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A HISTÓRIA DE MACAU, SÉCULOS XVI- XVII: ALGUNS INQUÉRITOS EM ABERTO

Jorge Manuel Flores*

O historiador que se dedique à História de Macau dos séculos XVI - XVII tem forçosamente de enfrentar dois escolhos: a escassez de documentos e a "tirania" do Japão. Talvez por isso seja frequente o argumento de que a história de Macau é um capítulo encerrado no que respeita a esse período, havendo que dirigir esforços para os "obscuros" séculos XVIII e XIX.

Temos para nós, no entanto, que a história do primeiro século e meio da existência de Macau é uma história em construção, aberta não só à revisão de objectos "consagrados", mas sobretudo - e é disso que nos ocupamos aqui~—aberta à introdução de outros inquéritos, o que supõe a leitura dos documentos conhecidos segundo novas perspectivas.

A preponderância da concepção de Macau como espaço económico, efeito lateral dessa "tirania" do Japão, tem, em boa verdade, ditado a atrofia de outros objectos legítimos. Os produtos e os mercados, as técnicas de negócio e os navios dominam a investigação sobre Macau no período que nos ocupa, relegando para segundo plano inquéritos relativos à vida urbana, à história política e até, ainda que em menor grau, à sociedade local. Alinham-se, de seguida, alguns campos de investigação onde o atraso é notório.

ESTRUTURA URBANA

Conhecemos mal a organização da cidade, a sua configuração espacial, a evolução e transformação da sua fisionomia. Falta-nos, enfim, uma monografia que se ocupe do tecido urbano de Macau, lacuna grave se tivermos em conta que a história urbana tem registado nas últimas décadas enormes progressos, tanto no âmbito teórico-metodológico, como ao nível dos estudos de caso. E não se trata apenas do contexto europeu, mas também do quadro asiático. É impossível ao especialista da história urbana asiática alhear-se da renovação da história urbana do mundo indiano, ou ignorar a grelha interpretativa proposta por Denys Lombard para as cidades da Ásia do Sueste. Do mesmo modo, e no que respeita à China, terá forçosamente de ponderar os problemas propostos por Max Weber, as contribuições de Balazs e Eberhard no meado deste século e, bem assim, um conjunto de estudos de caso que têm vindo a ser desenvolvidos nos últimos anos.

Tudo isto, claro está, interessa ao estudo de Macau, cidade "estrangeira" implantada na orla marítima do império chinês. Sugere-se aqui um dos muitos pontos de contacto entre Macau, as cidades da China e os centros urbanos da Insulíndia. É curioso notar como Macau desenvolve uma instituição característica das cidades chinesas, que também faz a sua aparição nas cidades do arquipélago malaio onde a influência das comunidades chinesas é mais aparente. Macau possui "as cabeças das ruas", indivíduos que respondem pelos moradores de cada uma das ruas ou quarteirões da cidade. A prática tem naturalmente que ver com o que se passa na China: lembrem-se as "milícias" (baojia) organizadas com esse mesmo intuito ao tempo dos Song. O fenómeno perpetuou-se e, no século XVI, Fr. Gaspar da Cruz assinala a sua sobrevivência em Cantão. Instituição que encontramos também nos sultanatos do Pasisir javanês o caso de Banten ou na Batávia holandesa. Estamos, sem dúvida alguma, perante uma marca da concepção chinesa de espaço urbano: a construção é ritual, os homens são devidamente organizados e "enquadrados". Concepção que não se restringe às capitais imperiais, antes alastra às estruturas urbanas mais "discretas", conforme demonstra o manual de carpintaria Lu Ban jing.

Na ausência de evidência arqueológica, interessaria sistematizar os dados da toponímia e da cartografia, confrontando-os com o testemunho dos textos. É com base num estudo deste tipo que se poderão retirar conclusões acerca da natureza da cidade de Macau, seguramente dividida entre o modelo urbano português, o sistema urbano chinês e também, sem qualquer dúvida, a textura da cidade portuária da Insulíndia.

É também esta a base para melhor se entender esse fenómeno de revitalização do mundo urbano a partir da presença ibérica na região, bem patente na erupção de três novas realidades urbanas Macau, Nangasaque e Manila em pouco mais de uma década. Neste ponto concreto, interessaria comparar o território urbano de Manila com a paisagem urbana de Macau, por forma a apurar até que ponto duas concepções diversas de expansão geram modelos diferentes de urbanismo. É, pois, imperativo que, mais do que os ritmos da relação comercial entre Macau e Manila, se possam identificar e revelar outros pontos de contacto e afastamento entre as duas cidades.

ESPAÇO POLÍTICO

Continua a constituir uma incógnita a forma como Macau funcionou enquanto espaço político. É certo que contamos com alguns estudos sobre a estruturação dos corpos políticos locais o Senado Câmara e a Santa Casa da Misericórdia mas falta-nos estudar a acção dos poderes propriamente dita. Acção interna, antes do mais, deslindando os mecanismos de controlo do território e dos homens, postos em prática tanto pela Igreja como pelo poder municipal; dissecando-se o modo como os "homens graves" da cidade "mostram" a sua autoridade não apenas aos restantes portugueses, mas sobretudo à massa anómina chinesa que não fala a sua língua e que, naturalmente, reconhece com maior facilidade a autoridade dos mandarins.

Acção externa, logo depois, acompanhando a evolução da "política externa" de Macau, isto é, conhecendo os contornos da relação que a cidade mantém com as suas tutelas. De um lado, Lisboa e Goa. Do outro, Pequim e Cantão.

No que respeita à primeira tutela, é imperioso saber como é que em Lisboa e em Goa se vê Macau. É que não basta ficar pelos lugares-co-muns. É necessário perceber qual o "lugar" de Macau nas estratégias delineadas em Lisboa, medir a importância que a produção tipográfica confere à cidade e à China. Do mesmo modo, importava conhecer a posição de Goa ao longo desse período, saber se estava em sintonia ou não com a de Lisboa. No começo da década de 30 do século XVII, por exemplo, o vice-rei pronuncia-se a favor da dissolução da câmara, mas o rei opta pela sua manutenção. A mesma postura, de resto, que Lisboa assumira já no rescaldo do conflito com D. Francisco Mascarenhas. Seria esta a prática corrente? Só assim se poderá entender os momentos de reacção e colaboração de Macau com o centro que, de outro modo, se quedarão pelo episódio e caricatural.

O mesmo se aplica ao poder espiritual. Qual a acção da Inquisição de Goa em Macau durante o período considerado? É certo que as vicissitudes por que passou o fundo documental relativo a essa instituição dificultam a tarefa do historiador. Registaram-se, todavia, alguns avanços desde a obra de referência de António Baião, conforme atestam os trabalhos de James Boyajian e Ana Isabel Canas. Nos finais do século XVII, a Inquisição de Goa pretende vedar as ruas de Macau às cerimónias religiosas dos chineses, mas a câmara, consciente das implicações, adopta uma postura cautelosa. É de crer, pois, que as intenções do tribunal de Goa não chegassem, as mais das vezes, a concretizar-se. Aliás, uma consulta apressada do códice 203 da Biblioteca Nacional de Lisboa revela um fenómeno idêntico ao notado recentemente por Luís Filipe Thomaz para Malaca: uma atmosfera de tolerância religiosa, que se traduz na quase inexpressividade dos processos da Inquisição de Goa relativos a Macau.

Mapa da Foz do Rio das Pérolas, com a península de Macau. In "Advertências a el-rei D. João IV por Jorge Pinto de Azevedo morador na China",1646, Março. Biblioteca da Ajuda, Cod.54-XI-21 Nō9.

Mas mais aliciante ainda seria acompanhar a relação da cidade com a China. Conhecemos mal o modo como Macau lidou com o Império do Meio, sobretudo durante um período repleto de motivos de interesse, esse século de crise que se estende dos anos 80 do século XVI à mesma década da centúria seguinte.

O auxílio de Macau aos Ming não está totalmente desvendado. Lembre-se o plano do alferes Paredes, que propunha se aliciassem os vários milhares de homens que se encontravam nos países do golfo de Bengala ao serviço dos reis locais para lutarem na China contra os Tártaros. Tome--se também por exemplo a pouco estudada expedição de Gonçalo Teixeira Correia (1628), de que os arquivos portugueses guardam alguns documentos interessantes. Demais, Correia combateu contra os Tártaros na Coreia, e não espantaria que as fontes japonesas e coreanas fossem de alguma utilidade para o estudo da expedição. Mas, para lá da cronologia e dos acontecimentos, interessaria saber como é que esse auxílio foi aproveitado por Macau para melhorar a sua imagem em Pequim. Em trabalhos recentes, tentámos pôr a claro alguns mecanismos de propaganda política montados pela cidade nessa época, mercê das novas circunstâncias.

Depois, interessaria saber como é que Macau lidou com os Manchus após 1644, e sobretudo após 1650, data da conquista de Cantão; como atravessou o período das regências; como acompanhou a revolta dos três feudatários. Importaria desvendar o porquê dessa empatia inicial entre Portugueses e Manchus. Será porque ambos eram "bárbaros"? Conforme notou Paul Pelliot, os primeiros imperadores Qing demonstraram repugnância pelo emprego do termo "bárbaro" (yí 夷)...

Platte Ground Vande Stadt Macao (c.1665) Grav. por Valentim (Arquivo Histórico de Macau).

A relação de Macau com a China tem forçosamente de ser vista sob o prisma do político. O político ocupa um lugar central na civilização Chinesa e a cidade de Macau cedo intuiu esse fenómeno. Gradualmente, vêmo-lo apetrechar-se para fazer face à burocracia chinesa, valorizando a palavra escrita como instrumento do governo, arrumando e sistematizando documentos, entendendo a importância da comunicação política, procurando ganhar acesso a informação secretal,"arregimentando" chineses versados nas "letras e costumes" do Império do Meio. É neste quadro que se deve entender o lamento expresso num memorial apresentado em Pequim acerca dos Portugueses: "e assi mais ouvi dizer que da Corte de nanquim se deo hua petição a El-Rey, da qual souberão elles em Macao primeiro que os nossos em Cantão, se não ouvera china de nossa casta que estão na Corte expreitando o nosso governo, elles como puderião saber."

Vista da Praia Grande, Macau, finais do Século XVIII; atribuído a Spoilum (Uma das primeiras pinturas da escola da China Trade. Cantão).

Os Portugueses, em boa verdade, limitam-se a aprender com os Chineses. Os lugares-comuns sobre o sinocentrismo impedem-nos de aprender a substância do problema: xenófobos, os Chineses não se preocupariam em observar, descrever e seguir os movimentos daqueles que os rodeavam, particularmente daqueles que frequentavam a franja marítima do seu império. Ora, a ideia é de todo insustentável. O mesmo se defendia em relação ao Japão e Ronald Toby demonstrou, com base nos textos japoneses, precisamente o contrário. Pensar que um país auto-centrado vive alheado do que o circunda e ignora os seus vizinhos é totalmente errado. Um volume colectivo, editado por Moris Rossabi em 1983, mostra como, entre o século X e o século XIII, a China teve uma política externa verdadeiramente pragmática e flexível, tratando os "bárbaros" de acordo com a sua real influência, procurando obter todo o género de informações sobre os que frequentavam as suas fronteiras. Em suma, a relação da China com o estrangeiro nunca foi monolítica, sendo necessário relativizar a existência de uma Chinese World Order imutável. Mesmo ao tempo dos Ming, o quadro não é muito diverso. No que diz respeito aos Portugueses, os trabalhos dos historiadores chineses, nomea damente de K. C. Fok, mostram como a sua presença no litoral chinês era assunto discutido em Pequim. Aliás, é de notar a quantidade de cópias, vertidas para português, de documentos produzidos em Pequim acerca de Macau e que se guardam nos arquivos portugueses. É de crer, claro está, que os originais chineses fossem em muito maior número.

Ora, não será essa preocupação da cidade com o político e com a comunicação política que leva a câmara a instituir, através de regimento, um organismo de intérpretes em 1627? É que em nenhuma outra cidade da Ásia marítima tocada pela presença portuguesa vemos nascer uma instituição deste tipo. Não terá sido fenómeno motivado pelo contacto permanente com realidades políticas cujo poder assentava em percentagem tangível na informação e que, por consequência, dependiam claramente dos especialistas da comunicação oral e escrita? A China possuía o Si-yi-guan, colégio de tradutores de Pequim onde trabalhavam homens habilitados a ler e traduzir documentos em várias línguas. No Japão, o fenómeno é de todo idêntico. Em Nangasaque, existia o To Tsuji (gabinete de intérpretes chineses) e o Oranda tsuji (gabinete de intérpretes holandeses), organismos muito activos na recolha de informações sobre a China. Exemplos que poderão ter influenciado a Câmara de Macau logo no início do século XVII.

E não será também por ter rapidamente entendido que, na China, os precedentes são mais importantes que os princípios legais, que uma das tarefas do escrivão da cidade fixadas pelo regimento de 1627 é defender Macau da burocraciachinesa, justamente brandindo o "costume antigo"? Questões que valia a pena aprofundar.

SISTEMA SOCIAL

Finalmente, importaria considerar a cidade enquanto sistema social. Trata-se de identificar redes familiares, solidariedades e clientelas, trata-se de esboçar biografias, partindo do princípio de que a biografia é um precioso instrumento da história social. Trata-se, enfim, de conhecer a oligarquia local durante o período considerado, pondo a claro a extensão do seu poder, saber quem domina a Câmara e a Misericórdia, conhecer os "homens práticos" nas relações com Cantão. Este tipo de análise tem conhecido progressos indiscutíveis para o quadro da História de Portugal, mas, para o caso de Macau, quase tudo está por fazer. Ao folhear-se a obra de Luís de Merino sobre idêntica problemática relativamente a Manila, compreende-se a dimensão do nosso atraso. Era necessário avançar para uma verdadeira história social de Macau, entendida como contributo para uma história social da expansão portuguesa no Oriente, que tem registado alguns progressos nos anos recentes.

Ao mesmo tempo que se analisa a fisionomia dos "homens graves" da comunidade portuguesa, seria interessante pôr a claro a composição étnica da população de Macau. Conhecer a eventual importância da comunidade japonesa. Identificar os grupos provenientes das cidades portuárias do "Mediterrâneo Sueste Asiático". Conhecer, acima de tudo, os caudilhos da comunidade chinesa, cuja influência se revela tanto em Macau como em Cantão. As fontes portuguesas referem--nos a espaços, como é o caso de um certo queve Fanu nos anos 30 do século XVII, apresentado como um verdadeiro power broker, ou um tal queve Bonquá,"o mais grave e rico morador" chinês de Macau na última década desse mesmo século. Mas um trabalho sério e suficientemente profundo só poderá nascer da conjugação dos testemunhos portugueses com a documentação chinesa relativa à província de Guangdong.

Finalmente, importaria conhecer a influência dos "chinchéus" em Macau, isto é, dos mercadores do Fujian, cuja ligação a Guangdong é plurissecular. As autoridades de Cantão deixam transparecer um enorme temor dos chineses provenientes daquela província e acusam amiúde os Portugueses de com eles estarem conluiados. Os "chinchéus" são, segundo os termos de um memorial que já citámos, as "suas unhas e dentes".

Espaço urbano, espaço político, espaço social. Três domínios de investigação onde muito há para fazer no que tange os primeiros 150 anos da história de Macau. Fundamentalmente é, no entanto, perceber que Macau não é uma realidade isolada, que se explica a si própria e se basta a si mesma. O conhecimento rigoroso da sua fisionomia nos séculos XVI e XVII vai de par com a sua inserção no quadro mais largo da expansão portuguesa no Oriente e, bem assim, com o estudo consistente do contexto local e regional em que a cidade se insere.

Poster RC-Mapa da Península de Macau,1646.

Pormenor de mapa da Foz do Rio das Pérolas In "A dvertências a el-rei D.

João IV por Jorge Pinto de Azevedo morador na China", Março de 1646.

(Biblioteca da Ajuda, Cod.54-XI-21Nō 9).

* Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Mestrando em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Assistente da Universidade de Macau.

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até a p.