Artes

KONSTANTIN BESSMERTNY: O SENTIDO DO HUMANO

Margarida Marques Matias *

Konstantin Bessmertny é um pintor figurativo.

A história de arte do século xx mostra o apego quase indestrutível por parte dos artistas à figuração. Ela tem resistido a tudo, mesmo às incursões do abstracionismo e do conceptualismo. Bacon, Freud, Hockney e Auerbach, entre outros, antes da neofiguração dos anos 80, mantiveram-lhe fidelidade.

Continuaram ainda outra tradição — a do expressionismo, em muitos casos ilustrativo, que Brueghel, Bosch, Hogarth, Goya, Chagall, Kirchner, Soutine legaram. O expressionismo serviu e serve o real, o imaginário, o fantástico ou o fantasioso. Bessmertny inscreve-se nele.

É na fantasia e no imaginário que o artista mais se revê. O seu figurativismo algo ilustrativo assume uma outra dimensão, diferente da de Paula Rego, de Mário Botas ou de John Bellany, que têm as suas próprias dimensões.

Nas telas do pintor russo a perversão não é cruel. Antes, é plena de ironia ou de sarcasmo, de maravilhoso pela imagética do ilógico, quase absurda. "Encontrar sentido no absurdo" é o que o pintor pretende afinal. Donde, o inumano (J. F. Lyotard) em muitas das formas criadas. Como em Proust, o pensamento corre veloz através do pincel e da espátula, instrumentos que desenhammemórias transfiguradas e que vão habitar o nosso espaço anímico, recordando objectos e pessoas, a História e as "estórias" e quantas outras coisas...

Nas suas telas há como que um regresso à infância, uma desocultação do mais profundo, uma porta (ou portas) aberta (s) ao sonho, feito de interrogações.

O tempo perdido encontra-se noutro tempo e noutro lugar (estranho e simultaneamente conhecido).

Desde muito pequeno que Konstantin Bessmertny (a sua vocação manifestou-se aos 4 anos de idade e desenvolveu-a a partir dos 10) contava histórias aos amiguinhos de brincadeiras, desenhando. Certamente com malícia (ainda hoje). Explicava-lhes o sentido do que "escrevia" e eles à sua volta, riam, riam.

Hoje as figuras e os objectos que projecta nos seus quadros são recordações, desejos, sensualidades, atrevimentos, futilidades, brincadeiras, e outras coisas sérias da vida e da condição humana. Por isso, os seus quadros "are not parodies at any sense"1. Recordando Eça e recompondo a célebre frase do escritor, dir-se-á que sob o manto da fantasia se mostrará a nudez da verdade (a encontrar no aparente caos...).

Konstantin Bessmertny gosta de ilustrar. Contudo, não é um ilustrador da narrativa textual. As personagens, os objectos, os bichos que habitam o seu drama, tantas vezes em bandas desenhadas coloridas, constituem uma espécie da"Gestalt" do seu sistema. Na sua forma de pré-narrativa ele apresenta o palco do teatro com as figuras em cena preparadas para uma "masque" e "antimasque" (lembramos sobretudo uma peça de Ben Johnson2). É uma "Obra Aberta" — a cada um o seu drama e moralidade da peça. Nada de tragédia, porém, que o pintor não gosta. "Brueghel é melhor que Bosch (que ele admira muito, contudo), porque é menos trágico." "Dubuffet é grande, divertido."

Nos paradoxos da lógica e do absurdo, do sério e do divertido, do pacífico e do agitado reside a peculiaridade do artista. A acompanhá-los a "máquina" académica do manejo das tintas em volúpia de cor e dos utensílios do pintor, utilizados com energia.

Na superfície do suporte Konstantin infiltra-lhe uma linguagem onde o "inumano" está sempre presente, porque afinal "a arte é acima de tudo uma linguagem humana" ("art is above all about being human"3).

Na verdade, o inumano em Konstantin é a medida da sua humanidade. RC

Konstantin Bessmertny, Peça, 1995. Óleo sobre tela,132 × 110 cm. Colecção Particular, Macau.

NOTAS

1 "Não são para rir de modo algum" (traduzido) — Hayashi (Yoko) acerca de Jasumasa Morimura in Art in Japan Today.

2 Neptune's Triumphfor the Return ofAlbion.

3 KEITH, Patrick, A Long Night's Journey into Day: John Bellany, "Contemporary Art", 1(1) 1992, p. 12.

* MACAU. Instituto Cultural. Konstantin Bessmertny, Macau, Instituto Cultural, 1995, pp. [4-5], [catálogo da exposição realizada na Missão de Macau em Lisboa, 1995].

desde a p. 185
até a p.