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ELEIÇÕES PARA O SENADO DE MACAU EM 1842 E OS HOMENS BONS DA TERRA

Ana Maria Amaro*

Vista de Macau com a Praia Grande (Pintura a guache sobre papel, China Trade, c. de 1835).

"He Lei peculiar deste Estabelecimento, terem voto em tais Concelhos, as Authoridades, o Bispo, os Parochos, os Prelados das Religiões, os Homens bons, que tem andado na Governança e nunca os Militares (excepto se antes de o serem terem ocupado cargos) e menos os criados e outros empregados vis, como são os Chamadores do Senado, Cabos de Galés, Lingoas, Lorcheiros, etc. [...]"

(Documento 2388 (Pasta 8) do Arquivo Histórico Ultramarino, datado de 12 de Julho de 1842 e assinado pelo Escrivão de Direito Francisco António Pereira da Silveira.)

INTRODUÇÃO

Em 2 de Dezembro de 1796, dia consagrado a São Francisco Xavier, nasceu em Macau, na Freguesia da Sé, numa grande casa situada entre a desaparecida Rua do Gonçalo1 e a mais nobre das avenidas locais — a Praia Grande — Francisco António Pereira da Silveira.

Seu pai, Gonçalo Pereira da Silveira, era um abastado comerciante e armador, filho de um capitão de navios2 da Marinha Real de Goa, natural de Lisboa, Joaquim José da Silveira, que em Macau se casou, na Sé, em 10 de Janeiro de 1760, com uma das filhas de um dos mais conceituados homens da terra, Maria Pereira de Miranda e Sousa, constituindo família e fixando-se na cidade.

Gonçalo Pereira da Silveira, nascido em 19 de Outubro de 1762, homem rico e filho de europeu casou, por sua vez, em 10 de Janeiro de 1795, com Ana Joaquina, filha do homem mais rico e conceituado de Macau, Simão Vicente Rosa. Deste casamento nasceram pelo menos três filhos, Francisco António, Gonçalo e Ana Joaquina.

É este Francisco António, quem veio a perder, depois, a fortuna paterna nos riscos do mar e a morrer sem descendência, apesar de ser um homem-bom, na extensão da palavra, temente a Deus, muito honesto e leal à sua terra. Depois de ter frequentado o Seminário de São José até 1818, data em que seu pai faleceu, veio a constituir família, tendo de rejeitar a ida para Coimbra para prosseguir os estudos de Direito com que sonhava (regalia que conquistara por ser um dos dois mais brilhantes alunos do seu tempo), para ocupar o lugar de chefe da família e gerir os negócios da casa. Perdida a fortuna, valeu-lhe a instrução esmerada recebida no Colégio de São José, dirigido então por padres lazaristas, vindo a ocupar vários lugares na Função Pública, o último dos quais o de escrjvão ante o Juiz de Direito, até se aposentar.

Primeiro, como homem rico e conceituado que era, ocupou vários cargos no Senado de Macau, chegando a ser Procurador da Cidade3, e depois na Irmandade da Santa Casa da Misericórdia, o que aponta para a sua origem de sangue limpo e família abastada. Andou na Governança tal como seu avô, seu pai e seu irmão e prestou relevantes serviços a Macau e a Portugal, quer durante a crise de 1822 -24 quer depois, em 1838 - 41, embora o seu nome não conste da galeria dos homens ilustres que escreveram, com os seus actos, páginas brilhantes da história local4.

Pelo casamento com Francisca Ana Benedita Marques, em 15 de Agosto de 1819, Francisco António ficou relacionado com as famílias mais nobres e ficas de Macau, uma vez que sua mulher descendia, por um lado, em linha recta, de Domingos Pio Marques Castel-Branco, pertencente à melhor nobreza do Reino, e por outro à riquíssima família Paiva.

Deste casamento nasceram cinco filhos: uma menina, a primogénita, e quatro varões, dos quais apenas três atingiram a idade adulta.

Foi o terceiro filho, Albino Pedro (nascido no dia de São Pedro de 1823) quem, depois da morte de seu pai, encontrou entre os seus papéis um atado de folhas manuscritas que constituíam o seu diário, escrito a partir de 1838, mas com maior sequência a partir de 1841 e terminando em 1872, no ano anterior ao da sua morte.

Albino Pedro era muito rico. Trabalhara em Hong Kong e em Xangai em boas firmas inglesas tornando-se depois comerciante por conta própria e vindo a ser, nos primeiros anos do século XX, um dos maiores capitalistas de Macau. Contudo, ficou viúvo muito cedo e por duas vezes seguidas5 morrendo sem descendência. Dos vários filhos que teve, apenas uma filha chegou à idade adulta, mas veio a professar em França. Sozinho, embora muito rico, acolheu-se à casa dos seus parentes mais próximos— família Pereira Marques — que então residia num grande casarão no Largo Luís de Camões. Depois da sua morte, em 1905, o seu primo Francisco Pereira Marques encontrou o diário de seu tio Francisco António, que Albino Pedro conservara com grande estima e enviou-o para Lisboa a João Feliciano Marques Pereira, seu primo colateral, redactor da revista Ta-Ssy-Yang-Kuo, com o qual mantinha assídua correspondência.

Foi assim que estas folhas preciosas se conservaram até aos nossos dias, mantendo-se inéditas e muitas vezes enigmáticas, desafiando o engenho e o conhecimento de Macau a quem pretender decifrá--las. Muitas siglas, meias palavras, insinuações e reticências, obrigaram-nos a mais de dez anos de pesquisa nos Arquivos e nas memórias dos macaenses mais idosos, para entendermos a primeira parte deste diário que Francisco António Pereira da Silveira escreveu, no isolamento da sua casa, sem nunca ter pensado, certamente, em que tanto interesse viria a despertar um dia a sua leitura.

Ainda não terminámos a leitura deste precioso documento, que fomos obrigados a interromper por falta de tempo disponível, embora nos faltem apenas as folhas correspondentes aos últimos anos, aliás aqueles em que o seu autor, desiludido da política e até do futuro da sua terra, se limitava a anotar acontecimentos já de menor interesse.

Nos primeiros anos, porém, os registos que nos legou são bastante interessantes, talvez não tanto para os historiadores mas para os antropólogos, porquanto oferecem leituras muito pessoais de acontecimentos sociais e históricos e, mais ainda, são testemunhos das maneiras de viver e de pensar dum macaense muito culto, dotado de prodigiosa inteligência e de excelente formação moral.

Foi a partir de algumas passagens deste diário que redigimos o presente texto a que demos o título de "As eleições para o Senado em 1842 e os ho-mens-bons de Macau".

Apresentada a principal fonte deste nosso trabalho começaremos por analisar, embora resumidamente, como se processavam as eleições para a vereação do Senado de Macau, orgão governativo da maior importância na Cidade. Em seguida, procuraremos perceber as razões pelas quais, em Junho de 1842, essas eleições foram motivo de viva controvérsia e até de agitação popular em Macau. Depois veremos qual foi o papel que Francisco António Pereira da Silveira desempenhou nesse evento e, finalmente, a partir de um documento que este elaborou por ordem do Juiz de Direito, apresentaremos uma lista dos principais eleitores de Macau nessa data, bem como o seu estado civil e relações de parentesco, reveladoras de que muitos deles estavam bem longe de serem os ditos homens-bons que, desde sempre, a legislação exigiu que participassem em actos cívicos de tamanha relevância.

COMO ERA COMPOSTO O SENADO E QUEM PODIA SER ELEITO

Em 1585, quando se criou em Macau o Senado da Câmara, constituído por moradores eleitos pelo povo, todos os cidadãos portugueses nascidos, estabelecidos ou casados na Cidade podiam ser eleitores e eleitos para a vereação.

Este orgão detinha o poder político, jurídico e administrativo com bastante autonomia, uma vez que os governadores estranhos à Cidade e representantes do poder político do vice-rei da Índia acumulavam nos primeiros tempos esse cargo com o de capitães-mores da viagem do Japão e a sua estadia era temporária no território.

Este facto conferia, como facilmente se admite, a Macau, um estatuto porventura muito diferente do das outras cidades portuguesas do Oriente6.

A princípio, o Senado da Câmara era composto por três vereadores eleitos, dois juizes ordinários e um procurador da Cidade encarregado de estabelecer a ligação entre as autoridades portuguesas e chinesas e sendo criado em 1586 o cargo de ouvidor para ministrar a justiça7.

Pelo facto de acudirem a Macau cada vez mais degredados fugidos de Goa e aventureiros em busca de lucro fácil, passou a exigir-se que para se poder ser eleitor e eleito membro do Senado era preciso ter 25 anos, não estarem criminosos, serem filhos legítimos e não espúrios e não terem rassa infecta, isto é, não serem cristãos novos8.

Pelo facto de serem, no século XVIII, os portugueses de Macau, os ditos homens-bons9 locais na sua maioria mestiços, pelo Alvará Régio de 30 de Dezembro de 1709 passou a exigir-se título de nobreza para os oficiais do Senado e não apenas o antigo privilégio de serem cristãos-velhos, portugueses de nação e geração. Aliás, um título de nobreza podia ser reclamado por qualquer morador com alguma educação e serviços prestados a Portugal, nomeadamente aplicação de elevadas somas a favor de Macau. Assim, em princípio qualquer homem abastado (a eleição de mulheres era naquele tempo impensável) poderia vir a ter acesso a tais cargos sumamente ambicionados por uma questão de prestígio a que sempre os macaenses e os portugueses emigrados foram particularmente sensíveis.

Com o decorrer do tempo, a par com a decadência económica da cidade, foram escasseando os antigos homens-bons na habitual acepção da palavra e a vereação do Senado passou a ser constituída por pessoas nem sempre dignas da consideração exígivel a qualquer membro dum orgão governativo.

Por falta destes homens-bons10, as proibições contidas nos privilégios antes concedidos parece não terem sido sempre rigorosamente observadas11. No século XVIII o Provedor da Misericórdia foi um degredado e a vereação do Senado era também constituída, na sua maioria, por indivíduos que não tinham sequer cultura nem passado recomendável. Nesta altura o Senado era constituído por 9 vereadores,6 juízes,3 procuradores, um escrivão e um juiz.

Do foral concedido a Macau com 28 alvarás confirmados por D. João V, o Senado deveria ser composto apenas por dois juízes, três vereadores e um procurador. Contudo, este número foi ampliado limitando o poder do Governador em nome dum governo ao gosto da população, uma vez que as eleições eram, em princípio, livres e o Senado um orgão democrático.

Quarenta e dois anos depois do pessimista relatório do bispo D. Hilário de Santa Rosa, elaborado em 1742, o estado social da cidade pouco ou nada se modificara a avaliar pelas providências enviadas de Goa em 15 de Abril de 1784. Segundo este documento, o Senado da cidade de Macau era composto na sua maior parte por degredados que ali se refugiaram ou d' outros semelhantes a eles todos ignorantíssimos em matérias de governo sem outras coisas mais que as de procurar a fortuna. Estes homens cuidavam apenas de tornar menos cruel a tirania dos Mandarins com humiliacoens servis, com dadivas, que cons-tantemente lhes offereciam talvez extorquidas da Fazenda Real [...]12.

Em 1821, chegaram a Macau os ecos do movimento revolucionário que eclodira no Porto em 24 de Agosto do ano anterior. Liberais e conservadores lutaram pelo poder e a cidade conheceu, então, uma das convulsões políticas internas mais graves, que afectou grandemente a constituição do Senado levando à sua substituição por um Conselho presidido pelo bispo D. Frei Francisco da Nossa Senhora da Luz Chacim.

A nova Reforma Administrativa Constitucional de 1834 extinguiu o ouvidor e reduziu as funções do Senado13 que voltou a ressurgir, porém, nos termos anteriores, depois de superada a crise de 1822/1823 para vir a ser dissolvido em 1835 pelo governador Bernardo José de Sousa Soares de Andrea.

Foi das próprias cinzas que o Senado ressurgiu mais uma vez. Era um orgão muito caro aos Macaenses pois representava, pelo menos teoricamente, a sua vontade na acção governativa da sua terra. O presidente do Senado passou a ser nessa altura o próprio governador, o que reduzia, necessariamente, os costumeiros atritos entre os dois orgãos do poder, mas empobrecia a governação livre da cidade.

Em 1842, sendo governador Adrião Acácio da Silveira Pinto, aquando das eleições dos membros do Senado, nova agitação veio afectar a tranquilidade de Macau.

Em Portugal os governos sucediam-se e o atraso em chegarem a Macau as novas leis, devido à demora das ligações marítimas, faziam com que grande confusão se gerasse na governação, o que levou o Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, a afirmar:

E como as authoridades se hão de regular no exercício das suas funções com as Leys ambíguas e as vezes contrárias? Pediu, então este político às Cortes, urgência em se acharem as leis, principalmente nas circunstâncias em que se achava o território no Sul da China, onde decorriam dissenções entre o governo inglês e o chinês com grande afluência de estrangeiros a Macau.

Em 1839, o governador Adrião Acácio da Silveira Pinto, casado na terra com uma macaense de uma das mais influentes famílias locais, por ter a sua residência em mau estado de conservação, pretendeu mandar construir um novo palacete no local do extinto Convento de São Francisco, pretensão que foi apoiada pelo Reino, como consta da Portaria n. ō 109 de 13 de Julho de 1840: As actuais casas do Governador passariam para residência dos Juizes de Direito e as deste seriam vendidas quando não houvesse outra aplicação [...]. Pela mesma Portaria se mandava demolir a Sé pelo seu estado ruinoso [...] precedendo os actos necessários d'authoridade Eclesiástica [...]. Como seria de esperar, a demolição do Convento de São Francisco desagradou aos Macaenses.

Na sessão de 5 de Fevereiro de 1842 o Leal Senado, embora com prudência, pronunciou-se contra tal demolição, alegando que o convento estava em bom estado, sendo a Igreja uma das melhores da cidade, tendo contígua a ela um Campo Santo de Pública devoção14. Seriam necessárias 16 000 patacas para destruir o convento e erguer no mesmo local outro edifício, privando, para mais, o público Cristão da sua devoção relativamente à Igreja. No entender do Senado, pertencendo a actual residência do governador à Fazenda, ficaria mais económico restaurar essa casa, mantendo-se as casas do juiz, que se encontravam bem situadas e em bom estado15.

Acta da Mesa do Leal Senado referente às eleições de 1842 (Arquivo Histórico de Macau).

Esta deliberação sobre a qual o governador, como seria de esperar, não votou, foi enviada a Sua Magestade.

Gerara-se, entretanto, viva polémica entre o Juiz de Direito e o Senado que negava àquele a sua jurisdição sobre a Alfândega.

E em 28 de Maio de 1842, o Senado voltou a pronunciar-se contra o juiz, acusando-o de infringir as leis ao declarar liberto um escravo doado à Fazenda em 20 de Fevereiro do ano anterior, pelo seu possuidor Jozé Joaquim da Roza, sem ter ouvido a vereação.

O dito escravo, de nome Jorge Fructuoso, nascido em Macau, havia sido comprado em hasta pública com sua Mãe, por 80 patacas e agora, casado e com filhos, havia pedido judicialmente a sua liberdade, alegando ser nullo o direito de escravidão em Macau. Para se ver livre de embaraços com a Justiça, o amo tinha-o então doado à Fazenda.

Dizia o Senado: Posto que não existe Ley alguma que legalize a Escravature neste Estabelecimento com tudo pela sua conveniência tendo sido introduzida [...] só poderá a isso prejudicar a disposicão do Decreto de 10 de Dezembro de 1836. O assunto foi também comunicado ao Governo de Lisboa. Entretanto, chegou a Macau a Portaria n. ō 51 de 12 - 10 - 1840 mandando restituir ao Juiz Jozé Maria Rodrigues de Bastos na qualidade de Juiz e Director d'Alfandeqa e aos mais officiais da mesma, os emolumentos provenientes das fazendas despachadas [...] e censurando o Leal Senado por haver executado a ordem do Superior Governo da Índia de 4 de Maio de 1838, que mandou entrar em Caixa a importância de tais emolumentos contra a Régia Portaria de 31 de Maio de 1836. Chega também, pouco depois, a Portaria n. ō 156, de 22 de Março de 1842, na qual Sua Magestade desaprovava o procedimento do Governador e da Câmara transacta e mandava reintegrar o Juiz de Direito, no exercício das funções da Alfândega.

Em reunião do Senado, o Governador apresentou esta Portaria, fazendo algumas reflexões acerca d'ella. Declarou, formalmente, que se devia cumprir mas que elle resignava o seu lugar no Leal Senado como Conselho do Governo, segundo o considerava a Portaria n. ō 157, alegando, como fundamento da sua resignação ter perdido a confiança do Governo de Sua Magestade em virtude de huma Determinacão que mais parecia ter por fim vexá-lo do que apoiar a sua Authoridade, e que hum primeiro Empregado sem a confiança pública não podia governar bem [...]. E retirou-se dando-se por dezistido do lugar.

O Leal Senado passou a ser presidido então (uma vez que o governador saiu) pela segunda autoridade presente — o Juiz de Direito.

Como já dissemos o Senado, (presidido pelo governador) e o juiz degladiavam-se abertamente, uma vez que as leis eram diferentemente interpretadas por uns e por outros.

Era justificada a confusão e a dificuldade em governar Macau.

Como facilmente se pode concluir, o desconhecimento das realidades de Macau, naquele tempo, era muito grande no Reino e também grande era a desorganização que imperava no Governo Português, onde se sucediam os ministérios e, com eles, diferentes formas de pensar e de agir.

Reflectindo a confusão gerada por ordens e contra-ordens: as Leis Regulamentares e Orgânicas da Constituição, postas em prática em Macau pelo Decreto de 3 - 4 -1835, levantaram a opinião pública, por lesivas de muitos interesses e o governador da Índia resolveu em Conselho de Província reduzir tudo à Antiga até nova determinação superior. O Governo de Sua Magestade aprovou esta medida.

Repare-se no não senso da legislação que chegava do Reino a Macau. Primeiro, aparecera o Decreto de 7 - 12 - 1837, em cujo artigo 20. ō eram concedidas aos juízes de Macau as atribuições dos Antigos Ouvidores. Depois foi a vez do Decreto de 16 - 7 - 1838, que determinava que os Juízes de Direito de Macau não podiam exercer outras atribuições que não as que fossem próprias dos Juízes de Direito, revogando implícita, mas não explicitamente, o artigo 20. ō do Decreto de 7 - 12 - 1837.

Contudo, outro Decreto, de 14 de Maio de 1840, veio revogar o de 16 de Julho, dando, novamente, vigor ao artigo 20. ō do Decreto de 7 - 12. E... tudo voltou à antiga no Judicial e no Administrativo porque não houve nova legislação nem Determinação do Governo de Sua Magestade.

A aumentar a confusão, o presidente da Relação dos Estados da Índia determinou que se executasse, em Macau, a Reforma Judiciária, instruindo em que fosse instalado o Juízo da Polícia Correccional, segundo a Nova Ley Regulamentar de 12- 12- 1833, em contradição com o Decreto de7-12-1837...

Que amalgama das leys novas em velhas! Queixa-se o Senado a Lisboa.

Ora era precisamente o juiz, cuja posição era tão polémica em Macau, quem ficara a presidir à sessão do Senado, naquela reunião tempestuosa de 23 de Junho de 1842.

O Senado viu-se colocado numa posicão tão séria como vacilante que não podia manter-se por muito tempo sem grave risco do Estabelecimento. Mandou, então, convidar as Authoridades do Paiz para resolver sobre esta questão tão melindrosa e transcendente.

Passadas poucas horas acorreram estas autoridades convocadas e o Leal Senado oficiou ao governador ponderando os resultados que podiam advir da sua resolução de que ficava responsável perante o Governo de Sua Magestade.

O governador respondeu que estava firme no que havia feito e que não considerava o Senado seu Juiz. Os membros da Câmara foram, então, em corpo à sua residência, deixando as outras autoridades na sessão, para melhor expor o estado das couzas e procurar conciliar e persuadir pelo bem estar do Estabelecimento e Serviço de Sua Magestade, que voltasse a reassumir o Governo para evitar males talvez irreparáveis.

Não lograram, porém, fazer com que o governador mudasse de opinião e voltaram às Casas da Câmara onde a sessão prosseguia. Houve divergências, porquanto cinco vogais votaram pela convocação do Conselho Geral como meio legal para tomar medidas em cazos extraordinários não previstos pela Ley, segundo o Alvará 17. ō dos Privilégios da Cidade de Macau e quatro dos presentes optaram pela nomeação de um Governo interino, seguindo a Lei de 12 de Dezembro de 1770. Contudo, três dos que foram deste aviso, votaram em si próprios!

Não obstante o número de votos para a Convocação do Conselho ser de cinco, e não obstante três vogaes serem suspeitos e dois votos condicionais, os que votaram pela Lei de 12 - 12 - 1770, conseguiram que fosse nomeado um Go verno Provisório constituído pelo Juiz de Direito, o comandante do batalhão major João Teixeira de Lyra, e o vigário Capitular. No entanto, esta nomeação, não era legal, porquanto a aplicar-se a Lei de 12 - 12 - 1770, feita para o Brasil, nos Estados Asiáticos não deveria ser o Comandante do Batalhão, mas sim o oficial de maior patente que existisse na cidade, a fazer parte desse Governo, nem o vigário Capitular, mas sim o bispo eleito, maior autoridade eclesiástica que também existia em Macau. Mas pensando melhormente no seguinte dia os membros do Leal Senado reuniram-se e resolveram mandar suspender as ordens que haviam passado para a posse do novo Governo afim de se reflectir com mais madureza em assunto de tanta transcendência, ex-vi foram convocadas as mesmas Authoridades16. Travou--se, porém, renhida discussão porque as autoridades que integravam o Governo interino insistiam na validade da sua nomeação. O Senado, por seu turno, apontava para o conselho-geral, como a solução mais própria para tal caso.

O tempo passava e não se chegava a nenhuma resolução. Eis senão quando o batalhão Príncipe Regente veio postar-se no Largo do Senado, acompanhado de muitos cidadãos colocando-se a um dos lados das Casas da Câmara, armado e com duas peças de campanha e morrões acesos. O primeiro sargento despachado em segundo tenente de Artilharia António Fidelis participou ao major comandante deste Batalhão que se encontrava presente e havia sido nomeado membro do Governo interino que o Batalhão se achava em armas. Ouvindo isto o Delegado do Procurador da Coroa João Damasceno dos Santos Coelho sahiu desde logo do seu logar e disse que protestava pela coacção em que se achava, o mesmo fazendo o major Lyra. Estava ameaçada a votação livre que se requeria.

João José Vieira e o Delegado do Procurador Régio retiraram-se. Os dois Juízes de Paz pediram, então, a convocação do conselho-geral.

Nesta altura, anunciou-se a chegada da deputação de três oficiais do Batalhão: o capitão da 2.a companhia de Artilharia José Manoel de Carvalho e Souza, o tenente Ricardo de Mello Sampaio e o alferes Jerónimo Pereira Leite. Invocaram que a sessão estava a decorrer à porta fechada e que a nomeação de um Governo Interino com o comandante de batalhão não era legal, pelo que tomavam posição pela convocação do Conselho Geral. Era uma imposição feita pelas armas embora de aparência pacífica.

Começou, então, a proceder-se à votação. Durante esta ouviram-se vozes e houve quem batesse à porta da sala. Era, de novo, a deputação a pedir uma resposta, quanto ao que fora deliberado. O capitão José Manuel de Carvalho, ao saber que se decidira pelo Conselho-Geral, insistiu para que se fizesse o aviso por Bando e não por Edital, mas não foi aceite esta imposição.

Antes dos oficiais abandonarem a sala, o juiz perguntou-lhes se reconheciam a autoridade do seu Comandante, o Major Lyra. O Capitão Souza respondeu que não reconheciam nem deixavam de reconhecer. Perguntou, em seguida, o mesmo Juiz, se a força armada lhe prestaria, a ele próprio, auxílio, se ele lho pedisse a bem do serviço, e o tenente Ricardo de Mello Sampaio disse que sim a bem da tranquilidade para o que deveria dirigir-se à Guarda Municipal ou ao Quartel do Estado Maior.

Assentou-se que o Conselho-Geral ficava marcado para 25 de Junho e que deveria ocupar-se, apenas, do assunto do governo da Província.

Em 24 de Junho, o major João Teixeira de Lyra foi exonerado do comando do Batalhão Príncipe Regente pelo governador Adrião Acácio da Silveira Pinto, ficando na classe dos Officiais sem emprego.

Foi substituído pelo capitão José Manoel de Carvalho e Souza com direito a gratificação e à competente ração para cavalo, ao abrigo do § 1 do artigo 14. ō do Regulamento de 1816.

Vista da Península de Macau Óleo sobre folha. Atribuído ao Mestre do Fogo, cerca de 1825.

Em 25 de Junho reuniu-se o previsto Conselho-Geral composto de mais de cem cidadãos activos e a pedido de todos eles, e por sugestão de João Rodrigues Gonçalves, resolveu-se mandar uma deputação à residência do governador, pedindo-lhe para comparecer perante o Conselho.

Este, embora com dificuldade, acedeu e foi recebido com aclamações, sendo instado para reassumir as rédeas do Governo ou, melhor, para continuar nele porque a sua desistência não tinha sido nem pedida nem aceite, fazendo-lhe ver quanto perigava o bem estar do Estabelecimento caso não aceitasse.

Perante tão conspícuos cidadãos ele acedeu e tomou a Presidência, terminando tudo com a maior tranquilidade [...] de que resultou geral regozijo.

Foi proposta nessa ocasião por alguns cidadãos, que fosse jurada a Carta Constitucional (pois constava terem vindo ordens da rainha) e que ela fosse jurada não em nome mas sim que fosse posta em execução com as Leys Regulamentares Orgânicas.

Anulou-se a Portaria de 22 - 3, decidindo-se que as coisas de Macau ficassem tal qual se achavam em 22 de Junho, isto é, antes da recepção daquela Portaria, e nomeou-se uma Comissão para analisar quais as Leis Regulamentares compatíveis com aquele Estabelecimento. Convocou-se, ainda, novo Conselho para quando estivessem concluídos os trabalhos da referida comissão, que foi constituída por: P. Joaquim José Pereira de Miranda, João Damasceno Coelho dos Santos, Francisco de Assis Fernandes, cónego António Jorge Victor, tenente Ricardo de Mello Sampaio, Jozé Manoel de Carvalho e Souza, Philippe Vieira e cónego Taveira de Lemos. Concluiu-se, também, que o motivo das desordens ocorridas era o sordido interesse de meia dúzia de pessoas que, infelizmente tem sido atendidas pelo Ministério em contravencão da Constituição e sobre frívolos pretextos [...] e que o primeiro é mais interessante objecto para o socêgo da Cidade em a divisão de Podêres das respectivas authoridades [...] logo ali ficou assente que o Juiz de Direito de Macau ficava reduzido simplesmente às competentes atribuições judiciais.

Foram votados agradecimentos ao governador e à tropa e tratou-se ainda do problema da nomeação dos deputados às Cortes. Terminou tudo por uma proclamação do governador aos habitantes de Macau e à tropa, proclamação que foi publicada nos periódicos de Macau17.

Em 11 de Agosto de 1842, reuniu-se, de novo, nas Casas da Câmara, o Conselho-Geral para apreciar o Relatório da Comissão nomeada em Junho. A este Conselho faltaram o Juiz, o Cabido, o Delegado do Procurador da Coroa e Fazenda. O governador fez uma alocução e a Comissão apresentou o seu parecer.

Nomearam-se Procuradores às Cortes e foi enviado um Relatório à Secretaria d'Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, em 6 de Dezembro de 1842.

O Senado mandou, também, para o Reino um relatório das ocorrências de Junho, por ofício n. ō 9, de 7 de Setembro de 1842.

Como seria de prever, a Comissão pronunciou-se contra os poderes do juiz e advogou as eleições por todos os cidadãos activos e não só pelos homens-bons e manifestou-se, ainda, contra a censura da imprensa.

Toda esta agitação tinha por objectivo derrubar o Juiz de Direito que se tornara incómodo, o que foi conseguido. Nesta altura o juiz era o reinol, o estranho à terra e não o governador que, embora também natural do Reino era casado em Macau, partilhando dos interesses locais.

O juiz não se conformou com todas estas decisões e enviou um ofício ao Senado considerando--se acusado no Conselho-Geral de 11 de Agosto de 1842 [...] de se ter oposto ao estabelecimento das Leis Novíssimas [...]. Acabou, porém, por perder a batalha, por demais desigual.

Vejamos o que sucedeu nos bastidores destas ocorrências que a documentação da época nos permitiu reconstituir.

Reproduzimos, para isso, a seguir, extractos de algumas páginas do diário do macaense Francisco António da Silveira.

COMO REGISTOU FRANCISCO ANTÓNIO PEREIRA DA SILVEIRA OS ACONTECIMENTOS DE MAIO-JUNHO DO ANO DE 1842

Maio 13 — Chega o vapor Auclant (Aukland) tendo partido de Bombaim em 16 de Abril (traz notícias da Europa e por elas se sabe que foi jurada) a Carta Constitucional em Lisboa aos 10 de Fevereiro,tendo principiado no Porto. António Bernardo Costa Cabral, Ministro da Justiça foi ao Porto, e faz a revolução a favor da Carta. Não houve sangue.

[...]

Junho 23 — Vem a Portaria de 22 - 3 - 42 contra a suspensão do M. ō (Juiz) da Alfândega, o Governador larga o Governo no Senado e retira-se. Conferência de Autoridades. Pedem ao Governador que continue no Governo; não atende.

Oficia-lhe o Senado, e o M. ō (Juiz); repugna o Governador por ofício dizendo que esperava de Sua Majestade a demissão, e não a vexação. O Comandante vai pedir-lhe por si e pela tropa. Não os atende. A tropa pega em armas sem ordem do Comandante Lyra, este os contém. Não quer a tropa governo dos casacas18.

De noite tudo sossegado.

D.ḁ 24 — O Senado junta-se pela manhã, e põem dúvidas na Lei de 12 - 12 - 1770 como para o Brasil, e não para aqui; Conferência das Autoridades. O Delegado19 mostrou pela ordem de Goa de 1828, em que isso foi aplicado para aqui para casos idênticos. Alguns vereadores e Juiz de Paz vota pelo Conselho Geral. Prolonga-se a sessão até de tarde.

A tropa revoluciona, surpreende ao Capitão do Estado Maior Bernardo20, e marcha para o largo do Senado, sem ordem do Comandante que estava no Senado. Chegam ao largo deste com duas peças de campanha, e morrões acesos.3 oficiais José Manuel, Ricardo e Leite21 expõem o que pretendem às Autoridades, pedem Conselho Geral para já, era quase noite; não fazem caso do Comandante Lyra. Determina-se o Conselho para amanhã; que o Conselho seja na generalidade dos Cidadãos, o M. ō (Juiz) expõe a falta de recenseamento, e propõe o da eleição dos Juízes de Paz; ficam nisto, acaba a sessão às 10 da noite; um Sargento pela tropa recebe os Editais convocatórios e os afixa.

D.ḁ 25 — Conselho Geral. Preside o M. ō (Juiz), pedem o chamamento do Governador, nomeia-se a Câmara para isso. Vai a Câmara buscá-lo. Vem o Governador, e recebe os vivas. Retira-se o M. ō por incómodo de saúde. Susta o Conselho Geral a execução da Portaria de 22 - 3 - 42, continua a suspensão. Nomeia-se uma comissão de 5 membros (Padre Miranda, J. B. Gomes, J. D. C. Santos, F. A. Fernandes, Ricardo M. S.)22 para rever as Leis.

D.ḁ 26 — O Governador depõe o Lyra do Comando do Batalhão, fica Comandante o Capitão Joaquim Manuel da Costa Campos.

Julho 10 — Juramento da Carta Constitucional, Te Deum e Luminárias23. O M. ō (Juiz) assiste a -todos estes actos.

D. ō 16 — O M. ō (Juiz) não manda o auto de J. (uramento) ao Governador conforme o Programa do Senado. O Governador faz uma referência no Senado contra o Dito e contra o Ministro de Estado, principalmente contra o último (António José Maria Campelo) chama à Portaria de 22 - 3, Portaria de Peso, etc.

Out.13 — Chega a mala de Agosto. Em 10 de Junho chegou a notícia a Lisboa da deposição de Lopes Lima, em 18 nomeado Governador Geral, o Conde Antas24 (esse de quem o mesmo Lopes Lima disse mal no seu Manifesto) chega a Bombaim em 10 de Setembro pelo vapor e parte para Goa em 13 de Setembro. Não consta nos Anais de Portugal providências tão prontas para a Índia. O Pregoeiro25 faz grandes, e verdadeiros elogios. Deve-se tudo ao Campelo. O M. ō (Juiz) recebe ofício do Conselho do Governo de 25 de Agosto dizendo que se oficie ao Governador para tomar vista26 dos outros crimes, que ele não quiz em Maio. Sua Majestade decide contra a pretensão do Juiz de Paz de S. Lourenço que queria a Orfanologia, e dizia Sua Majestade ser atribuição do Juiz de Direito, e que isso era no Reino, e era da Reforma Judiciária Novíssima. Onde estão as esperanças do Conselho Geral com essa Reforma Judiciária que esperava? Tolos.

[...]

Comparando os registos das Actas do Senado e os teores dos ofícios e relatórios enviados para o Reino com o que registou no seu diário o macaense Francisco António Pereira da Silveira, pode avaliar--se o rigor da sua análise e a sua espantosa imparcia-lidade, o que confere ao seu escrito um grande valor documental.

QUEM ERAM OS HOMENS-BONS DE MACAU EM 1842

Inconformado com as resoluções do Conse-lho-Geral, o juiz, para apoiar a sua tese de ilegalidade mandou proceder à listagem dos participantes nas votações, com informações pormenorizadas quanto aos seus direitos ou não a voto porquanto era defeso votar aos estrangeiros, aos militares, aos parentes dos elementos das listas propostas e aos moradores considerados vadios ou desempenhando profissões vis, como criados, lorcheiros (proprietários de lorchas, barcos chineses de transporte de mercadorias), chamadores, línguas (intérpretes orais), cabos das galés.

O 1. ō escrivão do Juízo de Direito Francisco António Pereira da Silveira e o 2. ō escrivão Thomaz d'Aquino Miguéis foram encarregados de inquirir àcerca da situação dos 105 votantes.

A relação elaborada pelo primeiro, foi entregue em 7 de Julho de 1842 e a partir da sua leitura se pode constatar que dos cento e cinco votantes que haviam participado na atribulada sessão de 25 de Junho de 1842, setenta (mais de 50 por cento) não tinham direito a voto. A análise atenta do mapa elaborado por Francisco António Pereira da Silveira é muito interessante porquanto permite avaliar não só curiosas relações de parentesco mas também os jogos de interesses que se moviam nos bastidores das eleições para o Senado.

TRANSCRIÇÃO DA RELAÇÃO DE MORADORES ELABORADA POR FRANCISCO ANTÓNIO PEREIRA DA SILVEIRA

Elementos da Governação de Macau Vereadores:

Lourenço Marques — negociante, casado, vereador do Senado, primo de Francisco António Pereira da Silveira e de Agostinho de Miranda.

Agostinho de Miranda — solteiro, escrevente duma firma inglesa.

Alexandre António de Mello — negociante, vereador do Senado — primo de Januário José Lopes — Negociante, solteiro.

Manuel Pereira — negociante, casado, vereador do Senado, genro do governador Adrião Acácio da Silveira Pinto.

Jozé Thomaz d'Aquino — negociante, casado, juiz ordinário do Senado, irmão de Maximiano Jozé d' Aquino.

Maximiano Jozé d'Aquino — negociante, casado e cunhado de Vicente Vieira Ribeiro — de Carlos Vicente da Rocha e de Manuel António de Souza (todos eles negociantes, e casados em Macau).

Manuel Jorge Barbosa — negociante, casado, tesoureiro da Fazenda, sogro de Francisco de Assis Fernandes — advogado, natural de Goa — casado e primo de José Miguel Alves, mestre de primeiras letras, também casado e sobrinho de Manuel José Barbosa. Este José Miguel Alves não tinha direito a voto por nunca ter servido na Governação.

António Frederico Moor — negociante, casado, tio e cunhado de Alexandre Grand-Pré — escrevente duma firma inglesa. Não tinha direito a voto.

Cipriano António Pacheco — negociante, casado, juiz de Paz da Freguesia da Sé cunhado do lorcheiro Lourenço dos Santos — casado, sem direito a voto.

Juízes de Paz

José Simão dos Remédios — negociante, casado, juiz de Paz da Freguesia de São Lourenço, irmão de Maximiano F. dos Remédios — negociante, casado, sem direito a voto, genro de José Joaquim Gomes — casado, supervisor das Alfândegas, sem direito de voto, cunhado de Filipe Vieira — negociante, casado, igualmente sem direito a voto.

Outros votantes sem direito a voto

Padre Joaquim Pereira e Miranda — mestre do Colégio de São José, por não ser prelado (?) na sua religião.

Plácido da Costa Campos — 1. ō tenente do Batalhão, casado, sem direito a voto por ser militar.

José Manuel de Carvalho e Sousa — capitão do Batalhão, casado, primo de José de Lemos — casa-do, despachante de firmas estrangeiras, primo, por sua vez, de José Miguel Alves — mestre de l.as letras, também sem direito a voto como atrás se disse.

Braz de Mello — despachante de Casa de Negócio, solteiro, primo de João António Barreto, escrevente duma firma inglesa, solteiro.

Floriano António Rangel — escrevente duma firma inglesa, irmão de Jaime Rangel, solteiro, e de Segismundo Rangel, solteiro, ambos sem direito a voto por não serem chefes de família.

Rafael Jovita Ribeiro — músico, solteiro.

José Bernardino — casado, que vivia de "agenciar" (expedientes?), irmão de Manuel Duarte Bernardino, negociante, casado, sem direito a voto, e este por sua vez cunhado de Joaquim Braga, também, obviamente, sem direito de voto.

José de Brito — escrevente, solteiro, irmão de José de Brito e também solteiro, escrevente de casa estrangeira, ambos sem direito a voto.

Felix Hilário de Azevedo — casado, escrevente duma firma inglesa, primo de Pedro Nolasco da Silva, piloto, casado, irmão de João V. da Silva, casado, escriturário do Senado, todos sem direito a voto.

Nicolau Joaquim de Sousa — Casado, piloto de juncos chineses, sem direito a voto.

Agostinho de Miranda — solteiro, escrevente de casa inglesa, sem direito a voto e primo de Lou-renço Marques (vereador do Senado), sem direito a voto.

Carlos Vicente da Rocha — negociante, casado, sem direito a voto, cunhado de José Tomás de Aquino, juiz ordinário de Direito.

José Joaquim Gomes — casado, guarda supervisor da Alfândega, sem direito a voto, sogro de José Simão dos Remédios, juiz de Paz de São Lourenço.

Januário José Lopes — negociante, solteiro, primo de Alexandrino A. de Mello, negociante e vereador do Senado.

José António Soares — valdevinos e miserável, casado, tio de Joqauim Pereira de Campos, solteiro, escrevente de firma inglesa, ambos sem direito a voto.

João Hyndman — casado, escrevente de firma inglesa, cunhado de Alexandre Grand-Pré, solteiro, também escrevente da mesma firma e ambos sem direito a voto.

João da Cruz — casado, encadernador de livros, irmão de Felix F. Cruz, casado, impresssor, ambos sem direito a voto.

José Miguel Sanchez del Aguila — piloto espanhol da América, casado, estrangeiro e, por isso, sem direito a voto.

Francisco de Assis Fernandes — advogado, casado e primo de José Miguel Alves, mestre de l.as letras, casado, ambos sem direito a voto. Era genro do eleito tesoureiro da Fazenda Manuel José Barbosa.

Manuel Duarte Bernardino — negociante, casado, irmão de José Bernardino e cunhado de Joaquim Braga, todos sem direito a voto e este último considerado vadio.

Ludgero J. F. Neves — casado, major coman-dante-ajudante do batalhão do Monte, cunhado de João Florêncio Marçal, ambos sem direito a voto por serem militares.

José Francisco de Macedo — almoxarife, casado, sem direito a voto, primo do intérprete João Rodrigues Gonçalves (este com direito a voto).

Felix Lourenço de Pina — casado, piloto de juncos chineses, irmão de António Francisco de Pina, casado, escrivão do Almoxarifado, ambos sem direito a voto.

João Valentim Chumal — solteiro, major comandante da Guia, sem direito a voto por ser militar.

Filipe Vieira — negociante, casado, cunhado de José Simão dos Remédios, eleito juiz da Paz de São Lourenço.

José Vicente Vieira — casado, lorcheiro, sobrinho de P. Francisco Xavier da Silva, vigário de St. ō António, este sem direito a voto.

Ricardo de Mello Sampaio — 1. ō tenente do Batalhão, casado, sobrinho de Manuel Martins do Rego, escrivão do juiz da Paz, por sua vez irmão de Tomás de Aquino Martins do Rego, amanuense da Alfândega. todos eles sem direito a voto.

Bernardo Manuel de Araújo Rosa — casado, capitão do Batalhão, sem direito a voto por ser militar.

José Carlos Barros — casado, amanuense do Senado, sem direito a voto.

Joaquim Vicente Barradas — alferes do Batalhão, casado, cunhado de Maximiano Felix da Rosa, escrivão da Procuratura, ambos sem direito a voto.

Joaquim Frederico Gil — piloto, casado, sem direito a voto.

Simplício António Tavares — sem modo de vida, solteiro, primo de Joaquim Pedro da Costa, escrevente do Senado, casado e por sua vez primo de Francisco Xavier Lança,2. ō tenente da Armada, casado, este último sem direito a voto.

Francisco de Paula Silva — casado, amanuense da Misericórdia, sobrinho de Miguel Alexandrino Ferreira, escrivão do juiz de Paz, ambos sem direito a voto.

Manuel Maria Dias Pegado — editor do Portuguez na China, casado, primo de José Manuel de Carvalho e Sousa, capitão do Batalhão, ambos sem direito a voto.

José de Brito — solteiro, escrevente de casa estrangeira, irmão de João de Brito, ambos sem direito a voto.

Maximino dos Santos Vilela — piloto, casado, primo de João Carlos Pereira, casado, escrevente, ambos sem direito a voto.

Augusto de Almeida Torrezão (?) — casado, lorcheiro.

António Inácio Perpétuo — taverneiro de vinho, casado, sem direito a voto.

Manuel Agostinho de Oliveira Matos — casado, vadio.

Tomás d'Aquino Martins do Rego — casado, amanuense da Alfândega, irmão de Manuel Martins do Rego, casado, escrivão do juiz da Paz.

Miguel Alexandrino Ferreira — casado, escrivão do juiz da Paz, tio de Francisco Paula da Silveira, casado, amanuense da Misericórdia, ambos sem direito a voto.

António Ferreira Batalha — casado, lorcheiro.

Ludovino Pereira Simas — 3. ō escriturário do Senado, solteiro, filho do escrivão da Câmara.

João Rodrigues da Costa Caminha — casado, tenente ajudante de Ordens.

Florentino António dos Remédios — casado, língua ordinária da China.

José Martinho Marques — casado, ajudante do intérprete da China.

José Joaquim de Azevedo — casado,2. ō escriturário do Senado, primo de João V. da Silva, escriturário do Senado.

Joaquim Ferraz — casado, genro do escrivão da Câmara guarda supranumerário da Alfândega.

Luís Bernardo do Couto — casado, patrão de lorcha.

Inácio Baptista Gomes — casado, chamador ou moço do Senado.

José de Jesus dos Santos Oliveira — reposteiro ou chamador do Senado, solteiro.

Artur Francisco do Rosário — casado, chamador do Senado.

Miguel de Sousa — casado, fiel do tesoureiro do Senado

Lourenço dos Santos — casado, lorcheiro, cunhado de Cipriano António Pacheco, (eleito juiz da Freguesia da Sé).

Desta breve análise ressalta uma relação flagrante de parentesco entre elementos sem direito a voto que foram votar e entre alguns destes e cidadãos eleitos para diferentes cargos, o que mostra até que ponto os resultados das eleições não correspondem, em muitos casos, ao espítrito da Lei que as criou em nome da Liberdade e da Justiça.

Este retrato de eleições conturbadas em Macau é também, de certo modo, uma imagem de todos os tempos tomada transparente pela dignidade e espantosa integridade e formação moral dum macaense do século XIX cujo nome merecia ter ficado na história da sua terra.

Exemplos do passado que reflectem a projecção da política do Reino em Macau e as suas por vezes dramáticas consequências fruto do desconhecimento duma realidade que tem de ser sentida para se perceber.

BIBLIOGRAFIA

Macau dia-a-dia. Manuscrito inédito do espólio de João Feliciano Marques Pereira.

Manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino (1838 a 1843).

O Pharol Macaense. Periódico editado em Macau na Tipografia Arménia de Felix Feliciano da Cruz de 1841 a 1842.

O Portuguez na China. Periódico editado em Macau por M. M. Dias Pegado de 1839 a 1843.

A Aurora Macaense. Periódico editado em Macau na Tipografia Arménia de Felix Feliciano da Cruz, Novembro de 1843.

NOTAS

1 Rua que ligava a Praia Grande ao Largo do Senado, antes de aberto o novo traçado da Av. Almeida Ribeiro nos princípios do século XX.

2 Capitão de navios era tida por uma das mais nobres profissões de Macau ainda na primeira metade do século XIX.

3 Ao procurador da Cidade cabia o espinhoso cargo de estabelecer a ligação, nem sempre fácil, entre as autoridades portuguesas de Macau e as autoridades chinesas.

4 Ver nosso artigo "Francisco António Pereira da Silveira, um macaense que não ficou na História", in revista Macau, extracto do trabalho em preparação "Macau dia a dia — Diário dum macaense do século XIX".

5 A sua primeira mulher morreu na sequência do segundo parto, o mesmo acontecendo à segunda mulher, irmã da primeira, que faleceu também por ocasião do nascimento dum filho que não vingou.

6 Para mais pormenores, conferir A. Lessa A História da Primeira República Democrática do Oriente [...] Macau, J. N.,1974 e Luís Gonzaga Gomes, (Páginas da História de Macau, Macau,1966).

7 Cf. Monsenhor Manuel Teixeira, Ouvidores in Macau, Macau,1979.

8 Informação do bispo de Macau datada do ano de 1700, cit. por Monsenhor Manuel Teixeira in Macau no século XVIII, Macau,1980, p.15.

9 Os homens-bons correspondiam no plano políticojudicial aos vizinhos do arreigamento topográfico e em parte também aos herdadores da classificação económica e aos cavaleiros-vilãos da terminologia sóciomilitar, sem no entanto poderem rigorosamente confundir-se com qualquer deles. O grau de honradez isto é, de consideração social, necessária para se poder ser considerado um homem bom, variava com a importância do povoado onde se incluiam, uma vez que de simples herdadores proprietários rurais também passaram a sê-lo os burgueses ricos e depois os mais conceituados mesteirais, porque abastados. Eram os homens-bons aqueles que eram chamados para as Câmaras, para conselheiros do alcaide, decidindo questões administrativas e económicas. Fora desta designação ficavam os malatos, isto é, homens que dependiam de outrem (homens de criação solarengos jugueiros, mancebos, etc.), e também os que não constituíram família ou não dispunham de casa própria (A. H. de Oliveira Marques in Dic. da História de Portugal dir. de Joel Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto, Maio de 1981).

10 Em 1700, Macau carecia de homens-bons para a eleição do Senado. Havia apenas 24, sendo excluídos 9 por velhice e achaques ou por crimes. Ficavam 15. Como se poderia fazer a eleição trienal? Ora para a eleição ser livre deveriam ser mais de 20 (Monsenhor Manuel Teixeira, Macau no século XVIII, ob. cit., pp.14 e 15).

11 O Alvará de 31 de Agosto de 1629 proibia os degredados de ocuparem cargos públicos. Em 14 de Janeiro de 1708 o procurador da Cidade conseguiu, em Lisboa, obter 26 privilégios camarários para resolver as frequentes questões levantadas entre o governador (capi-tão-geral de Macau) que a partir de 1623 deixou de ser capitão-mor da viagem do Japão para exercer um cargo permanente e de facto. Alguns destes privilégios permitiram ao Senado prover alguns oficiais, entre eles o de escrivão da Câmara e o de carcereiro, o juiz dos Orfãos e nomear o respectivo escrivão, prover a vara do alcaide em homem-branco e prover todos os oficiais excepto o de tabelião judicial e, prover os capitães da ordenança etc., no sentido de limitar os poderes do governador que representava o poder político do Reino (através do do vice-rei de Goa). No artigo 14 destes privilégios consta que "será vedado aos criminosos servir em ofícios públicos ou na Câmara". No art. ō 15 sublinha-se que os oficiais do Senado deviam ser cristãos velhos, portugueses de Nacão e geracão.

12 Manuscrito da Secção de Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Cod.1707.

13 Manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino, Pasta 8,1842.

14 Cf. Actas do Senado da Sessão de 25 e 26 de Julho de 1842 e Diário do macaense Francisco António Pereira da Silveira (manuscrito inédito do espólio de João Feliciano Marques Pereira).

15 Manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino, Pasta 8,1842.

16 Manuscritos do Arquivo Histórico Ultramarino, Pasta 8,1842.

17 O Pharol Macaense, periódico de Macau, editado por Felix Feliciano da Cruz (Junho de 1942) e diário do macaense Francisco António Pereira da Silveira e A Aurora Macaense (periódico editado na Tipografia Arménia, Junho de 1842).

18 Paisanos conservadores (miguelistas).

19 Delegado do procurador da Coroa, João Damasceno Coelho dos Santos.

20 Bernardo de Araújo e Silva.

21 José Manuel de Carvalho e Sousa, Ricardo de Mello Sampaio e Jerónimo Pereira Leite.

22 P. José Joaquim Pereira de Miranda, João Damasceno Coelho dos Santos, Francisco de Assis Fernando e Ricardo de Mello Sampaio.

23 Iluminações públicas e de edifícios [...].

24 Governador do Estado da Índia.

25 "Pregoeiro da Liberdade", periódico que se publicava no Estado da Índia.

26 Recorrer, interpor recurso; termo jurídico.

* Doutorada pela F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa; Professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas (Departamento de Antropologia). Membro de várias instituições internacionais, v. g. a International Association of Antropology.

desde a p. 19
até a p.