Linguística

SINGULARIDADESDE UMA LITERATURA OCIDENTAL

Maria Alzira Seixo *

O meu título pretende ser uma paráfrase lúdica de um título, célebre, do escritor Eça de Queirós, o grande romancista português do século XIX. De facto, intitula-se Singularidades duma Rapariga Loira um dos seus contos mais apreciados, e cujo tema incide sobre a ambiguidade da beleza feminina, que pode esconder defeitos de carácter sob a aparência da perfeição física e das maneiras doces. Não é, porém, pelo tema que colho esta analogia, pois que as literaturas e as culturas não incorrem em problemas de perfeição nem em erros de ética, como as mulheres, antes são obra diversa de grupos humanos que também erram e se aperfeiçoam, mas que erguem uma personalidade de alcance colectivo pela qual todos os seus membros têm de se responsabilizar. A apreensão das culturas mede-se, pois, pela sua capacidade de comunicação e difusão, pela sua entrega ao diálogo internacional, assim como pela manifestação de uma especificidade própria, e é este conjunto que constitui a personalidade singular que, no Ocidente, constrói a literatura portuguesa, pela mão dos seus criadores e dos seus comentadores.

A cultura portuguesa dispõe de uma das mais antigas literaturas da civilização europeia, e surgiu com o advento das primeiras manifestações de índole nacionalista no velho continente, e nomeadamente com a escrita de alguns dos seus primeiros reis, que justamente foram poetas: D. Sancho e D. Dinis, respectivamente o segundo e o sexto reis da dinastia fundadora, nos séculos XlI e XIII do nosso período medieval, escreveram belíssimas canções de amor que não são meras curiosidades intelectuais mas autênticas obras-primas da literatura universal. De modo geral, e considerada sobretudo nos seus períodos "clássico" (séculos XVI, XVII e XVIII), "romântico" (XIX) e "moderno e contemporâneo" (finais do século XIX e século XX), esta literatura manifesta, como característica fundamental, uma integração no contexto europeu e ocidental de que a sua civilização geográfica e historicamente a aproxima, sendo no entanto esta integração assumida como diálogo estético com as outras literaturas, e simultaneamente como invenção de particularidades que configuram uma forma específica de existir, uma fisionomia própria que a distingue das culturas que lhe estão próximas: espanhola, francesa e italiana (entre as românicas), inglesa, alemã e todas as outras que constituem a matriz cultural da Europa.

Para além disso, a literatura portuguesa, em virtude da sua situação geográfica num extremo de terra continental e circundado por mares (o Atlântico, os canais para o Norte, a confluência mediterrânica), acrescida do impulso civilizacional que impeliu o seu povo a descer pela África e a indagar das rotas dos oceanos Índico e Pacífico, contactando com as culturas locais e adentrando-se por terras que os ocidentais mal conheciam, revela também uma capacidade de aceitação das diferenças de sensibilidade étnica, tradicional e cultural que muito a enriquece e faz dela um conjunto de textos privilegiados para o entendimento das harmonias e desarmonias que marcam a evolução histórica da maioria das civilizações do planeta.

Cada literatura corresponde, porém, à expressão própria de uma cultura; cada literatura representa uma perspectiva específica, mas diferenciada, do mundo que a envolve, porque, se é certo que assume uma matriz cultural comum, essa matriz apresenta-se no entanto diversificada através das personalidades humanas que a concretizam (os seus escritores e pensadores), e refazem-se constantemente na reelaboração inventiva da insistência temática e da repetição dos sentimentos e emoções, que a evolução dos tempos e a habilidade psicológica e social não cessam de alterar, para dar origem ao paradigma que os estudos de História Literária designam pela relação "tradição/inovação". Nestas condições, a cultura portuguesa afina-se pela evolução, maioritária das literaturas românicas, conhecendo um período medieval marcado pela literatura trovadoresca (de corte), cujo expoente máximo é o rei D. Dinis, mas que conhece noutros poetas o dom do lirismo amoroso, expressivo da separação elegíaca, que encontramos na célebre cantiga da despedida, de João Roiz de Castelo Branco:

    "Senhora, partem tão tristes 
    Meus olhos por vós, meu bem, 
    Que nunca tão tristes vistes 
    Outros nenhuns por ninguém."

O rei D. Dinis e muitos outros poetas seus contemporâneos ("trovadores") cultivaram uma poesia muito semelhante à literatura de corte que floresceu em torno dos castelos franceses, com Jaufré Rudel e outros, e também aparentada ao dolce stil novo italiano de Guido Guinizelli; mas característica da literatura portuguesa é uma formulação poética contemporânea que coloca na voz da mulher a expressão dos sentimentos e emoções normalmente sempre comunicados pelo poeta masculino. Não se trata de mulheres-poetas; trata-se de poetas-homens que formulam na primeira pessoa a sensibilidade feminina tal como se ela se manifestasse directamente. Só na poesia árabe existem exemplos similares, nessa época, naschamadas hardjas, que porventura influenciaram estes textos portugueses, a que se deu o nome de "cantigas de amigo", isto é, poemas escritos por homens, mas onde a voz feminina canta o amor pelo homem amado.

Muito importante também é a sensibilidade de cariz popular que se desenvolve através do sistema económico comunal, que atribuiu às cidades ("comunas" ou "burgos") um urbanismo comercial que vem substituir o espírito feudal que marcou a Europa, mas que em Portugal quase não se fez sentir, a não ser na sua componente religiosa e poética, sobretudo por influência francesa. O espírito da cidade e de um novo tipo de relações entre os homens e os bens (o espírito da burguesia nascente), pelo que implica de acesso ao enriquecimento e de estabelecimento da diversidade, está ligado ao fortálecimento da sensibilidade historiográfica, que a obra de Fernão Lopes, narrando os factos sucedidos em vida do rei D. João I, fortemente faz sentir. Fernão Lopes é o escritor que dá voz às multidões, sugerindo o movimento das massas populares e que, na descrição de uma revolta na cidade de Lisboa, consegue fixar o comportamento dos conjuntos humanos no seu apoio às causas justas e no seu castigo à corrupção e à injustiça. Estas crónicas de emergência popular e colectiva estão na origem da nossa melhor historiografia, de Alexandre Herculano (século XIX, émulo de Michelet) a, no século XX, Jaime Cortesão e António Sérgio.

Na transição do espírito medieval para a modernidade do Renascimento, são três os vectores culturais básicos: a concepção da literatura como trabalho artístico, fundado na imitação dos modelos da antiguidade da Grécia e de Roma, considerados esteticamente inultrapassáveis; o desenvolvimento do espírito crítico, assente na valorização do indivíduo e na sua capacidade de instrução, reflexão e conhecimento, independentemente da sua relação com o conhecimento de Deus e da Igreja, e muito ligado à ascensão da burguesia, de acordo com um ideal humanista que se desprende da sua tradição nobiliárquica e eclesiástica; o fortalecimento dos dados empíricos na relação com o mundo real, que favorece o conhecimento adquirido pela observação e pela experiência, possibilitando o espírito científico, e muito ligado ao desenvolvimento dos estudos náuticos e ao empreendimento das viagens marítimas de descobertas. Um conjunto de grandes escritores marca este surto complexo de ideias e de direcções do pensamento e da estética: Gil Vicente, Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro, por exemplo; mas, entre todos, Camões é a figura que representa um rico e vãsto período da sensibilidade europeiã, e que comunica na literatura, especialmente na sua poesia lírica e na sua epopeia Os Lusíadas, o modo específico como a cultura portuguesa filtra os dados que enunciámos, e que ã cultura ocidental coeva maioritariamente demostra. A cultura portuguesa vem, neste período clássico da civilização europeia, impor a sua especificidade de ligação ao mar, ao traçado de rotas comerciais e de exploração, ao conhecimento de territórios diferentes e diferentes populações, à experiência de fenómenos atmosféricos, zoológicos, botânicos e minerais que se alargam e, sobretudo, manifesta a sua vocação para, muito para além do espírito de conquista e de exploração, se abrir à influência dos povos que encontra, e travar com eles relações comerciais ou de puro intercâmbio de itinerário. É isto que a epopeia Os Lusíadas nos mostra: um projecto imperialista, sem dúvida, e uma ambição de alargar a todos os povos do mundo a confissão da fé cristã; mas esta atitude, eticamente errada de acordo com a sensibilidade dos dias de hoje, só pôde surgir porque a experiência marítima das descobertas possibilitou que se colocassem frente a frente grandes conjuntos humanos culturalmente diferenciados, isto é, o verdadeiro encontro de culturas; e tal não havia sido possível com as esporádicas viagens comerciais por terra, nem com a manutenção dos grandes blocos historicamente definidos durante os séculos anteriores, dos Fenícios aos Árabes, e da sua relação com os mundos cristão e oriental, normalmente determinados de forma estanque e inamovível. A experiência portuguesa nos mares vem dinamizar as relações entre os povos, não só poratrair a acção espanhola que era a sua grande rival, mas por arrastar nos objectivos comerciais e de exploração muitos outros povos europeus: holandeses, franceses, ingleses, etc. Este é, pois, um dos períodos em que se manifesta a característica portuguesa por excelência de uma integração e de um diálogo que são todavia determinados por uma especificidade e uma originalidade bem determinadas. E justamente em Os Lusíadas, a epopeia que narra a viagem de Vasco da Gama à Índia em 1497 e 1498, podemos detectar: o seguimento dos modelos estéticos antigos, de Homero e de Virgílio; a concepção do poeta como uma entidade individual que sofre a instabilidade da sorte, desprotegida da instância divina e da comunidade humana, vítima da má sorte e da infelicidade (pois que neste poema os deuses da mitologia pagã coexistem com a concepção monoteísta de um Deus cristão). Nesse seu destino, o poeta é o émulo do herói Gama, afirmado um pela negativa e o outro pela positiva, e fazendo emergir da grandeza da aquisição e da unidade renascentista o desengano e o malogro próprios da sensibilidade barroca; em terceiro lugar, a poesia científica tem um lugar fundamental neste poema, onde a observação das populações, dos fenómenos naturais na terra e no mar, a diferença de culturas, são comunicados poeticamente, nomeadamente no célebre Canto IX, onde, de regresso das Índias e retornando à pátria, os marinheiros do Gama são presenteados com a visão de uma ilha mítica, onde aportam, e onde comida, descanso e o amor de belas ninfas os acolhem, mas onde simultaneamente é dada uma visão do funcionamento do universo ("a máquina do mundo") que faz avultar uma inspiração da poesia onde o sentimento pessoal e o projecto heróico não se separam da matriz do saber teórico e do anseio do conhecimento do mundo. Não será demais sublinhar aqui que, no vasto conspecto da literatura clássica europeia, o esforço pelo cultivo da epopeia se revelou infrutífero na maior parte dos casos (a Henriade de Ronsard é um dos textos menos apelativos do grande poeta francês, e os poemas do Tasso valem muito mais pela criação de cenários barrocos estitilizados do que pela correlação que poderiam estabelecer entre o projecto heróico contemporâneo e a epopeia da antiguidade — o que Luís de Camões justamente pratica em Os Lusíadas).

Mas não é possível esquecer a parte lírica da obra de Camões; podemos mesmo dizer que é essa parte que o leitor contemporâneo pode mais facilmente entender, devido ao trabalho formal apurado dos seus sonetos e das suas odes, devido também à expressão delicada da contradição (também moderna) do ser humano, que de forma nostalgicamente barroca, e com aguda concentração conceptual, em éclogas e canções, o poeta expressou.

    "Amor é fogo que arde sem se ver 
    É ferida que dói enão se sente
    É um contentamento descontente
    É dor que desatina sem doer."

A contradição barroca é fruto de uma sensibilidade europeia determinada: o contraste entre as riquezas materiais oriundas do comércio com o Oriente, e a iminência da sua destruição pelos naufrágios e pelas guerras; o contraste entre um apelo humano à felicidade individual, gerado pela auto-satisfação material inerente ao espírito burguês, e a insatisfação moral e religiosa motivadas pela instabilidade da vida humana e pela sua sujeição à contingência; o contraste entre o bem-estar económico e a satisfação material por um lado, e, por outro lado, o sentimento de separação e da diferença gerador de ódios e da ameaça física que provêm das lutas religiosas que dividem os cristãos entre católicos e protestantes, no seio de um só povo, por vezes da mesma família. Neste estado de coisas, a cultura portuguesa emerge com duas componentes culturalmente muito ricas: em primeiro lugar, a autocrítica da sociedade gerada pelas viagens das descobertas; em segundo lugar, a presença, no discurso literário, do ponto de vista do "outro" (dos povos do outro lado do mar, dos detentores de outros tipos de culturas).

Os melhores exemplos destas atitudes encontram-se em Gil Vicente, em Camões, em Fernão Mendes Pinto e nos inúmeros textos de literatura de viagens. Gil Vicente, o grande génio da literatura dramática em Portugal, criador do teatro português no século XVI e seu maior expoente, encena justamente nas suas peças os conflitos motivados pelos apelos do espírito urbano e pelos ganhos fáceis das viagens dos descobrimentos, sublinhando os desacertos familiares devidos às longas ausências dos marinheiros, e insistindo na penúria da economia rural quando o campo é abandonado pela cidade. Por outro lado, num livro constituído por um conjunto de narrativas soltas, muitas delas publicadas anonimamente mas saídas da pena de escritores conhecidos e homens cultos, e recolhido em volume já no século xvIII com o título História Trágico-Marítima, narram-se as desventuras dos ocupantes de navios vindos das Índias e que naufragam, perdendo-se as riquezas ganhas e as vidas dos seus ocupantes. Esta série de desventuras pode ser interpretada como um contraponto crítico das viagens dos descobrimentos, e é, pelo menos, o revés trágico do empreendimento épico que Camões realça n'Os Lusíadas. Mas demonstração mais cabal desta capacidade de autocrítica da literatura portuguesa, que é capaz de exaltar os seus valores culturais e de simultaneamente exibir os seus lados sombrios a pronunciar-se contra eles, encontra-se também n' Os Lusíadas, no famoso episódio do "Velho do Restelo" onde, no momento em que euforicamente as naus partem para a Índia, um velho experiente e respeitável se destaca da multidão que assiste à partida para censurar asperamente os marinheiros por se irem entregar às incertezas da sorte, ao acaso dos perigos, guiados pela vaidade e pela ambição; e diz:

    "Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
    Desta vaidade a que chamamos Fama! 
    Ó fraudulento gosto, que se atiça
    Com a aura popular, que honra se chama! 
    (...)
    Chamam-te Fama e Glória soberana, 
    Nomes com quem se o povo néscio engana. 
    (...) 
    Mísera sorte! Estranha condição!"

Ainda desta época, mas já publicado no século XVII, não podemos esquecer o grande romance português de aventuras das viagens de exploração dos continentes, intitulado Peregrinação, e escrito por Fernão Mendes Pinto, que muito jovem embarcou para a Índia, e pelo Oriente andou durante mais de vinte anos, conhecendo os mais duros revezes da sorte, tendo naufragado, tendo sido feito prisioneiro, tendo passado toda a sorte de privações, alternando com fases de riqueza e vitória, numa multiplicidade de peripécias experienciadas, com perigos, batalhas, roubos, mortes, vagabundagens, estranhos acontecimentos, fascinantes revelações, num ritmo alucinante que faria hoje inveja ao cineasta Steven Spielberg e ao seu magnífico intérprete Harrison Ford. Também aí, numa perspectiva central ocidentalista, mas onde o olhar ocidental é ofuscado pelas manifestações do Oriente, se ouvem vozes locais de intensa crítica aos europeus e à sua crueldade e barbárie; aliás, não devemos esquecer que os longos capítulos dedicados à China são de um excepcional valor documental, e em especial os que descrevem a cidade de Pequim, encarada como uma verdadeira utopia de organização social, política e económica perfeita, que Fernão Mendes Pinto não se cansa de enaltecer.

Mas é tempo de passar à Literatura Portuguesa moderna e contemporânea. E começaremos por mencionar Almeida Garrett, o introdutor do Romantismo em Portugal, justamente com um poema intitulado "Camões", e no qual o poeta clássico é entrevisto como um símbolo da pátria, num tempo marcado pelo liberalismo (os inícios do século XIX na Europa) e pela expressão vincada da nacionalidade. Como se sabe, a estética romântica tem o objectivo, na literatura ocidental, de libertar a escrita literária da sua subserviência aos modelos clássicos que durante três séculos a dominaram. Este domínio não foi exclusivo, e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é justamente um exemplo disso, pelo que representa de cultivo livre de um género não sancionado pelos cânones clássicos — o romance; e, como também sabemos, é justamente o romance que o século XIX vai consagrar como o género literário mais popular, mas cultivado agora em função de cânones literários em mudança de paradigma, valorizados pela originalidade e já não pela imitação. O romântico valoriza o "novo", com uma consciência muito aguda do tempo que substituiu a constância e mesmo a permanência dos valores estéticos, durante a época clássica, pela noção de mudança, não no sentido barroco de inconstância ou de transformação, mas no sentido em que se valoriza a noção de "novo" como "o que é sempre diferente e original", e, portanto, assim que é alcançado toma-se obsoleto e esteticamente ultrapassado. Por outro lado, a literatura enquanto expressão da vida deixa de lado a imitação das obras de arte, pretendendo captar o que na existência é fugaz e passageiro, o instante da emoção frágil, o momento fragmentário e fugaz de um gesto esboçado, incompleto, fortuito, transitório. Sabemos que foi Baudelaire quem inaugurou esta sensibilidade na literatura europeia, e sabemos também como ele justamente encarava a arte, e nomeadamente a obra de arte literária, como possibilidade única de captação e fixação dessa fugacidade. Os movimentos simbolista e naturalista das literaturas europeias prendem-se a este tipo de atitude; e é interessante verificar que, na sequência do movimento romântico, é aquilo a que se costuma designar por estética realista (e que transcende em muito o conceito que a sua designação parece implicar) que vai consagrar, na literatura de ficção, esta sensibilidade cultural.

Na literatura portuguesa, esta noção da novidade como anseio constante e constantemente frustrado pela impossibilidade da sua preensão, vai ser comunicada por escritores de alta estirpe, entre os quais Cesário Verde, o grande poeta da cidade de Lisboa. Mas dois romancistas dominam a segunda metade do século XIX: Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós.

Camilo Castelo Branco, como Balzac, inventou o realismo no seio de um espírito integralmente romântico, e é o grande romancista português do amor e da morte, da contingência e do destino, da tragédia individual e dos desvarios do colectivo. A profunda originalidade de Camilo, talvez o mais português de todos os escritores portugueses, consiste no facto de se adentrar por entre as realidades mais trágicas da alma humana e do destino global (da família e do povo) sem nunca abandonar a atitude de ironia e de humor que faz da vida humana, na concepção já herdada da Shakespeare, uma farsa trágica. Esta concepção da vida como farsa trágica vamos encontrá-la também em Eça de Queirós, que ultrapassa decerto Camilo na arte de construção do romance, e na sistematização da mundividência que lhe subjaz. Eça é mais artista, costuma-se dizer, e Camilo é mais humano; por mim, considero que os dois são uma coisa e outra, e a grande diferença entre ambos consiste no facto de que Eça se distancia das suas personagens, e que por conseguinte elas adquirem uma vida mais própria e independente, criando por completo a ilusão de real e o efeito de "mundo possível" por elas composto, ao passo que Camilo nunca se separa dos caracteres que constrói, sofrendo com eles ou com eles rindo, e, nessa medida, inculca-os sempre como criaturas de romance, como seres livrescos, o que nada tem de negativo, porque na concepção camiliana a própria vida é um romance, e o mundo é o livro do saber e do conhecimento (concepção que, como também se sabe, irá dominar, dentro de outras perspectivas, a modernidade e o modernismo nas literaturas ocidentais, de Mallarmé a Proust, e de Pessoa a Calvino e a Thomas Bernard, numa reminiscência por vezes assumida, mas nem sempre, da Bíblia e das epopeias antigas orientais). Eça de Queirós é, no entanto, o escritor mais representativo do romance português do século XIX; e isso porque conseguiu representar literariamente os grandes frescos sociais que o realismo europeu nos deixou com Dickens ou Jane Austen, com Flaubert ou com Theodor Fontane. O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, dois dos seus melhores romances, retratam, no primeiro caso, a insípida vida de província, feita de mesquinhez e hipocrisia, e o modo como a juventude, sem cultura nem projecto social, a elas se procura subtrair, mergulhando no erro e no pecado; no segundo caso, a alienação humana é desta vez encarada na existência da pequena burguesia da capital, frívola e sem sentido. Mas é em Os Maias que a corrosão irónica e a crítica de costumes implacável de Eça se aliam a uma intriga onde a força do destino se desenvolve tragicamente, mas onde a mediocridade de carácter não é sequer capaz de seguir essa força trágica e de nela adquirir alguma grandeza ou estatuto romanesco de excepção. Carlos da Maia, jovem, dotado, rico, cheio de projectos para uma actuação social, esgota-se na consideração dessas projectos, a cuja realização não consegue passar, e atola-se na situação moralmente condenável de um amor incestuoso por sua irmã; a sua incapacidade construtiva coloca-o no conjunto dos heróis desocupados, irrealizados, que não souberam coincidir com o projecto social que deles se aguardava; tal como em relação a Frédéric Moreau, o herói da Educação Sentimental de Flaubert, omundo complexo contraditório que a segunda metade do século xIx oferecia ao Ocidente, com intuitos de uma sociedade mais justa e socializante desmentidos pelos progressos humanamente cruéis da revolução industrial nascente, e dando ao mundo o espectáculo sangrento dos fuzilamentos da Comuna de Paris, oferecia aos jovens uma existência fácil mas desenganada, sem objectivos nem ideais de ordem ética. Talvez possamos, assim, compreender como o último romance de Eça de Queirós, escrito já no alvorecer do século xx, se intitula, de forma aparentemente retrógrada, A Cidade e as Serras, e defende a tese de que a sabedoria humana consiste, afinal, em regressar ao campo, à cultura da terra, uma vez que a cultura intelectual não desbrava os caminhos da sociedade mais justa, nem dá felicidade àquele que se lhe dedica. Desta forma, Jacinto, fidalgo português rico que habita um sumptuoso apartamento na avenida dos Campos-Elíseos em Paris, e que dispõe de tudo o que a civilização e a técnica lhe podem oferecer, adoece de tédio e vem até Portugal, passar uns dias numa sua quinta perdida em montanhas inóspitas, e onde, sem nenhum conforto, reencontra afinal a paz de espírito e a alegria de viver.

O século XIX dá-nos, pois, complexidades e contradições de um mundo que a literatura desenvolve, e onde o herói individual procura orientar-se, perdendo-se ou reencontrando-se. O século xx, com o advento dos Modernismos europeus, atentos à expressão de uma arte nova que dê conta da sociedade mas também, de certa forma, a produza e condiciona, vê-se a contas com direcções de sentido também múltiplas: um sentido social e político, que encontramos na obra magistral de Aquilino Ribeiro, um dos grandes mestres do romance na primeira metade do século; um sentido decadente e desenganado, patente no expressionismo de sentimentos que dominam de forma fantasmagórica a vida quotidiana, e que encontramos em Raul Brandão, figura tutelar da modernidade portuguesa na ficção; um sentido conivente com a sociedade hipócrita e egoísta, para com essa conivência melhor a satirizar, ou, com certa ternura, viver de forma individualista o que ela nos pode dar, como acontece nos romances de Teixeira Gomes (que foi também um dos primeiros presidentes da República em Portugal) e de Almada Negreiros, igualmente poeta e artista plástico; um sentido da busca da identidade, do sentido de ser português numa Europa cada vez mais unida, sobretudo pelo esforço comum das grandes guerras e da luta contra o nazismo, mas onde a ditadura salazarista que os portugueses sofreram nos forçava ainda a permanecer isolados do mundo democrático que era o nosso, por situação e por esperança, e que encontramos nos romances de José Rodrigues Miguéis e de Jorge de Sena (escritores do exílio) ou de Vitorino Nemésio (que busca no regionalismo e nas forças da tradição a manutenção da força viva da identidade cultural). E muitos mais, que não há tempo para mencionar, e já pondo de parte a poesia, riquíssima desde sempre em Portugal, e que neste século se tem desenvolvido com pujança. Em termos de compromisso, e para finalizar, é de três escritores que vou ainda ocupar-me, um poeta, um romancista, e outro ainda, tão importante na prosa como na poesia; são eles Fernando Pessoa, o maior vulto da literatura portuguesa dos séculos XIX e XX; José Saramago, o romancista que maior êxito encontrou na difusão da nossa literatura, traduzido que está em praticamente todas as línguas de cultura internacional, e Miguel Torga, magnífico poeta e prosador, figura de profundo sentido ético na cultura portuguesa, exemplar personalidade de cidadão. Custa-me não referir outros; e perdoem-me se, de forma breve embora, não resisto a insistir em personalidades literárias riquíssimas, daquelas que por si só honram uma literatura, tais como: Camilo Pessanha, Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa Luís, David Mourão-Ferreira, José Cardoso Pires ou Herberto Helder.

Mas voltemos ao século xx e, a partir das direcções de sentido múltiplas que nele encontramos, tentemos avaliar duas questões essenciais: a primeira é a de que, questionada a sociedade na literatura do século XIX, é o próprio homem que se encontra agora em questão na literatura do século xx. Com efeito, Marx e Freud demonstraram que, quer na dimensão social, quer na dimensão psíquica, a unidade, a diversidade e a contradição alimentam o mundo das relações humanas e da própria constituição das entidades singulares, que assim forçosamente afectam o tecido social que constituem. Ora a personalidade poética que de forma mais aguda demonstra este tipo de relações e as manifesta de modo ímpar na literatura, é o escritor Femando Pessoa.

Pessoa escreveu em seu próprio nome poemas de índole simbolista, mas criou um conjunto de heterónimos dos quais muitos não são ainda bem conhecidos: deste modo, o simbolista Pessoa é simultaneamente o futurista Álvaro de Campos, o classicista Ricardo Reis, o modernista Bernardo Soares e o bucólico Alberto Caeiro (este último literariamente insituável, historicamente surpreendente, verdadeiramente único na literatura de todos os tempos). Todos os heterónimos têm personalidades distintas, e utilizam estilos literários e problemáticas diferenciados.

Pessoa ele-mesmo problematiza a questão da identidade, e mais ainda a questão da identidade literária, implicada na autenticidade do escritor, que para ele não é sinónimo de sinceridade poética:

    "O poeta é um fingidor. 
    Finge tão completamente 
    Que chega a fingir que é dor 
    A dor que deveras sente."

Campos problematiza a relação entre o homem e o mundo, entre o sonho e a realidade, entre o projecto cultural e a noção filosófica de impossibilidade, como vemos no célebre poema "Tabacaria":

    "O mundo é para quem nasce para o conquistar 
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que
    [ tenha razão. 
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do
    [ que Cristo. 
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 
    Mas sou, e serei sempre, o da mansarda, 
    Ainda que não more nela; 
    Serei sempre o que não nasceu para isso; 
    Serei sempre só o que tinha qualidades; 
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de
    [ uma parede sem porta, 
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, 
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado. 
    Crer em mim? Não, nem em nada. 
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 
    E resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. 
    Escravos cardiácos das estrelas, 
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 
    Mas acordamos e ele é opaco, 
    Levantamo-nos e ele é alheio, 
    Saímos de casa e ele é a terra inteira, 
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido."

Reis, o modernista clássico, que segue os modelos greco-latinos na ode que se inspira de Horácio ou no epigrama alusivo a Anacreonte, canta a natureza e o amor idílicos e manisfesta uma aguda mas estóica sensibilidade em relação ao tema da passagem do tempo.

    "Coroai-me de rosas, 
    Coroai-me em verdade
    De rosas 
    Rosas que se apagam
    Em fronte a apagar-se
    Tão cedo! 
    Coroai-me de rosas
    E de folhas breves. 
    E basta."

Mas Caeiro vem subverter todos estes valores tradicionais, e mesmo os novos valores modernistas, desenvolvendo um pensamento da ingenuidade absoluta e da realidade ôntica das coisas e dos seres que é afinal uma falsa ingenuidade e assenta numa questionação radical do pensamento e da expressão. O pastor Alberto Caeiro, que parodia a pastoral ocidental onde os rebanhos são meras estilizações ornamentais, diz:"Sou um guardador de rebanhos./ As ovelhas são os meus pensamentos". E o seu pensamento está patente nestes versos:

    "Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. 
    Não me ponho a pensar se ela sente. 
    Não me perco a chamar-lhe minha irmã. 
    Mas gosto dela por ela ser uma pedra, 
    Mas gosto dela porque ela não sente nada, 
    Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo. 
    Outras vezes oiço passar o vento, 
    E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido. 
    Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; 
    Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço, 
    (...)
    Uma vez chamaram-me poeta materialista, 
    E eu admirei-me, porque não julgava
    Que se me pudesse chamar qualquer coisa. 
    Eu nem sequer sou poeta: vejo."

A constelação poética de Fernando Pessoa exprime um mundo em estado de fragmentação modernista que ao longo do século xx determinados movimentos literários tentaram tornar mais coesa, empenhando o esforço poético numa definição mais clara do ser humano, e tendente ao seu conhecimento e ao conhecimento e aperfeiçoamento do mundo que o rodeia. Na literatura portuguesa, esse esforço foi feito durante os anos vinte e trinta com a geração da revista "Presença" e, a partir dos anos cinquenta e após a Segunda Guerra mundial, com o projecto estético do neo-realismo, que se assume como uma literatura de intervenção social. Entre os dois, pelos dois influenciado, mas mantendo uma personalidade muito própria, está o escritor Miguel Torga.

No romance Vindima, Torga relata a odisseia dos trabalhadores do Norte de Portugal na preparação das terras onde cresce a vinha com a qual se produzirá o famoso vinho do Porto, uma das exportações mais típicas do nosso país. Não é apenas um romance que denuncia a exploração do povo pelos proprietários, é um libelo contra a injustiça e a utilização da força de trabalho para fins menos dignos, mas é fundamentalmente um hino à região, um cântico da terra montanhosa do Norte em cujas encostas cresce a vinha, e um louvor das relações harmónicas entretecidas pelo rio Douro com a Montanha, em exemplo que os homens não conseguem seguir. Torga é um escritor de expressão polígrafa, produzindo contos, peças de teatro, novelas, escritos de reflexão, autobiografia, etc. Médico de profissão, foi sempre na Montanha que encontrou o seu ambiente, e dela extraiu o pseudónimo (torga, planta silvestre) que lhe granjeou a fama. Nos Bichos, livro de contos no qual cada narrativa exprime o pensar e o sentir de um animal diferente, em visão do mundo, como se calcula, muito peculiar, o escritor manifesta uma capacidade de interversão da atmosfera humana com a animal, não sendo o homem a criatura que sempre fica mais bem vista nesse conjunto... Mas a sua obra mais original é sem dúvida o Diário, com várias dezenas de volumes, e onde de forma regular mas sempre muito diversa se articulam as impressões em prosa com os apontamentos em verso. E decerto que alguns dos melhores poemas de Miguel Torga estão aqui contidos, como este que passo a ler, e que exprime bem a sua concepção da grandeza das coisas insignificantes, nas quais não se repara, mas que fazem a beleza do quotidiano e lhe dão o verdadeiro sentido, num sentido épico não do excepcional, mas do comum:

    "A vida é feita de nadas: 
    De grandes serras paradas 
    À espera de movimento; 
    De searas onduladas 
    Pelo vento; 
    
    De casas de moradia 
    Caídas e com sinais
    De ninhos que outrora havia 
    Nos beirais; 
    
    De poeira; 
    De sombra duma figueira; 
    De ver esta maravilha: 
    Meu pai a erguer uma figueira 
    Como uma mãe que faz a trança à filha."

Por vezes, a problemática de Torga é mais dramática, e assume a dicotomia modernista de que falámos anteriormente, e que o escritor tenta sanar sem conseguir aceder à harmonia que nenhum homem consegue sem muito esforço, e por conseguinte a sociedade também não, confrontando-se inevitavelmente com o sagrado e com a exigência ética perante si próprio:

    "Aqui, diante de mim, 
    Eu, pecador, me confesso
    De ser assim como sou. 
    
    Me confesso o bom e o mau 
    Que vão ao leme da nau 
    Nesta deriva em que vou. 
    
    Me confesso de ser charco 
    E luar de charco à mistura
    (...)
    
    Me confesso de ser Homem. 
    De ser o anjo caído
    Do tal céu que Deus governa."

A religiosidade cristã é, na literatura portuguesa, sempre um tema de conflito na expressão literária, sejam os escritores convictamente cristãos ou não. O caso particular de José Saramago, por exemplo, mostra bem como um escritor ateu (atitude que é a sua perante a religião) se sente atraído pelo sagrado, não apenas como horizonte das explicações possíveis da existência do homem e do universo, mas fundamentalmente perante o carácter inefável da arte, o mistério da criação humana e, também, a meditação sobre a história passada, que sempre para a instância sagrada remeteu.

Um dos últimos romances de Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, escandalizou certos sectores da opinião pública por narrar a vida de Jesus Cristo alterando alguns factos capitais da sua existência divina. Com este romance, José Saramago, um pouco como Miguel Torga no último poema que citámos, pretende alargar à esfera do humano toda a criação espiritual (artística, filosófica, religiosa), e para isso concebe o Deus dos cristãos como um homem integral, e não a criatura semi-humana e semidivina que os livros santos nos dão a conhecer. Trata-se aqui, evidentemente, de uma ficcionalização pós-moderna muito em voga nos últimos trinta anos na literatura ocidental, e mesmo em literaturas de civilizações de outras matrizes culturais: ressuscita-se o passado em largas evocações de atenta fidelidade histórica, narram-se (sem a surpresa narrativa que era habitual na construção romanesca) biografias de conhecimento comum, mas introduzem-se nelas alterações fundamentais e voluntárias, como se se quisesse corrigir o passado e fazer dele, não o que foi, mas o que poderia ter sido, de acordo com a perspectiva do escritor. Nesta ordem da ideias, Saramago tinha já construído o seu primeiro romance de sucesso mundial, Memorial do Convento, publicado em 1982. Aqui, a construção do convento de Mafra remete para o esforço popular desconhecido, como qualquer guerra é ganha ou perdida, não pelos reis ou generais, mas pelos soldados que nela tomam parte. E neste romance, o herói é um soldado maneta, um homem que nada tem de heróico, à maneira das personagens de Bertold Brecht, mas pelo seu esforço, que representa o de tantos outros, evoca todo um povo e todo um sofrimento e uma luta de séculos. Do mesmo modo, a heroína, filha de uma mulher queimada pela Inquisição sob a acusação de feitiçaria (e o sagrado, em Saramago, é sempre um elemento de atracção e de fascínio mas de injustiça e de contestação também), essa rapariga, de seu nome Blimunda, tem como característica conseguir ver, quando está em jejum, o interior das pessoas; e o interior das pessoas não é a alma, ou os sentimentos, ou o pensar; o interior são os órgãos, as vísceras, e "uma nuvem" (conjunto de partículas de ar que formam a respiração, o alento, o impulso vital, o sopro divino ou humano que permite aos homens existir). Este soldado maneta e esta rapariga que vê o interior do corpo das pessoas encontram um padre louco que, mais do que pensar em Deus, pensa na ciência (e Deus e a ciência são dimensões algo parecidas para o ser humano, em Saramago, porque ambas reenviam para o conhecimento, do qual a criação literária pretende aproximar-se); ora esse padre está obcecado com a construção de uma máquina voadora (coisa muito secreta, pois se tal for sabido o tribunal da Inquisição julga-lo-á também por feitiçaria), e as três personagens dedicam-se a construir essa máquina, que existe na história da cultura portuguesa, tendo tido como seu autor o Padre Bartolomeu de Gusmão, mas que não se sabe ao certo se chegou a voar; no romance, porém, a máquina voa mesmo, e voa porque, não havendo possibilidade de encher os balões de vidro que a constituem com um gás especial que teria de vir da Holanda, o Padre vai enchê-los com arespiração das pessoas. Quer dizer: Blimunda, que vê o interior dos corpos, percebe quando as pessoas estão para morrer e, nessas alturas, em vez de as deixar "exalar o último suspiro", vai junto delas e recolhe esse suspiro, essa nuvem de ar que elas expelem pela última vez, recolhe-as dentro de um frasco, e é com essa força vital e anímica, com esse alento humano, que a máquina se ergue nos ares dando corpo a um sonho ancestral. Voar deixa de ser atributo apenas para pássaros e deuses, voar é a vontade dos seres humanos unidos na criação e no saber.

Estamos aqui já bem longe da vocação marítima da cultura portuguesa clássica, e atrevemo-nos a entrever os espaços siderais e virtuais que atraem o mundo contemporâneo, através da simbólica do voo como ímpeto de criação. Neste sentido, é com uma citação de Miguel Torga que vou finalizar, extraída do seu livro intitulado Portugal, livro por vezes melancólico e desanimado, o que era em parte determinado pelas condições que nos impunha a ditadura de Salazar na altura em que foi publicado, mas onde encontramos algumas das mais belas páginas sobre o sentido literário da cultura portuguesa, e nomeadamente das viagens renascentistas, que nos marcaram para todo o sempre. Porque, para Miguel Torga, as viagens dos descobrimentos não consistiram na descoberta de terras que afinal já existiam, mas na descoberta de nós próprios, como portugueses, e da nossa real capacidade:

"Não podíamos dar Erasmos, nem Leonardos, nem Luteros, nem Galileus. Mas podíamos dar esforço, energia, heroicidade, ferocidade, curiosidade e obstinação. E, num mergulho de alcatraz, atirámo-nos daquelas rochas brancas ao abismo azul da quimera. E descobrimo-nos. Encontrámo-nos universais em toda a parte do globo, mas, sobretudo, dentro da nossa inquietação de bípedes totais. Não éramos apenas da Vidigueira, de Belmonte ou da Covilhã. Éramos daí e também da certeza de que o mundo era redondo e que todos os caminhos iam dar à única verdade que se podia ver claramente vista: o homem e o seu meio."

Revisão de texto por Pedro Catalão.

* Doutorada em Literatura Portuguesa pela Universidade Clássica de Lisboa, professora catedrática na Faculdade de Letras de Lisboa, investigadora emérita com uma vasta bibliografia publicada no domínio da obra literária. Dirigiu várias colecções de investigação no âmbito da Teoria da Literatura.

desde a p. 147
até a p.