Linguística

ALGUNS ASPECTOS DO ESPAÇO - TEMPO NA POESIA CLÁSSICA CHINESA

Yao Jingming*

1

Há mais de dois anos, o mestre Confúcio, sentado na margem de um rio, lamenta-se, com o olhar fixo nas ondas a fluir: O tempo foge tão rápido como as águas do rio, sem parar dia e noite.1 As águas do rio correm para a frente, no tempo, no espaço, no espaço-tempo. Não voltam para trás. O homem muda, envelhece com o universo. Ele é clepsidra biológica do tempo.

Ao longo da história chinesa, a questão do tempo sempre foi um alvo da reflexão de filosófos, letrados, poetas ou eremitas, que, conscientes da morte sucessiva do tempo, procuravam, em vão, uma maneira de poderem repousar numa paragem imutável desse mesmo tempo.

Esta consciência do tempo revela-se em relevo na poesia chinesa, constituindo uma forma de melancolia perene dos poetas e, simultâneamente, uma fonte inesgotável de lirismo. O sinólogo japonês Matsula Tomohiku ( 松浦友久) afirma: "O centro sentimental da literatura chinesa, especialmente a poesia, viria a formar-se pela reação sensível à mudança do tempo."2 De facto, o tempo é um dos temas mais constantes e contínuos que inspirou todos os poetas de todas as épocas. Cao Cao, influente político e poeta da Era dos Três Reinos (222-280), lamenta assim o carácter efémero da vida:

    Esta vida no meio de vinho e de canto, 
    quanto tempo dura? 
    Momentânea como orvalho da madrugada, 
     deixa-me sofrer do seu passar. 3

O poema de Cao Cao representa a atitude da maioria dos poetas em relação ao tempo. A consciência de que o tempo é irreversível, a vida é efémera, todas as pessoas estão condenadas ao mesmo destino final, tornou-os pessimistas. Eles sentem-se tristes com o que está a desaparecer.

Curioriosamente, a consciência objectiva do tempo desses poetas é figurada constantemente através dos versos relacionados com as estações. Matsula Tomohiku diz que "o tema sobre a mudança das estações e as imagens relacionadas com as mesmas constituem um aspecto indispensável da poesia chinesa..."4. Esta sensibilidade quanto às estações, para além de resultar das condições geográficas da China, onde cada estação apresenta características bem distintas, sendo a Primavera e o Outono relativamente curtos, deve-se ao facto de que os poetas chineses, como os seres mais atentos à comunhão com a natureza, relacionavam a mudança das estações com a existência humana e com a sucessão das dinastias. Em chinês, a palavra 春秋 (Chun Qiu, a Primavera e o Outono) é sinónimo da palavra "história" ou "tempo".

Assim, as estações, sobretudo a Primavera e o Outono, aparecem como temas constantes na poesia chinesa, condensando o olhar dos poetas sobre a circularidade do tempo. O tempo traz a morte mas também a vida. Por vezes, eles cantavam a força resistente da natureza:

    Densas as ervas na planície
         cada ano crescem e murcham. 
    O fogo na pradaria não destrói suas raízes, 
         as ervas renascem ao vento da Primavera5

No entanto, quando os poetas sentiam a incapacidade de parar os passos das estações, começam a lamentar-se, a suspirar, e até a derramar no papel de arroz algumas lágrimas. É o medo da morte das flores e da queda das folhas. É a pena pela irreversibilidade de um lindo período. É o choro pelo envelhecimento da vida. Curiosamente, o ideograma chinês 愁 (chou, melancolia) é composto de 秋 (Qiu, Outono) e de 心 (xin, coração). A Primavera e o Outono não só anunciam a passagem do tempo, mas também assinalam a alteração do espaço, constituindo deste modo um cronótopo. É o desabrochar das flores, o grito das andorinhas, o murchar das ervas, o vento a desfolhar as árvores, a geada a cobrir as escadas que marcam a metamorfose do tempo e do espaço:

    Flores de pessegueiros, de ameixoeira, tão breve! 
       Esvaem-se os dias, o homem mal se percebe. 
    Levantais-vos para dançar, 
       mas anoitece. 
    Vencidos pelo corroer dos anos? 
       Inútil suspirar, antes cabelos brancos!6

A par da Primavera e do Outrono, a lua e o crepúsculo são também dois símbolos muito significativos na poesia chinesa. É interesante notar que os poetas não eram muito atraídos pela magnificência do sol nascente, mostrando-se, no entanto, mais deslumbrados com a lua distante e o crepúsculo melancólico. A lua representa, por um lado, o símbolo da passagem cruel do tempo e, por outro, um universo supremo, distante e inatingível, onde se pode esquecer o calendário e se habita a imortalidade. Diziam que Li Bai, um dos grandes poetas da dinastia Tang (618-907), embriagado, teria morrido numa lagoa ao tentar abraçar a imagem da lua. O crepúsculo é outra imagem que levava os poetas a inserirem-se no espaço distante e num tempo tardio, atribuindo-lhes uma conotação trágica:

Trepadeiras secas, velhas árvores,

corvos no crepúsculo,

Uma ponte baixa, um riacho correndo,

algumas casas;

Uma antiga via, um cavalo magro,

o vento oeste,

O sol a pôr-se também a oeste.

E um viandante de coração destroçado

No limite do céu.7

Neste espaço-tempo de solidão, o sujeito cansado, sozinho, desapontado, vagabundeia pela via antiga que não o leva a destino nenhum. Tudo é impossível de vencer, porque já é hora do pôr-do-sol.

A preferência pela Primavera efêmera, o Outono deserto, a lua distante, o crepúsculo tardio, testemunham a consciência aguda dos poetas em relação à passagem do tempo, o seu carácter trágico e pessimista, pelo que raramente se ouvem ecos de alegria na poesia chinesa.

2

Lessing dizia que a essência da poesia é a acção, consistindo em representar acções sucessivas e progressivas8. Herder, por seu lado, defendia que a poesia não só pode evocar acções fechadas visando um fim, mas começos de acção, sentimentos; pode mesmo invocar quadros, porque é impossível eliminar da poesia elementos visuais9.

A observação de Lessing visa a poesia narrativa, negligenciando, portanto, a característica da poesia lírica. Na poesia narrativa ou épica, desenvolve-se de forma sucessiva uma acção num período definido de tempo. No entanto, a poesia lírica, apesar de agir também tanto no tempo como no espaço, dá menos importância à acção do que a poesia narrativa, que precisa duma definida ordenação temporal para a desenvolver.

Num país como a China, a que falta a tradição da poesia narrativa ou épica, a poesia, em vez de evocar acções, funciona normalmente como um meio de projectar as experiências vividas pelo poeta. W. Scott Morton dizia: "O verso chinês é uma poesia de estado de espírito"10. Ao contrário do lirismo ocidental que assume directamente a primeira pessoa e por esse meio faz falar o sujeito, a poesia chinesa faz o possível para esconder a subjectividade, deixando os objectos falarem em nome do sujeito. Por isso, a poesia chinesa, articula-se mais em função das imagens do que das acções. No entanto, essas imagens são projectadas pelo fio descontínuo, sem apoio de um discurso linear bem organizado.

"O Poeta Li Bai Recebe o Mandato do Rei", reprodução de pintura de ZHANG Yi, in Qing Jie Zhong Hua [ 情繫中華. (人物篇)], HK, Editora Han Rong ( 漢榮書局公司 ), p.77.

Nota-se frequentemente que o poeta não se desenvolve na sucessão do tempo, mas parte antes dum momento pontual, injectando a sua vivência para o espaço, que serve para dilatação desse momento. Vamos analisar um poema de Liu Zongyuan, poeta da dinastia Tang. Como mandarim honesto e leal, queria proceder à reforma na corte com vista a consolidar o domínio do imperador, o qual, desconfiado, não a via com bons olhos tendo desterrado o poeta para uma terra afastada da capital, onde escreveu este poema:

    Sobre mil colinas, nem um voo de ave. 
    Em dez mil veredas, vestígio algum de pessoas. 
    Uma barca solidária, um velho
         de capa e de chapéu de palha, 
    Pescando, solitário, na neve do rio gelado.11

Esta conhecida quadra descreve, do alto de uma montanha, uma paisagem de neve. Os primeiros dois versos descrevem o que o poeta contempla e imagina, por isso são mil colinas e dez mil veredas, construindo assim um espaço muito alargado que contrasta com a figura solitária do pescador. São apenas quatro imagens, mas já suficientes para destacar a sensação vivida pelo sujeito. E o tempo vivido pelo poeta não passa de um instante, que permite, no entanto, ao leitor penetrar num universo duplo: um, imenso, gelado, deserto; outro, escondido, invisível, em que se sente o palpitar do coração solitário do pescador/ poeta.

3

Sendo o chinês uma língua não flexiva, mostra, no entanto, muita flexibilidade no sentido da sintaxe e da morfologia o que permite omitir os pronomes pessoais. Esta possibilidade concedida pela língua faz confundir o sujeito e o objecto, contribuindo para estabelecer uma porosidade entre o poeta e o universo. Ao apagar ou esconder a presença dos pronomes pessoais, o sujeito interioriza os objectos e concretiza uma comunhão com o cosmos. Assim, o universo envolvente torna-se um espaço activo:

Solitários montes, ninguém à vista,

Ecos somente de vozes humanas.

Um sol tardio entra no bosque fundo

Brilha de novo o verde musgo.12

Esta quadra foi composta por Wang Wei, poeta e pintor da dinastia Tang que se ofereceu de todo o coração à natureza. Ele decreve um passeio na montanha, que é ao mesmo tempo uma experiência de comunhão com a natureza. Os versos deveriam interpretar-se assim: Na montanha vazia não encontro ninguém; só me chegam ao ouvido alguns ecos de vozes humanas. Mas pela eliminação do pronome pessoal e dos elementos locativos, o poeta coloca os montes como sujeito: são eles que não vêem ninguém e apenas ouvem ecos de vozes, assim se identificando com a natureza.

No chinês antigo (wen yan), a eliminação dos pronomes pessoais é frequente, e quase total na poesia que é regida pelas regras rigorosas da prosódia. A ambiguidade causada pela ausência desses pronomes nem sempre prejudica a compreensão, mas acrescenta muitas vezes mudanças subtis. Por exemplo, a omissão do sujeito faz com que este se possa libertar duma função determinada, convidando o leitor a entrar no seu espaço para compartilhar activamente da experiência:

O sono da Primavera ignora a aurora,

A toda a volta se ouve o cantar dos pássaros.

Noite passada: sussurro de vento e de chuva,

Pétalas caídas, quem sabe quantas...13

Este poema descreve a impressão de uma pessoa que dorme ao acordar numa manhã de Primavera. O leitor é convidado a entrar, ao mesmo nível, no estado da pessoa que acaba de acordar, e que se encontra ainda num estado de espírito confuso. O primeiro verso coloca directamente o leitor no plano do sono, um sono de pessoa ou de Primavera (a ambiguidade sintáctica possibilita essa sugestão). Os outros três versos representam, por seu turno, as três camadas de consciência da pessoa que dorme: presente (chilreada dos pássaros), passado (sussuro do vento e da chuva), futuro (lamento da Primavera passada e o vago desejo de descer ao jardim para contemplar as pétalas tombadas). Estas são as sensações de semi-consciência da pessoa que dorme, ou poeta, mas parece haver uma grande fusão de desejo, quer como poeta quer como leitor. Se o poeta dissesse: "Quando eu acordo na Primavera...", "Ouço à minha volta...", "Lembro-me...", "e pergunto-me...", veríamos então um poeta bem acordado e um pouco "afastado" do leitor.

4

Dado que a língua chinesa é uma língua não flexiva, como acima referi, e os seus verbos não são conjugados, é necessário introduzir elementos complementares, tais como advérbios, sufixos ou partículas auxiliares, para anunciar o tempo. Por exemplo: a frase em português fiquei doente é traduzida em chinês: 我病了 (wo bing le). Aqui o aspecto perfectivo é marcado pela partícula auxiliar 了 (le). No entanto, na poesia chinesa, é possível a omissão dos elementos indicadores do tempo, de modo a criar um tempo ambíguo em que se misturam o presente e o passado e onde o sonho se confunde com a realidade. Assim, "foi criada uma consciência do tempo absoluto em que a experiência pessoal ultrapassa o seu espaço-tempo próprio, ganhando assim dinamismo."14 Ao falar dessa característica da poesia chinesa, Ye Wei Lian, investigador americano de origem chinesa, afirma: "A ausência da conjugação verbal anulou a fixação da experiência de poeta num determinado espaço-tempo, isto quer dizer, na consciência dos poetas chineses, a experiência expressa por eles é perene e habitual, não devendo portanto ser delimitada num espaço-tempo fixo... Os tempos do presente, passado ou fututo são obrigatórios nas línguas indo-europeias e requerem um espaço-tempo fixo. No entanto, os verbos na língua wen yan (o chinês antigo) não intentam distinguir a existência subjectiva da objectiva, porque a existência não está condicionada pelo tempo já definido. A noção do tempo é imposta mecanicamente pelo homem à existência."15 Vamos observar o seguinte poema de Li Bai:

"O Ambiente Poético do Poema Jiang Jin Jiu [將進酒, Convite para o Vinho] de Li Bai", reprodução de pintura de Yang Chu, in Qing Jie Zhong Hua [ 情繫中華. (人物篇)], HK, Editora Han Rong (漢榮書局公司), p.104.
    Guo Jian, princípe de Yue, 
       regressou do destroçado reino de Wu. 
    Seus bravos soldados 
       vestiram sedas e brocados 
    As damas, como flores, 
       esperam os heróis no palácio da Primavera, 
    Hoje um montão de ruínas 
       sobre o qual esvoaçam bandos de perdizes.16

Eis a versão portuguesa de António de Abreu Graça. No poema original, os primeiros três versos, que não comportam qualquer indicador do tempo, relatam um acontecimento com quatro imagens, fazendo subentender que apesar de esse acontecimento ter passado, poderá ainda repetir-se em qualquer período da dinastia. No último verso, o discurso linear foi interrompido brutalmente com a introdução do advérbio "hoje". A dimensão espacio-temporal passa subitamente do passado para o presente, causando assim um salto no plano espacio-temporal. Com uma justaposição económica de imagens, o poeta fêz uma reflexão sobre a sucessão das dinastias através de um anacronismo.

"Pescador Sentado na Margem do Rio", reprodução de pintura de Zhang Huicheng, in Qing Jie Zhong Hua [情繫中華. (人物篇], HK, Editora Han Rong ( 漢榮書局公司 ), p.85.

5

A arte do paralelismo foi explorada ao máximo na dinastia Tang, tendo-se tornado um jogo complexo que faz apelo de todos os recursos da língua: fónico, gráfico, imaginário, idiomático.... Por um lado, o desenvolvimento do paralelismo deve-se à característica específica da língua chinesa, em que cada caracter é uma pronúncia monossilábica e quase todas as sílabas são significantes, possibilitando, desse modo, a composição dos versos com os mesmos caracteres. Por outro, a flexibilidade sintáctica torna possível o paralelismo. Além disso, numa perspectiva cultural, nota-se que os chineses sempre valorizaram a harmonia e o equilíbrio. Quer se trate de ordenar as relações dos homens entre si, quer de conciliar o homem com o ritmo do universo. O Dao De Jing (道德經; "O Livro/ O Clássico das Virtudes" ) diz: Todo o ser traz sobre si o yin e aperta nos braços o yang: o sopro indistinto constitui a sua harmonia.17 Do equilíbrio e da harmonia germina o vitalismo da natureza.18 A prática das artes constitui, portanto, uma aplicação suprema e empenhada desta missão: encontrar a harmonia nas coisas e pôr o universo em ordem. Essa vocação filosófica, que era ao mesmo tempo um ideal social, tinha vindo a influenciar profundamente a maneira de ser das pessoas, bem como a literatura, a arte, a arquitectura, etc....

A forma mais representativa da poesia chinesa é lu shi (poema regulado), que inclui vários estilos. Por exemplo qi lu, um destes estilos, compõe-se de oito versos, ou seja, de quatro dísticos, e cada verso comporta sete caracteres. Dentre os quatro dísticos, o segundo e o terceiro são obrigatóriamente paralelos enquanto o primeiro e último, que tratam de introduzir o tema e fechá-lo, respectivamente, não são paralelos. Exige-se que cada um dos signos dos versos paralelos solicite o seu contrário ou se completem. Nesta relação recíproca, o conjunto dos signos harmonizam-se ou opõem-se de modo a reforçar o mesmo sentido evocado pelo poeta. Vamos ver um poema de Du Fu, outro grande poeta da dinastia Tang:

    O vento cortante, o céu alto, os macacos
        rugem lamentos, 
    Na pequena ilha límpida de areia branca, 
    os pássaros voam, voltam em círculos. 
    O assobio ilimitado das folhas que caem 
    O grande Rio infindável que se aproxima, rolando. 
    Sou o viajante da distância infinita do triste Outono, 
    Cem anos, muito doente, só, subo ao terraço. 
    Na adversidade, no ódio amargo, abundam
    cabelo brancos, 
    Infeliz, no pavilhão novo, como um copo de
    vinho turvo.19

〔登高 杜甫**

風急天高猿嘯哀,渚清沙白鳥飛迴。

無邊落木蕭蕭下,不盡長江滚滚來。

萬里悲秋常作客,百年多病獨登臺!

艱難苦恨繁霜鬢,潦倒新停濁酒杯。〕

(in XU Yuan-zhong, LOH Bei-yei & WU Juntao (Eds.), 300 Tang Poems. A New Translation, The Commercial

Press, HK, 1987, 1996, pg. 185.)

A sua tradução literal é assim:

Vento cortante/céu alto/macaco/rugir triste

água límpida/areia branca/pássaros/pairar

sem limite/quedar/folhas/em rumorejo/abaixo

infinito/longo/rio/rolando/por aqui

10 mil li/lamentar outono/sempre/ser/visitante

cem anos/adoecer muito/sozinho/subir/terraço

difícil/amargo/ódio/abundar/cabelos de geada

infeliz/recentemente/não beber/vinho turvo/copo

"O Sentimento Poético de Jia Xuan", reprodução de pintura de Zhang Wei, in Qing Jie Zhong Hua [情繫中華. (人物篇)], HK, Editora Han Rong(漢榮書局公司), p.76.

Considerado muito rigoroso nas regras de prosódia, o poema descrevre a profunda tristeza vivida pelo sujeito ao contemplar a paisagem do Outono. O primeiro dístico começa com a primeira vista da paisagem outonal, e o segundo, feito de versos paralelos, lança a vista para longe, estabelecendo entre si uma relação complementar com uma série de imagens articuladas com os efeitos sonoros e visuais, como "sem limite" e "infinito", "folhas a cair" e "rio longo", "rumorejando" e "rolando", a fim de reforçar a tristeza do Outono. O tombar das folhas, rumorejando, transmite pelo ouvido e pela visão a solidão e a melancolia. O fluxo, rolando, do rio longo simboliza a fuga rápida e irreversível dos dias. Ao entrar no terceiro dístico, o poeta começa a introduzir o seu percurso pessoal, através do envolvimento no plano do tempo e do espaço. Aqui, dez mil li assinala o espaço em que o poeta arrasta uma vida errante enquanto cem anos exageram o longo período em que se encontra o estado espiritual e físico do mesmo. Além disso, o poeta explora, com muita habilidade, as palavras da mesma ordem sintagmática no mesmo nível paradigmático, tais como "entristecer-se com o Outono" e "adoecer com frequência", "sempre" e "sozinho ", "ser visitante" e "subir terraço ", nos quais existe uma relação contrastiva ou complementar. Constatamos que nos segundo e terceiro dísticos, cada um mantém uma ordem estática, mas a passagem de um dístico para outro está submetida ao desenvolvimento metamorfoseado. O último dístico do poema funciona, por sua vez, como ponto-chave de todo o poema, culminando com uma tristeza mais forjada. O poeta desesperado, pobre, doente, subiu ao terraço onde queria beber alguns copos de vinho turvo para apaziguar a tristeza. Mas a doença e a pobreza privaram-no desta última consolação.

François Cheng considera que "do ponto de vista linguístico, pode dizer-se que o paralelismo é uma tentativa de organização espacial dos signos no seu desenvolvimento temporal"20. Num dístico paralelo, não há progressão contínua de um verso ao outro; os dois versos exprimem ideias ou sugestões opostas ou complementares. O primeiro verso começa por uma ideia; o segundo aparece de forma simétrica para a confirmar ou reforçar. Estes dois versos que assim se correspondem formam um universo equilibrado, em que o poeta deve constituir a sua linguagem conforme a lei do espaço e do tempo. Isto quer dizer que num dístico, o poeta pode paralelar as palavras que pertencem ao mesmo paradigma temporal, tais como "ontem e hoje", "passado e presente", "de manhã" e "à tarde"; à mesma dimensão espacial, tais como "alto" e "baixo", "céu" e "terra", "longe" e "perto "; ou à mesma dimensão espacio-temporal, tais como "mil lis" e "cem anos", "longo caminho" e "curta noite". Assim, um dístico paralelo está inserido num sistema dialéctico fundado na temporalidade e espacialidade, que implicam uma relação contrastiva e complementar, de modo a permitir ao poeta exprimir e reforçar ao máximo a sua ideia.

6

Os pensadores chineses consideram que a infinidade dos fenómenos está em estado de fluxo perpétuo e a criação nasce da união das duas forças antitéticas ou complementares que constituem a diversificação do existir. O existir é ele próprio um produto do não-existir e busca neste o vazio onde germinam os fenómenos. Por isso, o existir só pode ser captado na sua falta, ou seja, no vazio.

A noção de vazio, que ocupa um papel importante na estética da China, tem influenciado alguns artistas ocidentais (Antoni Tàpies, por exemplo). É uma teoria que leva o artista a ultrapassar o espaço-tempo já definidos, deixando o vazio que oculta o virtual no seio da estrutura, a fim de poder dialogar com o indízivel ou invisível para além da obra. No discurso de um poema, devido ao vazio, os signos, desembaraçados da coacção unitemporal e unidimensional, deixam transparecer o que aparentemente está ausente e, de facto, profundamente presente. Mais do que transmitir uma imagem "cheia" e perfeitamente acabada, importa solicitar o esprírito de quem lê, deixando-lhe um silêncio ou uma "ausência" que dispõe de uma capacidade de sugerir:

    Os degraus de jade
    cobrem-se de geada branca. 
    O frio da noite
    acaricia suas meias de seda 
    Baixa então
    a cortina de pérolas cristal 
    e, através do límpido painel, 
    enleia seu olhar na Lua de Outono.21

[玉階怨 李白***

玉階生白露,

夜久侵羅襪。

卻下水精簾,

玲瓏望秋月。〕

(in XU Yuan-zhong, LOH Bei-yei & WU Juntao (Eds.), 300 Tang Poems. A New Translation, The Commercial Press, HK, 1987/1996, pg. 124.)

A sua tradução literal é assim:

    Escadas de jade/nascer/geada branca
    noite longa/penetrar/meias de seda 
    baixar/painel de cristal 
    transparente/olhar/lua do Outono 

Este poema de Li Bai tem por tema a espera de uma mulher (foi identificada pela palavra 'meias de seda') durante a noite. Os degraus da escada, já coberta de geada; o frio a penetrar as meias; a espera que é longa. Mas a pessoa acabou por não aparecer, e ela não pode fazer nada senão retirar-se para o quarto onde deposita a sua saudade na lua distante. O poema é ambíguo até certo nível, visto que o sujeito pessoal e os elementos narrativos são apagados. Quem fala, o poeta ou "ela"? Por quem espera a dama? Pelo marido, pelo namorado ou pelo imperador (os degraus de jade indicam um invulgar estatuto social da mulher)? A palavra "transparente" descreve a Lua do Outono, a mulher, ou as duas? O poeta deixou muitos "espaços brancos" para o leitor preencher. Através de uma série de imagens bem significantes, que progridem num discurso momentâneo, o poeta faz explodir a linguagem na dimensão espacial, deixando muito por dizer. Porque o essencial é indizível.

Revisão de texto de Manuel Afonso;

revisão final e transcrição

dos poemas originais de Fátima Gomes.

**Por fidelidade ao critério de rigor científico que orienta a "RC", transcreve-se o original do poema a seguir em análise.-N. E.

NOTAS

1Confúcio, Analectos[論語].

2Matsula TOMOHIKU, Teoria da Poesia Chinesa, Ed. da Província de Liao Ning, 1992, p. 17.

3Antologia da Poesia Chinesa, Ed. das Obras Clássicas, 1986, p.45.

4Idem, p.4.

5Poemas de Ba Juyi, trad. de António Graça de Abreu, ICM, 1991, p.53.

6Poemas de Libai, trad. de António Graça de Abreu, ICM, 1990, p.259.

7Poema de MA Zhiyuan, in Uma Antologia de Poesia Chinesa, trad. de Gil de Carvalho, Assírio & Alvim, 1989, p.123.

8Raymond BAYER, História da Estética, Editorial Estampa, p. 194.

9Idem, p.292.

10W. Scott MORTON, China, História e Cultura, Zahar Editores, p. 106.

11Idem, p.93.

12Idem, p.67.

13Poema de MENG Aoran, in Dicionário da Poesia da Dianstia Tang, Ed. de Yanshan, 1996, p. 113.

14SHAO Yiping, A Sabedoria da Poesia Chinesa, Ed. da Província de Zhengjiang, 1991, p.69.

15YE Wei Liang, Estudo Comparativo da Literatura Clássica Chinesa, Ed. Aurora, 1977, p. 191.

16Idem, p. 114.

17LAO Tse, Dao De Jing.

18HUAI Nan Zi, Tian Wen Xun.

19Deng Gao, trad. de Li Ching, "Revista de Cultura", ICM, No.25, p.99.

20François CHENG, A Escrita Poética Chinesa, "Revista de Cultura", ICM, No.25 (II série), p.37.

21Idem, ib., p.44.

*** Cf. N. E. na pg. 205.

*Licenciado em Língua e Cultura Portuguesas pelo Instituto de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim, é actualmente docente no Instituto de Estudos Portugueses da Universidade de Macau. Publicou em português dois livros de poemas: Nas Asas do Vento Cego (Lisboa, 1990) e (Com) fluências (Macau, 1997, de parceria com Jorge Arrimar).

desde a p. 207
até a p.