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ESTATUTO E PAPEL DE MACAU NA ROTA MARÍTIMA NOS SÉCULOS XVI E XVII

Deng Kaisong *

Macau, que era um dos portos marítimos do distrito de Zhongshan (província de Cantão, China), situa-se na parte central do delta do rio das Pérolas e do rio Xijiang. Depois do desenvolvimento de mais de vinte anos a partir da chegada e estabelecimento dos portugueses em 1553, o seu comércio externo entrou na fase áurea da prosperidade, que se prolongou até ao século XVII. Durante esse período, Macau, que funcionava também como um porto de Cantão para o exterior, gozava dum estatuto muito mais importante do que o porto de Cantão, Nagasáqui, Manila, Malaca e Batávia, sendo o mais famoso porto de trânsito do Extremo Oriente e funcionando como um centro internacional pelo qual os países ocidentais faziam comércio com o Oriente, o que lhe permitia desempenhar um papel de ponte na Rota Marítima ligando o Ocidente ao Oriente ao nível da economia e cultura. É por isso que estudar e investigar o estatuto e o papel que Macau assumiu na Rota Marítima durante esse período revestir-se-á sem dúvida de importante significado, para melhor conhecermos a influência que Macau exerceu sobre a economia e cultura de diversos países do mundo. O presente trabalho visa debruçar-se sobre a questão do comércio externo de Macau, e é tido como uma troca de opiniões com os académicos e especialistas dos diversos países do mundo.

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Como centro de comércio internacional entre o Oriente e o Ocidente e importante porto de trânsito do Extremo Oriente, Macau possuía, entre outras não menos importantes, as seguintes principais rotas de comércio: a Macau-Goa-Lisboa, a Macau-Nagasáqui, a Macau-Manila-México e a Macau-Arquipélago de Sunda, que seguidamente se descrevem:

COMÉRCIO ENTRE MACAU, GOA E LISBOA

O navio que os comerciantes portugueses usavam nesta rota era de muito grandes dimensões, entre 600 e l.600 toneladas, podendo levar a bordo 500 a 600 pessoas. Usavam este tipo de barcos para transportar, através de Macau, as diversas mercadorias chinesas para Goa, donde eram transportadas finalmente para os países europeus, e de seguida, transportar de volta para Macau a mercadoria da Europa e de Goa, a fim de a comercializar no nosso Território. A mercadoria chinesa que se transportava de Macau para Goa era composta de seda crua, fios coloridos finos de seda, tecidos de seda também coloridos, ouro, bronze, almíscar, mercúrio, cinábrio, açúcar, fuling (poria cocos, medicamento tradicional chinês), pulseiras de bronze, cânfora, porcelana, camas e mesas douradas, caixas para pedra de tinta-da-china, lençóis fabricados manualmente, cortinas, colares de ouro, entre outros produtos. Refira-se que a seda crua ocupava a maior percentagem. Estatísticas revelam que, no período de 1580 a 1590, o volume de seda anualmente transportada para Goa ultrapassou 3.000 dan (l dan = 50 quilos), calculado o seu valor em 240.000 taéis de prata e que, em 1635, o volume atingiu 6.000 dan1. A mercadoria que se transportava de Goa para Macau era composta de prata, pimenta branca, pau de campeche, marfim e sândalo, dos quais a prata era mais importante e em maior volume. O volume de prata que se transportou de Goa para Macau no período de 1505 a 1591 foi de 900.000 taéis aproximadamente2. A prata que se transportava para Macau não era produto de Goa, mas sim do Peru e México, produto que os portugueses e os espanhóis reexportavam para Goa via Lisboa e Sevilha. Devido às relações comerciais mantidas entre Macau e Goa, a prata vinda dos dois portos europeus era mais uma vez exportada de Goa para Macau. Em 1609, um comerciante madrileno, que se tinha dedicado vinte e cinco anos ao comércio no Sueste Asiático, disse que a prata que os portugueses transportavam de Lisboa para Goa entrou quase toda na China através de Macau3.

Em 1631, os holandeses ocuparam Malaca, e as suas frotas começaram a controlar as rotas do Mar do Sul da China, cortando as comunicações entre Goa e Macau. Tomaram, então, em mãos o transporte de comércio da Ásia, tendo ocupado a posição de potência do Pacífico, que os portugueses tinham ocupado com Macau como base, de modo que o comércio entre Macau e Goa entrou em decadência.

COMÉRCIO ENTRE MACAU E NAGASÁQUI

Durante o reinado de Jiajing, devido à "grande calamidade dos bandidos japoneses", o governo da dinastia Ming ordenou a proibição rigorosa de comercializar com o Japão. Os portugueses em Macau eram, no entanto, uma excepção, de modo que o comércio entre Macau e Nagasáqui continuou a desenvolver-se. Das mercadorias que se transportavam de Macau para Nagasáqui figuravam em grandes quantidades fio de seda branco, chumbo, sândalo, ouro, mercúrio, estanho, açúcar, fuling, dahuang (medicamento tradicional chinês), alcaçuz, fio de algodão, tecido de algodão, entre outros produtos. A nau portuguesa que chegou a Nagasáqui por volta de 1600 levava 500 a 600 dan de seda branca, 500 dan de chumbo em pó, 3.000 a 4.000 taéis de ouro, 150 a 200 dan de mercúrio, 500 a 600 dan de estanho, 210a 270 dan de açúcar, 200 a 300 dan de fio de algodão, 3.000 rolos de tecido de algodão, 2 dan de almíscar, 500 a 600 dan de fuling, 100 dan de dahuang, 150 dan de alcaçuz e l.700 a 2.000 rolos de tecido de seda, cujo valor total atingiu 137.000 taéis de prata e 9.016 xiyuan .4 Quanto ao valor dos treze produtos que se exportavam de Macau para Nagasáqui, a seda branca ocupou a maior percentagem. Outra estatística revela que a mercadoria chinesa que se exportava anualmente de Macau para Nagasáqui, durante o reinado de Chongzhen (1628-1644) da dinastia Ming, era de um milhão de taéis de prata5, tendo mesmo atingido em alguns anos três milhões de taéis6. A seda crua era sempre o produto que atingia maior nível do valor. Em 1635, por exemplo, a seda crua que se exportou para Nagasáqui atingiu 2.460 dan, calculados em 1.476.000 taéis de prata7.

A mercadoria que se transportava para Macau era principalmente a prata. A este respeito o letrado Zhou Yuanda fez uma descrição em 1568: "Xiangshan [Macau], que pertence a Cantão, é a garganta onde os barcos marítimos entram e saem. Na maioria dos casos, um barco que ali chegue leva a bordo dez mil taéis de prata, assim como objectos estranhos e preciosos do estrangeiro. E não poucos são os barcos que podem levar a bordo dezenas de milhares de taéis de prata"8.

Apesar de a descrição de Zhou não referir donde vem a mercadoria, a obra Vantagens e Desvantagens dos Países Estrangeiros faz uma referência a este respeito: "Barcos transoceânicos, (...) que voltaram do Japão, (...) o Japão não tem outra mercadoria senão a prata e o ouro"9. Daí se pode ver que a mercadoria veio certamente do Japão. Segundo estatísticas em línguas estrangeiras, em onze anos dos situados no período entre 1585 e 1630, a prata que se importou de Nagasáqui para Macau totalizou 14.899.000 taéis, à média anual de 1.354.454 taéis10. A maioria da prata que se transportava de Nagasáqui destinava-se à compra de produtos chineses em Macau ou em Cantão para os transportar para Nagasáqui. Pode dizer-se que o comércio sino-japonês entre Macau e Nagasáqui viveu na altura uma prosperidade bastante alta. Em 1637, estala a rebelião dos cristãos japoneses, e nela envolveram-se os jesuítas portugueses residentes no Japão; em 1639, o xógum (antigo governador militar do Japão) expulsou do país todos os portugueses, o que foi um grande golpe para eles"11. Em 1640, o xógum proibiu oficialmente o comércio dos portugueses em Nagasáqui, pelo que o comércio Macau-Nagasáqui sofreu um grande revés. Não foi, no entanto, suspenso, pois o governo japonês proibiu só o comércio em Nagasáqui aos portugueses, e não a entrada de barcos dos comerciantes chineses, holandeses e de demais países, dando mesmo privilégio aos comerciantes chineses, sem considerar quem era o dono do barco, sempre que os tripulantes fossem chineses. Foi por esta razão que, de 1641 aos inícios da dinastia Qing, o transporte marítimo entre Macau e Nagasáqui não foi suspenso. Os portugueses aproveitavam a prioridade que os barcos comerciantes chineses gozavam no acesso ao porto e continuavam a comercializar clandestinamente com Nagasáqui, através dos comerciantes chineses.

COMÉRCIO ENTRE MACAU, MANILA E MÉXICO

A mercadoria que se transportava de Macau para Manila incluía seda crua, têxteis de seda, porcelana, panelas de ferro, ferro, bronze, estanho, mercúrio, açúcar, pólvora, tecidos de algodão de cores diferentes, nitratos, amendoins, castanhas, tâmaras, almíscar, papel branco, papel colorido, fio de seda, vacas, éguas, fruta açucarada, presunto, carne de porco salgada, véus, alumínio, suprimentos militares, rendas, figos, romãs, pêras, laranjas, vasilhas de cerâmica, telhas, brocados, tecido de seda fina, munições, tinta de escrever, rosários, pedras preciosas, jade azul, entre outros produtos e em grande quantidade. Depois de 1630, o valor da mercadoria que anualmente se transportava de Macau para Manila, atingiu l.500.000 xiyuan12, o equivalente a 1.000.000 taéis de prata, e dos produtos comercializados destacavam-se a seda e os têxteis de seda, o que foi também confirmado pelo Bispo Salazar, que escreve: "[De Macau] vieram barcos carregados de produtos nativos para aqui os comercializar. (...) A mercadoria que os comerciantes chineses trouxeram, para não se referir os cereais, é na sua maioria produtos de seda (brocados coloridos, preto ou com motivos, brocados de tecido de fios dourados e prateados, entre outros), assim como roupa acolchoada, de cor branca e preta. Tudo isto em grande quantidade"13. Por volta de 1608, por exemplo, a mercadoria que se transportava de Macau para Manila totalizou 200.000 xiyuan, dos quais 190.000 eram provenientes dos produtos de seda14, ocupando 95% do total comercializado. Após o ano de 1619, o comércio de produtos de seda entre Manila e a China passou a ser quase todo monopolizado pelos portugueses, que elevaram o preço, tendo obtido bons lucros. Em 1635, um inglês que veio visitar Macau disse que, transportando produtos de seda de Macau para Manila, os portugueses podiam auferir lucros de 100% numa só viagem, de ida e volta15. Os chineses que transportavam produtos de seda para Manila moravam concentrados no Norte da cidade, que era conhecido como "mercado de seda crua", o que demonstra que os produtos de seda ocupavam um lugar importante no comércio entre Macau e Manila.

Os produtos que vinham de Manila até Macau eram em pouca variedade. Comercializava-se prata, que era o produto em maior quantidade, algodão, pau de campeche, cera e carmim. A prata que Macau importou de 1587 a 1640 totalizou 20.250.000 xiyuan, ocupando 68,9% do total que a China importou, que foi de 29.420.000 xiyuan. 16 E de referir que a prata aqui mecionada não era um produto fílipino, mas um produto proveniente do Peru e México via Manila.

Os espanhóis participaram também nas actividades comerciais desta rota, desempenhando o papel de ponte no comércio entre Macau e o México.

A mercadoria que se transportava de Manila para o México era principalmente de produtos chineses, nomeadamente têxteis de seda (incluindo brocados com e sem motivos), tecidos, capotes de algodão, brancos e de outras cores, cera, cerâmica, porcelana, leques, guarda-sóis para senhoras, tecido de algodão, seda crua, ferro, bronze, almíscar, tecido de seda fina, ouro, diamantes, pedras preciosas, pérolas e tapetes. Destes produtos, o de maior quantidade era o que envolvia a reexportação de sedas chinesas. Até a 1636, cada barco que se deslocava ao México levava a bordo 400 a 500 caixas de produtos de seda chinesa. Dos que partiram em 1636, um levou a bordo 1.000 caixas e outro 1.20017.Entre os produtos de seda chinesa, a seda crua era tecida, na sua maioria, nas fábricas mexicanas, antes de ser transportada para o mercado do Peru. Os espanhóis obtiveram grandes lucros com o comércio de produtos de seda chinesa. Em termos gerais, os lucros líquidos eram calculados entre 100% a 300%.

A mercadoria que se transportava do México para Manila era no início composta de produtos espanhóis: veludo, brocado, tecido de seda fina, tecidos de algodão, chapéus, sapatos e meias; e de produtos holandeses e franceses: tecidos de linho, vinho, vinagre, azeite, azeitona, carne seca, sabão em pó e uva seca"18. Como estes produtos eram caros, foram logo substituídos pelos produtos chineses. Posteriormente, a mercadoria que Manila importava do México passou a ser quase exclusivamente a prata, porque o vinho, azeite e carmim eram apenas em quantidades insignificantes. A prata que se importou em Manila nos dez anos que medearam entre 1596 e 1634 é calculada em 26.448.011 xiyuan19. Como os espanhóis precisavam de comprar em Manila produtos chineses, de alta qualidade e a baixo preço, a prata, em grande quantidade, passava também para a China. Estatísticas revelam que a prata importada de Manila por Macau, durante o mesmo período, é calculada em 20.250.000 xiyuan20, ocupando 76,5% do total importado do México por Manila no mesmo período, que era de 26.448.001 xiyuan, e 79% do total importado de Manila pela China também no mesmo período, que era de 25.600.000 xiyuan21. Daí se pode ver que a maioria da prata que se transportou do México para Manila nos finais da dinastia Ming foi transportada para a China. A prata que se introduziu na China entrou fundamentalmente em Macau. Assim, pode afirmar-se que as relações comerciais Macau-Manila-México eram muito estreitas, tendo atingido um nível de desenvolvimento bastante alto.

COMÉRCIO MACAU-ARQUIPÉLAGO DE SUNDA

Em Novembro ou Dezembro de cada ano, os comerciantes chineses e portugueses de Macau chegavam a Macáçar, ao sul das Celebes, no arquipélago de Sunda, e voltavam no ano seguinte. Levavam para lá seda crua e produtos de seda e traziam de volta sândalo de Timor, que era o maior produto comercializado por esta rota. Segundo estatísticas, o volume anual dos transportes nos finais do século XVI era de "3.000 a 4.000 dan, o equivalente a 240 a 300 toneladas"22. Os lucros criados por este comércio eram bastante altos, tendo atingido nos meados do século XVII 150% a 200% 23. Esta rota não era muito importante, por causa do limitado volume de transporte. A rota, no entanto, não se encontrava sob o monopólio do Rei de Portugal, pois todos os comerciantes tinham acesso ao comércio por esta rota, cujo desenvolvimento era relativamente estável.

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O rápido desenvolvimento e prosperidade que Macau viveu com o seu comércio externo e o facto de se ter convertido num porto de trânsito da Rota Marítima poderão explicar-se pelos seguintes pontos:

• Os Descobrimentos deram alicerces para Macau poder converter-se num porto de trânsito da Rota Marítima.

A seda crua, os produtos de seda, as especiarias e a porcelana do Oriente eram produtos muito procurados pelos europeus. Havia muito tempo que os europeus tinham envidado grandes esforços para encontrar uma rota que conduzisse directamente ao Oriente. Nos finais do século XVI, o império Timur ergueu-se no Médio Oriente, cortando as comunicações entre o Oriente e o Ocidente, o que deu mais um impulso aos europeus para explorar rotas marítimas que os levassem ao Oriente. Este acontecimento coincidiu com o Renascimento europeu, em que os europeus dominaram e desenvolveram as técnicas da bússola e das armas de fogo, descobertas provenientes da China, e as técnicas de navegação dos Árabes. O princípio da teoria heliocêntrica, o enriquecimento dos conhecimentos astronómicos e geográficos, a popularização da navegação pelo uso da latitude e da ciência náutica, assim como o progresso na tecnologia da construção naval, tudo isto pôs os europeus em condições de se aventurarem nos Descobrimentos. Os portugueses descobriram em 1486 o cabo da Boa Esperança e ocuparam em 1510Goa e Malaca, estabelecendo assim o império colonial português, com o Índico como mar interior, enquanto os espanhóis estabeleceram o seu, graças a Cristóvão. Colombo, que "descobriu o novo continente", e a Fernão de Magalhães, que completou a primeira viagem de circum-navegação.

Com os Descobrimentos, estabeleceram-se comunicações em todo o globo. Entre a Europa e a Ásia, entre a Europa e a América e entre a América e a Ásia estabeleceram-se relações comerciais e culturais. Muito embora haja quem critique que estas relações se baseiam só na colonização ocidental, poderemos afirmar que, em certo sentido, sem esta nova situação do mundo, seria impossível imaginar o facto do porto de Macau se ter convertido num porto de trânsito da Rota Marítima internacional.

• O desenvolvimento sócio-económico durante as dinastias Ming e Qing deu alicerces materiais ao comércio externo de Macau.

Nos finais da dinastia Ming, o desen-volvimento económico da sociedade feudal chinesa entrou numa nova fase, pois a divisão de trabalho alargou-se e a produção de matérias comerciais e a economia mercantil registaram desenvolvimentos sem precedentes. Em muitas zonas (sobretudo nas províncias do litoral sueste) surgiram novas oficinas de artesãos que visavam manufacturar produtos comerciais. Por exemplo, em Songjiang e Suzhou, duas prefeituras da província de Jiangsu, o sector de têxteis de algodão passou a ser uma importante área de produção para a população local, produzindo milhares de rolos de tecidos de algodão, que depois exportava para as outras províncias e para o estrangeiro. Suzhou e Hangzhou eram já duas cidades bem conhecidas pelos têxteis de seda; mas com este surto de progresso muitas cidades e vilas passaram também a gozar de fama, dado o rápido desenvolvimento dos têxteis de seda, nomeadamente Shuanglin, Huzhou, Puyuan, Jiaxing, Jingjiang, Wangjiang, Zhenze, Shengze e Wujiang, onde milhares de famílias locais se dedicaram a este sector muito lucrativo. O yuesha de Cantão, o chousha de Fuzhou, e o shajuan, o woduan e o veludo de Zhangzhou e Quanzhou eram produtos de seda muito conhecidos na altura. A indústria de porcelana, por outro lado, registou grande desenvolvimento em Jingdezhen, na província de Jiangxi, Shiwan, na de Cantão, Dehua, na de Fuquiém e Chuzhou, na de Zhejiang, sendo os produtos exportados em grande quantidade para o estrangeiro. O açúcar, amarelo, branco e cristalizado, de Cantão, Fuquiém e Sichuan, era exportado para o Japão, Lução e Java. A fundição de ferro estava também muito desenvolvida em Yanping, na província de Fuquiém e Foshan, na de Cantão, e os seus produtos, nomeadamente panelas, pregos e arame, eram conhecidos fora da China, exportando-se para diversos países. O sector de objectos de laca de Wenzhou, na província de Zhejiang, o fabrico de papel de Changzhou, os sectores de escultura e mobília de Cantão e o fabrico de tinta de Xinan, na província de Anhui, registaram desenvolvimento relativamente grande, e uma parte considerável dos produtos era exportada. Entretanto, uma agricultura que se podia comercializar tomou forma inicial, nomeadamente os cereais de Jiangsu, Zhejiang, Huhan, Cantão e Fuquiém, as verduras de Jiangsu, Zhejiang, Pequim e Cantão, e as frutas de Fuquiém, Cantão, Jiangxi, Sichuan e Hubei. Quanto a Macau, localizado no delta do rio das Pérolas, o comércio de produtos agrícolas registou um notório desenvolvimento, nomeadamente a cana-de-açúcar, fruta, incenso de uso religioso, flores e verduras, produtos que eram exportados para o interior do continente e para o estrangeiro. Os variados produtos artesanais e os agrícolas de carácter comercial, assim como os tipicamente chineses, nomeadamente o almíscar, a cânfora e os medicamentos tradicionais, forneciam ricos recursos para o comércio externo de Macau, tal como afirma um sinólogo ocidental:"Os chineses têm o melhor cereal do mundo: o arroz; a melhor bebida do mundo: o chá; os melhores tecidos do mundo: os de algodão, a seda e o couro. Possuem estes produtos principais e inúmeros produtos secundários..."24

Os produtos chineses eram famosos nos mercados internacionais e eram muito apreciados pelos diversos países de então, sobretudo a seda e os têxteis de seda, sendo produtos de extremo luxo em qualquer parte do mundo. Os nobres espanhóis, por exemplo, costumavam vestir roupa de seda chinesa e usar produtos chineses, como distintivo da sua posição social e como um sinal de luxo,enquanto os negros e os indígenas das então colónias espanholas, nomeadamente do México e da América Central, que não estavam em condições económicas de comprar têxteis de linho provenientes de Espanha, que eram muito caros, gostavam de usar têxteis de seda e de algodão chineses, de alta qualidade e a preço acessível. Foi por este motivo que os produtos chineses conseguiram alargar mercados até Manila, Peru e Europa. Logo após os Descobrimentos, o valor do novo continente ainda não era conhecido, de tal modo que a China, que possuía ricos recursos de valor comercial, era considerada um grande armazém, que precisava de alargar o mercado interno e explorar o internacional, pois "todos os produtos não revelam o valor de uso para os seus possuidores, mas sim para os que não os possuem. É preciso portanto transferi-los de mão. E este processo de transferência constitui o câmbio de produtos"25. Antes de Macau se converter num centro de comércio internacional, o principal mercado do comércio externo da China era o do Sueste Asiático e o Japão, que não esgotavam as necessidades da produção chinesa de produtos a comercializar, já em alto nível de desenvolvimento. Daí se pode ver que o desenvolvimento da economia mercantil da China verificado nos finais da dinastia Ming forneceu condições materiais necessárias para Macau se ter convertido num porto exterior para o comércio externo de Cantão e num centro de comércio internacional.

• As facilidades dos transportes fluviais e marítimos de Macau constituíram condições indispensáveis para o desenvolvimento do seu comércio externo.

A península de Macau possuía condições favoráveis para os transportes marítimos. Partindo de Macau, rumo ao nordeste, podia chegar-se aos portos nacionais, nomeadamente Shantou, Xiamen, Nimpó, Xangai, Qingdao, Tianjin e Dalian, e finalmente a Nagasáqui, no Japão. Rumo a oeste, chegava-se a Goa, na Índia, e à Europa, atravessando o cabo da Boa Esperança. Rumo a sul, tinha-se acesso a Manila e demais portos do Sueste Asiático, e, atravessando o Pacífico, chegava-se ao continente americano. Lingtingyang, ao sul, era o porto exterior de Macau, com condições favoráveis, onde os barcos podiam ancorar, carregando e descarregando mercadoria antes de voltar a fazer-se ao mar. O porto interior de Macau, no Haojiang, a oeste do Território, estava ligado às rotas do delta do rio das Pérolas. Rio acima pelo Haojiang chegava-se a Shiqi, Jiangmen, Foshan, Cantão, Zhongshan, Xinhui, Shunde, Nanhai e Panyu, antes de entrar nos rios de Xijiang, Dongiang e Beijiang para se ligar ao resto do país. Numa palavra, possuía boas condições como escala numa rede de transportes, tal como a Monografia de Macau afirma: "Macau está ligado ao continente só por uma estreita faixa de terra. Excepto os cereais, tudo vem por mar. Os barcos fluviais têm um acesso particularmente fácil a Macau, donde se fazem ao mar"26. Pode concluir-se que os produtos podiam ser transportados, em grande quantidade, para Macau, por via fluvial, e exportados, para o exterior, por via marítima. Em contrapartida, os produtos estrangeiros, também em grande quantidade, podiam ser introduzidos em Macau pelos barcos, que chegavam por via marítima, donde eram canalizados para as diversas províncias do país. Macau assumia assim o papel de um porto de trânsito de produtos chineses e estrangeiros. Nas "Notas sobre a Poesia Moderna de Macau" pode ler-se a seguinte frase: "dos diversos portos exteriores de Cantão, o de Macau é o melhor de todos"27, o que confirma uma vez mais a posição do porto de Macau. As condições privilegiadas em relação aos transportes fluviais e marítimos que Macau possuiu, até ao estabelecimento do porto de Hong-Kong, constituíram certamente um dos motivos importantes do desenvolvimento do comércio externo do Território.

• Os chamados "piratas japoneses", activos entre os reinados de Jiajing e Qianlong, da dinastia Qing, promoveram em certo grau o desenvolvimento do comércio externo de Macau.

Segundo o professor Dai Yixuan, investigador orientado para a questão de Macau, os chamados "piratas japoneses", activos nos reinados referidos, não eram, de forma alguma, os piratas descritos nos livros de história da dinastia feudal, sendo principalmente comerciantes que pretendiam explorar o comércio marítimo, trocando mercadoria com o Japão e países do Sueste Asiático. Um autor, que viveu durante a dinastia Qing, diz-nos que: "O bandido e o. comerciante são homens da mesma natureza, com o comércio oficializado, o bandido toma-se comerciante, e com o comércio proibido, o comerciante passa a ser bandido"28. Os então chamados "piratas japoneses em Macau" eram na realidade comerciantes que se dedicavam ao comércio marítimo. Quando chegaram a Macau, os portugueses fizeram comércio com eles e igualmente mantiveram contactos. Na sua primeira viagem ao Japão, os portugueses e Wang Zhi, o então maior "pirata japonês", ficaram num mesmo barco. Em Hirado, Wang Zhi "construiu casas chinesas e, desde então, os barcos chineses de comércio não pararam de lá chegar"29. Wang gozava de grande autoridade no Japão, sendo nomeado agente de comércio externo por muitos compatriotas seus. Considerado rei de Hui (era natural da província chinesa de Anhui), Wang empregou 3.000 trabalhadores japoneses e levou-os para a China, dedicando-se ao comércio clandestino no litoral Sueste da China. No 36. ° ano (1557) do reinado de Jiajing, Wang foi capturado por Hu Zongxian, mas os seus adeptos continuaram a exercer o comércio clandestino no litoral das províncias de Zhejiang, Fuquiém e Cantão. Os portugueses autorizaram mesmo que pudessem morar em terra. A descrição "os franges de Macau... adoptam escravos japoneses como lacaios e criados"30 demonstra a estreita relação entre eles. Como eram poucos os portugueses estabelecidos em Macau, o comércio marítimo entre Macau e Nagasáqui, e Goa e Manila precisava dos chamados "piratas japoneses", sobretudo dos que se dedicavam ao comércio clandestino no mar de Cantão, o que promoveu o comércio entre Macau e o Japão, tal como afirma Xie Zhaozhe, da dinastia Ming: "Os malfeitores de Huizhou, Chaozhou e Hainan, da província de Cantão, correm riscos para conquistar lucros fáceis, considerando o mar como a terra e o Japão como o vizinho, fazendo comércio com o Japão e mantendo estreitas relações entre si."31 Disto tudo se conclui como foi importante o papel que, entre os reinados de Jiajing e Qianlong, desempenharam no comércio externo marítimo de Macau, e até de toda a China, os chamados "piratas japoneses".

• As políticas especiais dos governos das dinastias Ming e Qing promoveram a um certo nível o desenvolvimento do comércio externo de Macau.

Os governantes feudais das dinastias Ming e Qing prosseguiram a tradicional política de dar prioridade à agricultura e de controlar o comércio. A política de controlar o comércio destinava-se principalmente ao comércio externo. O rigor com que se aplicava esta política durante a dinastia Ming variou conforme a mudança da situação política; no entanto, a proibição do comércio marítimo como uma política básica mantinha-se sempre, tendo sido integrada mesmo nas Leis da Dinastia Ming, pois era considerada uma política legada pelos antepassados, o que implicava cumprimento rigoroso.32 Segundo o que está estipulado nas Leis da Dinastia Ming, o povo não pode dedicar-se ao comércio externo marítimo. Em 1522, a pretexto de controlar o "flagelo dos piratas japoneses", o governo mandou dissolver o shibosi (repartição encarregada dos mercados e transportes marítimos), estabelecido em Fuquiém e Zhejiang, e fechar os portos de Quanzhou e Nimpó, mantendo apenas o porto de Cantão em funcionamento.33 Desde então, Cantão era o único porto de comércio externo do país. Foi assim que Macau, localizado próximo de Cantão, no litoral sul, e devido às facilidades dos transportes, passou a ser o porto exterior de Cantão, começando o seu comércio externo a desenvolver-se num ritmo crescente.

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O comércio externo de Macau desempenhou papel significante tanto para o desenvolvimento sócio-económico dos países que tinham relações económicas com Macau como para o intercâmbio cultural, científico e tecnológico entre a China e os outros países.

• O comércio externo de Macau contribuiu para o desenvolvimento das capacidades produtivas e da economia da China e de diversos países do mundo.

1. Influência sobre a China. O período da prosperidade e desenvolvimento do comércio externo de Macau coincidiu com a etapa em que a economia da sociedade feudal da China se preparava para adquirir algumas características da economia capitalista. Durante essa etapa, a mercadoria que se importava de Nagasáqui, Goa e Manila para Macau e que se reexportava para o interior do país era principalmente a prata.34 Esta era importada em grande quantidade pela China, através de Macau, destinando-se à compra de produtos artesanais e agrícolas chineses, o que alargou o mercado dos produtos nacionais, e promoveu o desenvolvimento da produção de produtos comercializáveis. A exportação de tecidos de algodão para Manila, de 140.000 a 180.000 rolos anuais (que atingiu mesmo valores entre 220.000 a 290.000 rolos anuais), motivou em grande medida a cultura de algodão e a produção de têxteis de algodão.35 A exportação de seda crua e fibras de seda, também em grande volume, promoveu consideravelmente a criação de bichos-da-seda e a produção de têxteis de seda em Cantão, Zhejiang e outras províncias. A importação de prata, igualmente em grande volume, fez subir os preços, como por exemplo, na prefeitura de Songiang, onde um shi (l shi = 100 litros) de arroz subiu de 0,8 taéis de prata, em 1632, para valores entre 1,8 e 1,9 taéis, em 1638, e 2 e 3 taéis em 164236. O mesmo aconteceu também com a seda crua, os têxteis de seda, o vestuário, chapéus e toalhas, as verduras e frutas, o óleo, o sal, o chá, etc. A subida dos preços incrementou no país o desenvolvimento da produção de produtos comercializáveis. A este respeito, as Novas Palavras de Cantão têm um registo que diz: "Muitos macaenses são ricos, (...) chegam lá barcos carregados de coisas preciosas e estrahhas (...) cada barco leva a bordo uma quantidade incalculável de prata, os provenientes de Fuquiém recebem o metal precioso e distribuem-no aos artífices para fabricar objectos variados de uso diário, com os quais trocam mercadorias preciosas."37 Refira-se ainda que, graças à motivação provocada pelo comércio externo de Macau, a economia mercantil do delta do rio das Pérolas entrou numa nova fase de desenvolvimento. A produção artesanal cresceu num ritmo sem precedentes; a agricultura com fins comerciais também entrou num rápido desenvolvimento; o comércio viveu uma grande prosperidade, surgindo mercados em toda a parte, com produtos de uso diário ricos, e tendo-se formado uma zona económica "rica e mundialmente conhecida". Cantão converteu-se numa cidade desenvolvida em termos de comércio, com uma população concentrada e uma riqueza acumulada em quantidade incalculável graças ao aumento brusco dos impostos.38

2. Influência sobre os países do Sueste Asiático. Com o desenvolvimento do comércio entre Macau e Manila e outras cidades do mundo, a população dos diversos países do Sueste Asiático obtivera da China os mais avançados instrumentos de produção agrícola e artesanal, o que desempenhou um importante papel na extracção de minerais, na exploração de terras desertas e no progresso do artesanato. O mais importante é que, com o desenvolvimento do comércio entre Macau e os países do Sueste Asiático, muitos trabalhadores chineses deslocaram-se para os diversos países desta região, dedicando-se à agricultura e ao artesanato. Estatísticas revelam que, nos finais da dinastia Ming, havia mais de 100.000 chineses que habitavam no Sueste Asiático, dos quais 30 a 40 mil em Lução e 20 a 30 mil em Java39. Os trabalhadores chineses do Sueste Asiático dedicavam-se à exploração de minas e à transformação de colinas improdutivas em terras férteis: uns dedicavam-se à plantação e processamento em grande escala de pimenta, cana-de-açúcar e demais culturas de valor económico; outros à exploração de terras improdutivas, convertendo-as em arrozais. Introduziram técnicas avançadas de produção de arroz em diversos países do Sueste Asiático, tendo trabalhado duramente e, juntamente com os povos locais, conseguiram transformar terras improdutivas em zonas economicamente desenvolvidas. Nas Filipinas, por exemplo, os trabalhadores chineses, que se dedicaram à indústria e ao comércio, adoptaram técnicas avançadas de produção, contribuindo assim para o rápido desenvolvimento da economia das Filipinas. John Follman afirma o seguinte: "De facto, os chineses transmitiram aos indígenas os conceitos eficazes da indústria, comércio e trabalho. Ensinaram-lhes muitas coisas em áreas variadas, nomeadamente os métodos do fabrico de açúcar com cana-de-açúcar e da fundição e trabalho do ferro. Os chineses foram os primeiros a introduzir nessa colónia os métodos de usar o cilindro de pedra vertical, como engenho de açúcar, e a usar grandes panelas para preparar o sumo de cana."40 Este grande desenvolvimento comercial entre Macau e o Sueste Asiático fez com que os produtos chineses, de alta qualidade e baixo preço, entrassem em grande quantidade nos mercados dos países dessa região, dando ímpeto às economias aborígines ou, oportunamente, desfazendo-as. Não foram poucos os naturais que acabaram por abandonar o regime da economia com base nos recursos naturais a que reside na combinação da agricultura com a tecelagem. Nas Filipinas, por exemplo, a população, de todas as camadas sociais, usava tecidos fabricados por si própria, mas estes hábitos mudaram com o comércio entre Macau e os espanhóis, devido à "chegada de pelo menos oito barcos provenientes da China, número que podia atingir 20 a 30 anuais, segundo algumas testemunhas, carregados de tecido de algodão e brocado. Ao ver o tecido de algodão trazido pelos chineses, quase todos os locais do arquipélago e da província deixaram de tecer tecidos nativos, a tal ponto que todos os locais começaram a usar tecidos chineses"41. A exportação de outros produtos chineses para o Sueste Asiático promoveu naturalmente o desenvolvimento do comércio. Os comerciantes do Sueste Asiático dedicavam-se à compra, em grande quantidade, de produtos nativos, para os comercializar com a China, o que fez expandir as redes de circulação de produtos comerciais e do uso de moedas, pondo mesmo a circular, em muitas zonas, moedas chinesas de ouro, prata, bronze e estanho. No reino de Java, por exemplo, "agências de comércio usam moedas chinesas de bronze, datadas de diversas dinastias"42, e, no chamado reino do Velho Porto, "no negócio também se usam moedas chinesas de bronze e tecidos de algodão e seda"43.

3. Influência sobre os países da América. Nos finais do século XVI e inícios do século XVII, muitos dos actuais países da América eram colónias espanholas. Estas eram relativamente atrasadas ao nível da economia e da sociedade, tendo um artesanato subdesenvolvido. A roupa e os produtos artesanais que os indígenas e negros usavam no seu dia a dia eram na sua maioria provenientes de Espanha; no entanto, com a abertura da rota comercial Macau-Manila-México, os produtos chineses começaram a ser transportados, em grande quantidade, para as diversas regiões da América, particularmente para o Peru e México. O seu efeito directo foi o de elevar o nível de vida dos índios e negros, que vestiam todos roupa de seda chinesa, "sobretudo nas igrejas dos índios"44. A importação de seda chinesa na América forneceu matérias-primas necessárias para o desenvolvimento da produção têxtil local, desempenhando um papel muito importante e até decisivo. No México, por exemplo, a indústria têxtil de seda da região de Punibula só se mantinha em funcionamento graças à importação de seda crua chinesa. Um memorando apresentado ao Rei de Espanha diz o seguinte: "Se proibir a importação pelo México de seda crua [chinesa], ficará destruída a vida das 14.000 pessoas que vivem dos têxteis de seda."45 A importação em grande quantidade pelo México de produtos chineses também exerceu influência sobre o desenvolvimento da extracção de minerais. O México comprava produtos chineses feitos com prata, pois que este metal precioso afluía em grande quantidade à China através de Macau, o que promoveu directamente a extracção e a produção nas minas de prata do México. A importação pelo México de produtos chineses, de alta qualidade e em grande quantidade, contribuiu por sua vez para satisfazer as necessidades do dia a dia dos trabalhadores das minas de prata e permitiu o desenvolvimento da produção deste metal precioso.

4. Influência sobre os países do Oeste da Europa. Nos finais do século XVI e inícios do século xvII, a produção capitalista registou grande crescimento nos países colonialistas, onde se aplicou a política de dar prioridade ao comércio, tendo-se tomado em grande consideração os interesses do capital comercial. Esta política reside no facto de dar prioridade ao comércio externo. A este respeito, Karl Marx indica que o monetarismo e o comercialismo tomam por autêntica e única fonte da riqueza e moeda o comércio mundial e os sectores especiais do trabalho do cidadão nacional que tenham relações directas com o comércio mundial.46 Portugal ocupou Macau e a Espanha conquistou Manila, tendo mantido na América uma governação colonial de cerca de cem anos. Ambos controlaram o comércio Macau-Nagasáqui, o Macau-Goa-Lisboa e o Macau-Manila-México, dos quais obtiveram lucros de 100% ou mesmo o dobro ou o triplo deste valor. No período de 1503 a 1650, por exemplo, só das colónias do México e Peru, os espanhóis adquiriram 180.853 quilos de ouro e 16.443.560 quilos de prata47. Esta grande quantidade de riqueza foi transportada para a metrópole, convertendo-se em capital monetário, o qual formou um poderoso capital para o desenvolvimento da economia capitalista num país colonialista como era a Espanha. Entretanto, os países colonialistas que faziam comércio com Macau, não só transportavam para os respectivos países produtos chineses, de alta qualidade e a baixo preço, fazendo prosperar o mercado nacional, como também introduziram, a partir da China, avançadas técnicas de produção, nomeadamente a nível da siderurgia, dos têxteis de seda e da construção naval, o que promoveu o desenvolvimento da economia capitalista.

• O comércio externo de Macau inter-nacionalizou a cidade e desenvolveu a sua construção civil.

O comércio internacional da Rota Marítima, dos finais da dinastia Ming e inícios da dinastia Qing, trouxe grande riqueza para Macau, o que permitiu o seu crescimento urbanístico. As igrejas ocidentais, templos chineses e casas, de palha e barro, construídos nos meados do século XVI, passaram a ter estrutura de ladrilho e madeira graças à prosperidade que se viveu durante os cem anos seguintes. Os três maiores templos chineses hoje existentes em Macau — Templo de A-Má ou da Barra, o Guanyintang ou Templo de Kun Iam e o Lianfengmiao ou Templo de Lin Fong — possuem nítidas características arquitecturais do Sul do país. A Igreja de S. Paulo, hoje em ruínas, era considerada o "Vaticano do Oriente". As casas típicas portuguesas, geralmente nas encostas das colinas, apresentavam-se em formas variadas: quadradas, redondas, triangulares, hexagonais e octangulares, a lembrar-nos o estilo arquitectónico da Europa do Sul. O encontro e combinação em Macau das duas arquitecturas, chinesa e ocidental, caracterizou o Território, resultando um estilo particular magnificente. Contemporaneamente à construção e reparação urbanística, os transportes na cidade foram também melhorados, e Macau converteu-se dum porto de pesca numa cidade portuária com um comércio próspero, que possuía "construções de vigas altas e beirados virados para cima, tão próximas umas das outras, como se fossem dentes de um pente", e onde se ergueram "centenas de construções em poucos anos, havendo hoje em dia mais de mil construções"48. Nos meados do reinado de Wanli (1573-1620), "o número dos residentes de Macau ultrapassou cem mil, distribuídos por cerca de dez mil famílias"49.

Sendo um porto de trânsito do comércio internacional, Macau, mercê do desenvolvimento urbanístico, passou a ser uma cidade cosmopolita, contando, além dos próprios chineses, com um grande número de estrangeiros espalhados por diversas comunidades, nomeadamente portugueses, espanhóis, italianos, japoneses, ingleses, coreanos, indianos, malaios, africanos, entre outros. Em Macau, os diversos povos conseguiam manter fundamentalmente o seu próprio modo de viver, desenvolvendo a sua própria cultura. Encontram-se em Macau as culturas oriental e ocidental, misturando-se a Europa e a Ásia nos seus diferentes costumes. Há, por um lado, o folclore, a tradição e a crença dos chineses, caracterizado pelo rebentar estrondoso do petardo chinês, e, por outro, a procissão religiosa, os sons do órgão ocidental e a salva de artilharia; há também a medicina tradicional chinesa e a ocidental. Numa palavra, Macau ocupou uma posição bem particular na história moderna da China, sendo a janela donde os chineses contemplaram o Ocidente e a ponte através da qual os ocidentais conheceram as realidades chinesas.

• O comércio externo de Macau promoveu o intercâmbio científico e cultural entre a China e o Ocidente.

O intercâmbio cultural e tecnológico é um produto secundário do comércio. O grande navio, transporte usado no comércio entre a China e o Ocidente, pode considerar-se o símbolo do intercâmbio tecnológico entre a China e o Ocidente.A maioria das pessoas pensa que o grande navio foi fabricado pelos europeus. Mas a verdade é que, em determinados períodos, este transporte era fabricado no litoral da China ou nos países do Sueste Asiático, com a participação de não poucos técnicos e operários chineses. Na obra Fidalgos no Extremo Oriente, Charles Boxer referiu que o great ship português, que navegava para o Japão, era fabricado no Sueste Asiático e que, às vezes, estavam a bordo do grande navio marinheiros chineses e de outros países. Em The Great Ship from Manila, Shulz diz que o great ship, que navegava no Pacífico, era geralmente fabricado num estaleiro de Manila e os técnicos e operários chineses desempenharam papel importante no seu fabrico50.

O grande navio estava equipado de bússola, aperfeiçoada conforme as técnicas chinesas, e usava métodos de navegação por latitude e medição astronómica, fruto do progresso das ciências da Europa. Daí se pode dizer que o grande navio, que navegava na Rota Marítima internacional, foi fruto da cultura e tecnologia em que se reuniram as mais avançadas ciências, e as mais requintadas técnicas e melhores materiais da época.

O comércio da Rota Marítima nos finais da dinastia Ming e inícios da dinastia Qing promoveu também as trocas nos dois sentidos entre a cultura chinesa e as diversas culturas estrangeiras, contribuindo para a formação de um intercâmbio cultural muito intenso. Os jesuítas, e outros eclesiásticos que vinham de barco com as mercadorias, divulgaram na China as mais avançadas ciências e técnicas assim como a cultura da Europa, com o fito de promoverem a sua missionação no Império do Meio. O italiano Mateus Ricci foi uma das personagens com maior influência na divulgação na China da cultura da Europa ocidental. Em 1568 chegou proveniente da Índia, pela primeira vez a Macau. Antes de fazer uma dura viagem para chegar a Pequim, morou primeiramente em Zhaoqing, na zona de Cantão. Fez-se então portador de presentes, em forma de tributos, e foi recebido pelo imperador Wanli. Na lista desses tributos incluíam-se um retrato de Deus, dois retratos de Nossa Senhora, dois volumes da Bíblia, uma cruz decorada de pérolas, dois relógios despertadores, um atlas dos países estrangeiros e um instrumento musical ocidental51. A cultura ocidental veio assim para a capital chinesa. Posteriormente, diversas ciências foram introduzidas na China, nomeadamente a astronomia, a matemática, a geografia, a física, a medicina e as belas-artes. A tecnologia do fabrico de canhões foi igualmente introduzida.

Entretanto, com o desenvolvimento do comércio e transportes, a cultura chinesa também foi amplamente divulgada na Europa, tendo exercido grande influência sobre a cultura europeia do século XVI. O confucionismo deu ímpeto à filosofia clássica da Europa ocidental, ao serem apresentados os Quatro Livros [Quadrivolume de Confúcio] e os Cinco Clássicos pelos jesuítas aos filósofos e diferentes pensadores europeus. Os filósofos europeus não tardaram a absorver a quinta-essência do confucionismo, nomeadamente Leibniz, cuja filosofia especulativa exerceu influência sobre as gerações posteriores.

Ao longo da missionação, os jesuítas faziam contínuos esforços na área da tradução das obras clássicas chinesas, divulgando-as nos diversos países europeus. Em 1593, Mateus Ricci traduziu os Quatro Livros para latim e enviou-os para Itália, onde foram publicados. Posteriormente, outras obras clássicas chinesas foram também introduzidas na Europa.

A medicina chinesa foi igualmente introduzida no Ocidente. A versão francesa do Diagnóstico Chinês foi publicada em 1671. Em 1685, um médico polaco escreveu a Essência da Medicina Chinesa, tendo traduzido o Diagnóstico, da autoria de Wang Shuhe, e os métodos de diagnóstico baseado nos exames da língua e da cor de epiderme do rosto. Ao mesmo tempo, a literatura e o artesanato foram também introduzidos na Europa, enriquecendo a vida social do Ocidente.

Comunicação apresentada no Simpósio Internacional sobre a "Rota Marítima", que teve lugar em Portugal, em 1992. Tradução do original chinês por Zeng Yongxiu; revisão de Raul Pissarra.

* Nota do Tradutor: Xiyuan é um termo irregular, que não contém uma ideia exacta e que poderá referir-se a uma unidade monetária ocidental -- xi significa "Ocidente, ocidental", yuan é o carácter chinês usado para unidade monetária, sobretudo a chinesa.

NOTAS

1 BOXER, Charles Ralph, The Great Ship from Amacon: Annals of Macao and the Old Japan Trade, 1555-1640,1936, pp. 6-7, 17-18.

2 Id., p. 182.

3 Id., p.77.

4 Id., pp. 179-81; BOXER, Charles Ralph, Memoran-dum of the Merchandise which the Great Ships of the Portuguese Usually Takefrom China to Ja-pan, 1600; BOXER, Charles Ralph, Christian Century, p. 109.

5 BOXER, Charles Ralph, The Great Shipfrom Amacon, p. 195.

6 Id., p. 144.

7 Id., p.47.

8 ZHOU Yuanda, Notas de Jinglin, p. 3.

9 Vantagens e Desvantagens dos Países Estrangeiros, vol. 93.

10 BOXER, Charles Ralph, The Great Shipfrom Amacon, p.153.

11 CHANG Tiance, Sino-Portuguese Trade from 1514 to 1644, Leida, 1937, p. 138.

12 BOXER, Charles Ralph, The Great Shipfrom Amacon, p. 157.

13 CHEN Jinghe, Chineses Residentes nas Filipinas no Século XVI,1936, p. 36.

14 QUAN Hansheng, História da Economia Chinesa, Nova Ásia, vol. l, p. 460.

15 BOXER, Charles Ralph, The Great Shipfrom Amacon, p.169.

16 WANG Tuhe, Desenvolvimento do Comércio entre aChina, Manila e o México nos Finais da DinastiaMing, "Revista Geográfica", (7) 1954.

17 QUAN Hansheng, ob. cit., p. 465.

18 Dados Históricos das Filipinas, vol. 6, pp. 50-2

19 Id., vol. 10, pp. 21, 24-5.

20 WANG Tuhe, ob. cit.

21 Id., ibid.

22 PTAK, Roderik, O Transporte do Sândalo para Macau e para a China Durante a Dinastia Ming, "Revista de Cultura", Macau, (1) Abr-Jun. 1987, pp. 36-45.

23 Id., ibid.

24 QING Ru, Comércio Externo Chinês, Sanlian Shudian,1958, p.15.

25 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, Obras Completas, vol. 23, p. 103.

26 YIN Guangren, ZHANG Rulin, "Situação", in Monografia de Macau, vol. l.

27 Id., ibid.

28 XIE Jie, Lu Tai Wo Zuan, vol. l.

29 História dos Transportes entre a China e o Japão, Editora Comercial, p. 304.

30 Anais do Reinado de Shenzong da Dinastia Ming, vol.576.

31 XIE Zhaozhe, Wu Za Zu, vol. 4.

32 LIANG Tingnan, "Criação de Cargos de Funcionários", in Crónica das Alfândegas de Cantão, vol. 7.

33 JIANG Risheng, Notas da Formosa, vol. 22; CHANG Tiance, ob. cit., p. 77.

34 JIANG Risheng, ob. cit., vol. 14.

35 LIANG Tingnan, "Ordem de Proibição Número 2", in Crónica das Alfândegas de Cantão, vol. 18.

36 QIN Peiheng, "Preçário de Produtos da Dinastia Ming", in História da Economia do Período Ming, Henan, Editora Popular, 1959.

37 QU Dajun, "Terra", in Novas Palavras de Cantão, vol. 2.

38 Associação de Amizade para com os Povos Estrangeiros, Cantão,1959; Huang Ming Jing Shi Wen Bian, vol. 342; GUO Shangbin, Admoestações de Guo J i, vol. l.

39 ZHANG Weihua, O Comércio Externo no Período Ming, Estudo e Vida, 1955, p. 105.

40 CHEN Hansheng, Emigração de Trabalhadores Chineses, Zhonghua Shuju, 1981, vol. 4, p. 50.

41 Dados Históricos das Filipinas, vol. 8, pp. 84-5.

42 "Reino de Java", in Ying Ya Sheng Lan.

43 "Reino do Velho Porto", in Ying Ya Sheng Lan.

44 Dados Históricos das Filipinas, vol. 12, p. 64.

45 Id., vol. 27, p. 199.

46 MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, ob. cit., vol. 13, p.148.

47 YANG Hanqiu, Desenvolvimento e Decadência das Potências Envolvidas no Comércio Marítimo entre a China e o Ocidente, Desde o Século XV até Meados do Século XVII,"Estudos de História", (5) 1982.

48 LIU Tingyuan, Crónica do Distrito de Nanhai, vol. 12.

49 WANG Linheng, Yue Zhao Pian, vol. 3.

50 SHULZ, The Great Shipfrom Manila, p. 197.

51 HUANG Bolu, Zhengiao Fengbao, p. 5.

* Investigador no Instituto de Investigação Histórica da Academia de Ciências Sociais da China.

desde a p. 105
até a p.