar nele e nas suas terras era necessário escrever um grão volume".19

Esta imagem altamente positiva da China, comum a praticamente todos os autores portugueses que se decidiram às coisas ultramarinas na segunda metade do Século XVI (Fernão Lopes de Castanheda, Gaspar Cor--reia, Brás de Albuquerque, António Galvão, Damião de Góis, Cristovão da Costa), veio a culminar no Tratado das cousas da China de Frei Gaspar da Cruz, publicado em 1569-1570, em Évora, a primeira obra exclusivamente dedicada à China a ser impressa na Europa.20

Frei Gaspar da Cruz esteve em Cantão durante seis semanas, em 1556. A partir da sua experiência pessoal, e também com base em informações orais e escritas de portugueses que tinham estado presos na China (ele fala de um "compêndio que um homem fidalgo" redigira, referindo-se a Galiote Pereira), elaborou o seu Tratado, que é uma síntese extremamente bem conseguida do conjunto de informações que os Portugueses, até à data, tinham conseguido obter sobre a China.

O valor informativo do Tratado é extraordinário: trata-se da primeira descrição global de toda a vida económica, política, administrativa, social e mesmo intelectual da China. Frei Gaspar da Cruz teve o cuidado de recolher dados sobre todos os aspectos da realidade chinesa susceptíveis de impressionar a curiosidade do leitor português. A sua descrição avança do geral para o particular, abordando primeiro a localização geográfica, os limites e divisões administrativas da China, a fauna, a flora, para depois passar a tratar questões de natureza antropológica, como o aspecto físico, vestuário, hábitos culinários, festividades, música, escrita, crenças, etc..

É importante referir que o Tratado de Gaspar Cruz refere numerosas características da sociedade chinesa que tinham passado despercebidas aos informadores medievais, como o uso do chá, a escrita chinesa, a antiguidade da tipografia, a grande muralha, o hábito de atar os pés às mulheres, etc., e que estavam destinadas a transformar-se nos grandes tópicos da visão europeia da China, praticamente até aos nossos dias.

Para além do seu valor como fonte de informação, o Tratado é especialmente importante do ponto de vista formativo, pois Frei Gaspar da Cruz transmite-nos uma imagem extremamente positiva da China, valorizando múltiplos aspectos da realidade material e espiritual chinesa, aceitando, inclusivamente, a superioridade da civilização chinesa em determinados pontos. Assim, o frade dominicano elogia sucessivamente a organização urbana chinesa, a qualidade das estradas e das pontes, a utilização racional do solo, a engenhosidade dos artífices, a incorruptibilidade de certos funcionários, os baixos impostos, a caridade estatal, etc. O balanço final do Tratado das cousas da China é francamente positivo: nas palavras de Frei Gaspar da Cruz, "os Chinas a todos excedem em multidão de gente, em grandeza de reino, em excelência de polícia e governo, e em abundância de possessões e riquezas".21

Embora o Tratado das cousas da China tenha tido uma divulgação restrita na altura da sua publicação (foi editada em ano de peste — da qual, aliás, faleceu o autor; foi escrito em português, língua que a nível europeu estava pouco divulgada), teve, indirectamente, um enorme impacto por toda a Europa, pois as suas informações foram propagadas por dois dos maiores sucessos editoriais da época, a nível internacional. Por um lado, o Tratado de Frei Gaspar da Cruz foi uma das principais fontes da célebre Historia de las cosas mas notables, ritos y costumbres del gran reino de la China (1. ō edição: Roma, 1585), escrita por Juan Gonzalez de Mendoza, obra que teve cerca de 40 edições entre 1585 e 1600. Por outro lado, foi a principal fonte da descrição da China incluída na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (1. ḁedição: Lisboa, 1614).

Para concluir, pode afirmar-se que a imagem transmitida pela generalidade dos textos portugueses do Século XVI dedicados à China se caracteriza por uma constante positividade a partir de cerca de 1540, e que essa valorização positiva não encontra paralelo em qualquer outra região do mundo frequentada na época pelos Portugueses. A análise da imagem da China na cultura portuguesa do Século XVI e a determinação das razões da sua positividade22 é um dos problemas culturais mais fascinantes do nosso Renascimento, já que nos testemunhos que até nós chegaram sobre a visão portuguesa do outro, para além da acumulação de informações de carácter etnográfico sobre as realidades ultramarinas, se cristalizam, como num espelho, os traços fundamentais da mentalidade dos nossos quinhentistas.

NOTAS

1 Este artigo resume uma comunicação com o mesmo título apresentada aos Estudos Gerais Livres, Lisboa, Auditório do Museu Nacional de Arte Antiga, 7 de Fevereiro de 1990. Por razões didácticas, as notas foram reduzidas ao essencial.

2 O leitor interessado em aprofundar algumas das questões aqui abordadas poderá consultar o meu artigo Portugal em busca da China: imagens e miragens (1498-1514), "Ler História", Lisboa — no prelo, onde alguns dos factos referidos neste texto são devidamente fundamentados e referenciados.

3 Almeida, Manuel Lopes de, ed., Lendas da Índia, Porto, Lello e Irmão, 1975, vol. 1, p. 186. Todos os textos citados foram modernizados.

Orta, Garcia de, Colóquios dos simples e drogas da Índia, ed. do Conde de Ficalho, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, vol. 1, pp. 204-5.

5 Ibd, ibid.

6 Mota, Avelino Teixeira da; Cortesão, Armando, ed., Portugaliae monumenta cartographica, Lisboa, 1960, vol. 1, est. 5.

7 Albuquerque, Afonso de, Cartas de Afonso de Albuquerque, ed. de R. A. Bulhão Pato e H. Lopes de Mendonça, Lisboa, Academia das Ciências, 1884-1935, vol. 2, p.416.

8 Barros, João de, Ásia de João de Barros, déc. 2, liv. 6, cap. 2. Utilizei a edição facsimilada de: Da Ásia de João de Barros e de Diogo do Couto, Lisboa, 1778-1788, Lisboa, Livraria Sam Carlos, 1973-1975, 24 vol.

9 Cortesão, Armando, ed., A 'Suma oriental' de Tomé Pires, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1978, p. 252.

10 As Cartas de Cristovão Vieira e Vasco Calvo, durante muito tempo apenas acessíveis na raríssima edição de Donald Ferguson, Letters from Portuguese captives in Canton, Bombaim, 1902; foram recentemente publicadas em: D'Intino, Raffaella, ed., Enformação das cousas da China: textos do Século XVI, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989, pp. 3-53; e também, em leitura modernizada da minha responsabilidade, em: Albuquerque, Luís de; Loureiro, Rui Manuel; Pericão, Maria da Graça, ed., Notícias da China e do Tibete, Lisboa, Alfa, 1989, pp. 7-64. Tenho em vias de publicação uma nova edição crítica destas cartas.

11 Albuquerque; Loureiro; Pericão, ed., op. cit., p. 30.

12 Id., p. 33.

13 Id., p. 38.

14 Cf. o meu artigo Um algarvio nos mares da China: Leonel de Sousa (1554), "Boletim do Centro de Estudos Marítimos de Macau", Macau — no prelo.

15 O Tratado de Galiote Pereira foi recentemente publicado em: D'Intino, Raffaella, ed. op. cit., pp. 97-129; e também em leitura modernizada da minha responsabilidade, em: Albuquerque; Loureiro; Pericão, ed., Primeiros escritos portugueses sobre a China, Lisboa, Alfa, 1989, pp. 9-49.

16 Barros, João de, op. cit., déc. 1, liv. 9, cap. 2.

17 Id., déc. 3, liv. 2, cap.7.

18 Orta, Garcia de, op. cit., vol. 1, p. 260.

19 Id., p. 159.

20 Edições recentes do Tratado das cousas da China em: D'Intino, Raffaella, ed. op. cit., pp. 147-254; Albuquerque; Loureiro; Pericão, ed., Primeiros escritos..., pp. 50-186.

21 D'Intino, Raffaella, ed., op. cit., p. 155.

22 Este é precisamente o trabalho de investigação que tenho em curso.

*Licenciado em História, é professor efectivo na Escola Preparatória de Lagos; prepara a tese de doutoramento A China na Cultura Portuguesa do Século XVI. Tem publicado fontes documentais (Tratado da China de Galiote Pereira, 1989; Cartas dos cativos de Cantão, 1989; Navegação de Lisboa à ilha de São Tomé, 1989; Primeiras informações sobre o Japão, 1990) e numerosos artigos no "Jornal de Letras", nas revistas "História", "Ler História" e "Cadernos Históricos".

desde a p. 13
até a p.