Artes

CAMILO PESSANHA, NA CIDADE MÍTICA DE CARLOS MARREIROS

Luís Sá Cunha

Camilo Pessanha. na Cidade Mítica de Carlos Marrciros Pessanha sobrevoando o Porto Interior. Lisboa, 1991, 19 x 27cm. Coblcção Particular, Lisboa.

O MODELO

EmMacau, chamavam-lhe o "morto-vivo".

Com a propriedade com que a espontaneidade do génio popular chinês caricatura tipos, lança epítetos. Que esboço mais ajustado do que o de "morto-vivo", ao perfil de um artista extravagante, no exílio ainda mais desobrigado dos códigos de "correcção" social, um Dr. Camilo de Almeida Pessanha refractário a convívios, que no descuido da apresentação espelhava o solipsismo congénito, ora em deambulações sonâmbulas na confusão do "bazar", ora no imo da sua casa, sempre seminu, semienvolto em lençol que lhe amortalhava a escultura ossiculada de faquir, alternando os torpores letais com as chicotadas nervosas do ópio, olhos então incandescentes sobre a moldura negra das barbas à "João de Deus"?

Nascido em 1867, depois da carreira universitária em Coimbra (1891) parte para um exílio voluntário para o Oriente. Ganha o concurso para professor do Liceu em Macau, onde arriba em 1894, e onde vem a falecer em 1927. Vem a ser conservador do Registo Predial, advogado distinto, por fim Juiz substituto, numa exterioridade pública que contrasta com o teatro extravagante da sua vida íntima, no reservado cenário da sua casa de "china" abastado, entre a parafernália de objectos de arte e de quinquilharias chinesas e a cachorrada libérrima, onde o seu "Arminho" tinha estatuto de privilégio.

Ali, a sua mui-chai "Águia de Prata", a sua "bicheza", lhe oficiava diariamente o ritual do ópio, que o recuperava das emoliências do clima e do temperamento entorpecido com sacões de euforia lúcida e sequelas na frágil constituição física.

Ei-lo assim em Macau, no seu quarto-ante-câmara-para-a-morte, íntimo palco de devaneios oníricos e de encenação do seu "paraíso artificial", na fuga a um mundo real insuportável à sua mundividência de autêntico decadentista.

Já, a meio de Oitocentos, o Romantismo viera instilar o mal du siècle no modus existencial das sensibilidades mais aguçadas. Daí se derrapou para a típica condição pessimista do homem finissecular, a espraiar-se pelos inícios de Novecentos em vaga negra, que viria a vitimar a desgraçada geração de "Orpheu", loucos ou suicidas, de Montalvor a Santa Rita Pintor, de Ângelo de Lima a Mário de Sá-Carneiro.

É a grande crise de valores e de referências, geradora do pessimismo e da angústia existencial, que atinge e repassa as maiores sensibilidades artísticas — o homem fragilizado e confuso na sua impotência de relação e aceitação do mundo real, em esfíngica interrogação negativa do significado da existência e do universo.

Mais altas águias, os poetas tentam devassar o abísmico desconhecido, e só encontram a via gnósica nas asas da sua própria exploração poética. Euforizam a irracionalidade, a sensitividade, o onirismo, fluem na confusão do real com o sonho. Na vida, apetecem a autodestruição, evocam a morte, como recurso salvífico.

Eis Camilo Pessanha na encruzilhada do século.

De natureza, já era vulnerável a "crises nervosas". De Paul Verlaine, escutara os avisos de primaciar a música antes de tudo, "o indeciso da música", a "canção cinzenta".

Poeta possesso de um decadentismo levado ao extremo, o seu pessimismo e desilusão são catalizados pela sua condição de lusíada em consciência histórica de crise.

A geração de 70, dos "Vencidos da Vida", o Ultimatum inglês de 1890, o suicídio de Antero de Quental, antecediam um quadro derrotista onde ecoava oFinis Patriae de Guerra Junqueiro. "É negra a terra, é negra a noite, é negro o luar". Nascido no mesmo ano, António Nobre, também exilado, em Paris, canta o fado desgraçado do "Ai do Lusíada, coitado".

Contra o naufrágio da Pátria e do seu próprio destino, "uma sucessão de naufrágios", Camilo Pessanha vislumbra, numa fuga para terras ultramarinas de Macau, a dupla solução evasiva da condição em que se debate: tem o exótico para a rotina do real inapreensível, o ópio é estímulo preferível ao absinto, a emoliência do clima é antídoto da neurose doentia, o desterro serve-lhe o solipsismo e repõe-no em cenário onde se conservam ainda as fulgências do antigo esplendor imperial.

Consigo, ele arrasta porém o seu inferno e a sua grandeza, ele é a confluência completa dos dramas existenciais do europeu e do português de sua época. Nele se entrecruzam a visão desagregadora do simbolista, o sentimento crepuscular do lusíada, a sensibilidade agónica do decadentista finissecular.

Nos temas, no indestrinçável entrosamento entre a obra e a vida, na vivência da poesia como gnose órfica, na altíssima sugestão musical da harmonia e euritmia verbal — ele foi uma das supremas expressões do Simbolismo europeu.

Europeu, espírito em sintonia com o seu tempo, artista do Simbolismo — ele tem do real a visão estilhaçada, o mundo apercebido como num espelho fracturado, onde as imagens perpassam em fluidez contínua: "imagens que passais pela retina dos olhos, porque não vos fixais?".

Decadentista, assombra-o a obsessão da morte, que evoca e invoca em instante convocatória ("O morte vemdepressa, Acorda, vem depressa, Acode-me depressa"). Aspira a "sumir-se no chão, como faz um verme".

Lusíada, eis a sua poesia a fundir o profundo veio simbolista no simbólico elemento marítimo, aquoso: tempo, espaço, vida e morte como solutos, em incessante fluência líquida.

Na sua poesia, vida e tempo adquirem naturezalíquida, têm a "insustentável leveza" de fluídicamovência contínua, elementos em moção inapreensível, como em ampulheta de água, em clepsydra.

Aspiração à desagregação é aspiração à límpida liquefacção: "meus olhos apagai-vos, como água morrente".

E se para ele o mar é aquele purificador elemento alquímico onde se decantam os simples fragmentos residuais da vida (seixinhos, pedrinhas, conchinhas, róseas unhinhas, pedacinhos de ossos), é também, lusitanamente, a via salvífica entre dois exílios terrenos, a viagem sem destino e sem chegar nunca, e a majestosa alameda onde desfilam as memórias gloriosas do passado.

O RETRATO

Serão misteriosas, as razões da fixação de Carlos Marreiros em Camilo Pessanha, a quem desenha, continuamente, há vinte anos.

Mas julgamos vislumbrá-las numa sua maior obsessão, aquela que o impele aos discursos de enorme fôlego — a regeneração ou recriação da cidade mítica. Em visionarismo de arquitecto-desenhador, à Piranesi, eis o seu traço a reconstruir em inesgotável fluência os contornos da cidade ideal, a volumetria urbana de um topos sagrado, em sinfonia de formas fantásticas que aspiram ao modelo arquetípico.

Criatividade imaginativa que, se por um lado radica as mais fundas pulsões num subconsciente colectivo macaense, por outro, supõe um "milenarismo" do fim, o ameaçador desaparecimento da sagrada entidade urbana de Macau.

Carlos Marreiros intenta a cidade eterna, e nas suas fabulosas projecções aéreas como que procura furtá-la aos graves factores telúricos da corrupção, à usura do tempo histórico.

Assim mitifica a cidade e, dentro de um mito, envolve outro mito: o do Poeta, cujos avatares se projectam em ubíqua presença, em virtual vitalização nodal da urbe reerguida. Minúsculo figurante ou aéreo arcanjo tutelar, Pessanha lá está sempre, mais do que personagem entre o delírio dos figurantes, axial imanência vital da urbe. O Poeta e a Cidade.

A primeira sintonia que detectamos entre os desenhos de Carlos Marreiros e o mestre simbolista da Clepsydra, é o discurso musical.

Tem a pintura mais ancilar dependência das formas naturais, vaza-se em mais estático quadro, apresentando ao espectador o conteúdo de uma obra num momento. Tentará realizar a definição dada por Leonardo Coimbra à arte: é "a eternização do instante".

Diversamente, os desenhos de Carlos Marreiros são uma leitura de sequência, uma narrativa substantivada e adjectivada de formas surreais, um longo percurso a percorrer sem que por vezes se chegue a um fim porque lhes é substante um princípio oculto da irradiação ou construção.

Cada desenho é um pequeno mundo biologicamente vivo, constrói-se desde um ponto originante concentrado de vibração, alastra como um pequeno universo, em expansão.

A partir daí, é a constante surpresa de uma aventura lúdica que entretém a retentiva, e que avança e reflui em volutas, ao comando secreto de um ritmo, à audição subtil de um fio musical, perfazendo lentamente a dimensão do tempo. Inculcam a sugestão de fluidez, de musical movência aquosa, clepsídrica melodia. Sinfonizam a sucessão dos instantes.

A carácter com a pessanhiana percepção do real, muitos dos desenhos de Carlos Marreiros apresentam-nos, também, a primeira impressão de um mundo de formas fragmentárias, convocadas à força de uma imaginação torrencial, inesgotável e imprevisível, que não concede um só milímetro à representação naturalista da realidade.

População onírica de figuras antropomórficas, bestiário, seres híbridos ou teratológicos, construções ou fábricas de absurdo, parecem ali em solipsista monólogo, cada um convocado à fantasmagoria surreal de uma nave dos loucos.

Mas conformam um delírio contido e ordenado, porque lhes subjaz um conceptualismo, uma racional discursividade. O próprio desenho se encarrega por vezes de denunciar ou sinalizar os secretos ou visíveis fios de sequência, ligação e articulação, impregnado-lhes a unidade de engrenagens (a)lógicas, de estranhas fábricas ou máquinas que "funcionam", bastando carregar num botão oculto para pôr tudo a mexer. Mais, a sublinhar a sequência discursiva, recorre o desenhador quase sempre à inserção de inscrições, ou citações ou glosas, que legendam e esclarecem o universo da figuração — quanto a nós por manifesta influência da clássica pintura chinesa, onde os fundos pictóricos se densifícavam com inserções caligráficas de poetas, imperadores e calígrafos, em glósica sucessão.

Influência também visível no carácter narrativo comum a certas obras clássicas chinesas de fôlego e a algumas das suas mais densas construções desenhrusticas — exigentes do largo suporte matérico do rolo.

Não só nisto se documenta a autenticidade macaense do artista Carlos Marreiros, que omnipresentemente opera sínteses dos dois universos — português e chinês — chamando a convívio os lugares comuns mais impressivos e emblemáticos do imaginário patrimonial dos dois mundos. Simbiose ou entrosamento que resulta em pleno na sua reconstituição integral da. ersona de Camilo Pessanha, um lusíada de cabaia, alma portuguesa saudosa da sua grandeza e exilada no coração da China.

A força que se vaza nas formas denuncia-se claramente aqui, quando os elementos figurativos revestem o carisma de timbres emblemáticos e heráldicos — nos símbolos das flâmulas, das presenças tauistas, do dragão ou dapei-pa-chai, nas quinas e cruz de Cristo, num Camilo Pessanha pantera-rompante a escudar a cidade arquetípica.

Mas a torrentosa corrente imaginativa está lá sempre, e em tudo, jorro vital que a tudo inquieta e faz vibrar, pólo anímico que tudo perpassa de respiração, frémito, palpitação: roldanas e cordames rodam, a caneta dejecta, a torneira esguicha, o cigarro fumega, as bandeiras flamejam, os lemes são caudas de peixes que ondeiam, os cabos terminam em fichas eléctricas, pupilas tiquetaqueiam nas órbitas das escotilhas, as velas fremem, os ventos agitam, as naus descendem dos céus em vibração.

Em tudo ressuma essa obsessão de vitalidade, de uma energia de traço desbordante que só acaba até ao fim de satisfazer-se quando o desenhador vai comprazer-se no privado gozo lúdico do pormenor.

Camilo Pessanha — alta voz das harmonias e euritmias poéticas, o opiómano das evasões oníricas, o sonâmbulo do real, o do aquoso fluir do tempo, o do bricabraque e dos barcos-de-flores, o mito dentro da cidade mítica, o Camilo-Pessanha-Tudo — ganhou no final do século quem o reconstitui nos seus múltiplos espelhos: Carlos Marreiros e a sua inesgotável reflexão, o Artista em frente a frente com o Poeta.

Estamos certos: honrar-se-ia o genial autor da Clepsydra em rever-se, hoje, recriado nesta sucessão mitográfica de desenhos, intimamente adunado às projecções da cidade eternizada.

Porque no fôlego, na capacidade conceptual, no cunho vitalizante do traço, na desbordante imaginação criativa — Carlos Marreiros se distingue já como o maior desenhador português.

Camilo Pessanha. na Cidade Mítica de Carlos Marreiros

Camilo Pessanha e Ngan-Ieng no Interior. Bruxelas, 1991, 19 x 27 cm. Colecção Particular, Lisboa.

"Este vago sofrer fim do dia"

Lisboa,1977,36.50×50 cm

Colecção Particular, Macau

Duplo Retrato de Gabrielle D'Estréss e a Duquesa de Villars. Camilo Pessanha, Apreciador de Arte

Pequim,1989,29×37 cm

Colecção Particular, Requim

"Porque vos fostes, minhas Caravelas?"

Macau,1991,90×42.50 cm

Colecção do World Trade Center, Macau

Ao Longe os Barcos de Flores

Macau,1992,30×40 cm

Colecção Particular, Macau

"Junco de Duas Seções"

Macau,1993,42×30 cm

Colecção Particular, Macau

Barcos que voais…

Macau,1993,42×30 cm

O Poeta e a Cidade

Macau,1996,83×32 cm

"As Elegias Chinesas" e a Ópera das Seis Cabeças

Macau,1996,42×30 cm

Colecção Particular, Lisboa

desde a p. 159
até a p.