Linguística

MACAU NO DERRADEIRO ANO DO SÉCULO PASSADO

Fernando Castelo Branco*

Arquivo Histórico de Macau — LR.0016.

A história de Macau, a sua vida social, a própria cidade apresentam um particular interesse e revestem-se de aspectos tão peculiares quanto curiosos.

E como sabem todos quantos se interessam pelo conhecimento da vida social de outras eras ou à sua re-constituição se dedicam, os depoimentos de viajantes são de primordial importância para esse conhecimento ou para se elaborar essa reconstituição.

Um relato de Portugal feito por um viajante que percorreu o país no final do Século XVIII, Link, despertou tal interesse a um escritor e pensador como Goethe, que o enviou a Schiller acompanhado de uma carta, datada de 25 de Março de 1801, onde dizia: "Envio-vos a descrição de uma viagem em Portugal, que é uma leitura agradável e muito instrutiva."1

Um estudioso da literatura de viagens em Portugal, que tem publicado diversos relatos sobre o nosso país, reportando-se aos autores setecentistas, salientou o seu valor, apesar do que há neles de parcial ou mesmo de falso, em virtude especialmente de preconceitos:2 "No conjunto, os livros de viajantes estrangeiros em Portugal nos fins do Século XVIII constituem certamente um elemento para a caracterização do povo português, mas só depois de criticamente expurgados do que neles ficou de tendencioso e improvisado, quando não propositadamente mentido."3

A importância dos viajantes como fonte historio-gráfica tem sido salientada. É o caso de Gilberto Freire ao afirmar: "Para o conhecimento da história social do Brasil não há talvez fonte de informação mais segura que os livros de viagem de estrangeiros — impondo-se, entretanto, muita descriminação entre os autores superficiais ou viciados por preconceitos."4

Os estudiosos de Macau têm prestado atenção aos poucos testemunhos de estrangeiros. Assim, por exemplo, Luís Gonzaga Gomes, em valioso artigo intitulado Impressões de Macau colhidas nos princípios do Século XIX por uma jovem americana, aproveitou os trechos repletos de interesse do diário de Harriet Low, a jovem norte-ame-ricana que esteve em Macau de 1829 a 1834.5

Trechos desse mesmo diário são igualmente aproveitados pelo grande historiador de Macau, o Padre Manuel Teixeira, acompanhando-os de pertinentes comentários, e termina o trabalho que lhes dedicou publicando três cartas escritas de Macau, em Novembro e Dezembro de 1843, por uma outra norte-americana, Re-beca Chase Kinsman.6

No derradeiro ano do Século XIX, em 1900 por-tanto, esteve na China um francês, G. Weulersse, antigo aluno da Escola Normal Superior, agregado de História e Geografia e bolseiro de viagem da Universidade de Paris. Publicou um livro intitulado Chine ancienne et nouvelle, que a Livraria Armand Colin de Paris editou. O terceiro capítulo da primeira parte é dedicado a Macau. É um testemunho de interesse, para o qual convém chamar a atenção, que se deve divulgar, tanto mais que, como acentuou Luís Gonzaga Gomes, "raras, extremamente raras são as memórias deixadas escritas ou publicadas por estrangeiros que visitaram ou residiram em Macau, noutros tempos".7 E esta obra não a encontramos na Bibliografia macaense desse erudito estudioso da história de Macau,8 o que julgamos só aumentar o interesse da sua divulgação.

Weulersse ficou agradavelmente impressionado com o aspecto geral de Macau:

"Avec sa fraîche polychromie de murailles blanches, jaunes, mauves et roses, ornées de volets verts et vêtues de verdure, sous le ciel bleu, au grand soleil Macao a un air de jeunesse et de gaîte" [Com a sua fresca policromia de muralhas brancas, amarelas, malvas e rosadas, enfeitadas com postigos verdes e vestidas de verdura, sob o céu azul e o sol escaldante, Macau tem um ar jovial e alegre].

Igualmente considerou favoravelmente um aspecto particular da cidade: a Praia Grande. Mas, para além da beleza da sua perspectiva, do valor arquitectónico dos palacetes e das casas que a bordejam, há a registar, o que não fez Weulersse, decerto por o não ter sabido, que antes de ser uma formosa avenida, era um estreito cais ao longo do mar, como se vê pelo quadro de autor desconhecido existente no Museu Luís de Camões.9

Eis a sua opinião:

"La 'Praya Grande' est l'orgueil de Macao. C'est un boulevard qui se développe avec ampleur en croissant sur la grande baie. La vue sur le large est très belle: la mer vient battre les enrochements du quai, et quelquefois rejaillit par-dessus les parapets de granit. Ce n'est plus ici 1'atmosphère étouffée d'Hong-Kong: on respire à pleins poumons la brise. L'ombre est délicieuse des banians aux branches basses, au feuillage serré, que l'âpre vent de mer a noués et tordus. Enfin ce grandfront de vérandas décorées des plus fraîches couleurs, ces étages de colonnes, ces frontons, ces terrasses: tout cela forme unjoli décor. (...)La Praya est soignée comme une allée de parc: on n 'a rien négligé pour l'embellir; même les poteaux télégraphiques sont décorés, peints en bleu et rouge, et surmontés de boules dorées. C'est l'élé-gance, le 'fini' minutieux d'une ville que le mouvement de la vie ne trouble plus, et qui se pare elle-même comme une relique" [A Praia Grande é o orgulho de Macau. É uma grande avenida que se desenvolve ao longo da baía. A vista sobre o conjunto é muito bela: o mar bate nas rochas do cais e, por vezes, ultrapassa os resguardos de granito. Aqui já não há a atmosfera abafada de Hong-Kong: respira-se livremente a brisa. É deliciosa a sombra das figueiras de ramos baixos, folhagem serrada, que o rude vento do mar enredou e retorceu. Esta grande frente de varandas pintadas de cores alegres, estes prédios coloniais, estas fachadas, terraços, formam um cenário bonito. (...) A Praia está cuidada como se fosse uma alameda de parque: o seu embelezamento é muito cuidado. Até os postes telegráficos foram decorados, pintados de azul e vermelho, com um globo dourado no topo. É a elegância, o acabamento minucioso de uma cidade que não é afectada pelo movimento normal e que se enfeita a si própria como uma relíquia].

Encantou-o o aspecto da Praia Grande, mas lamentou a falta de animação que nesse tempo tinha essa avenida:

"Plus vivante que l'arrière-ville, la Praya manque cependant d'animation. Les pousse-pousse sont de longues heures oisifs à leur station; et à certains mo-ments la Praya serait désert sans les ratisseurs et ba-layeurs continuellement occupés à ramasser les feuilles tombées des banians" [Mais viva que a parte interior da cidade, mesmo assim a Praia tem falta de animação. Os riquexós permanecem estacionados durante horas nas suas estações. Por vezes, a Praia fica deserta, sem os raspadores e varredores que se ocupam da limpeza das folhas caídas das figueiras].

A Gruta de Camões e o panorama que daí desfrutou deixaram-no encantado:

"Au-dessous de l'arsenal, vaste bâtiment blanc aux volets verts dont le badigeon s'est écaillé, au pied d'une muraille de pierres sèches, s'étend le jardin où furent achevées les 'Lusiades'. Des haies de jeunes bam-bous; un taillis clairsemé de grands banians à caoutchouc dont les racines comme des serpents se glis-sent dans les fissures des roches, et comme des tentacu-les de poulpe les enserrent; des dessins de rocaille, mais recouverts de mousse; des allés élégantes, mais en-vahies par les herbes: tout respire un air de demi-aban-don, de nature douce et libre. Quel contraste avec le somptueux, l'impérial jardin de Hong-Kong: mais c"est bien ainsi qu'on imagine la retraite du poète!

Voici son observatoire: il tombait en poussière, on a dû le reconstruire. Mais du haut de la colline la vue ne descend plus sur une campagne paisible comme alors! Au pied même de la terrasse s'étend un quartier chinois. De petites maisons aux toits de tuiles brunes, si pressées les unes contre les autres qu'à peine aperçoi-ton de rares coins de façades blanches, bleues ou roses: au-dessus s 'élèvent les tours des Monts-de-Piété, l'arête des grands murs bordée d'une sorte de fresque blanche et noire. Et le guide me donne des détails positifs: ces Chinois paient 3 cents par an et par mètre carré au gou-vernement de Macao.

El là-bas cette île au nom poétique — 'Green Is-land', l'Ile Verte — est maintenant rattachée à la terre, gâtée par les cheminées et les fumées d'une fabrique de ciment anglaise: cela rapporte 400 piastres par an au gouvernement de Macao, plus 10 cents par tonneau de ciment; — si seulement Camoëns les avait eus pour revenu!

Le monument du moins est digne du poète. Entre deus énormes blocs de granit qui, en s'appuyant l'un contre l'autre, forment une arche naturelle, le buste de bronze est placé sur un socle de granit, et sur l'héroїque mélancolie de ce visage où l'~$oeil droit est éteint, descendent comme des lauriers toujours nouveaux des bran-ches defeuillage vert."

[Na parte inferior do arsenal, um grande edifício branco com postigos verdes cuja tinta se lascou, na base de uma muralha de pedras secas, desenvolve-se o jardim onde foram terminados Os Lusíadas. Fileiras de bambus novos, uma mata com grandes figueiras cujas raízes serpenteiam por entre as fendas das rochas e, como tentáculos de polvo, as abraçam; desenhos de conchas cobertas de musgo; alamedas elegantes, mas invadidas por plantas: tudo tem um ar de semi-abandono, de natureza doce e livre. Que contraste com o sumptuoso jardim imperial de Hong-Kong. No entanto, é neste ambiente que se imagina o retrato do poeta!

Eis o seu observatório: cheio de pó, era preciso reconstruí-lo. Mas do alto da colina a vista já não abrangia um campo agradável como então! Perto do terraço, estende-se um bairro chinês. Pequenas casas com tectos de telhas castanhas, apertadas umas contras as outras, azuis ou cor de rosa: por cima, elevam-se as rodas dos Montes-da-Piedade, a aresta dos grandes muros bordados de preto e branco. O guia dá-me informações: estes chineses pagavam 3 centavos por ano e por metro quadrado ao governo de Macau.

Lá em baixo, uma ilha de nome poético — Ilha Verde — que já está ligada à terra, corrompida pelas chaminés e fumos de uma fábrica inglesa de cimento que paga ao governo de Macau 400 piastras por ano e 10 cêntimos por tonelada de cimento; como seria bom se Camões pudesse ter usufruído de tal rendimento.

Pelo menos, o monumento é digno do poeta. Entre dois blocos enormes de granito que, apoiando-se um contra o outro, formam um arco natural, o busto de bronze está colocado sobre um pedestal de granito e, sobre a melancolia heróica desta imagem com o olho direito tapado, ramos de folhavem verde caem como coroas de louros].

Trinta e nove anos depois, Ferreira de Castro esteve aqui. Seus juízos são em parte coincidentes, em parte diferentes. Mas diferente também já era o aspecto desse recanto de Macau: "É um admirável parque, cheio de amáveis recantos, de árvores seculares, de flores, de chineses que meditam sobre os bancos, de pares que buscam as sombras e de crianças que brincam nas clareiras. Situado junto ao porto interior, o outeiro oferece belas perspectivas sobre os juncos ancorados, a Ilha Verde, no flanco da península, e as distantes montanhas de Zhong-shan. A única coisa feia é, justamente, a gruta onde o épico teria escrito parte d'Os Lusíadas. Dois penedos verticais, sobre eles um penedo horizontal, eis o sítio que se julga eleito por Camões para nele trabalhar. Sugestivo seria, sem dúvida, o lugar no tempo em que o poeta desempenhou, talvez em Macau, o burocrático ofício de Provedor dos defuntos e ausentes. Mas, hoje, com um pobre busto de Camões entre as rochas e várias lápides portuguesas e chinas em derredor, o que houve aqui, de rude, de beleza selvagem, transformou-se numa espécie de fruste necrópole."10

As ruas de Macau despertaram a atenção de Weulersse por vários motivos. Um deles foi o seu aspecto:

"Ces rues étroites, ces 'calçadas' grimpantes et tournantes, sans trottoirs, pavées de têtes de chat ro-cailleuses ou glissantes, rappellent le siècle passé. Les grands vitrages de coquilles vaguement translucides montées sur un treillis en bois, aussi étranges à nos yeux que les carreaux de papier des Chinois, nous transpor-tent encore plus loin, dans le Moyen Age.

En plein jour ces rues sont presque désertes. Dans la plupart la pente est trop raide même pour des pousse-pousse. Le visiteur y peut errer et rêver sans être dérangé, troublé même par le bruit: dans quelque endroit un peu plus large il trouvera peutêtre la chaussée transformée en atelier par de petits artisans chinois qui y étanlent, pour sécher, des fleurs artificielles ou bien des cheveux.

Beaucoup des rues ou ruelles serpentent entre de grands murs aveugles, sans fenêtres et même sans portes, par-dessus lesquels parfois débordent des verdures tombantes dont la luxuriance même dit l'abandon; entre lesquels résonnent clair les pas solitaires sur le pavé de galets. Quand ce ne sont pas des murs de couvents, ce sont les murs de soutènement des maisons en terrasse."

[As suas ruas estreitas, as suas calçadas trepadoras e enleantes, sem passeios, calcetadas com pedras ásperas ou escorregadias, fazem lembrar o século passado. As grandes vidraças vagamente translúcidas postas sobre um engradado de madeira, tão estranhas para nós como os ladrilhos de papel dos chineses, fazem-nos recuar até à Idade Média.

Durante o dia, estas ruas estão quase desertas. Na maioria dos casos, o declive é demasiado íngreme mesmo para os riquexós. O visitante pode aí vaguear e sonhar sem ser incomodado ou perturbado pelos ruídos: nas ruas mais largas encontrará talvez a calçada transformada em oficina, com os pequenos artesãos chineses aí instalados, secando as flores artificiais ou até cabelos.

Muitas ruas ou ruelas serpenteiam entre os grandes muros cegos, sem janelas e até sem portas, por cima dos quais cai por vezes uma vegetação luxuriante, sinal de abandono. Aqui, os passos solitários ressoam claramente sobre o pavimento de calhaus. Quando não se tratam de muros de convento, são muros de apoio de casas com terraço].

Cerca de setenta anos antes Harriet Low reagiu de forma algo semelhante perante as ruas de Macau: "Nunca julgaria que caminhava numa rua. Dá impressão de se caminhar entre casas muito estreitas (...). As casas estão todas cercadas de altas paredes".

O aspecto antigo das ruas de Macau não impressionou apenas Weulersse. Essa foi uma das reminiscências da cidade que Joaquim Paço D'Arcos registou em suas memórias: "Muitas das casas em que habitavam as famílias lusíadas, nativas ou idas da metrópole, fossem antigos palacetes ou modestas habitações, tinham a traça das nossas construções provincianas. Havia calçadas do burgo que nos lembrariam artérias de Leiria ou de Vila Real".11 Ferreira de Castro esteve em Macau bastantes anos depois, mas a imagem mantinha-se: "(...) do lado oposto, velhas casas, velhos solares, janelas e varandas de Portugal".12

Relacionou Weulersse um outro aspecto das casas com razões de segurança:

"Presque toutes les fenêtres d'ailleurs sont défendues par de forts barreaux qui donnent aux habita-tions un aspect de prisons: précaution utile contre les voleurs qui sont nombreux à Macao; protection éven-tuelle contre un coup de main de la population chinoise, très mêlée et assez turbulente!" [Quase todas as janelas exteriores são defendidas por barras fortes que dão às habitações um ar de prisão: precaução útil contra os ladrões que são numerosos em Macau; protecção contra um eventual golpe de mão por parte da população chinesa, muito intrometida e deveras turbulenta].

Todavia, havia quem buscasse Macau, precisamente os possuidores de grandes fortunas:

"Les plus riches habitations privées sur la Praya Grande sont celles de gros commerçants chinois qui, après fortune faite, ont trouvé ici un refuge contre les exactions des mandarins; ils y ont trouvé aussi un air plus sain que celui de Hong-Kong, et des terrains moins chers" [As habitações privadas mais ricas da Praia Grande pertencem a corpulentos comerciantes chineses que, depois de conseguida a fortuna, aqui encontraram refúgio contra as imposições dos mandarins; aqui encontraram igualmente um ar mais puro do que em Hong-Kong e terrenos mais baratos].

A escadaria e a fachada da igreja de S. Paulo impressionaram-no:

"Le véritable monument de l'ancien Macao est une ruine, le portail de 'San Paulo'. Les escaliers qui y montent sont imposants: ils montent, montent, comme vers les nuages, semblables aux escaliers célèbres du Japon; mais larges comme des terrasses, ils ont encore plus de grandeur; l'herbe a beau pousser sur leurs marches de pierre.

La façade seule restée debout se détache en plein ciel comme un grand portique triangulaire à trois étages."

[O verdadeiro monumento da antiga Macau é uma ruína, o portal de S. Paulo. As suas escadas são imponentes, não param de subir, até parecem as célebres escadas do Japão; mais largas que terraços, têm ainda uma grandeza maior. A erva cresce por entre os seus degraus de pedra.

A fachada fica no topo, destaca-se em contraste com o céu, como um grande pórtico triangular de três andares].

Mas também o impressiou o desleixo dos portugueses em relação ao velho monumento:

"L'incurie des Portugais a laissé la saleté chinoise souiller cette ruine. Ce qui fut l'intérieur de la nef n'est qu'un amas de décombres et d'ordures où les porcs se promènent. Au moment où je lis l'inscription sculptée sous la grande arcade du milieu: 'Mater Dei...' une énorme truie paraît dans l'ouverture; et des immondices sont accu-mulées devant la 'première pierre', jadis posée en grande pompe, où se lit encore une inscriptions mémorable:

VIRGINI MAGNAE MATRI CIVITAS MACAENSIS LIBENS POSUIT AN. 1602."

[A incúria dos portugueses deixou a sujidade chinesa estragar esta ruína. O que tinha sido o interior da nave é agora um monte de escombros e imundície onde os porcos se passeiam. Na altura em que leio a inscrição esculpida sob a grande arcada do meio Mater Dei... aparece uma grande porca na entrada. A imundície acumula-se à frente da "primeira pedra", lançada com grande pompa, onde se pode ler uma inscrição memorável: (...)].

A catedral de Macau mereceu-lhe a especial atenção indicada pelo relato minucioso do seu interior:

"L'intérieur de la cathédrale est très gai, tout blanc, vivement éclairé par de larges fenêtres ouvrant sur des vérandas; les lustres sont chargés de cristaux; jusqu'aux verres des lampes qui sont ondulés et teints en bleu: c'est une salle élégante. Point de mystère, point d'envolée: l'arc du plafond est surbaissé, et des filets d'or relèvent la corniche blanche, comme dans un salon Louis XVI. La chaire est de belle laque noire dorée; et les boiseries des 'loges' reluisent également de laques et d'ors. Les chapelles latérales sont décorées en bleu foncé et en rouge vif. Le grand autel est tout blanc, mais étincelant d'orfèvreries; au-dessus une Vierge en blanc trône sous un dais bleu tendre" [O interior da catedral é muito alegre, todo branco, iluminado pelas largas janelas abrindo sobre varandas; dos lustres carregados de cristais, até aos vidros das lâmpadas, ondulados e azulados, é na verdade uma sala elegante. O arco do tecto é rebaixado e filetes de ouro realçam a cornija branca, como num salão do estilo Luís XVI. O púlpito é feito de laca preta dourada e os forros reluzem também com lacas e ouros. As capelas laterais estão decoradas com azul escuro e vermelho vivo. O grande altar é todo branco, mas decorado com joalharia. Por cima, está uma Virgem num trono branco sob um pálio azul suave].

Mais curiosa ainda nos parece a descrição de uma missa, decerto solene, pois teve participação de militares:

"Près de la porte le commum peuple est assis sur des bancs très bas; les soldats occupent le milieu de la nef; la bourgeoisie, près de la chaire et du ch~$oeur, a des chaises. Dans le ch~$oeur même, le peloton de service, en rang de chaque côté de l'autel.

Sur le coup de onze heures l'officiant monte les degrés; les soldats du ch~$oeur mettent baїonnette au canon, et soudain éclate la musique. Au premier moment l'effet est extraordinaire et vraiment insupportable: il semble que cet orchestre joue des airs de danse. Mais au bout d'un instant on est moins choqué; la scène paraît étrange, barbare, mais non sans grandeur. Lorsque l'as-sistance s'agenouille sur les dalles et se courbe jusqu'à terre; que les baїonnettes dans le ch~$oeur s'inclinent, et que sur cette prosternation universelle sonne une trompette impérieuse, à laquelle succède tout d'un coup, à contretemps, le silence: cette puisssante mise en scène, cet appareil formidable de lÉglise catholique, servante du Dieu terrible, frappent, impressionnent. Et l'on croit voir revivre le Moyen Age."

[Perto da porta, o povo senta-se em bancos muito baixos; os soldados ocupam o meio da nave; a burguesia senta-se em cadeiras perto do púlpito e do coro. O pelotão de serviço no coro é disposto em filas de cada lado do altar.

Ao dobrar as onze horas o oficiante sobe as escadas, os soldados do coro colocam a baioneta na espingarda e, de repente, dá-se início à música. O efeito é extraordinário e verdadeiramente insurportável, parece que a orquestra toca uma dança. Mas passados uns momentos, o choque diminui; a cena parece estranha, bárbara, mas é grandiosa. Logo que a assistência se ajoelha sobre as lajes e se curva e as baionetas do coro se inclinam, numa posição universal de prosternação, toca um clarim autoritário seguido imediatamente de silêncio. Esta poderosa encenação, esta pompa formidável da igreja católica, serva do Deus terrível, marcam, impressionam e parece que se revive uma cena da Idade Média].

O comentário final é evidentemente descabido e inadequado. Um toque de clarins numa missa não significa nem sequer evoca, evidentemente, um Deus terrível ou a Idade Média.

Às seis e meia da tarde, na avenida da Praia, Weulersse assistiu à passagem do funeral de um eclesiástico. A cerimónia deve-o ter impressionado e por isso deu-nos — e felizmente — uma descrição bastante minuciosa do cortejo fúnebre:

"En tête s'avance une grande croix d'argent sur-montée d'une couronne — comme la couronne du Portugal est surmontée d'une croix! Puis viennent de chaque côté de la grande allée deux longues files de prêtres en surplis blanc et mantelet vert.

Ensuite quatre croix, plus petites, avec des man-teaux de velours sombre brodés d'or, portées par quatre enfants de ch~$oeur: le primier en noir, le second en rouge, le troisième en noir, et le dernier, un Chinois, en longue robe de soie bleu clair. De nouveau deux longues files de desservants: les Chinois en bleu et blanc; les Européens en blanc et noir; les moines de Manille tout en noir. Et tous tiennent des cierges dont les petites flammes rougeoient étrangement sous l'arceau noir des banians, flammes sans lumière dans la clarté encore grande du soir.

Le cercueil vient enfin, porté par six Chinois: les figures contractées par l'effort semblent vraiment empreintes de douleur. La bièrre est tout ouverte: le fin profil du mort, d'une belle pâleur de cire, se détache avec netteté; les mains délicates tiennent une croix d'or; sur le corps est étendu un grand drap noir. Le dais au-dessus est bordé de franges d'or: aux angles sont fixés de gros n~$oeuds de mousseline blanche; au chevet, dans un cadre de bois sculpté et doré, un soleil rouge.

Les trois officiants — étole noire brodée d'or — suivent; puis le public, rien que des hommes; enfin la musique militaire, et tout un cortège de pousse-pousse, quelques-uns remplis defleurs.

Les vagues de la marée montante battent le quai de granit; d'église, de chapelle en chapelle, les cloches sonnet le glas; les postes sortent et présentent les armes. La marche est très lente; la musique en sourdine joue une marche funèbre. La foule des Chinois rangée des deux côtés regarde en silence.

Dans l'allée montante du cimetière, en plein air, on s'arrête, et la prière des morts commence. Au sommet du mamelon s'élève une chapelle blanche et vert pâle, où luit une faible lumière. Le soir tombe: les. cierges mettent des reflets rouges sur la face des prêtres, et font étinceler les orfèvreries de la grande croix; les ifs noircissent et la chapelle dont les grandes lignes s'effacent s'éclaire intérieurement, tandis que par-delà la mer devient livide.

Les dernières prières sont dites: au bord de la tombe le cercueil est déposé. La figure du mort est déjà perdue dans l'ombre: on détache la croix d'entre ses doigts raidis; on ramène sur le visage les longs voiles de mousseline blanche; avec des linges blancs on borde le corps. Puis on pose le couvercle doublé de velours où des clous à tête d'or dessinent une grande croix; une vitre ronde marque la place du visage: légèrement on fixe pardessus une planchette de bois blanc.

Le cercueil est descendu et chacun jette dans la fosse une poignée de sable. Les cierges s'éteignent; il fait tout à fait noir. Mais la chapelle reste éclairée, et des chants funèbres résonnent encore. Tard sans la soirée les prêtres européens et chinois, leur surplis enlevé, les robes bleues et noires indistinctes dans l'ombre, repassent sur la Praya."

[À cabeça vem uma grande cruz de prata com uma coroa no topo, tal como a coroa de Portugal tem uma cruz no topo. A seguir vêm, de cada lado da grande alameda, duas longas filas de padres com sobrepeliz branco e mantelete verde.

Depois vêm quatro cruzes mais pequenas com mantos de veludo escuro bordados a ouro e transportadas por quatro crianças do coro: a primeira de preto, a segunda de vermelho, a terceira de preto e a última, um chinês, com um longo robe de seda azul clara. Novamente, duas longas filas de vigários, os chineses de azul e branco e os europeus de branco e preto. Os monges de Manila estão todos de preto. Todos têm velas cujas pequenas chamas ficam avermelhadas, estranhamente, sob os arcos das figueiras, chamas sem luz na claridade ainda grande da tarde.

A uma vem depois, transportada por seis chineses: as caras contraídas pelo esforço parecem realmente cheias de dor. O caixão está aberto: o fino perfil do morto, com uma bela palidez de cera, destaca-se com clareza; as mãos delicadas pegam numa cruz de ouro, sobre o corpo estende-se uma mortalha negra. Por baixo, o pálio é bordado com franjas de ouro: grandes laços de musselina branca estão presos aos cantos; na cabeceira, numa grade de madeira esculpida e dourada, está um sol vermelho.

Os três oficiantes — estrela negra bordada a ouro — vêm a seguir, depois o público, só homens. Por fim, a música militar e um grande cortejo de riquexós, alguns repletos de flores.

As vagas da enchente da maré batem no cais de granito; de igreja em igreja, os relógios tocam o dobre; os guardas saem e apresentam armas. A marcha é muito lenta, a música em surdina toca uma marcha fúnebre. A multidão de chineses colocados nos dois lados olha em silêncio.

Na alameda ascendente do cemitério, ao ar livre, o cortejo pára e dá-se início à oração aos mortos. No cume da colina eleva-se uma capela branca e verde pálido, onde se vê uma luz fraca. A noite cai: as velas provocam reflexos vermelhos na face dos padres e fazem brilhar as jóias da grande cruz; os teixos escurecem e a capela cujas grandes linhas se apagam vai-se iluminando no seu interior, enquanto que do lado de fora o mar se toma lívido.

Dizem-se as últimas orações: coloca-se a uma à beira da sepultura. A face do morto já se perdeu na escuridão: retira-se a cruz dos seus dedos já retesados; cobre-se a face com longos véus de musselina branca e com roupa lavada envolve-se o corpo. Seguidamente, pousa-se a cobertura dobrada de veludo cujos pregos de cabeça dourada formam uma grande cruz; um vidro redondo marca o local da cara: ligeiramente, fixa-se por baixo uma prancheta de madeira mole.

A uma é baixada e cada um atira sobre ela um punhado de areia. As velas apagam-se, fica tudo na completa escuridão, excepto a capela, ouvindo-se ainda os cânticos fúnebres. Já muito tarde, padres europeus e chineses, sobrepeliz levantado, batinas azuis e pretas, que não se distinguem na escuridão, regressam através da Praia Grande].

Segundo Weulersse, a fraqueza militar de Macau era enorme. Mas é preciso não esquecer que não foi pela força que Macau se manteve portuguesa e que mesmo o ataque holandês de 1622 foi repelido, no dizer de Charles Boxer, por "uma mão cheia" de "soldados experimentados" e, por isto, em seu entender, "a verdadeira defesa da cidade consistia, pois, não tanto nas suas três baterias e incompleta cidadela como nos corações resolutos e experimentadas armas dos seus moradores".13 É o seguinte o quadro que traça de Macau nessa perspectiva:

"Macao est remplie de religieux et fait montre de ses soldats. Mais ce sont justement des soldats de parade: c'est à peine s'ils savent tenir leur arme; et au moindre défilé on les voit tous: ils sont deux cents. Macao est défendue par sept forts: cela fait à peine trente hommes par fort, à peine de quoi garder les priso-nniers. Et ces forts sont des antiquités: la plupart des canons sont des canons de bronze. Macao contre une attaque sérieuse ne tiendrait pas une heure!" [Macau está repleta de religiosos e faz alarde dos seus soldados, mas são somente soldados de parada: é com muito custo que sabem pegar numa arma e no mais pequeno desfile vêem-se logo todos pois são só duzentos. Macau está defendida por sete fortes e é com muito custo que cada um tem uma guarnição de trinta homens e é também com dificuldade que os presos são guardados. Estes fortes são antiguidades: a maioria dos canhões é feita de bronze. Perante um ataque a sério, Macau não durava mais do que uma hora].

Mais importantes nos parecem as informações que nos dá sobre a vida económica de Macau. Mas essa decadência económica irremediável, que afirma, vemo-la hoje e há já alguns anos de forma diferente:

"La décadence commerciale de Macao sans être aussi complète que sa déchéance militaire est aussi irrémédiable. La baie extérieure est profonde; mais elle est mal protégée; La baie intérieure est sûre, mais elle s'est envasée: le rattachement inconsidéré de 'Green Island' à la côte par une chaussée a accéléré encore le progrès de l'envasement. Depuis quelque temps déjà les grands bateaux ne peuvent plus accoster ni mouiller en sûreté à Macao: c'est une des raisons pour lesquelles Hong-Kong a si aisément triomphé du vieux comptoir portugais. Pour subvenir aux dépenses de la colonie, le gouvernement a dû multiplier les monopoles fiscaux: monopole du pétrole, de l'abatage du bétail; monopole du sel, du riz, etc. Mais Macao est demeuré port franc, et ce privilège lui a valu de rester un centre industriel et commercial encore considérable.

Ce sont les Chinois qui continuent de faire vivre Macao: ils ne sont pas moins de 78000 dans la colonie. La Praya chinoise sur le bord de la baie intérieure est le centre des affaires. Elle grouille de monde; point de banians dont on ramasse une à une les feuilles; point de frontons ni de colonnades; mais des magasins et des chantiers — de grands étendages: poissons salés séchant au soleil, le ventre ouvert ou les ouїes bâil-lantes; pieuvres dépouillées et déjà racornies."

[A decadência comercial de Macau, não sendo tão dramática como a militar, é igualmente irreversível. A baía exterior é funda, mas está mal protegida; a baía interior é segura, mas está assoreada: a ligação indevida da Ilha Verde à costa, através de um aterro, acelerou ainda mais o assoreamento. Os grandes barcos já não podem acostar nem fundear em Macau: esta é uma das razões por que Hong-Kong ultrapassou a velha feitoria portuguesa. Para fazer face às despesas da colónia, o governo teve de aumentar os monopólios fiscais: monopólio do petróleo, abate de gado, monopólio do sal, arroz, etc. Todavia, Macau permaneceu um porto franco e esse privilégio deu-lhe a possibilidade de continuar a ser um centro industrial e comercial de grande importância.

São os chineses que conseguem manter Macau, totalizando pelo menos 78.000 em toda a colónia. A Praia chinesa na marginal da baía interior é o centro dos negócios. Fervilha de pessoas; não tem figueiras, nem fachadas, nem colunatas, mas tem armazéns e estaleiros — grandes estendais: peixe salgado secando ao sol, o ventre aberto ou guelras fendentes; polvos esfolados e já endurecidos].

Anotou Weulersse estarem as actividades económicas de Macau nas mãos de homens de várias nacionalidades, mas não nas dos portugueses. A fábrica de cimento é inglesa, o hotel mais confortável de chineses, os quais detêm as indústrias do tabaco, chá, peixe salgado, ópio, do jogo. De reter a sua descrição da fábrica de ópio:

"La Ferme de l'opium est une des institutions et une des richesses de Macao: elle ne rapporte pas moins de 17800014 piastres au gouvernement. La préparation du précieux narcotique occupe 300 ouvriers et l'usine dispose de la seule pompe à vapeur sans doute qui existe à Macao. L'opium arrive de l'Inde en boules de la grosseur et de la couleur des noix de coco. Chaque caisse, qui est soigneusement goudronnée et en outre recouverte de forte toile, renferme trois étages de ces boules séparés par des nattes: à chaque étage les boules sont enfouies dans de la sciure et encore maintenues dans un cadre de bois blanc. On les retire une à une et chacune est pesée dans une balance de précision. L'opium de Macao est très renommé, et s'expédie par grandes quantités en Californie et en Australie. C'est une des principales exportations de la colonie et une des plus fructueuses: car une petite boîte d'opium qui vaut six piastres à Macao en vaut le triple à San Francisco" [A fábrica de ópio é uma das instituições e uma das riquezas de Macau, sendo uma fonte de receitas do governo com pelo menos 178.000 piastras. A preparação do narcótico precioso ocupa trezentos operários e a fábrica dispõe da única bomba a vapor existente em Macau. O ópio vem da Índia em bules do tamanho e da cor da casca de coco. Cada caixa, cuidadosamente alcatroada e coberta com pano forte, transporta três fiadas de bules separados por esteira: em cada fiada os bules são enfiados em serradura e presos por armaduras de madeira mole. São retirados um a um e cada um é pesado numa balança de precisão. O ópio de Macau é muito afamado, sendo exportado em grandes quantidades para a Califórnia e Austrália. É uma das principais exportações da colónia e uma das mais rentáveis: uma pequena caixa de ópio vale seis piastras em Macau e o triplo em São Francisco].

Não menos sugestiva é a sua descrição da fábrica de tabaco:

"A la grande manufacture de tabacs on entre d'abord dans la salle d'épluchage. C'est un curieux effet de couleur: le bois de la charpente, les vêtements des ouvrières, les stalles de bois où elles sont assisses, les paniers où elles mettent les feuilles, tout est de la même couleur brune que les feuilles elles-mêmes - jusqu 'au reflet du mur voisin tombant d'une fenêtre grillée. Et dans le demi-jour brun c'est une confusion defemmes et d'enfants, et un grand train de bavardage.

Par un dédale de cours et de terrasses on arrive dans un hangar humide et sombre où s'agitent les blan-cheurs de grands corps nus: c'est la salle de presse. Il y a douze presses rien que sur une seule ligne: c'est de la grande industrie, mais combien primitive! Chaque presse est faite d'énormes poutres dont les extrémités d'un côté sont tenues par une grosse charnière de fer, tandis que de l'autre on les rapproche à l'aide d'un treuil à main.

Le vaste hangar n'est éclairé que de quelques rayons de lumière crue par les portes ou par de petites vitres dans le toit de la grandeur d'une tuile. Au-dessus des établis une sorte de plateforme en bambou est suspendue à la charpente; des nattes et des couvertures y sont roulées; des caisses entassées; jetés pêlemêle tous les menus objets d'un ménage; c'est le dortoir des ouvriers. Dans un coin quelques tables avec des tasses et des bols: c'est le réfectoire.

Les cours sont un véritable capharnaüm: du linge étendu sur des cordes; des fourneaux où l'on fait la cuisine; de grandes jarres qui servent de 'pissoirs'; dans ce taudis errent des chats et des chiens-loups. Devant certains piliers dont la base est peinte en rouge brûlent les indispensables bâtonnets!"

[Na grande fábrica de tabaco, entra-se logo na sala de debulha. Há um efeito curioso de cores: a madeira da construção, as roupas das operárias, os bancos onde estão sentadas, os cestos onde põem as folhas, tudo é castanho como as próprias folhas, até o reflexo do muro que se vê através duma janela gradeada. Na penumbra escura, as mulheres e crianças são uma grande confusão e falatório.

Através de um labirinto de pátios e terraços chega-se a um alpendre húmido e sombrio onde se agita a brancura de grandes corpos nus, trata-se da sala de prensagem. Há doze prensas, todas em linha; uma grande indústria, mas bastante primitiva! Cada prensa é composta de enormes trancas cujas extremidades de um lado estão presas com uma grossa charneira de ferro, ao passo que do outro lado estão ligadas com um guincho manual.

O extenso alpendre é iluminado somente por uns poucos raios que passam pelas portas ou pelas vitrinas do tamanho das telhas e que se localizam no tecto. Por cima das bancadas está suspensa, na viga, uma espécie de plataforma onde são enroladas as esteiras e as coberturas, as caixas empilhadas, os instrumentos e peças atirados desordenadamente: é a camarata dos operários. Num canto, algumas mesas com copos e tijelas, é o refeitório.

Os pátios são uma verdadeira desordem, roupa estendida em cordas, fogões para cozinhar, grandes potes que servem de urinóis. Neste chiqueiro, passeiam-se gatos e cães de guarda. À frente de certos pilares cuja base está pintada de vermelho, ardem os indispensáveis paus de incenso!].

Weulersse também visitou uma fábrica de chá e dela nos deu ideia pormenorizada, onde não faltam certas notas sobre as operárias que ali trabalham:

"La factorerie de thé, elle aussi, a l'air d'une mai-son privée mal adaptée aux basoins d'une grande entre-prise. L'escalier est trop beau; en revanche les soussols où l'on fait sécher le thé, prenant jour seulement par d'étroits soupiraux grillés, sont noirs, et l'on y étouffe.

Au premier les cribleurs secouent leur tamis avec une régularité mécanique. Sous une longue véranda dont la peinture et le badigeon moisis se décollent, sont installées les trieuses. Elles sont assises, presque par terre, sur de petits bancs, le long d'une table basse où sont placés des plateaux de jonc tressé; de chaque côté cinquante paires de mains agiles travaillent fébriles. Sur beaucoup de poignets brille l'éclair d'un bracelet de perles ou de métal: et elles gagnent pour toute la journée de dix à onze cents. Les petits travaillent ou font sem-blant de travailler à côté de leur mère: de temps à autre une jeune femme s'arrête pour donner le sein à son mar-mot."

[A fábrica de chá tem igualmente o aspecto de casa particular mal adaptada às necessidades de um grande empreendimento. A escada é muito bela, mas em compensação, as caves onde o chá é seco, que só têm luz unicamente através de respiradouros gradeados, são escuras e abafadas.

No primeiro, os joeireiros abanam as suas joeiras com uma regularidade mecânica. Sob uma longa varanda cuja pintura e betume se soltam devido ao bolor, instalam-se as separadoras. Sentam-se quase no chão em bancos ao longo da mesa baixa onde são colocadas bandejas de junco entrançado. De cada lado, cinquenta pares de mãos ágeis trabalham rapidamente. Em muitos punhos brilham pulseiras de pérolas ou de metal. As separadoras ganham entre dez e doze centavos por dia. As crianças trabalham ou imitam que trabalham ao lado das mães: de vez em quando, uma jovem mãe pára para dar de mamar ao seu filho].

Mas particularmente viva é a sua descrição de uma casa de jogo:

"'Casa di15Jogo', nous sommes arrivés. On monte un escalier de bois assez sale et on arrive dans une pièce assez bien éclairée, mais nue et exiguë. C'est d'ailleurs surtout une galerie pour les spectateurs: une large baie circulaire donne sur la vraie salle de jeu située au-dessous.

Sur une grande table couverte, non d'un tapis vert, mais d'une fine natte jaune, un petit carré noir, comme une ardoise. Chacun des côtés porte un numéro: le long de chaque côté, se placent les enjeux ou plutôt les jetons d'ivoire qui les représentent, et les petites cartes qui indiquent le nom du joueur. Un vieux Chinois chauve, sommeillant et bâillant, a remué sur une table un grand tas de rondelles de cuivre percées d'un trou rond, et il en a mis à part une poignée. Les enjeux placés, avec une petite baguette — comme une baguette à manger, — il retire les rondelles mises à part, quatre par quatre. II en reste à la fin une, deux, trois, ou quatre: c 'est le chiffre restant qui est le numéro gagnant.

C'est la simplicité même, et même l'honnêteté. Si vous perdez, vous ne perdez que votre mise; si vous gag-nez, vous la gagnez trois fois: or vous avez justement trois chances de perdre contre une de gagner. Le malheur est que lefermier dujeu perçoit 8 pour 100 sur tout enjeu: cela fait un beau bénéfice, que le gouvernement de Macao est d'ailleurs très heureux de partager.

Prodigieuse est l'agilité du croupier qui dispose les enjeux et solde les comptes: ses mains n'arrêtent pas, sa langue pas davantage; tout en sueur, il a ouvert sa veste, et l'on voit à nu sa poitrine brune. Frappant aussi le calme des joueurs: une attention anxieuse; des torses penchés, des yeux agrandis; mais ni gestes ni paroles.

Les spectateurs à la galarie s'intéressent au jeu autant que les joueurs: sur des carrés de papier distribués à cet usage, ils inscrivent la suite des numéros gagnants, à la recherche sans doute de quelque martingale. L'enviede jouer en prend un ou deux, la tentation est trop forte: un compère est là au balcon qui dans une corbeille descend leur bel argent sonnant sur le fatal 'tapis jaune'! "

[Chegámos à "Casa di Jogo". Subimos uma escada de madeira muito suja e entramos numa sala bem iluminada, mas vazia e exígua. É uma galeria para os espectadores, um grande vão circular que dá para a verdadeira sala de jogo que se situa num plano inferior.

Sobre uma grande mesa coberta com uma fina esteira amarela está um pequeno quadro preto, como uma ardósia. Cada um dos lados tem um número e ao longo de cada lado são colocadas as apostas ou melhor as fichas de marfim que as representam, assim como as pequenas cartas que indicam o nome do jogador. Um velho chinês calvo, ensonado e bocejante, remexe sobre uma mesa um monte de rodelas de couro com um furo redondo e põe de parte uma porção dessas rodelas. Feitas as apostas, o velho chinês separa as rodelas quatro a quatro com um ponteiro: o número de rodelas restantes é o número vencedor.

É tudo muito simples e honesto. Se se perder, só se perde o que se apostar, se se ganhar, ganha-se três vezes o que se apostar. Há efectivamente três possibilidades de se perder contra uma de se ganhar. O problema está no facto do banqueiro cobrar 8% das apostas, um bom lucro que o governo de Macau tem o maior prazer em partilhar.

O empregado que aceita as apostas e faz os pagamentos tem uma grande agilidade, as suas mãos nunca param, nem a sua língua. Suando, abre o seu casaco e vê-se o seu peito castanho. A calma dos jogadores é também interessante: uma atenção expectante, troncos dobrados, olhos muito abertos. Todavia, não fazem gestos nem falam.

Na galeria, os espectadores interessam-se pelo jogo tanto quanto os jogadores: num papel distribuído para o efeito, escrevem os números que vão saindo, procurando, por certo, a possibilidade de dobrar. A vontade de jogar invade um ou dois, a tentação é mais forte: no balcão, está um empregado que faz descer um cesto com o seu dinheiro até ao "tapete amarelo" fatal!].

Quando, trinta e nove anos decorridos, Ferreira de Castro esteve em Macau, visitou também uma casa de jogo. A sua descrição apresenta semelhanças com a de Weulersse, aspecto a reter. O autor d'A Selva assim descreveu a casa de jogo nesse ano de 1939:

"Entramos e vemos, em cada sala, uma banca coberta de oleado. Atrás dessa mesa estão os empregados dos banqueiros chineses, que recebem o dinheiro da clientela e marcam a quantia que cada qual arrisca. Em frente, aglomeram-se aqueles a quem o jogo fascina. O Fan-Tan, paixão oriental, é mui fácil de aprender. Basta seguir os gestos do chinês que, em mangas de camisa e olhar fingidamente destraído, se encontra sentado à cabeceira da mesa. Ele tem, junto das mãos, um monte de fichas brancas, do tamanho de botões médios. Sobre essas fichas coloca, de quando em quando, e de boca para baixo, um vaso de bronze, semelhante a uma campainha. Com este gesto, começou a nova partida. Não se sabe o número exacto dos tentos que o vaso ocultou e nisso reside o segredo do Fan-Tan. Os jogadores laçam o seu dinheiro nos números 1, 2, 3 e 4. Quando ninguém dá mostras de querer jogar mais, o homem em mangas de camisa levanta o vaso de bronze e, com uma varinha, principia a separar, em grupos de 4, as fichas que debaixo do vaso estavam. Se, no fim, queda isolado um daqueles botões, vence o número 1; se quedam dois, é o número 2 o eleito e o mesmo com o 3. Sucede, por vezes, que todas as fichas se dividem em grupos de 4 e, então, o 4 ganha. Recebe-se o dobro da quantia jogada. O tecto destas casas apresenta-se furado, como se quisesse receber a luz duma claraboia. Em cima, rodeando a larga abertura em oval, corre uma balaustrada de madeira e a ela se encostam várias mesas com jogadores. Estes acompanham, de ali, o jogo que se efectua cá em baixo e, quando pretendem jogar, fazem descer o seu dinheiro dentro de pequeno cesto a um cordel amarrado. Dizem o número que elegeram e ficam em expectativa. Os olhos enviesados desses homens são mais penetrantes do que os das gaivotas. Mal se levanta o vaso, eles contam, num segundo, o monte de cinquenta ou sessenta fichas que jaz sobre a mesa. E, muito antes de ser anunciado o número triunfante, já sabem se ganharam ou perderam."16

O testemunho de Weulersse sobre Macau de há quase cem anos tem interesse e pode vir a ser aproveitado pelos estudiosos do passado da Cidade do nome de Deus na China, sendo portanto um testemunho significativo. Por isso, por ser, ao que se nos afigura, pouco conhecido, por constar de uma obra certamente de acesso difícil, pareceu-nos justificar-se a divulgação de alguns desses informes através do presente artigo. Pierre Foncin, na carta prefácio à sua obra, afirmou: "(...) et comment oublierait-on, après les avoir vus avec vous: les rizières et les bancs de boue de Whampoa; Macao, la vieille cité portugaise aux murailles versicolores 'vetues de verdure sous le ciel bleu', mais figée dans le reli-quaire de son glorieux passé; Changhai, qui donne en plein Extrême-Orient une impression d'Europe (...)."17 Pois foi essa visão de há quase cem anos que achámos merecer a pena recordar.

NOTAS

1 CORRESPONDANCE entre Schiller et Goethe, 1794-1805, tradução de Lucien Herr, Paris, 1923, vol. 4, carta 805, p. 147.

2 CHAVES, Castelo Branco, Os livros de viagens em Portugal no Século XVIII e a sua projecção europeia, Lisboa, 1977, p. 11: "No geral, os viajantes entravam em Espanha já com ideias preconcebidas. Vinham, por assim dizer, colher exemplos que confirmassem e ilustrassem as suas teses, todas elas anteriores à observação e à análise. Compunham assim o quadro de duas nações supersticiosas, fanáticas, atrasadas, bárbaras e ridiculamente ignorantes.

3 ld., p. 13.

4 FREIRE, Gilberto, Casa grande e senzala, 3å ed., Rio de Janeiro, 1938, p. XXV.

5 GOMES, Luís Gonzaga, Páginas da história de Macau, Macau, 1966, pp. 203-16 (Notícias de Macau, 23).

6 TEIXEIRA, Manuel, Macau no Séc. XIX visto por uma jovem americana, Macau, Direcção dos Serviços de Educação e Cultura, 1981.

7 GOMES, Luís Gonzaga, op. cit., p. 203.

8 "Boletim do Instituto Luís de Camões", Macau, 7 (2) Verão 1973, p. 171.

9 TEIXEIRA, Manuel, Os militares em Macau, Macau, 1975, pp.78-9.

10 CASTRO, José Maria Ferreira de, A volta ao mundo, Lisboa, 1942, p. 480.

11 PAÇO DE ARCOS, Joaquim, Memórias da minha vida e do meu tempo, Lisboa, 1973, vol. 1, p. 241.

12 CASTRO, José Maria Ferreira de, op. cit., p. 477.

13 BOXER, Charles Ralph, 24 de Junho de 1662 (sic): uma façanha dos portugueses, "Boletim da Agência Geral das Colónias", (15) Set. 1926, pp. 123-4.

14 Em nota, Weulersse diz equivalerem a cerca de 500.000 francos, de 1900 evidentemente.

15 "Di" é decerto uma gralha e deveria estar "de", pois o autor emprega algumas palavras portuguesas.

16 CASTRO, José Maria Ferreira de, op. cit., p. 484.

17 Todas as transcrições da obra de G. Weulersse, Chine ancienne et nouvelle, são da edição de 1902, da Livraria Armand Colin de Paris. O trecho de Pierre Foncin encontra-se na mesma edição, na página IX.

*Professor da Universidade Lusíada (Lisboa, Departamento de História), da Direcção da Sociedade de Geografia de Lisboa e Director da sua Biblioteca. Sócio efectivo das Academias das Ciências de Lisboa, da História e Belas Artes. Vice-Presidente da Academia de Marinha e Presidente da Classe de História Marítima. Sócio correspondente do Instituto Meneses Bragança. Apresentou comunicações no II, III, IV e V Seminários Internacionais de História Indo-Portuguesa.

desde a p. 84
até a p.