Linguística

IMPRESSÕES DE MACAU DO CONDE DE BEAUVOIR

Conde de Beauvoir

11 de Fevereiro

Mas lá conseguimos arrancar-nos do hipódromo internacional para tomar a rota de Macau no "Fire-Dart", vapor americano de dois andares, onde temos por companheiros de viagem seiscentos chineses com as suas mulheres, amontoados como anchovas num pote. Fumam pacificamente ópio e enroscam-se nas suas capas acolchoadas para se protegerem do frio. O seu humor, ao que parece, não é sempre assim tão doce; e constituiu, desde sempre, um grande perigo para os europeus transportar uma carga de "Celestiais". Três navios desta Companhia americana caíram já nas mãos dos piratas, graças à conivência dos passageiros que garrotavam o capitão e a tripulação, quando não tinham coragem de os massacrar.

Tomamos o "Sulphur Canal" (Canal do Enxofre), e passamos por entre as ilhas de Laulao, Chung, Patung e Siko, terras de funesta memória. Foi nestas estreitas paragens, com efeito, que foram capturados, e depois queimados pelos piratas, o "Arratoon Apcar" (onze europeus mortos), o vapor "Queen", o "Wing-Sunn", perto das nove ilhas, o "Cumfa", o "North Star", o "Chico", o "Andreas" enfim, que encerra a lista de 1865! São pormenores horríveis estes, destas lutas entre um desgraçado navio europeu e, muitas vezes, uns trinta juncos! Os sinais luminosos convergentes obrigam-no a parar num estreito; é abordado, e nele são massacrados todos os seres vivos que não estão na conspiração antecipadamente tramada; após o transbordo das mercadorias para os navios assaltantes, que partilham a presa entre si, o incêndio faz desaparecer no fundo do mar o casco e a mastreação, corpos de delito da carnificina. Eis porque todos os marinheiros do "Fire-Dart", desde os grumetes até aos maquinistas, estão armados de revólveres colocados em evidência; nos bailéus do porão e na entrecoberta há canhões carregados à metralha, mas não apontados para o mar; estão, pelo contrário, dispostos de tal modo que cada um deles, a uma apitadela do capitão, deve varrer horizontalmente de forma fulminante todo o interior do navio, enquanto que uma outra apitadela terá feito subir a tripulação para os cestos da gávea. Com efeito, os primeiros culpados a exterminar, se houver uma agressão vinda de fora, são os passageiros indígenas, sem a necessária participação dos quais os piratas nunca atacam os nossos navios. Para destruir os navios a vapor, é precisa uma vasta conspiração, de que vos citei já alguns terríveis resultados; quanto aos navios à vela, é a oportunidade aproveitada que constitui a sua perda. Mal se encontram em calmaria, rapidamente os pescadores, tornando-se piratas, põem em movimento vinte remos em cada junco e organizam o cerco contra o pobre veleiro que já não aguenta mais.

Graças ao céu, não vemos senão os campos de batalha, testemunhas de tantos desastres, e os nossos Chineses não pensam, na sua indolente beatitude, senão em fumar o seu ópio. A pureza da atmosfera dá-nos a ver, nas suas mais ínfimas sinuosidades, as enseadas deste arquipélago mil vezes recortado que liga Hong-Kong a Macau. Subitamente, nos estreitos, damos de caras com uma barreira de juncos: um grande olho está pintado à frente, superstição protectora do bom andamento; três canhões no castelo da proa, outros três em cada borda no costado, outros três no castelo da popa, dão a mais guerreira aparência a estes esquifes de aventurosos pescadores. Há famílias inteiras nesta coberta em forma de montanha; aí se nasce, se casa, se morre, e cinco gerações chafurdam em simultâneo na mais inextricável embrulhada que se possa imaginar. Apesar das pinturas fantásticas, das auriflamas brilhantes, das faixas escarlates e douradas que decoram o exterior destes navios com as suas curvas elegantes e ousadas, não conseguiria comparar o que se vê pelas aberturas da entrecoberta senão ao carregamento de uma cesta de trapeiro! Ao avistar o nos-so "Dardo de Fogo", uma população de cem a cento e cinquenta seres vivos sai das escotilhas de cada junco: o formigueiro marinho, seja por prazer, seja por fanfarronice, pega nos seus tantans e bate-lhes em cima com todas as suas forças, acende petardos e foguetes, e lança-os em todas as direcções.

Mas, nos juncos, nem tudo é ninharia e criancice: há simultaneamente nascimento e progresso da arte. Os Chineses são bárbaros (é a nossa vez de lhes devolver o epíteto), no sentido em que não navegam senão, principalmente, com vento de popa, descendo com uma monção e esperando cinco meses para voltar a subir com a outra. As suas espessas velas de esteira, mantidas em tensão plana por meio de cinco bambus transversais à superfície lisa da vela, constituem um pesado conjunto. Mas o seu leme é uma pequena obra-prima: suspenso num guincho, para ser empurrado para baixo ou elevado consoante a necessidade que se tem da sua pressão, e manobrado por uma barra de grande comprimento: a sua força é ainda quintuplicada por uma disposição estranha e engenhosa. Os Chineses descobriram que a resistência à água é tomada muito mais forte se, em vez de lhe opor uma barreira plana e compacta, se perfurar esta barreira com uma quantidade de orifícios em forma de losango. Então a água já não desliza simplesmente contra o leme, mas faz antes um esforço para se precipitar, redemoinhando pelo meio dessas aberturas demasiado estreitas, criando-se assim com esta luta uma acção mais eficaz.

Após três horas e meia de viagem, dobramos o ancoradouro da Taipa, e a península de Macau aparece-nos sob os últimos raios de sol: as cores portuguesas flutuam sobre os fortes escarpados que dominam esta terra rochosa. Imaginem sete ou oito picos ousados, coroados por ameias de granito vermelho; uma aglomeração de colinas desertas, atingindo até duzentos metros acima do nível do mar, depois um caos de casas com terraços meridionais à laia de telhados e pintados de azul, verde e vermelho; cerca de uma dúzia de campanários de catedrais, janelas barricadas com barras de ferro, ruelas lajeadas, com dois metros de largura, insinuando-se nos bairros construídos em pão de açúcar, e, ao pé de tudo isto, uma baía circular e envolvente, onde se apertam milhares de juncos, eis Macau!

"Ao avistar o nosso 'Dardo de Fogo', uma população de cem a cento e cinquenta seres vivos sai das escotilhas de cada junco."

Desembarcamos num cais atulhado de cúlis e subimos as mais portuguesas das "Calçadas do Bom Jesus", das "Travessas de Santo Agostinho", verdadeiros corredores montuosos entre as casas baixas de granito que parecem prisões. Estranha população a dos conquistadores desta terra! Os descendentes de Albuquerque que aqui se apressam em multidão, suspensos nos seus sabres ou enfiados nos seus cachenés, formam uma raça de Portugueses cruzados com Chineses, os quais haviam sido já cruzados com uma mistura de Malaios, de Indianos e de Negros; em suma, raça enfezada e débil, com a pele cor de chocolate claro, os olhos fendidos em amêndoa, vegetando numa atmosfera meia-cristã, meia-feiticeira, meia-civilizada e meia-asiática! Há aqui dois cabarés anglo-americanos: depois de um percurso indescritível através das ruelas sombrias, encontramos um refúgio num deles, espécie de granja sem janelas, húmida e mal-cheirosa, onde miríades de baratas elegeram domicílio antes de nós.

Esta habitação não será naturalmente senão temporária para nós, uma vez que podemos esperar uma melhor. — Quando, a propósito da nossa ocupação mexicana, os Estados Unidos do Norte consideraram a situação por tal forma tensa que a guerra ameaçou estalar entre eles e nós, o duque de Penthiève foi obrigado, com grande pesar seu, a apresentar a sua demissão da marinha federal, para não correr o risco de se ver forçado a combater contra o seu país. Desejando então continuar com a sua actividade marítima, passou com a mesma patente para a marinha do seu primo, o Rei de Portugal, fez uma primeira campanha a bordo do "Dom João", e uma segunda, de dezoito meses, como primeiro-tenente da corveta "Bartolomeu Dias" na costa de África, no Rio, em Montevideu e em Buenos Aires. Estando ainda ao serviço de Portugal, embora de licença, está portanto em condições de usufruir de todos os privilégios de uma marinha na qual serviu, e escreve nesta mesma noite ao Governador.

Não há nada tão triste e nauseabundo como o nos-so cubículo; assim, para escapar aos exércitos de insectos vorazes, pedimos ao hospedeiro que nos faça conduzir por um dos seus cúlis aos teatros chineses, que são a única coisa que há para ver depois do pôr-do-sol. Escalando e subindo as escadarias pedregosas, decoradas com o nome de ruas, sinto-me a tornar-me macaco aqui! Entramos finalmente num barracão de madeira onde ressoa uma música ensurdecedora: os acessos estão cheios de Chineses a comer, a fumar e a beber, por grupos de quatro, em pequenas mesas; penetramos até ao proscénio, e uma tragédia, misturada com habilidades de acrobatas, que dura desde as dez horas da manhã, desenrola-se diante de nós. Mas estamos nós há apenas uma hora a usufruir, enquanto tapamos os ouvidos, deste espectáculo curioso, quando de repente se dá uma grande movimentação; os bancos e as mesas são derrubados, um fluxo confuso, empurrado desde a porta de entrada, abre passagem numa barulhenta desordem; o que será? São os ajudantes de campo do Governador, e um capitão de corveta, e todo um estado-maior em farda de gala, com os seus chapéus de plumas e um museu de decorações sobre o peito! O golpe de teatro é magnífico. Como, até então, éramos os únicos europeus da sala e com simples fatos de viajantes, todo o público chinês bate com os pés e se entrechoca, julgando que vêm prender-nos. — Mas esses senhores, com uma cortesia perfeita, são, pelo contrário, enviados ao Príncipe para lhe apresentarem as felicitações do Governador e para o convidarem a alojar-se no palácio; tiveram para isso, na noite sombria e fria, de nos demandar através de todas as ruelas da cidade, e a multidão imensa que atravanca a saída do teatro, deserta ainda há pouco, prova-nos que este insólito passeio acordou todas as portinholas. Após uma troca de mil delicadezas, fica combinado que nos apresentaremos amanhã ao meio dia ao amável convite.

"Os acessos estão cheios de Chineses a comer, a fumar e a beber, por grupos de quatro, em pequenas mesas."

Aproveitando um último resto de estadia não oficial em Macau, e pensando que os jantares de gala impedirão a partir de agora as verdadeiras descobertas de turistas, partimos infatigáveis com o nosso cúli, e penetramos na cidade chinesa, devidamente enfeitada e iluminada com lindas lanternas. O que há de mais curioso aqui são as casas de jogo; porque Macau é o Mónaco do Celeste Império. A maioria dos Chineses ricos de Ainão, de Guangdong e de Fuquiém são suficientemente loucos para vir aqui perder o seu dinheiro a um "trinta e quarenta" proibido na sua terra. Um croupier patriarca de rabicho branco, com uma barbicha de quatro pêlos encerados e com unhas desmesuradamente longas, preside a esta banca, sobre a qual se arremessam centenas de jogadores.

"(...) E, de imediato, os nossos meliantes desaparecem de vista."

É perto da meia noite, e satisfeitos com o aspecto original desses chineses vestidos de seda, cada um circulando com a sua lanterna veneziana, pedimos ao nosso cúli que nos leve de volta ao casebre das baratas! Não sei se os uniformes dos ajudantes de campo o levaram a pensar que estamos cobertos de ouro, mas o miserável "Ceslestial" tem prazer em nos desorientar; as casas tornam-se raras, e encontramo-nos insensivelmente perdidos num campo deserto, sondando-nos um ao outro com um olhar inquieto: moitas e lagunas são as únicas coisas que a nossa vista enxerga diante de nós, numa estrada que se torna caminho de cabras, enquanto que seis ma-tulões chineses, avançando a bom passo, nos seguem a uma centena de metros por todos os meandros que o acaso nos oferece. O súbito desaparecimento do nosso pérfido acólito faz-nos ver num relance a situação, e neste covil dos mendigos, dos evadidos, dos patifes da China, os dois pensamos que os poucos minutos que vão seguir-se poderão bem representar todos os anos que esperávamos ainda vir a viver. As sombras humanas que se prendem a nós rondam com uma insistência cada vez mais marcada; aproximam-se, assim que as rochas que encimam a estrada a tornam ainda mais sombria; dispersam-se assim que, voltando-nos resolutamente, vamos direitos a eles para pôr fim a este odioso passeio. Mas, naturalmente, estes homens estão à espera de companheiros, pois os seus assobios continuam a não ter ecos, e a firmeza da nossa marcha ainda se lhes impõe... Finalmente — após mais de meia hora, durante a qual os nossos corações bateram, presas das mais vivas angústias — vislum bramos uma luz baça na direcção em que, guiados somente pelo nosso instinto, esperávamos sempre encontrar a cidade europeia... é a lucarna gradeada de um posto! é uma porta fortificada das muralhas! O hábito das fórmulas das patrulhas militares e o perfeito conhecimento do português fazem o Príncipe triunfar rapidamente sobre as hesitações do artilheiro que monta guarda atrás das ameias, e, de imediato, os nossos meliantes desaparecem de vista. Voltamos edificados com os bons instintos do cúli, que pode gabar-se de ter escapado de boa; porque, se tivesse desaparecido menos lestamente, teria começado por ser ele a pagar pelos seus amigos. Após ter contado a nossa campanha a Fauvel, vamos enrolar-nos no chão no mesmo cobertor, como na Austrália, jurando, felizmente não demasiado tarde, que não voltam a apanhar-nos noutra!

12 de Fevereiro

Conduzidos graciosamente durante a primeira parte do dia por Dom Osório, ajudante de campo do Governador, e durante a segunda por sua Excelência em pessoa, Dom José Maria da Ponte e Horta, major de artilharia, visitamos hoje toda a possessão, o que é fácil, visto que ela me parece ter cinco quilómetros de comprimento por dois de largura. Esta península tem exactamente a forma de uma pegada humana, cujo calcanhar está virado para o mar, enquanto que o polegar vai dar a uma língua de terra, de quatrocentos metros de largo, que a liga à grande ilha de Xiangshan. O calcanhar é formado por nove altas colinas rochosas que dominam os fortes de Bom-Parto, Barra, São João, e São Jerónimo; a grande curva interior da planta do pé está guarnecida com as habitações amontoadas dos Chineses, que são em número de cento e vinte e cinco mil, enquanto que os dois mil residentes portugueses se domiciliam na margem oposta e exterior. A Praia Grande, esplanada marinha, é a sua avenida: casarões com gradea-mentos sombrios, castelo do Governador, capitania do Porto, casas oficiais e comerciais aí se alinham, apresentando absolutamente o cunho colorido, abobadado e monástico da mãe-pátria. Imaginem então que uma muralha escala o colo do pé (é a nossa muralha de ontem à noite!) e que todas as articulações dos dedos se crispam e se levantam; já não são mais que montanhas em sobressaltos, no alto das quais se elevam os fortes de São Francisco, da Guia, de São Paulo do Monte, e outras sete ou oito; a seguir vêm a planície cultivada pelos hortelãos, a aldeia de Mong-Há e a barreira de dezasseis pés de altura que separa a colónia do território chinês.

Os caminhos que seguimos no nosso interessante percurso são talhados em precipício no granito, e com o efeito mais pitoresco; uma centena de canhões de grande calibre, assestados nas alturas, partilham a tarefa de defender a península do lado do mar circundante, ou de bombardear o bairro dos cento e vinte e cinco mil rabichos em caso de revolta.

Visitamos depois a meridional Praça da Sé, a catedral, a velha câmara municipal, onde tem assento o Senado, e na qual, desde 1654, figura esta inscrição:

CIDADE DO NOME DE DEOS — NAO HA OUTRA MAIS LEAL.

Percorremos as casernas, os mosteiros, a igreja de São Paulo, construída em 1594 pelos Jesuítas e da qual três quartos estão hoje destruídos por um incêndio, o Asilo dos Pobres, etc., etc.; numa palavra, uma série de edifícios antigos e cristãos, encimados de cruzes, ornamentados com santos em nichos, cobertos de curiosos frescos. Juntem a mantilha que esconde a cabeça das mulheres, o imenso chapéu preto e oblongo sob o qual caminham os monges, a coifa branca das Irmãs da caridade, e jurar-se-ía, asseguro-vos, que se está à sombra das basílicas de Lisboa ou de Génova! Após os espectáculos modernos que acabam de nos dar, de há dez meses a esta parte, os mundos inteiramente novos, e os mundos asiáticos, nos quais pelo menos a invasão industrial tem todo o cunho da actualidade, é como uma ilusão de encontrar, às portas do Império do Meio, uma caixa de bombons antiga, com ruínas cristãs que parecem atestar que outra coisa não houve jamais, nesta terra longínqua, que não fossem os nossos velhos monumentos e as nossas velhas crenças.

Por volta das três horas, os escaleres embandeirados fazem-nos navegar por entre trezentos juncos barulhentos, e ancoramos junto da canhoneira "Príncipe Carlos", onde se bebe à saúde da "Armada". Depois rumamos a terra e caminhamos sob as matas de árvores de verdura eterna que a vaga vem banhar: o sol de Inverno, com a sua triste púrpura um pouco empalidecida, está próximo do horizonte, e mal penetra na sombra do arvoredo; estamos na gruta de Camões! A história conta que em 1556 o grande poeta, acabando de naufragar nestes mares inospitaleiros, e não tendo salvo senão os primeiros versos d'Os Lusíadas, conseguiu alcançar a nado a colónia portuguesa, então nascente. Refugiou-se nesta gruta batida pelo mar, e, chorando sobre a sua vida de exílio, cantou as glórias da sua pátria. O local em si mesmo, isolado e selvagem, abrindo a vista para o Império do Meio, e para o Oceano que nenhuma outra terra rompe até aos gelos do polo sul, o local, com gigantescos blocos de granito, deverá, incontestavelmente, ter inspirado a sua admirável epopeia. Mas a edilidade local teve a infelicidade de lhe profanar toda a pureza solene e poética. No próprio local das mais tocantes memórias, que deveriam ter sido mantidos grandes pelo pensamento, construiu-se um quiosque como os das nossas avenidas,sobre o qual foram afixados versos, e atrás do gradea-mento do qual se encerrou um busto de papel mascado que é ridículo, e que, no entanto, deve representar o exilado, o poeta apaixonado e sublime.

Um outro exilado, um Francês, quis, sobre a face setentrional da gruta, unir neste lugar perdido a lembrança de dois infortúnios sofridos pelas Letras, e a sua peça está assinada: "LOUIS RIENZI, poeta religioso, 30 de Março de 1827".

Quanto a nós, um bom ritmo de galope leva-nos por montes e vales à aldeia de Mong-Há, onde se eleva um pagode que produz um grande efeito ao longe, e que de perto cheira bastante mal. Os bonzos não fazem as honras de borla, mas há aqui um facto deveras curioso. Devido à antiguidade da colonização, os Chineses tornaram-se tão Portugueses, ou os Portugueses tão Chineses, que os Budas são nomeados pela própria boca dos bonzos, com nomes dos nossos santos; há lá, à dúzia, Sãos Franciscos e Santos Agostinhos com quatro braços, com três cabeças, com dobras e sobredobras de gordura.

O crepúsculo vai acabar no momento em que acaba também para nós o território da colónia; estamos sobre a estreita língua de terra que liga Macau a Xiang-shan; a cerca de duzentos metros de nós, à direita como à esquerda, a "Terra Celeste das Flores". Um grupo de cerca de sessenta homens vestidos de branco, batendo em tantans, e berrando com vozes agudas, leva um morto para a terra e desfila diante de nós. Mas este estranho cortejo, sobressaindo mais vivamente sob os reflexos de uma luz purpúrea que morre e de uma noite que começa, toma ainda mais impressionante a narração que nos é feita do drama sucedido neste local.

Neste mesmo local morreu assassinado o penúltimo Governador de Macau, o valente Ferreira do Amaral. Tendo tomado em mãos toda a reivindicação de Macau por parte de Portugal, atraiu sobre si a cólera dos mandarins de Cantão, que queriam por força manter os seus sequazes com paridade de autoridade na colónia portuguesa. Não recorreram à guerra aberta, e lutaram pelo assassínio, o que lhes custava bem menos caro: no dia 22 de Agosto de 1849, os seus sicários lançaram-se sobre Amaral no momento em que este passeava a cavalo ao longo desta muralha, com um ajudante de campo, e levaram até aos pés do Governador de Cantão a cabeça e as mãos ensanguentadas do infeliz oficial.

"Bonzos do Pagode de Mong-Há (claustro)."

13 de Fevereiro

Começamos a habituar-nos à temperatura de Inverno, e as longas caminhadas nestes lugares tão interessantes fazem-nos passar depressa o tempo.

No alto do Monte, visitamos as ruínas de um convento de Jesuítas, depois estudamos em pormenor a coisa mais característica de Macau: os "Barracões", célebres entrepostos da pretensa "emigração dos cúlis", mais justamente maculada com o nome de tráfico dos Chineses. A primeira loja do vendedor de homens em que entramos apresenta-se sob os mais risonhos exteriores: terraços ornamentados com flores, grandes potes chineses, salões com móveis de mogno; são as salas de recepção... para os funcionários. Uma pequena secretária num canto, com pilhas de grossos livros usados, vem tão somente lembrar-nos que é ali que se faz "o registo da carne humana". As paredes estão cobertas de quadros de grande efeito (este povo ama tanto as artes!), representando os afortunados navios destinados a transportar os ditos carregamentos de "Filhos do Céu" para debaixo do sol assassino das plantações de Cuba ou para dentro dos poços fétidos de guano do Peru. Lamento ter de dizer que o pavilhão francês se mostra demasiado nestes tristes anúncios.

À primeira entrada, aquilo parece portanto magnífico. Mas, após as civilidades do costume feitas aos amulatados donos da casa, apercebemo-nos de longos corredores onde, à direita e à esquerda, estão amontoados nos hangares todos os Chineses "de partida para a emigração". Estão ali, à espera da partida, com o rosto descomposto, o corpo de cores macilentas; vestidos apenas de andrajos apodrecidos, suportam o hediondo cunho da miséria suja, e jazem na mais abominável infecção.

É uma história deplorável a do tráfico dos Chineses: ainda que ela só tenha nascido há dezanove anos, conta com os mais horríveis massacres, as mais infames especulações, mil vezes mais atrocidades que o tráfico dos Negros que veio substituir: sangue, sempre sangue!

As províncias do sul da China estão a braços com guerras intestinas que nenhuma força pôde ainda abafar: os prisioneiros que faz o clã vencedor são por ele vendidos a um "comprador de homens" português, que tem agentes em cruzeiro ao longo das costas; tal é o principal modo de recrutamento! Depois, os inúmeros piratas, dos quais este arquipélago é o ninho mais fecundo, vêm trazer a estes entrepostos a melhor parte de suas presas: pobres pescadores surpreendidos em número desigual. Enfim, unidos pelo isco de um ganho regulamentado entre eles, miseráveis empreiteiros chineses e europeus entendem-se para atrair com mil reclamos e para escoltar a crédito rebanhos de jogadores que acabam de tentar a fortuna nas casas de jogo legais que visitávamos anteontem à noite. Contra dois que ganham, vinte perdem até à sua última sapeca, e, devedores iludidos, têm, para pagar, de se abandonar em carne e em osso aos seus falaciosos credores. Se vimos este costume no Sião em relação às mulheres, às crianças e aos escravos, reencontramo-lo hoje na China em relação ao próprio homem livre; paga portanto com a sua liberdade.

Apanhados pela força ou enganados pela esperteza, milhares de pobres diabos são portanto, sem qualquer controlo, embarcados daqui para os seus longínquos destinos. Cinco vezes em dez, uma revolta nasce a bordo, e a tripulação europeia é massacrada sem piedade; ou então, pela crueldade de um capitão irritado, os carregamentos humanos inteiros morrem abafados no porão. Creio que não há no mundo narrativa mais dramática do que a de semelhantes viagens: durante quatro ou cinco meses de mar, homens vendidos, tratados como gado, enfiados num porão fétido, não deverão eles fatalmente tornar-se verdadeiros animais ferozes, quando o furor da fome e da sede, a necessidade torturante de ar e de liberdade, os decidem, aos quinhentos e seiscentos, a lançar-se sobre uma quinzena de marujos europeus, instrumentos cegos da especulação, e tornados carrascos aos seus olhos?

Os mais felizes são aqueles que chegam ao destino, para ali passarem longos anos em escravatura: a sua vida é, no entanto, bem mais dura que a dos Negros. Porque, no Negro, o plantador ou o extractor de guano via a sua propriedade e poupava-a para a fazer durar; enquanto que do Chinês, que não é mais do que um usufruto de alguns anos, ele não pensa senão em tirar o máximo de trabalho num tempo dado, sem se inquietar com o futuro.

Não conhecendo estes pormenores longínquos senão por ouvir dizer, posso pelo menos fazer uma ideia das sessenta e tal revoltas que ensanguentaram esses navios de emigrantes através da narrativa do naufrágio do "Martha", publicada em Hong-Kong em Janeiro passado. Os cúlis pareciam animados de um tal desespero ao perderem da vista as costas da China, que tiveram de ser confinados no porão, enquanto que um em cada vinte era, como refém, atado nas barras de papagaio. De noite, o temor de uma revolta tinha feito semear na coberta uma centena de biscainhos armados de pontas, destinados a impedi-los de fazer irrupção, devendo os seus pés nus ferir-se sobre esses projécteis. No entanto, romperam as escotilhas, mataram dez homens, garrotaram os outros, e manobraram tão mal que naufragaram passados cinco dias: metade pereceu no mar; apenas dois marujos se salvaram e contaram esta tragédia que nos gela de terror!

Se tal é o fundo das coisas, se, desde 1848 até 1856, a autoridade local fechou os olhos a este comércio imoral, é justo dizer que, a partir desta última época, o governo português assumiu a vigilância daquilo que até então não havia sido, mesmo antes da partida, senão desordem e desumanidade. Após bastantes perguntas, eis o que vos posso dizer sobre o estado actual dos cúlis, no que se refere ao embarque: infelicidades, as revoltas em pleno mar escapam naturalmente à jurisdição portuguesa, e não diminuem por tão pouco. Aliás, se a inspecção do "Barracão" tende a provar que os cúlis sobem livres para esses infames barcos, não é menos verdade que eles desembarcam ainda mais legalmente escravos em Cuba ou nas ilhas de guano!

Partem todos os anos de Macau cerca de cinco mil Chineses para Havana e oito mil para Callao. Naturalmente que, se a emigração fosse dirigida por estabelecimentos desinteressados e honestos, ela constituiria uma imensa benfeitoria, quer para o país escasso em víveres quer para aquele falho em trabalhadores, e seria caso de se saudar com a mais viva simpatia esses juncos libertadores que desagravam do seu excesso a mais fecunda das populações do globo, esta China cujo solo não é rico em toda a parte, e que está longe de poder alimentar todos os que carrega na sua superfície. Mas não deveria então ser possível que os clãs de larápios, os piratas e os aliciadores fossem os primeiros agentes, os que maculam todo o empreendimento com uma nódoa original que nada pode apagar. É neste recrutamento que reside a raiz do mal; não servirá de nada mais tarde, em Macau, perguntar a esses milhares de cúlis se partem ou não de sua livre vontade; o que significará a sua resposta afirmativa? Uma vez caídos nas garras dos agentes tomados credores, uma vez lançados nas secretarias dos "Barracões" por comissionistas que recebem entre quarenta a cinquenta francos por cabeça de recruta, uma vez entregues, por contrato assinado entre os arroladores e os mandarins do Império, coniventes à custa de potes de vinho, não serão os infelizes forçados a mentir da boca para fora ao inspector português, quando este lhes pergunta se afinal deram ou não deram o seu consentimento? Porque eles sabem que, se se recusarem a partir, três interessados, credores, comissionistas e mandarins, se encarniçarão sobre eles com todos os horrores da mais implacável vingança; acossados e torturados, a morrer de medo e de fome, eles cairão de novo, quase forçosamente, sob o odioso jugo e sob os golpes mortíferos daqueles.

Numa palavra, após a primeira infâmia da captura pelos agentes subalternos, eis como prossegue... o negócio! Aquele que "obteve a comissão no artigo homem" recebe, por cabeça de Chinês entregue, cinquenta francos para ele próprio e cerca de trezentos francos para o vendedor. O Português semi-negro que nos passeia nos seus armazéns tem assim hoje uma centena, adquirida pelos seus comissionistas de Cantão, em Guangdong, em Guangse e em Ainão; é um desembolso de trinta mil francos. Este proprietário tem bem o verdadeiro aspecto de um vendedor de carne humana: é gordo, untuoso, atar-racado e baixo, o nariz é achatado, o olhar feroz, a barba suja, e tem na mão uma enorme moca para escravos: — está tudo dito!

Antes de traficar (a palavra não é senão demasiado verdadeira) com um capitão de navio, antes de embarcar no fundo do porão esses fardos vivos, o mestre de um "Barracão" tem de fazer passar os seus cúlis diante do procurador português. É aí que começa a acção governamental, e que as disposições actuais tendem a produzir os seus frutos, enquanto que o mal carrega em si mesmo o seu castigo; porque acontece precisamente que a esperteza e a violência, que pareciam no princípio um meio de grande economia e uma fonte de imenso ganho para os agentes arroladores, se tomam, graças à nova lei, na própria causa da subida das despesas e da diminuição dos lucros. Em mil Chineses interrogados pelo juiz colonial, e postos perante a alternativa de voltar à China ou de dar à vela em direcção a Havana, acontece haver muitas vezes até duzentos que têm a coragem de recusar e de se arriscar às vinganças "barraconianas": se os credores que os compraram, escoltaram e alimentaram nos seus hangares de espera não exercerem terríveis represálias, toda a despesa efectuada em nome destes pretensos desertores fica perdida!

A carga humana que, perante os juízes, consentiu na partida, volta então a ser internada no "Barracão". A nova lei defende que ela de lá saia dentro de um prazo de seis dias, período durante o qual aparece uma segunda vez o procurador, que diz aos cúlis: "Decidi-vos, ainda sois livres!" Muitas vezes estes esperam um ou dois me-ses que um navio levante ferros, e, durante essa espera, têm ainda de pronunciar o sim fatal duas vezes antes do embarque, para que o seu consentimento seja demonstrado de um modo manifesto.

Ainda que louvando a autoridade local pela sua solicitude durante a inspecção e a sua averiguação durante a espera do embarque, torna-se no entanto necessário ter em conta que quanto mais tempo um cúli permanece nas mãos do vendedor, menos lhe resta a capacidade de se retirar. Porque ele é um mendigo, um insolvente! A que sevícias não se exporia ele, se dissesse: "Não quero partir", tendo sido alojado e alimentado durante dois meses pelo empreendedor? Quando num círculo vicioso, após se ter recusado a partir como homem livre, ele terá, para saldar a sua dívida, de partir, após ter-se constituído escravo desse empreiteiro!

Finalmente, a carga esta arrumada no navio, este vai levantar ferros, a hora solene aproxima-se! e, somente na véspera da partida, o contrato é assinado perante o procurador. Os cúlis são embarcados, e cada um é então vendido, por cerca de setecentos e cinquenta francos, pelo proprietário do "Barracão" ao representante da empresa espanhola de navegação. Após termos atormentado todos os nossos companheiros com perguntas, obtivemos como ramalhete um exemplar do famoso contrato: está redigido em espanhol e em chinês, assinado e rubricado pelo Chinês recrutado, pelo procurador do Rei e pelo cônsul de Espanha. Eis as suas principais cláusulas:

"Comprometo-me a trabalhar doze horas por dia, durante oito anos, ao serviço do possuidor deste contrato, e a renunciar a qualquer liberdade durante este tempo. — O meu patrão compromete-se a alimentar-me, a dar-me quatro piastras (20 francos) por mês, a vestir-me, e a deixar-me livre no dia em que expirar este contrato".

Como é bela a administração no papel! Mas, em suma, não se torna este homem por oito anos na besta de carga de um plantador? E não se compreende que o suicídio, como me contavam no outro dia em Hong-Kong, seja o recurso final de tantas misérias! Mas uma morte mais horrorosa os espera muitas vezes, e lembro-me da impressão profunda que provocou em mim uma narrativa de M. Vanéechout na "Revue des Deux Mondes" [Revista dos Dois Mundos]: ei-la em duas palavras. Para a extracção do guano nas ilhas Chincha, a matéria é vertida através de um cano de ventilação directamente do alto das rochas para dentro do porão do navio, e isto num trajecto de cerca de cem metros: tinha ele visto um infeliz Chinês ser arrastado com a sua carga de guano para dentro de um tubo apertado, e reduzido a pó quando chegou ao fundo: — semelhantes acidentes são lá muito frequentes. Mas, preocupado sobretudo com os trabalhos de escravos destes pobres seres, esquecíamos de terminar o relato da transacção comercial; a ele volto.

"Um infeliz Chinês arrastado com a sua carga de guano para dentro de um tubo."

Excepto em Cantão, onde a agência cubana, no ano de 1865-1866, exportou dois mil e setecentos cúlis, "miseráveis... zés-ninguém e pobres-diabos", não é fácil inicialmente encontrar capitães e tripulações que consintam em fazer esses transportes; mas finalmente o isco de um lucro assegurado, um frete de quinhentos francos por "Celestial", acaba por tentar certos capitães, ainda que nisto arrisquem a vida como num jogo de dados. Após os horrores de uma navegação onde o tifo, as revoltas, os tiros de revólver trazem todos os dias um novo incidente, chega-se a Cuba, e eis então os sobreviventes dos nossos Chineses conduzidos para a praça, verdadeira feira de gado humano! Conforme a estação, as necessidades das culturas, ou o amontoado da mercadoria, os "Filhos do Céu" estão ora em alta ora em baixa, tal como a farinha, o café ou os bois: jogam-se então golpes de bolsa sobre os desembarques: mas, geralmente, a quota é de trezen-tos e cinquenta dólares (1.750 francos)! Duvido apenas de que o relato do mercado desta multidão gritadora alguma vez contenha uma das proverbiais fórmulas: "Hoje, o Chinês está calmo!" Deste modo, desde a sua saída de Macau até à sua chegada à plantação de açúcar em Cuba ou até à rocha de guano, o cúli passou do valor de 300 francos ao de 1.750 francos, partilhado entre as mãos dos que o "recrutaram", isto é, cinquenta francos para o recrutador, quatrocentos francos para o "Barracão", quinhentos francos para o capitão, e quinhentos francos para a agência de venda a destino!

Ao passear os meus olhares sobre estes pobres seres pálidos, empestados e andrajosos, que jazem aqui à nossa volta sobre as tábuas destes canis a que chamam "Barracões", não posso dizer-vos até que ponto o coração se me aperta! Sei muito bem, no entanto, que, deste mesmo terraço, Dom Osório nos mostra os telhados e os jardins de alguns Chineses, partidos daqui há vinte anos, embarcados como cúlis, e que voltaram ricos! Se ela resistir às febres, a doze horas de trabalho forçado durante oito anos de escravatura, se ela se habituar, como se diz, às pauladas e ao guano, sei bem que esta raça de trabalhadores poderá em seguida enriquecer, porque os salários do trabalho livre são muito remuneradores! Mas quantos haverá que voltaram ricos, de entre os milhares que o contrabando, a pirataria e os reclamos dourados amontoaram nos porões assassinos? Ainda que seja uma das mais lucrativas especulações do Século XIX, que dá a ganhar a estas agências de cúlis cerca de mil e quatrocentos francos por cabeça, estes "senhores" não me produzirão jamais o efeito de qualquer outra coisa que não sejam piratas disfarçados de "empregados"; e parece-me que irei ouvir para sempre as pancadas secas e horrorosas com que os vi bater nas costas dos homens vendidos por grupos, a entrar e a sair quais rebanhos de carneiros a serem levados para os campos... ou para o matadouro!

"Cúlis à espera da partida."

Ah! como eu felicito do fundo do coração a colónia inglesa de Hong-Kong por ter, num dos seus primeiros éditos, proibido, quer no seu solo quer nas suas águas, a emigração dos cúlis! Sentiu ela que era necessário macular ainda menos os sofrimentos que os esperam na sua terra adoptiva, do que as fraudes horrendas e as exacções dissimuladas que a sua procura na China forçosamente desencadeia. Para Macau, a situação é delicada: sanguessuga aposta ao colosso chinês, este estabelecimento anfíbio não foi nunca demilitado nos seus elementos orgânicos, como espero ter amanhã tempo para vos contar, inspirando-me na sua história. Nem português puro, nem chinês puro; nem cristão, nem budista; hesitando entre os seus governadores portugueses e os seus tenazes mandarins, em luta permanente; tão depressa proclamando atitudes conformes à nossa política europeia no Extremo Oriente, tão depressa intimidado e mantido sob trela pelas ameaças de Cantão e de Pequim, Macau não obteve uma verdadeira estabilidade senão após os esforços do valente Ferreira do Amaral; mas o velho fundo de podridão de uma origem bastarda é difícil de varrer de uma vez só. É certo que os "Barracões" começaram por ser simples depósitos para o "tráfego dos Chineses": poder-se-ía dizer hoje que tal já não é mais do que uma "emigração involuntária de cúlis". Desejo sinceramente que chegue em breve o tempo em que o Governo português, renunciando honestamente aos lucros que obtém sobre este comércio, imite aquilo que faz a Irlanda em relação à Austrália. Uma vez purgada a emigração de qualquer especulação lucrativa, que partam às centenas os navios pagos por Cuba ou por Callao, tal como os pagam Sydney e Brisbane! Que arranquem às dores da miséria, da fome e da pilhagem milhares de Chineses que sufocam no seu próprio ar! Que aqueles que se vendem a si próprios por oito anos, à razão de mil e setecentos francos por cabeça, ao menos recebam e guardem o dinheiro que são supostos valer! Mas não, o trabalho livre, a única ideia passível de regenerar o mundo asiático, abrir-lhes-á uma carreira mais pura, mais nobre e encorajadora, e o seu nível moral elevar-se-á tanto mais quanto terão escapado aos "Barracões", a mais vil e a mais afrontosa das agências que eu conheça!

Tínhamos nós deixado os "Barracões" há cinco minutos apenas, e escalávamos, completamente ofegantes, a "Calçada da buenita Maria Virgem", uma montanha russa de lajes escorredias, entre duas fileiras de casebres pintados de verde com grades de prisão a fazer de janelas, quando nos cruzámos com a liteira do procurador, à qual um jovem Chinês, berrando e soluçando, se agarrava con-vulsivamente. Saudámos "Sua Excelência" (aqui toda a gente é Excelência, até eu!), e perguntámos-lhe a causa das tão abundantes lágrimas do seu infeliz acólito, que carregava ao pescoço um letreiro em madeira com um grande número inscrito. Dom *** voltava da câmara municipal em traje de gala, e tinha aí rubricado os contratos de setecentos cúlis que devem partir amanhã. Mas, em conformidade com a lei, tinha recusado o "contrato" a este pobre Chinês, porque este jovem rabicho não tinha dezoito anos! O candidato eliminado não parava de se rebolar aos joelhos do juiz, e traduziam-nos as suas palavras: "Ele suplicava-lhe que o deixasse partir, porque se fosse devolvido ao agente que o havia comprado, far-lhe-ía perder as--sim todo o lucro, e expunha-se consequentemente a sofrer os piores maus-tratos". Miserável criança, louca de desespero, porque a prendem no momento em que deve partir para um novo Eldorado... de guano!

14 de Fevereiro

Às seis horas da manhã embarcamos no "Príncipe Carlos", bonita canhoneira que o Governador de Macau deu ao Príncipe para ir até Cantão. Contornamos as enseadas rochosas da península, e, pouco a pouco, a Praia Grande, o forte da Guia, onde foi construído o primeiro farol dos mares da China, o Monte e as ameias dos bastiões perdem-se num horizonte confuso: dizemos adeus a esta colónia, o último posto-avançado europeu que nos é dado ver antes do próprio Celeste Império.

"Num camarote vizinho ao nosso, uma ceia farta."

Mas Macau é o primeiro marco que os navegadores do Ocidente colocaram nas circunvizinhanças da China, e a sua história está, por isso mesmo, ligada a todos os acontecimentos de guerra entre a Europa e a grande potência asiática. Foi o Português Perestrelo que, em 1516, abordou, antes de qualquer outro, o rio de Cantão. Durante quarenta anos, os seus compatriotas, seduzidos pelos tesouros, até então desconhecidos, dos recursos comerciais do Império, tentaram estabelecer humildes entrepostos; mas de Liampó no Norte até a foz do rio de Cantão no Sul, foram sucessivamente repelidos e varridos pelas hordas indígenas ou pelos decretos dos mandarins, como um navio batido pela tempestade que se choca contra os rochedos duma costa abrupta, sem poder aterrar em parte alguma. Ainda que as suas proclamações pacíficas e as fracas forças navais de que dispunham mostrassem suficientemente que apenas tinham em vista criar um entreposto de comércio, lucrativo para as duas nações, foram expulsos por todo o lado como seres pestilentos. Após terem finalmente obtido o direito de ancoragem sob o vento das ilhas Sanchoão e Lam-pacau, foram, em 1557, autorizados a construir um entreposto sobre um rochedo deserto, perdido na extremidade de uma ilha. Em alguns anos fortificaram-no tão bem, que os mandarins não puderam mais expulsá-los de lá: Macau estava fundado. Desde então, durante mais de dois séculos e meio, este entreposto manteve-se simul-taneamente português e chinês, dividido entre a autoridade dos mandarins e a de um senado local. Curiosa reunião de dois poderes opostos, cobrando os impostos em comum, obervando-se um ao outro, e esforçando-se por estabelecer uma ponderação política, semelhante à troca comercial de que Macau constituía o entreposto entre o Império do Meio e todo o resto do mundo! Muitas vezes o pavilhão europeu se viu porém obrigado a ceder perante o dragão amarelo, e o Senado local, composto por dois juízes, três vereadores e um procurador, todos eleitos pela comunidade, foi coagido a submeter, do modo mais infame, os seus direitos e objectivos aos mandarins, e a abandonar-lhes as mais preciosas das prerrogativas — a jurisdição sobre os súbditos portugueses e a proibição da conversão dos Chineses ao cristianismo.

Parece que, neste casamento do poder asiático com a colónia católica, esta última foi coagida ao papel passivo da mulher e muitas vezes maltratada pelo seu senhor. E como! por duas vezes, em 1802 e em 1808, quando as tropas inglesas, protectoras da Companhia das Índias, desembarcam em Macau para defenderem este posto-avançado contra a eventualidade de um ataque francês, os mandarins intervêm e forçam os Portugueses a expulsar os seus próprios defensores! E, em 1839, quando o comissário imperial Lin destrói as feitorias e todos os comerciantes de Cantão vêm procurar refúgio em Macau, Lin chega com um exército de dois mil homens, ameaça a cidade, e exige que todo o súbdito inglês embarque imediatamente. Foram obrigados a ceder e a fugir até ao ancoradouro de Hong-Kong. Mas tal custou ao Império a cedência desta ilha, exigida pelo tratado que termina a guerra. Finalmente, o encerramento da fronteira portuguesa, em 1849, não consegue desencadear o da fronteira chinesa, e a disputa termina com o assassinato do Governador. Este crime rompe o dique que continha até então correntes justapostas, mas de tal modo violentas, que uma nova tempestade viria a tudo submergir. Tanto quanto existia, até aí, respeito pela co-propriedade, no entreposto chinês-português, assim, politicamente falando, se abre para a colónia uma era de vigança e de independência, saída de duzentos e noventa e dois anos de repressão, de intimidação e de tutela. Assim, a partir de 1846, os seus governadores reais, apoiados por um senado eleito, reinam ali como senhores, constroem, julgam e promulgam, sem ter de pedir autorização aos sequazes dos mandarins de Cantão. Mas existe já tão somente uma infelicidade: é que Portugal nunca foi legalmente possuidor de Macau, e que os Chineses não estavam talvez tão errados ao reclamarem a fatia do leão na administração dos assuntos locais. Entre a autorização, dada em 1557, para abrir um entreposto, e a cedência total do solo, existe uma barreira que o gabinete de Pequim deixou os artilheiros portugueses saltarem de facto, mas não de direito, e o senhor Guimarães fez a mais lastimável das caretas quando, em 1862, os plenipotenciários chineses se recusaram categoricamente a ratificar um tratado em que a soberania de Portugal sobre a velha colónia era implicitamente reconhecida. Ainda que a proposta fosse apoiada pelo encarregado de negócios da França em Pequim, a nulidade das pretensões avançadas não foi por isso menos afirmada pela China. Assim, por uma singular reviravolta das coisas deste mundo, Portugal, que abriu a rota do Oriente às outras nações comerciais, é o único a ver flutuar aí as suas cores sem o consentimento da China; enquanto que legalmente e através de tratados, a Inglaterra é senhora em Hong-Kong, e, com ela, a França e os Estados Unidos em Xangai; enquanto que a Prússia enfim tem, ao que se diz, grande vontade de se fazer pura e simplesmente ceder a magnífica ilha da Formosa.

Mas enquanto que a independência política de Macau ganha passo a passo até 1849, chega agora ao seu apogeu, a prosperidade comercial do entreposto sofre um movimento inverso. Durante o Século XVIII, o florescente comércio da Companhia das Índias abala todo o sul da China: ali bebe como numa fonte viva, ou ali descarrega as suas importações da Europa, e é Macau que constitui o entreposto das trocas. Quanto mais Cantão se torna inabitável, na sequência dos vexames dos mandarins, tanto mais Macau se abre aos nossos negociantes da Europa; e não são apenas os juncos, carregados de mercadorias, que para ali convergem aos milhares, mas esta cidade torna-se ainda um lugar de prazer para os nababos perdulários do tráfico oriental. Quantos sonhos não se fundam então sobre este ponto infinitamente pequeno, convertido em farol dos mares da China, chamando a si os navios que vêm do fim do mundo, descarregando e armazenando as suas cargas, e depois relan-çando-os, quais raios divergentes de uma fornalha de luz, para paragens longínquas, com os produtos, ainda tão procurados, do Império do Meio! Mas, num só dia, todo este edifício brilhante se desmorona; bastou que, em 1841, graças à admirável actividade e aos capitães da Grã-Bretanha, um outro rochedo deserto, com o nome de Hong-Kong, fosse cedido à rainha dos mares e declarado porto franco, para que o centro de gravidade se deslocasse! O nascimento desta colónia britânica mata o antigo entreposto português; e não restam mais aqui senão alguns cascos de navios, ancorados em forqueta e enegrecidos ao serviço do tráfego dos cúlis.

Macau conta cerca de 125.000 Chineses e 2.000 Portugueses. Em 1865, em lugar das 1.000 saídas de há trinta anos, não registou senão 206; o seu comércio resume-se praticamente à importação de 7.500 caixas de ópio, num valor de 16.810.000 francos, e à exportação de chá por um valor de 8.400.000 francos. Como bem podem pensá-lo, é sobre os Chineses que ali habitam ou que ali passam que recaem todas as imposições, e, de acordo com a regra fatal dos povos asiáticos, é impondo-lhes os seus vícios que mais se ganha. Mais de 100.000 piastras (500.000 francos) provêm da licença de jogo; mais de 300.000 francos da do ópio e dos "Barracões"! E é qualquer coisa, num orçamento com receitas de 1.188.000 francos apenas. Quanto às despesas, graças à exiguidade do local e à modicidade dos vencimentos (18.760 fr. para o governador; 11.500 fr. para o juiz; 3.960 fr. para o coronel; 3.000 fr. para o procurador), não vão além dos 973.000 francos: os 215.000 francos de lucro reentram nos cofres da metrópole, onde, ao que se diz, há lugar para eles.

Fisionomia singular e pitoresca a deste entreposto antigo, que teve as suas grandezas como a armada dos Dias, dos Vasco da Gama e dos Albuquerque!... Ele representa o antigo mundo e a raça latina, ao lado do ímpeto financeiro dos Anglo-Americanos do Oriente; e o rio de Cantão, escorrendo da China pura, embate no seu estuário contra duas sentinelas opostas! Se uma delas é florescente, não se pode esquecer que é à outra que devemos a abertura da China ao nosso comércio. Esta semeou na dor, aquela colheu nos dias de abundância.

Comparando essas três colónias de Singapura, de Macau e de Hong-Kong, cinta de pioneiros com que guarnecemos as circunvizinhanças da China, sou muito naturalmente levado a pensar nas migrações em sentido inverso que os Chineses fizeram para se espalhar — quais abelhas laboriosas — em nuvens invasoras à roda da sua colmeia. Que vôo ousado empreenderam, e qual é a terra do Oriente, quer seja banhada pelo oceano Índico, o oceano Antártico ou o oceano Pacífico, cujas praias eles não tenham abordado? Vimo-los correr para as minas de ouro da Austrália, e sabemos que se arremessam sobre as da Califórnia. Vimo-los açambarcadores e usuários em Java; úteis e amados pelos Brancos em Singapura; negociantes viris — e os únicos — no Sião: eles activam de modo feliz a circulação cochinchinesa; vangloriam-se em Manila; deleitam-se nas ilhas Chincha, no guano, e em Cuba, sob os plantadores! Que povo imenso não formaria só por si este povo apanhado fora da sua terra! Amado aqui, expulso dali, útil à direita, prejudicial à esquerda, mas perseverando no seu negócio, que para ele representa a vida, o Chinês de exportação volta sempre ao país natal..., mas quase sempre no seu caixão, o que fez dizer sobre uma qualquer das terras para onde ele emigrava: "Recebemos o Chinês em bruto e vivo; reenviamo-lo para a sua pátria manufacturado e morto".

A mim, que vi assim já tantos "Filhos do Céu" antes de ter posto os pés na China, a mim que ouvi homens sinceros louvar ou rebaixar tanto o Chinês, parece-me que não pode ser emitida uma teoria absoluta sobre ele! Considerando-o unicamente como emigrante, comparo-o a uma espécie de planta parasita, levando o mal ou o bem consoante a seiva da planta à qual se agarra, absorvendo essa seiva se for mais rica do que a sua, alimentando-a se ela for inferior. Procura ele com efeito tomar um lugar igual numa raça superior? Logo que lhe esvazia, em benefício próprio, a fecundidade, é forçado pela sua própria es--sência a descer até à sua escumalha, a explorar-lhe, a exagerar-lhe os vícios e a servir-lhe de alimento. Cai ele, pelo contrário, numa população preguiçosa, abastardada e fria? Aquece-a com a sua vivacidade, regenera-a com o seu sangue, estimula-a com o exemplo do seu trabalho. Mas acima de tudo, no exterior, é um infatigável trabalhador; na zona mais próxima que rodeia a sua pátria, é um pirata; veremos o que ele é na terra dos seus antepassados.

Ei-lo, com efeito, a desenrolar-se perante nós, o solo clássico do "Império das Flores"! Guiada por um piloto chinês muito hábil, a nossa canhoneira serpenteia por entre centenas de ilhas rochosas, estacarias de bambu e frotas de juncos de pesca, que animam, na sua embocadura, a visão grandiosa do rio de Cantão. Mas como estamos em pleno Inverno, as flores estão ausentes; e, tão somente, túmulos disseminados, talhados em anfiteatro nas rochas graníticas, servem de diversão da nudez das montanhas que cingem o curso da água. À direita e à esquerda, as alturas dos rochedos são coroadas por fortalezas desmanteladas, vestígios do poderio primitivo e da humilhação recente do Império. Transpomos Humum (ou Boca Tigris), Anung-Hoy, Wantong e Ticok-Tao, onde as ruínas atestam as formidáveis defesas que os nossos canhões aniquilaram em 1839 e em 1856. Vendo, nos numerosos canais que comunicam com o rio, intermináveis comboios de juncos, semelhantes a cardumes de arenques, pensamos nos pavorosos desastres que não deveriam provocar as nossas bombas numa tal floresta de mastros. Os nossos golpes são, hoje, mais modestos e menos desumanos, pois contentamo-nos em fazer a guerra com metralha a espessas nuvens de patos bravos que nos recordam os da Austrália.

"Nossa canhoneira serpenteia por entre estacarias de bambu."

Após termos passado a "Guela do Tigre", que forma os tão reputados Dardanelos de Cantão, vemos os belos veleiros ingleses pacificamente fundeados em frota sobre este magnífico rio, depois as docas comerciais de Whampoa, e às nove e meia da noite, sob um semi-luar, entramos na cidade flutuante de Cantão. Num espaço de cerca de uma légua e meia, milhões de lanternas de papel colorido iluminam à direita e à esquerda esta cidade náutica, a mais populosa do globo. Reflectindo-se sobre as ondas trémulas, e iluminando cada habitação flutuante, essas luzes recordam-me as nuvens de pirilampos e o seu magnífico efeito nas paisagens de Java. Chegar de noite e pela água a Cantão, é descer num "aquário" de homens, de mulheres, de lanternas e de barcos amontoados; é lançar-se num dédalo de navios que dormem sobre as suas âncoras e que formam uma cidade anfíbia! Existe ali como que ilusão e sonho. Não havia assim uma cidade populosa próxima do Estige, e não fazem os tantans, os inúmeros petardos no seu assustador concerto acreditar em qualquer aspecto infernal? Fico de tal modo sob a impressão da nossa entrada nocturna na flutuante Cantão, tendo por horizonte uma floresta de mastros iluminados por fogos de Bengala, e as cristas das armações dentadas dos telhados dos pagodes, que receio vir durante o dia a achar esta cidade despojada do seu carácter impressionante: as lanternas devem fazer aqui mais efeito do que o sol!

Tendo fundeado diante da ilhota de Cha-Myen, pequena concessão europeia, procuramos um poiso, pelo que batemos a várias portas, ficando por fim "acantoados" por esta noite em casa do vice-cônsul inglês. O próprio cônsul devia dar-nos asilo, mas tem o seu yamoun (residência) no interior da cidade, e as portas das muralhas estão barricadas desde o pôr-do-sol.

(Publicado originalmente em BEAUVOIR, Comte de, Voyage autour du monde).

Traduzido do original francês por Patrícia Villaverde Gonçalves.

"Cruzamos com a liteira do procurador, à qual um jovem Chinês, berrando e soluçando, se agarrava convulsivamene".

desde a p. 97
até a p.