Antropologia

JOGOS DE CARTAS DE MACAU DE TRADIÇÃO IBÉRICA

Ana Maria Amaro*

"Querem alguns que seja palavra Arabica. Em Castelhano, Naipes val o mesmo que Cartas de Jugar; dizem que se chamão assim da primeira cifra que tiverão, na qual se encerrava o nome do inventor; era hum N, hum P, que significavão Nicolau Pepin (...). Entre nós Naipe, he o metal, ou cor das cartas (...)".

(Don Raphael Bluteau, Voccabulario portuguez-latino, 1716).

O CONQUIM, A MANILHA E O SOLO DE MACAU

Segundo a maioria dos historiadores hoje admite, os sarracenos trouxeram, nos Séculos VII-VIII, do Oriente, os naipes que, em breve, conquistaram a Europa e se integraram nos complexos culturais dos vários grupos que vieram a ocupar os países que hoje conhecemos. Para estes autores teria sido, pois, a Península Ibérica a porta de entrada destes jogos no Ocidente.

Bullet (1751)1 e Rive (1780),2 por exemplo, afirmam que "a origem dos jogos de cartas europeus se deve à Espanha que os recebeu, do Oriente, através dos mouros, a partir da Índia". Alguns estudiosos filiam esta hipótese no facto de se poder comparar o mais antigo, ou um dos mais antigos jogos ibéricos de cartas, conhecido por jogo d'el hombre, com o jogo indiano de ganjiva.3 Outros autores, porém, como Stewart Cullin,4 por exemplo, consideram que o berço das cartas de jogar é a China, e que o jogo indiano é de origem europeia, tendo sido levado, do Ocidente para a Índia, depois de recriado a partir de cartas chinesas.

Esta hipótese tem sido muito contestada devido à falta de documentos sobre o assunto. Mas a verdade é que, só numa altura em que se tivesse começado a verificar a existência de perturbações sociais, resultantes da paixão pelo jogo, as autoridades se teriam preocupado com o assunto e daí começassem a surgir registos sob a forma de proibições ou normas condenatórias.

Segundo Salvini,5 é muito provável que os jogos de xadrez, tais como os das cartas, tenham entrado na Europa sensivelmente na mesma altura, levados pela onda invasora dos mouros.

Uma vez em Espanha, em 710, os sarracenos prosseguiram a sua marcha em direcção a França, chegando a penetrar no Languedoc. Repelidos em Poitiers, mantiveram-se, porém, no Sul de Espanha até 1492. Muitos autores admitem talvez por isso, hoje, que foram os mouros que introduziram em Espanha o jogo do homem, antigo jogo espanhol de cartas, semelhante em muitos aspectos ao indiano ganjiva, 6 e que veio a dar a célebre quadrilha francesa. Tal como esta, outras formas de jogar terão sido, provavelmente, introduzidas pelos árabes e berberes durante a sua ocupação. Quais teriam perdurado? Sob que aspectos?

De acordo com os documentos coevos, o uso do jogo dos naipes, em Itália, remonta, pelo menos, aos fins do Séc. XIII, tendo sido registado, na restante Europa, na primeira metade do Séc. XIV. Daí alguns autores atribuírem à Península Itálica, e não à Península Ibérica, o foco europeu da irradiação dos jogos de cartas.7

Na sua Istoria della citta di Viterbo, Covelluzo cita já o uso das cartas numéricas e não figurativas em Itália em 1379. Escreve ele: "Neste ano de grandes tribulações foi introduzido em Viterno o jogo das cartas trazido pelos Sarracenos e conhecido por Naib." 8 Contudo, é de notar que a palavra hebraica para feitiçaria é naibi (palavra que parece poder ter dado o termo ibérico naipes), e que as primeiras cartas conhecidas na Europa são figurativas, do tipo tarot usado pelos ciganos para "tirar sortes", o que parece apontar para fontes e épocas diversas de introdução.

Num registo de Pagamentos da Câmara de Contas de Carlos VI, datado de 1392, consta que o pintor Jacquemin Guingonneur pintou para aquele monarca três jogos de cartas "em ouro e diversas cores e vários símbolos" dos quais existem algumas cartas na Biblioteca Nacional de Paris.

Estas cartas, das mais antigas de que há notícia na Europa, eram do tipo dos tarots, admitindo-se que tenham sido os ciganos, leitores da sina, que as terão trazido consigo do Oriente através da Pérsia, Arábia e/ou Egipto para a Itália, de onde se teriam difundido pela Europa. Esta teoria parece, porém, poder refutar-se porquanto em França, na Flandres, nos Países Baixos, na Alemanha e na Itália as cartas de jogar já eram conhecidas antes de 1350, ao passo que a maior imigração europeia conhecida de ciganos é posterior, datando do Séc. XV.

Não é de rejeitar, porém, que pela rota da seda as cartas pontuadas do Oriente tivessem alcançado o Próximo Oriente e depois a Europa, por diferentes vias e em diferentes épocas. Não só os comerciantes mas também os cruzados,9 ou mesmo os marinheiros, poderiam ter sido veículos da sua transmissão. A Itália continua a reclamar para si a via da introdução dos jogos de cartas na Europa através do porto de Veneza, frequentado desde há muito por marinheiros orientais. Mas de que tipo de cartas e de jogos se trataria?

Na Catalunha nos meados do Século XV, eram conhecidos dois tipos de naipes: naipes mouriscos e naipes planos. Corresponderiam, estes, respectivamente aos baralhos de cartas pontuadas 10 e figurativas, de tarot? Man-tém-se em aberto o problema de qual destes dois tipos de baralhos teria conquistado primeiramente a Europa.

Em Espanha, são correntes várias lendas relativas à invenção dos jogos de cartas. Segundo uma delas, registada por Francisco de Luque Fajardo no seu Fiel desengano contra la ociosidady los juegos (Sevilha, 1603), o inventor dos naipes foi um madrileno, conhecido por Villán ou Vila, que acabou na fogueira por moedeiro falso. Esta figura mais ou menos lendária era tão popular nos Séculos XVII e XVIII que chegava a ser invocada com juras e blasfémias, pelos jogadores ibéricos como seu numen tutelar. 11

É de crer que os naipes fossem já conhecidos antes do Séc. XIV, na Península Ibérica, por introdução mourisca, mas a verdade é que não constam do Libro de Iosjuegos de Alfonso el Sábio, nem do Ordenamento primero que hizo el rey don Alfonso em razon de las tafure-rias en la era de mil tresientos e quarenta annos. Aparecem, somente, mencionadas nas Ordenanzas de la Or-den de la Banda, em 1332, impostas por Alfonso de Castela, e pelas quais "se proibia aos cavaleiros jogar aos naipes".

Igualmente nas Ordenações Afonsinas portuguesas (Séc. XV), onde foram compiladas leis de reinados anteriores, são proibidas tavolagens e "jogos de dados e outros jogos" não discriminados mas não são citados naipes ou jogos de cartas.

Só mais tarde, nas Ordenações Manuelinas (1521 — livro V, tít. XLVII) e nas Ordenações Filipinas (1595-1603 — livro V, tít. LXXXII), ratificadas por D. João IV em 29 de Janeiro de 1643, os jogos de cartas são referidos a par de jogos de dados.

Nas Ordenações Filipinas, que D. João IV depois ratificou, como atrás se disse, proibia-se, também, a princípio, que "pessoa alguma de qualquer qualidade" jogasse cartas ou as tivesse em casa nem as trouxesse consigo, fizesse, as trouxesse de fora nem as vendesse. Esta proibição relativa aos jogos de cartas foi levantada posteriormente por Alvará de 17 de Março de 1605, à semelhança do que se passava em Castela, sendo, então,o jogo autorizado e passando as cartas ao Estanque Real.

Os jogos de dados continuaram, porém, a ser defesos e as respectivas proibições decretadas pelos Alvarás de 24 de Março de 1656 e de 28 de Outubro de 1696. As penas previstas para os infractores incluíam, além da multa de 40 cruzados, o degredo por um ano em África.

Antes destas proibições, sabe-se que os garitos (casas de tavolagem) pagavam elevadas somas ao Rei ou aos senhores da terra, sendo, ao que parece, o jogo um direito senhorial até ao reinado de D. Afonso IV, que proibiu a prática da tavolagem e da então já funesta prática de jogar. Nessa altura o jogo de azar mais difundido era, porém, o jogo de dados.

Em Portugal, "jogar dados e cartas" são, no entanto, práticas muito antigas. Gil Vicente (c. 1465-c. 1537), no Auto dos físicos, refere que "Mestre Femão os cultivava", sabendo-se que não era permitido aos físicos entreterem-se com jogos de fortuna: naipes, dados ou similares.

Por este documento se pode concluir que na Península Ibérica, mesmo depois da retirada dos invasores mouros, se a eles se deve, de facto, a sua introdução, a paixão pelo jogo de naipes se manteve através dos séculos, apesar das várias proibições e ameaças que sofreram os seus adeptos em consequência dos excessos a que levavam tais jogos, tanto da parte das autoridades civis como das autoridades eclesiásticas.

De acordo com vários relatos de viagens, sabe-se que, durante a expansão, os portugueses e os espanhóis levavam dados e naipes, na sua mais ou menos reduzida bagagem, para amenizarem as longas horas passadas no mar. Proibidos por várias vezes, os jogos de azar, e condenados pela Igreja, é do conhecimento geral que, sendo embora considerados "invenção do Diabo", 12lograram sempre resistir a todas as condenações, desafiando, até, a Condenação Eterna.

Não surpreende, pois, que por altura de tempestades no alto mar, e em risco de naufrágio, fossem arremessados pela borda fora, os pecaminosos baralhos de cartas e, de joelhos, implorado o perdão Divino, tal como descreveram alguns eclesiásticos nos seus relatos e cartas enviadas às respectivas Ordens.13

O certo é que onde chegaram portugueses e castelhanos, chegaram as cartas de jogar e, com elas, a tradicional paixão ibérica pelo jogo. 14

Como exemplos desta difusão parece-nos poder-se apontar o conquien que foi recolhido entre os ameríndios e que encontrámos em Macau, sob o nome de con-quim, nas memórias dos informadores idosos nos anos 60-70, a par de outros jogos como a manilha e o solo considerados localmente "muito antigos" com regras vestigiais do velho jogo ibérico do homem.

A reforçar esta hipótese há ainda testemunhos muito curiosos, frutos do encontro de culturas tais como, por exemplo, a existência de baralhos de cartas japonesas cujas regras de jogo os portugueses desconheciam, utilizados para substracto de cartas de tipo ocidental, cujos símbolos dos quatro naipes eram, nelas, pinceladas toscamente para utilização imediata.15

Não são conhecidos, actualmente, baralhos de cartas ibéricas anteriores a 1600, mas é inquestionável que elas existiam antes desta data, como ficou atrás demonstrado.

Reforça esta hipótese a afirmação de M. d'Alle-magne, autoridade em jogos de cartas franceses, segundo a qual estes jogos devem ter entrado em França, a partir da Espanha, levados pelos cavaleiros do séquito de Du Guesclin, quando foi à Península combater Pedro o Cruel, cerca de 1367.

Fosse qual fosse a via de introdução das cartas de jogar, na Península Ibérica, o certo é que, cerca de 1540, o autor flamengo Pascasius Justus, que viajou por Espanha e escreveu um pequeno livro de memórias, registou nele "a paixão dos ibéricos pelo jogo de cartas".

Desde o Século XV, aliás, que Toulouse, Thiers e, em especial, Ruão, exportavam, para Espanha e Portugal, cartas de jogar, transportadas pelos barcos comerciais de grande tráfego. Grande deveria ser a procura, porque em Portugal também se faziam, nessa época, cartas de jogar, na oficina do artífice Inferrera. 16 Essas cartas, contemporâneas das francesas, eram "estampadas" por meio de blocos de madeira, em cor de laranja e preto, sendo o papel semelhante ao das cartas de Limoges.17

Nestas cartas, de que há exemplares no Museu de Londres e na Librarie Nationale de Paris, os ases tinham a meio um grande A, e dragões com os sinais dos naipes na boca. É de notar que nos baralhos do antigo jogo do homem, que, de Espanha, se espalhou pela Europa, não havia Rainha, de acordo com o costume oriental. O seu lugar era ocupado pelo cavaleiro ou valete. Era um jogo para três pessoas, daí terem surgido na altura, mesas triangulares, especiais, tal era a sua popularidade. Terá sido o fenómeno da expansão que incrementou esta popularidade dos jogos de naipes?

As cartas peninsulares, 48 por baralho, eram marcadas segundo quatro séries de naipes: 18 taças ou cups, de onde a palavra portuguesa e castelhana copas, espadas, moedas (ou portugueses oiros) e os castelhanos mocas, ou bastões, 19 que deram a palavra paus, a partir de mocas, como é natural. Com a difusão dos diferentes tipos de baralhos de cartas europeus, com os mais diversos símbolos, os actuais e universais ouros (◆), copas (), espadas () e paus (), perderam toda e qualquer conexão com a sua representação figurativa inicial.

A verdade é que comparando os diferentes símbolos marcados nas primeiras cartas de que há notícia, na Europa, com as cartas chinesas e com as indianas difundidas pela Pérsia e, provavelmente, por todo o Médio Oriente, somos levados a advogar a sua introdução por essa via e não directamente por via extremo oriental.

Da comparação dos símbolos das cartas indianas representando as figurações dos "10 avatares de Vishnu" com os símbolos europeus, encontramos, de facto, motivos que poderiam ter dado flores-de-Lis ou bolotas; cobras, que poderiam ter sugerido os paus, bastões ou mocas; símbolos sugerindo guizos; outros, ainda, arcos e flechas de Rama Chandra, lembrando taças ou copos;20 e finalmente os verdadeiros sabres ou espadas. Do mesmo modo se pode admitir que a chama, emblema da força vital, podia ter sido fonte de inspiração para as folhas estilizadas que vieram a dar o símbolo que, mais tarde, substituiu as espadas, mas que manteve o seu nome.

Nos fins do Século XVIII, a unificação dos símbolos parece ser já um facto na Europa. A diferença inicial deve ser o resultado de diversas interpretações dos motivos hindus, ou persas, ou mesmo chineses, das cartas originais.

ANTIGOS JOGOS DE CARTAS EUROPEUS EM MACAU

É dos nossos dias aliar a Macau a ideia de jogo, fatalidade histórica que resultou, nos primeiros tempos, da sua forma de povoamento, da grande autonomia política e administrativa de que gozava aquele território e, mais tarde, como forma de sobrevivência económica, quando o comércio, tentado a partir de várias fontes, depois de expulsos os portugueses do Japão, não dava resposta às despesas da Cidade.

Proibido o jogo em Cantão, a febre de jogar, mais ou menos clandestina, mais ou menos manifesta, transferiu para Macau alguns dos jogos preferidos pelos chineses e, no século passado, aquela cidade era já conhecida por "Monte Carlo do Oriente", "Inferno do Jogo", e por outros nomes semelhantes.

Por Portaria de 27 de Outubro de 1877, foi declarado livre, em Macau, o estabelecimento de casas de jogo de fantan, 21 de azar e carteado, com prévio pagamento de licença. Tornou-se assim o jogo numa das fontes de riqueza oficiais da Cidade.

Esta diversão, que hoje é um dos cartazes turísticos de Macau, já o era antes da sua liberalização, uma das características do território, pelo menos no Séc. XVII, quando Jean Baptiste Tavernier visitou o Oriente.22

No relato da sua 3a viagem, conta-nos, este autor, a história do gentilhomme Ms. du Belloy, amante do jogo e do prazer: "Du Belloy souhaite qu'on le laissât aller à Macao, ce que luy fut accordé. Il avoit appris qu'une partie de la noblesse se retiroit en ce lieu-là après avoir beaucoup gaigné au négoce quélle recevoit assez bien les étrangers, qu'elle aimoit fort le jeu, ce qui estoit la plus forte passion de du Belloy."

Este francês, de boa linhagem, obteve, aliás, satisfação da sua pretensão uma vez que se distinguira nas armas ao serviço dos portugueses, mas acabou por ser preso, em Macau, e enviado para Goa, para ali ser julgado pelo Tribunal da Santa Inquisição, porque praguejara e invectivara uma imagem religiosa, atribuindo-lhe a causa do seu azar, quando, num dia de pouca sorte, perdia ao jogo. O seu azar transformou-se, aliás, em sorte, porquanto logrou evadir-se durante a viagem.

A reforçar esta descrição de Macau, como terra de jogo e de prazeres, e a apontar para o jogo de cartas como um dos que ali se praticavam, encontrámos na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, um manuscrito do Séc. XVIII, proibindo a utilização de cartas com insígnias eclesiásticas, cartas que eram usadas nessa altura naquela cidade.23

Que jogos de cartas se disputariam, nessa altura, em Macau?

Não encontrámos elementos escritos que nos permitam reconstituir nem as regras nem sequer os nomes desses jogos.

Recorrendo, porém, à memória colectiva dos portugueses de Macau, e analisando as regras dos jogos de cartas que ali se disputavam nos anos 60/70, ou dos quais os anciães ainda se lembravam, encontrámos três jogos que, por comparação com os mais remotos que foram descritos para a Península Ibérica, nos parecem apontar, pelo menos, para uma introdução bastante antiga naquele território.

Esses três jogos já praticamente abandonados nos princípios do Século XX, substituídos pelo pocker, pelo bridge e pela canasta, eram conhecidos por manilha, con-quim e solo.

Antes de descrevermos, sumariamente, as regras destes três jogos ibéricos de Macau, achamos curioso registar os nomes atribuídos, localmente, aos quatro naipes: copas — "corações vermelhos"; espadas — "corações pretos"; paus — "flores"; ouros — "quadrados".

Estes nomes locais que perduraram no "falar da terra" parecem apontar para uma grande diferença de designações pelas quais eram conhecidos os quatro naipes em Macau, o que não é de estranhar, uma vez que não havia uniformidade para os designar na Europa e seriam das mais variadas nações os jogadores que, naquela cidade do Oriente desde os mais recuados tempos, se teriam entregue à paixão do jogo.

Descrevemos, a seguir, as regras desses três mais antigos jogos de cartas que recolhemos em Macau, comparando-as com as suas variantes ibéricas.

A MANILHA

Em Macau, no saboroso patois local, as cartas de jogar ocidentais eram, e ainda hoje são, conhecidas por "cartas manila" ou "cartas manilha", em oposição às cartas chinesas, mais vulgarizadas, e mais correntemente denominadas "cartas-chinas".

Alguns informadores crêem que este nome de "cartas manila" ou "manilha" deriva de terem sido elas introduzidas via Filipinas, hipótese de que não partilhamos, porquanto os nossos marinheiros, já nos Séculos XV-XVI, as conheciam e utilizavam.

Mesmo se aceitássemos a possibilidade de que a vulgarização do jogo de cartas fosse mais tardia, seria mais provável que se tivesse dado por via Reino-Goa--Macau e não pela via espanhola, através das Filipinas, muito embora aquela via, indirectamente, por intermédio do Japão, tivesse sido utilizada para o tráfego comercial.

É nossa convicção que o nome das "cartas manila" ou "manilha"24 corresponde à forma de jogar mais frequente, que acompanhou a sua introdução ou que, depois dela, mais se popularizou em Macau, à maneira chinesa de nomear os seus baralhos. De acordo com essa hipótese, procurámos, entre os macaenses, um jogo provavelmente chamado manilha, o mesmo tendo feito entre os "cristãos" de Malaca, e encontrámo-lo. Muito esquecido pela maioria dos informadores, acabou por nos ser descrito e demonstrado, tendo-nos sido dito que fora um jogo muito popular, "noutros tempos", entre os portugueses locais.

As "cartas manilha", de Macau, são, como já se disse, as vulgares cartas ocidentais, que, de há muito, conquistaram a Península Ibérica, reproduzidas, hoje, segundo um modelo francês do Século XIX.

É de notar que a palavra espanhola naipes, para jogos de cartas, era comum aos portugueses, usando-se também em Macau para "cartas-manilha". Tal facto poderia levar a repensar na sua possível introdução via Filipinas, mas a verdade é que "naipes" é um termo antigo, dantes comum a castelhanos e a portugueses, e possivelmente aquele que se usava no Reino, quando as cartas de jogar foram levadas para Macau. Aliás, tal nome foi, ali, depois, substituído pela palavra "cartas" (cartas chinas, cartas de bafá, cartas de pau, cartas manilha).

A manilha é, realmente, um jogo muito antigo e, ao que parece, introduzido em Portugal por via espanhola. Não é de rejeitar, pois, que tenha sido levado, para Macau, via Filipinas, e daí a confusão local do nome de "manilha" ou "manila" e a sua extensão à própria via de introdução dos jogos de cartas.

Em Macau, a manilha perdera já nos anos 60-70 grande parte da sua antiga popularidade, muito embora se encontrassem, ainda, muitas pessoas na casa dos 40-50 anos que conheciam as suas regras. Em Malaca, o jogo da manila também perdurou, como tradição portu-guesa, entre os cristãos que, tal como em Macau, dão às cartas ocidentais o nome de "cartas manila".25

Comparemos as regras do jogo da manilha em Macau com o que se disputava em Portugal sob o nome de "brinca" ainda nos princípios do presente século.

Número de jogadores — quatro, constituindo dois grupos de parceiros.

Finalidade do jogo — "comer os ases" e somar um maior número de pontos.

Regras de jogo — primeiramente, retiram-se todos os dez do baralho, uma vez que a carta nove — a "manilha" — é a carta de maior valor. Em seguida, um dos jogadores embaralha as cartas, e aquele que estiver sentado à sua esquerda, parte-as.

O jogador que embaralhou as cartas começa a dá-las, pela direita, quatro a quatro, a cada jogador, até que um fique com doze cartas. O jogador que embaralhou e distribuiu as cartas é o primeiro a jogar. Geralmente, as partidas disputam-se entre parceiros dois a dois. Os parceiros devem ficar sentados em frente um do outro pois, pelos movimentos dos olhos ou da face, podem trocar informações preciosas, se bem que consideradas menos lícitas, acerca dos respectivos jogos.

A carta "mais forte" é o nove — a manilha —, carta que deu o nome ao jogo. Seguem-se-lhe, em valor, o ás, o rei, o valete e a dama.

A última das cartas do baralho é aberta e constitui o "trunfo", ficando a pertencer ao primeiro jogador, que será o primeiro a lançar uma carta na mesa.

As vazas sucedem-se, sendo cada jogador obrigado a seguir o naipe e a cobrir a carta lançada pelo seu antecessor. Se não tiver carta para isso, pode lançar uma carta menor ou "cortar" com trunfo.

Se um jogador for favorecido pela sorte e tiver um jogo rico em trunfos, pode, com eles, fazer "sair" os trunfos dos jogadores adversários, obrigando-os a cobrir, ou a seguir, as cartas do naipe que for lançando na mesa (da mais alta para a mais baixa, como é óbvio). A isto chama-se, localmente, "desdentar as pessoas".

Cada jogador, como já se disse, não é obrigado a cobrir o jogo do antecessor, mas apenas obrigado a seguir o naipe. Se a vaza for do parceiro, como em qualquer jogo cujo ganho se baseia na contagem de pontos, convém lançar o ás ou a maior carta que se tiver (em valor), embora sem "cortar o jogo", por ser desnecessário, já que as cartas recolhidas pelo parceiro, sentado à sua frente, vão para o mesmo monte.

A diferença fundamental entre o jogo da manilha e o jogo da bisca local, segundo os nossos informadores,26 reside no facto de não se ser obrigado, na bisca, nem ao naipe nem a cobrir o jogo do antecessor. Contrariamente ao que sucede na manilha, em que tais são, praticamente, as únicas regras de jogo. Outra diferença consiste no número de cartas distribuídas a cada jogador,27 número que no jogo da bisca podem ser 3 ou 5. Além desta carta "mais forte" na bisca, a chamada manilha, é o sete e não o nove.

Contagem dos pontos:

Uma vez terminado o jogo, por se terem esgotado as cartas, procede-se à contagem.

A contagem é feita "vaza a vaza", isto é, pelos grupos de quatro cartas que foram lançadas na mesa de cada vez.

Há vários casos a considerar:

1. Vaza cheia — constituída por quatro cartas valorizadas. Por exemplo, três figuras e um ás, ou duas figuras, um ás e a manilha, etc.

Esta vaza vale a soma dos valores de cada carta e mais um ponto de prémio.

Os valores das cartas são os seguintes: Nove (manilha) — cinco pontos; Ás — quatro pontos; Rei — três pontos; Valete — dois pontos; Dama — um ponto.

As restantes cartas não têm valor e constituem a chamada "base" sempre que preencham uma vaza.

2. Quatro cartas sem valorização contam um ponto.

3. Pelas "bases", uma, duas ou três cartas sem valorização, conta-se sempre um ponto, além dos valores correspondentes às restantes.

Por exemplo:

valete, dama, quatro, dois.

Perfazem quatro pontos.

Cada partida terminará quando um dos grupos de jogadores (parceiros) perfizer 36 pontos, o que pode cor--responder a vários jogos.

Se, no final de dois jogos consecutivos, um grupo de parceiros não conseguir uma vitória, trocar-se-ão os parceiros.

Como o objectivo do jogo é somar o maior número de pontos, deve procurar-se obter vazas com cartas "fortes".

Uma das habilidades dos jogadores consiste em fazer "fugir" o ás, para não ser "comido" pela manilha. É necessária muita atenção para se poder calcular o jogo dos adversários e fazer sempre os lançamentos em função desses cálculos.

Variante:

Recolhemos, também, em Macau, a seguinte variante do jogo da manilha:28Retiram-se do baralho, antes de se iniciar o jogo, todas as cartas de dois até cinco, inclusive.

Cada pessoa recebe, neste caso, apenas sete cartas, sendo a última aberta, o "trunfo" (tal como na bisca).

Cada vaza compreende um lançamento, com obrigação a naipe.

É jogado a parceiros (dois a dois), tendo estes que entender-se pelas cartas que vão deitando.

Os valores das cartas para contagem final são: Nove (manilha) — cinco pontos; Ás — quatro pontos; Rei — três pontos; Valete — dois pontos; Dama — um ponto; Oito e Dez — um ponto.

Ganhará o jogo quem fizer mais de 36 pontos. Nessa altura, dar-se-á por finda uma partida.

JOGO DE CONQUIM

Raras eram as pessoas, em Macau, que nos anos 60 recordavam as regras do conquim ou conquem, embora os anciães afirmassem que, na sua infância, este era um jogo ainda muito popular entre os portugueses "filhos-da-terra". Um dos nossos melhores informadores, 29 que foi o único capaz de reproduzir, de maneira mais lógica, os vários passos deste jogo, supunha que a sua origem fosse inglesa devido à estranheza do seu nome, que considerava uma corruptela local de king (rei).

Nós, pelo contrário, em função do que atrás ficou expresso, consideramo-lo um jogo ibérico muito antigo, difundido pelo mundo pelos marinheiros e antigos colonos. A não ser assim, como explicar que a palavra conquim, que, aliás, não é de origem chinesa (os chineses desconhecem tanto a palavra como o jogo) subsista, também, entre as populações norte-ameríndias, aliada a outros vestígios de inegável introdução ibérica dos jogos de cartas?

Supomos que o nome macaense deste jogo derive de conquien, jogo de cartas espanhol que os americanos adoptaram e transformaram a partir do râmi. É natural que tenha sido um jogo introduzido, em Macau, a partir das Filipinas, mas também pode ter sido introduzido directamente pelos portugueses.

Segundo S. Cullin, o conquien que recolheu entre os ameríndios é um jogo de cartas cuja introdução e tradição local atribui aos marinheiros de Cristóvão Colombo.30

Número de jogadores — quatro.

Número de cartas — um baralho vulgar de 52 cartas, das quais são distribuídas sete, uma a uma, a cada jogador.31

Objectivo do jogo — conseguir determinadas combinações.

Regras do jogo — o jogador que dá as cartas abre, ao acaso, uma das do monte, que se colocou sobre a mesa. Se a carta for considerada uma "boa carta", o jogador poderá ficar com ela para si, colocando outra, das que tem na mão, no seu lugar.

Para se ganhar o jogo, é preciso conseguir uma das seguintes combinações:

1. Quatro cartas iguais (da mesma espécie) e três iguais de espécie diferente. Por exemplo: quatro reis e três ases.

2. Três cartas iguais (do mesmo valor) e uma sequência de quatro. Por exemplo: três reis e um ás, um dois, um três e um quatro, independentemente dos naipes.32

3. Duas sequências: uma de quatro cartas de um a quatro, do mesmo naipe, e outra de três cartas, de cinco a sete, do mesmo naipe ou de outro qualquer.

4. Uma série de sete cartas, todas do mesmo naipe. Por exemplo: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, etc., ou ainda, 7, 8, 9, 10, 4, 5, 6.33 Neste caso, o jogador que lograr obter esta pequena probabilidade de associação de cartas, ganhará a dobrar.

Em sucessivas jogadas, cada um dos participantes vai lançando na mesa uma carta e retirando do monte outra das que se encontram "fechadas", como sucede na maioria dos jogos deste tipo. Uma vez que se obtenha uma das sequências atrás indicadas, todos os jogadores abrirão os respectivos jogos, procedendo-se, a seguir, à contagem.

Nos jogos incompletos separam-se, das cartas restantes, as combinações iniciadas. É a contagem dos valores numéricos destas cartas restantes (valores numéricos das pintas e 10 pontos por cada figura — rei, dama dvalete), indistintamente,34 que estabelecerão os valores dos pagamentos. Por isso, neste jogo, quanto menor for o número de pontos contados, menor será a perda de cada jogador que não logrou completar uma sequência. Cada um dos jogadores que perdeu, terá de pagar ao que ganhou um valor previamente combinado (em sapecas ou senes), multiplicado pelo número de pontos que somaram as suas "cartas restantes".

Suponhamos, como exemplo, um jogador que perdeu e que apresentou, no final do jogo, três cartas iguais, mostrando que procurava formar uma sequência de quatro, pois tinha 1, 3, 5 e 8. Estas "cartas restantes", ainda sem formarem qualquer série, somam dezassete pontos (1+3 +5+8). Se o jogo tivesse sido estabelecido a dez avos por pontos (jogo muitíssimo forte noutros tempos),35 este jogador teria de pagar uma pataca e setenta avos ao vencedor.

Pelo seu objectivo — converter a mão em certos grupos (a que os franceses chamem hasards) — este jogo é semelhante ao de má chéok, aos vários tipos de râmi (jogo também conhecido em Macau), ao picquet e ao próprio pocker. No entanto, apenas o conquim, o râmi e o má chéok se podem considerar jogos cujos objectivos se resumem à formação de determinadas combinações, sendo, talvez, por isso mesmo, aqueles que encontraram adeptos em Macau.

Se, por exemplo, um jogador perfizer trinta pon-tos e, no início do jogo, se tiver combinado pagar um avo por ponto, terá de pagar trinta avos ao vencedor.

Segundo outros informadores, o râmi era um jogo semelhante ao conquem ou conquim, mas que se desenrola com dez cartas distribuídas a cada jogador, apenas se podendo ganhar com os dez grupos completos, quer com as cartas abertas, quer com as cartas fechadas. No segundo caso, o mais arriscado, ganha-se o dobro se se vencer.

No conquim só podiam intervir quatro pessoas, ao passo que no râmi podia intervir qualquer número, utilizando-se dois baralhos, no caso de as cartas de um só não serem suficientes para um número de jogadores tão elevado.

A contagem é também diferente da do conquim pois, como se disse, pode ganhar-se com cartas quer abertas quer fechadas.

Geralmente, só se abre o jogo quando se tem combinações completas.

Quando um jogador ganha o conquim, os seus adversários só lhe pagam o equivalente ao número de pontos somados, além das combinações já feitas, e que correspondem, pois, a cartas desirmanadas.

No râmi, contam-se todos os pontos das cartas fechadas, independentemente do jogo já feito, isto é, dos conjuntos já conseguidos. Por isso, quando se vê um jogador a recolher muitas cartas da mesa e se supõe que vai ganhar, cada jogador deve começar a "abrir" os conjuntos já formados, pois, assim, perderá menos. A contagem do râmi faz-se por partidas. Vão-se, pois, disputando jogos sucessivos e somando-se, em cada jogo, os pontos de cada jogador. No início da partida, estabelece-se, por exemplo, um limite de mil pontos.

À medida que os jogadores vão alcançando os mil pontos, vão ficando de fora. O último e, portanto, o que conseguir somar menos pontos, porque não conseguiu ainda chegar aos mil quando todos os outros já os tivessem alcançado, ou ultrapassado, será o vencedor da partida.

SOLO

Este jogo foi também muito popular em Macau e ainda se disputava, ali, nos princípios deste século.

Número de jogadores — quatro. Porém, aquele que dá as cartas não joga, ficando os outros dois, associados, a jogar contra o terceiro, cujo facto de jogar sozinho deu o nome ao jogo.

O valor das cartas é igual ao do jogo da manilha. Porém, no jogo de solo há, ainda, a considerar o valor relativo dos naipes, como no jogo do bridge e que é, por ordem decrescente: 1° — Espadas; 2° — Copas; 3° — Ouros; 4° — Paus.

Acção — cada jogador recebe doze cartas e deve ordená-las segundo os seus valores relativos, atendendo às figuras e aos naipes. Quem verificar que tem um bom jogo, isto é, que não tem mais do que cinco vazas que possa perder, diz: "Peço licença em..." dizendo, a seguir, o nome do naipe de que possui melhores e maior número de cartas; se outro jogador considerar que o seu jogo é também "forte", pode "pedir licença" e se o seu naipe for mais forte do que o daquele que primeiro falou, será ele o solo e o seu naipe será o trunfo.

Os outros dois jogadores actuarão, aliados, contra ele. Se nenhum dos jogadores considerar que tem jogo capaz para "desafiar" os adversários, o jogo não se realizará, juntando-se, de novo, todas as cartas e sendo o seu distribuidor, o jogador que ficar à direita daquele que tinha dado as cartas no jogo anterior.

As regras do jogo são semelhantes às do jogo de manilha, contando-se a pontuação final exactamente da mesma forma.

Este jogo, um pouco simplificado, em Macau, corresponde ao famoso jogo de hombre — o jogo de cartas espanhol que Pierre Berloquin considera "um dos limites possíveis dos jogos de vazas". É uma escalada na hierarquia feudal. Categorias diferentes para os vermelhos e os negros, para o trunfo e para os outros naipes. Napoleão favoreceu o hombre, ou jogo do homem, para quatro parceiros, dando a famosa "quadrilha" europeia do século passado, na esperança de fazer concorrência à moda inglesa do whist.36

Comparemos o solo com o jogo do homem na Península Ibérica.

O homem (hombre) era considerado o jogo espanhol por excelência, assim como o whist era característico da Inglaterra e o monte, de Portugal. A hierarquia e o protocolo são complexos, sendo as cartas superiores to-do-poderosas sobre as inferiores. Encontra-se, neste jo-go, o eco de uma sociedade dominada por uma nobreza orgulhosa e despótica.

Do ponto de vista lúdico, o homem é um dos limites possíveis do jogo de lances.

As regras originais foram simplificadas e o jogo que chegou até nós já não é, por isso mesmo, tão complexo. O número de jogadores era três, mas, em França, Napoleão transformou este jogo em quadrilha para fazer concorrência ao whist dos britânicos, seus inimigos.

Regras de jogo — a finalidade do jogo é fazer o máximo de lançamentos. Usam-se apenas quarenta cartas, isto é, as 52 de um baralho completo menos: os quatro dez, os quatro nove e os quatro oito.

A ordem varia, também, segundo a cor:

Espadas e paus: rei, dama, valete, sete, seis, cinco, quatro, três, dois.

Ouros e copas: rei, dama, valete, ás, dois, três, quatro, cinco, seis, sete.

O trunfo acrescenta a estas séries a sua própria influência.

O ás de espadas, espadilha ou spadille, é a carta mais forte.

A terceira carta de trunfo é sempre o ás de paus (baste).

A segunda carta de trunfo, manilha ou manille, é a mais pequena das cartas da cor escolhida como trunfo. Esta carta é um sete ou um dois, conforme o trunfo é negro ou vermelho. Quando o trunfo é de cor vermelha, o ás passa diante do rei e chama-se ponte. Estas três cartas são os "matadores". Os ganhos são realizados por meio de fichas. Cada jogador possui cem fichas no início da partida e um pequeno pote.

Antes de se darem as cartas, cada um dos intervenientes no jogo coloca nove fichas no pote. O dador distribui, em seguida, nove cartas, três a três, a cada um dos seus companheiros.

Um destes três — "um homem" — declara então que vai fazer maior número de vazas do que cada um dos seus adversários, os quais se unirão contra ele. Lançado o repto, cada um dos outros, a partir do vizinho da esquerda do dador, deve dizer se aceita ser o "homem". Se "passa" (não aceita), mete seis fichas no pote. Se aceitar, anuncia a cor do trunfo e escolhe uma entre as três seguintes alternativas:

— Jogar sem "tomar". Levanta cinco cartas sem descartar, enquanto os seus adversários podem descartar.

— Jogar "tomando". Tem o direito de levantar mais cartas do que os seus adversários, conservando o direito ao descarte.

Quando os três jogadores "passam", as cartas voltam a ser dadas e o pote (o bolo) aumentará com novas entradas.

Será o "homem" o primeiro a descartar, se for a segunda a alternativa escolhida. Se for a primeira, descartarão os jogadores por ordem, a partir do seu vizinho da esquerda. Cada um pode lançar, na mesa, tantas cartas quantas desejar para tirar outras tantas do "monte".

Acção — o vizinho da esquerda do dador lança a primeira carta, sucedendo-se as levas. Os lançamentos devem ser segundo a cor pedida. Os "matadores" não podem ser forçados a sair pelos trunfos de valor inferior. Só um "superior" obrigará o "inferior" a ser lançado na mesa.

Os dois parceiros que jogam contra o homem podem, por meio de frases curtas, começadas pela palavra "gano", por exemplo, "gano do rei", ou uma frase idêntica, evitar que, tendo o próximo lançado uma dama, o vizinho lance o rei. Em Macau ignorava-se o significado da palavra "gano".

O ganho é conseguido pelo "homem", se ele consegue fazer mais "levas" do que os companheiros, isto é, juntar mais cartas. Se jogarem pela segunda das alternativas, ganha o "pote". Se jogarem pela primeira, além do "pote", o homem recebe doze fichas e mais uma por matador de cada adversário.

Se o "homem" fizer o "vale" (isto é, todas as vazas), deve receber, além do pote, mais metade do seu conteúdo, dado por cada um dos adversários.

Se o "homem" perder, não conseguindo juntar maior número de cartas, deve juntar ao pote tantas fichas quantas ele contiver (no primeiro dos casos), no segundo caso deve pagar, além disso, a cada um dos outros, o dobro do que ele teria recebido se tivesse cumprido o "contrato inicial", isto é, ganho o repto lançado aos companheiros.

Este jogo é, a nosso ver, uma nítida variante, ou um jogo vestigial do muito antigo jogo d'el hombre ibérico.

Do que acabamos de expor parece poder concluir-se que se verificou, no decorrer do tempo, um duplo trajecto das cartas de jogar pontuadas: primeiro no sentido Oriente-Ocidente e, depois, no sentido contrário.

Nesta segunda rota, não se pode negar, efectivamente, o papel dos portugueses e dos castelhanos na difusão dos naipes pelo mundo, no período áureo da sua expansão.

Os dados etnográficos recolhidos em Macau, onde jogos realizados com cartas chinesas e com cartas ocidentais se disputam lado a lado, por vezes com regras híbridas, são disso nítido testemunho.

Aliás, a adopção, pelos chineses, das cartas idas da Europa, é muito recente. Sublinha esta introdução tardia o nome pelas quais são conhecidas: "po ká", "pai" (cartas de poká) nome derivado do pocker, aliás jogo de combinações semelhantes aos jogos orientais e que, com elas, teria sido introduzido.

Daí o interesse que nos mereceu, nos anos 60-70, quando realizámos trabalho de campo naquele território, a recolha das regras dos antigos jogos de cartas ocidentais, que a memória colectiva dos macaenses lu-so-descendentes conservou, um dos testemunhos de uma identidade cultural em vias de perder-se.

Anónimas, proibidas, consideradas pecaminosas, as cartas de jogar, os antigos naipes ibéricos, se levaram jogadores ao Tribunal da Santa Inquisição, também serviram de passatempo e de motivo de coesão social nos mais remotos locais da terra, aos sonhadores emigrados duma Europa pequena.

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NOTAS

1 BULLET, Recherches historiques sur les cartes à jouer, Lyon, 1757.

2 RIVE, Éclaircissements historiques et critiques sur l'invention des cartes à jouer, Paris, 1780.

3 HARGRAVE, A history of playing cards, p. 247.

4 CULLIN, The game of ma jong.... p. 10.

5 Salvini (Florença, Séc. XVIII); cf. HARGRAVE, op. cit., p. 247.

6 Este jogo, semelhante à quadrilha dos fins do século passado, é um jogo de cartas que passou de Espanha à restante Europa, tendo sido muito popular na corte inglesa, no Século XVIII, onde se jogava numa mesa triangular.

7 J. Brunet e Bullet, em 1886 e em 1898, admitem uma possível origem catalã dos jogos de cartas, comparando-as com os seus congéneres da Índia e da China, e analisam as possíveis relações entre as cartas orientais e as europeias. Para outros autores, as cartas teriam entrada na Europa por Génova ou outro porto da Península Ibérica.

8 COVELLUZO, Istoria della citta di Viterbo, 1480.

9 Ricardo Coração de Leão levou para Inglaterra, da Palestina, um jogo de xadrez, de acordo com um antigo manuscrito do Museu Britânico.

10 Numa miniatura do Século XV, existente na Biblioteca de Ruão, vêem-se várias pessoas a jogar cartas com jogos numéricos e figuras de reis.

11 Segundo Juan de la Cueva (De los inventores de las cosas), Villan era natural de Barcelona e filho de gente humilde. São Bernardo de Sena, num sermão feito em Bolonha, em 1423, afirmou que os "jogos de cartas foram invenção do Diabo". Daí, talvez, a sua rápida difusão e popularidade. Durante o Século XV, novos e mais violentos ataques eclesiásticos tiveram, ao que parece, como consequência, tomar mais apetecido o "fruto proibido" —jogar naipes.

12 PLATTNER, Quand l'Europe cherchait l'Asie, Paris, Casterman, 1954.

13 PERES, Viagens e naufrágios célebres dos Séculos XVI, XVII e XVIII, Porto, 1937-1938, 4 vol.

14 No Séc. XV, Toulouse, Thiers e Ruão fabricavam cartas de jogo em grandes quantidades para fornecer os navios portugueses, espanhóis e flamengos. Cf. HARGRAVE, op. cit., p. 248.

15 Id., p. 17.

16 Ferreira; cf. HARGRAVE, op. cit., p. 248.

17 Na Bélgica existe, actualmente, o "'Museu de Turnhot", numa casa do Século XVI, onde estão expostas cartas de jogar de vários tipos, bem como os utensílios necessários para o seu fabrico. A razão da escolha deste local reside no facto da sua tradição centenária no fabrico das cartas de jogar, destinadas aos países do Ocidente como do Oriente.

18 Não confundir a acepção portuguesa com a espanhola que corresponde ao conjunto das cartas ou às cartas de jogar em geral pelo menos desde o Século XVIII.

19 É de notar que palos era o nome castelhano dos quatro naipes ou séries.

20 O emblema da encarnação é um jarro de água, sendo a cor de Vishnu a cor azul, cor que, aliás, aparecia nas primeiras cartas europeias, em vez do preto e a par do vermelho ou laranja.

21 SILVA, Repertório alphabetico e chronologico ou indice remissivo da legislação ultramarina desde a epocha das descobertas até 1882 inclusive, Macau, 1886, p. 164.

22 TAVERNIER, Les six voyages de Jean Baptiste Tavernier, écuyer baron d'Aubone, qu'il a fait en Turquie, en Perse et aux Indes.... imprimèe à Paris, 1712, pp. 143-144.

23 Manuscritos Vermelhos 223, Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa.

24 Manille no popular jogo do hombre espanhol é, aliás, a carta de menor valor do naipe, considerado trunfo. Para R. Bluteau (Séc. XVIII), a manilha era, também, uma carta de pouco valor.

25 Os cristãos de Malaca dizem da manila: "É um djogo cristã". Intervêm nela quatro pessoas e usam-se baralhos de 52 cartas, dos quais se tiram os dez, ficando pois, 48 cartas. São distribuídas doze cartas por pessoa, abrindo-se a carta final que tem o valor de trunfo. Cada jogador é obrigado ao naipe e a cobrir ou a cortar com trunfo. No fim, contam-se os "ôlo": o nove, que é a manila, vale "cinco ôlo"; o rei vale "três ôlo"; o cabalo (valete) vale "dois ôlo"; a sota (dama) vale "um ôlo"; o ás vale "quatro ôlo". Cada conjunto de cartas diferentes duma vaza vale, igualmente, um "ponto ou ôlo".

26 D. Celeste Araújo; D. Alzira Rocha; D. Alice Gutierres; Sr. Francisco da Silva Paula.

27 Na nossa infância, em Portugal, jogávamos a bisca em família com regras semelhantes às da manilha de Macau, mas apenas com três cartas de mão e sendo o ás a carta mais forte, seguin-do-se-lhe a manilha, conhecida, aliás, por este mesmo nome.

28 Informadoras D. Bárbara de Jesus e D. Júlia Remédios — senhoras idosas internadas no Asilo de Nossa Senhora da Misericórdia (Asilo da Horta da Mitra) e uma outra senhora visitante, da sua família, que pediu o anonimato.

29 Sr. Constâncio José Gracias.

30 De acordo com S. Cullin (op. cit.), os norte-amerín-dios receberam as cartas de jogar por intermédio dos espanhóis, o que parece ser comprovado não só pelos símbolos mas também pelo nomes que, ali, são dados aos diferentes naipes: "copas', "escudos", "espadas" e "bastões" ou "paus", sendo valete, rei e sota os nomes dados às figuras.

31 O número sete, número com especial lugar na magia e nas superstições do Ocidente, aparece aqui como mais uma achega para a amestralidade deste jogo.

Alguns informadores consideram esta sequência obrigatoriamente do mesmo naipe e outros não. Também segundo uns esta sequência será obrigatoriamente 1-2-3-4 e, segundo outros, poderá ser, por exemplo, 5-6-7-8.

33 Nem todos os informadores admitem esta sequência como possível de proporcionar ganho dobrado.

34 A indistinção dos valores das figuras é também um dos dados que consideramos a favor da antiguidade deste jogo.

35 Dantes jogava-se a sapecas ou a senes (sin), moedas de cobre chinesas com e sem buraco central, respectivamente.

36 BERLOQUIN, Le livre desjeux, Stock, 1970.

* Doutourada pela F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa; professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas, Departamento de Antropologia. Membro de várias instituições internacionais, v. g. a"International Association of Antropology."

desde a p. 47
até a p.