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ERÉDIA- Um Português de Malaca*

JoãoC. Reis**

Há mais de um século, e duzentos e quarenta anos depois da sua morte, em 1863, foi (re-)descoberta para o mundo da História a figura singular do português, natural de Malaca, Manuel Godinho de Erédia, dado, então (1861), e de seguida por isso contestado, como o primeiro navegador de um país europeu a chegar ao continente australiano, supostamente em 1601.

Viva controvérsia provocou esta questão, não apenas quanto à descoberta da Austrália, entretanto outorgada aos holandeses (Jantzsoon, em 1606) e, por ocupação e posse (da costa oriental) ao inglês James Cook ali chegado em finais do século xvIII (1770) mas, igualmente, em relação a um homem que reaparecia como um náufrago, da maré baixa do tempo -- o qual, nem sequer dos seus contemporâneos, lograra grande apreço e credibilidade.

A polémica arrastar-se-ia por mais de dez anos, ao fim dos quais um consenso formal ficara tacitamente estabelecido. Ao contrário do que havia sido proclamado, Erédia não fôra, afinal, nem um herói, nem um descobridor fosse do que fosse, nem um cartógrafo idóneo, e muito menos um navegador. Na realidade, não passara de um homem apagado e medíocre, estulto divulgador de lendas absurdas, copiador pouco hábil e canhestro de mapas holandeses e ingleses, e até javaneses... créu ingénuo das fantasias atribuídas a Marco Polo -- impossível, pois, por tudo isto, que se houvesse antecipado aos holandeses e ingleses no achamento da famosa Ilha do Ouro, na Índia Meridional.

Nestes termos tendenciosos e estreitos foi a memória de Erédia aferida e maltratada, ampliando-se eventuais lapsos ou pequenas inexactidões, quasí sempre de pormenor, da sua escrita, sobretudo da sua cartografia, para denegrir uma pessoa morta, taxada de inverídica, pouco escrupulosa, e ignorante -- ostensivamente se omitindo, particularidades marcantes da sua personalidade, ou desconsiderando facetas positivas, que as teve, na área das diversas actividades e missões que desempenhou.

De resto, estarão ainda por determinar, com rigor, se as inexactidões cartográficas imputadas à sua responsabilidade, não foram, antes, erros de transplantação, ou de cópia, de documentos mais antigos, muitos dos quais, é sabido, porque o deixou dito, ele viria a aperfeiçoar, corrigindo anomalias e defeitos, acrescentando-lhes novos informes, fixando pormenores que não eram conhecidos antes dele.

Não deixará, aliás, de ser significativo, e vir a propósito referir neste continuado, os seus objectivos ao sair do Colégio dos Jesuítas de Goa, em 1580, de "reformar as antigas descrições do mapa-múndi e Teatros, com novas descrições do Cathai e da Índia Meridional" ou seja a Austrália. Não se pode passar por cima deste pormenor cronológico que nos dilucida de uma aquisição de conhecimentos existentes, seguramente, no cartulário, e ou, junto dos cartógrafos seus professores no estabelecimento de ensino que frequentou, de uma região de que não poderia, vinte anos mais tarde, arrogar-se seu descobridor, conforme a acepção da palavra que depois se assumiu. E já se verá como aquele jovem de dezassete anos seria um aluno atilado e aplicado.

E de uma coisa não se pode acusar a Companhia de Jesus, a de alheamento do progresso das navegações, e de incompetência cartográfica dos missionários que, não raramente, acompanhavam as naus das descobertas e conquistas, além do acesso fácil e permanente que desfrutavam junto da estrutura do poder, mantendo, desse modo, sempre actualizados os conhecimentos de tudo quanto se descobria. Não lhes seriam alheias, portanto, as notícias das viagens de António de Abreu e Francisco Serrão, de Diogo Pacheco, Cristóvão de Mendonça, Gomes Sequeira, Gabriel Rebelo e todos os outros que sulcavam e sulcaram os mares do Sul, desde 1511.

O desapego que a crítica histórica do século xIx evidenciou em relação a este português de meia-casta, além da injustiça que isso representava, dada a valia verdadeira dos seus atributos, e de que nos deixaria em obra, por vezes, não bem conseguida, perfeita, e de acabamento não tão bom como a de alguns dos seus contemporâneos, como Lázaro Luis e Fernão Vaz Dourado, por exemplo, em todo o caso, trabalho de indiscutível merecimento, emerge, senão no todo, pelo menos em parte substantiva, de um pragmatismo enviesado, por consequente-mente falso, de quem, sem outra razão senão a mesquinhez de carácter e uma balofa vaidade, pela vez primeira, raivosamente, o agravou.

Com efeito, no juízo que dele então se fez, e ainda hoje, por arrastamento e indiferença geral, se faz (pudera, um medíocre e um impostor!), é posto em realce muito menos o homem que ele foi, e o trabalho que produziu, do que o causador de uma gaffe escriturada por um enfatuado crítico britânico que, por a si próprio se haver equivocado na leitura menoscaba de um mapa, e da interpretação precipitada e desacautelada que dela extraiu, responsabilizaria acintosamente o cartógrafo de Malaca, do seu erro, com despeitadas manifestações de áspera represália.

Daqui, a generalização de uma crítica, mesmo, ou principalmente, de autores nacionais, onde a menos má classificação que se lhe atribui é a de simplório e ingénuo, medíocre fantasista, que inventava lugares e nomes numa cartografia sem credibilidade.

A desacreditação da obra, pois, e o amesquinhamento do seu autor, desenvolveram-se muito mais na intenção de desagravarem da gaffe em que incorreu o historiador londrino do que por ausência de carácter, e demérito dos trabalhos de Manuel Godinho.

Quase tudo quanto, com efeito, sobre ele veio depois a escrever-se, partiu daqui.

Passou-se o caso com o bibliotecário da Sala de Cartografia do Museu Britânico, Richard Henry Major, autor consagrado de diversas comunicações históricas relacionadas com docu-mentos daquele arquivo, e de um famoso livro sobre The Prince Henry, The Navigator, e os descobrimentos marítimos portugueses. Que ele tinha virtudes de historiador e méritos de escritor, ficou patenteado neste livro, de resto bastante lisongeiro para a nossa Nação, e que introduziu na extensa comunidade de língua inglesa, de uma forma apologética, diga-se, a fama das nossas navegações -- circunstância que, aliada à elevada posição que desempenhava no British Museum, fez, neste contencioso espúrio, pender para o seu lado a simpatia de parte da crítica histórica nacional, em desfavor daquele pobre diabo malaquiano.

Richard Major encontrou um dia nos arquivos do Museu um mapa no qual se inscrevia uma legenda outorgando a Manuel Godinho de Erédia a primazia da descoberta de Luca Antara em 1601. Luca Antara, pela situação geográfica apontada a 16° graus de latitude meridional, era, sem qualquer resíduo de contestação, a Austrália. Exultou Major, que se deu pressa de fazer da sua descoberta pública comunicação. Tendo estudado os tiques da sua pessoa, a fórmula das suas comunicações, o tom empolado do seu discurso, o historiador australiano, Kenneth Gordon Mclntyre, no seu esplêndido livro A Descoberta Secreta da Austrália (versão portuguesa em Macau, 1989), dramatizou a revelação nos termos que lhe eram usuais:

"Há dias descobri no Museu Britânico um mapa-mundo manuscrito com uma costa e a inscrição 'Luca Antara foi descoberta no anno 1601 por Manuel Godinho de Erédia'... anunciou, para saborear o impacto daquela esplêndida surpresa. E depois de uma pausa, repetindo uma fórmula favorita, volveria dramaticamente: Há dias descobri um documento no Museu Britânico que inequivocamente transfere aquela honra da Holanda para Portugal. O facto de a Austrália ter, na realidade, sido descoberta há mais de sessenta anos antes (está a referir-se à prova dos mapas de Dieppe) e muito provàvelmente pelos portugueses, não elimina, penso eu, a importância deste facto adicional, de que a primeira viagem de que há conhecimento, a que se pode atribuir a data e o nome de um descobridor, foi feita pelos Portugueses em 1601."

Entre parêntesis deve dizer-se que o facto, tal como Major o apresentou, e em relação à reivindicação holandesa, foi verdade ontem, e continua a ser verdade hoje. Na realidade, o primeiro documento que se conhece, embora não prove aquilo que Major pensava, sobre a descoberta da quinta parte do mundo é de uma carta, e o que se possa entender da Declaração de Malaca que Erédia deixou. No entanto houve quem lá chegasse oitenta anos antes dele, já que existem indícios e demonstrações importantes que corroboram a hipótese colocada por Gordon Mclntyre de ter sido Cristóvão de Mendonça que, à frente de uma armada (conforme uma relação de 1523) foi, em 1521, àquela descoberta, sem que, todavia, a houvesse deixado registada. Por outro lado, estudos de um filólogo alemão (Karl Brandstein, "Boletim do Museu da Marinha de Macau", 1989) na costa noroeste do continente, demonstram, à saciedade, uma assimilação significativa, por tribos nativas da região, de palavras, e de uma arquitectura sintática de raizes portuguesas, ali introduzidas por marinheiros nossos, naufragados na primeira metade do século xvI, o que se compatibiliza, em termos de tempo e lugar, com a navegação de Cristóvão de Mendonça. Em todo o caso, a despeito de todas as probabilidades jogarem a favor da prioridade de Mendonça, a verdade é que, além da relação citada, de 1523, não se encontrou ainda um documento comprovativo desta versão. Sem contar tudo o que os mapas, ou cartas de Dieppe, como contrafacções de cartas portuguesas mais antigas, possam inequivocamonte, demonstrar.

Entretanto, à declaração bombástica de Major seguiu-se a inesperada revelação da existência, na Biblioteca Real de Bruxelas, de uma "Declaração de Malaca e da Índia Meridional com o Cathai", em III Tract: Ordenada: por: Emanuel: Godinho: de: Erédia, dirigida: a: A. S. C. R. M. de D. Phel: Rey: de: España: (ulteriormente publicada em Bruxelas em 1881), onde o seu autor relata com toda a singelezacomo estava para ir, mas depois não foi ao descobrimento da Ilha do Ouro, na Índia Meridional.

De tal modo ficou Major abalado, e ressentido, com esta revelação, sentindo-se assim, redondamente enganado, e ignominiosamente humilhado, que, num penoso ungido, amesquinharia o português e as suas cartas, que o haviam induzido no execrável erro-passando a renegar o que antes dissera nos seus livros e proclamações de enaltecimento das glórias portuguesas.

"Vejo agora -- dizia -- que as supostas palavras portuguesas [dos mapas de Dieppe] são de facto palavras vlaamsch [dialeto francês medieval]. Rejeito, portanto, tudo quanto anterior-mente escrevi, e não acredito mais na descoberta da Austrália pelos portugueses."

Abyssus abyssum invocat!

Major voltou a enganar-se, a si próprio, e nos juízos que enconapou, demonstrando à evidência que não era, realmente, na verdadeira acepção do conceito, tão bom historiador, como de si próprio se julgava, mas impetuoso e desacautelado utilizador de factos e documentos a que, circunstancialmente, tivesse acesso.

No entanto, pode dizer-se que esteve mais próximo, do ele pensaria depois, da realidade, nas suas primeiras elucubrações sobre uma viagem de Erédia à Austrália, do que quando a abjurou, na sua patética palinódia.

A verdade é que Erédia escrevera antecipadamente, na legenda de uma das suas cartas dos mares do sul, que fora à descoberta da Ilha do Ouro, a mando do vice-rei Aires de Saldanha, quando, afinal, acabara por não seguir viagem por ter sido, entretanto, mobilizado para as guerras dos holandeses e populações nativas levantadas, de Malaca. Foi ele próprio que honestamente o confessou. Sabe-se que, entretanto, Erédia chegou a comandar uma flotilha de navios vela-remo para neutralizar os sublevados, ao longo da costa, donde se conclui que, além de outros méritos, também tinha conhecimentos práticos de navegação. Este pormenor é importante, quando parece duvidar-se, da sua capacidade de ir e voltar nos mares do sul.

A circunstância de ter sido impedido de seguir viagem naquela altura não invalida, porém, que o não tenha feito em outra ocasião, conforme, aliás, disso, se pode depreender da sua cartografia de antes, e depois. Antes de ter ido, e depois de eventualmente ter conhecido, de visu, o noroeste australiano, ou seja, Luca Antara dos seus mapas, ou Ilha do Ouro.

A chave da questão que induziu Major no seu erro foi a interpretação que tirou da expressão "descoberta-descobrimento".

Descobrir, naquele tempo, não tinha apenas o valor que normalmente se lhe atribui. A palavra correspondente ao acto de descobrir novas terras, etc., era achar, ou achamento. Quando Álvares Cabral mandou avisar D. Manuel que tinha dado com o Brasil, a carta que Vaz Caminha escreveu para Lisboa tomou o nome de Carta do Achamento, e não carta do descobrimento. Descobrir, ou ir ao descobrimento, era fazer o reconhecimento do interior, ou, como já diz Erédia, do sertão. Era o que ele pretendia fazer. Fixar-se no território, como capitão, e fazer um reconhecimento de recursos, designadamente, minerais, actividade para que se achava pessoalmente habilitado, depois de haver feito prospecções de ferro e outros metais, em Goa e demais territórios e faria depois em Malaca. Não tinha na sua ideia ir ao achamento de uma terra que ele sabia de antemão que já existia. É ele quem propriamente o diz, ao sair do Seminário dos Jesuítas de Goa, em 1580, propondo-se nessa altura (tendo apenas dezassete anos) "reformar as antigas descrições do mapa-múndi e Teatros com novas descrições e corografias do Cathai e da Índia Meridional". Se este pormenor não tivesse escapado ao desatento investigador londrino, teria ele evitado o dissabor de ter de se desdizer, e, fazendo-o, mostrar um carácter rancoroso, a mesquinhez de pessoa que sempre tem necessidade de responsabilizar outrem pelos seus próprios erros (neste caso quando o acusado havia já morrido).

A partir daqui, muita coisa se precipitou, textos que se escreveram, comunicações que foram feitas, análises, estudos e críticas, e, extraindo-se de tudo um inventário, chega-se a uma conclusão calamitosa: desde impostor a simplório e visionário de maneira (mente) confusa, inverídico, de tudo o chamaram. Oliveira Martins, porque ele era mestiço, portanto, português de sangue não puro, foi mais além, fez tese de uma dicotomia espúria, das raças (arianas) superiores e os das raças (não arianas) inferiores, considerando a miscigenação como uma afronta, forma degradante de aviltamento, intelectual e moral, biolȯgicamente quase como que um regresso às origens.(9)

A história, em Erédia, começa, pois, por assim dizer-se, com, e por, Major.

Apesar de ter deixado um espólio de cerca de mil cartas, ou representações geográficas, seguramente, o cartógrafo nacional que maior número de trabalhos deixou, entre dois atlas, ou livros de fortalezas, retratos, brasões hieráldicos, demonstrações de tipos humanos, plantas, etc., ninguém mais, antes do "afortunado" investigador britânico, dera conta da existência do cartógrafo.

Foi, assim, sir Richard Henry Major, de resto, já antes autor do citado livro bastante bem feito, e altamente lisongeiro para os portugueses (The Prince Henry, The Navigator) e daí a fama granjeada, que, em 1861, anunciaria urbi et orbi, o seu achado:

"A descoberta autêntica da Austrália --escreveu Major --isto é, feita por um navio, ou navegador conhecido, no estrito sentido da palavra, foi, até recentemente, suposto ter sido realizada em 18 de Novembro de 1605, pela nau holandesa 'Duyfhen' despachada de Bantam para explorar a ilha da Nova Guiné, e navegar ao longo daquilo que se pensava ser a parte oeste daquele território, a 19°3/4 de latitude.

No anno de 1861, porém, tive a boa fortuna de deparar com um mapa-múndi manuscrito, existente no Museu Britânico, o qual me levou a concluir que a primeira autêntica descoberta da Austrália ocorreu em 1601, e a transferir essa honra dos holandeses para os portugueses, que efectivamente ali chegaram em primeiro lugar cerca de setenta anos antes -- a despeito de não ser conhecido o nome do navegador ou do barco a quem devesse ser creditada.

No mapa-múndi em questão estava delineada a porção noroeste da Austrália, e, no extremo norte, a seguinte legenda:

"Luca Antara foi descuberta o anno 1601 per Ma noel (sic) Godinho de Evedia (sic) per mandate (sic) do Vico (sic)Rey Aives (sic)de Saldana (sic)".

Infelizmente, como compreendi de uma carta endereçada a Navarrete pelo Visconde de Santarém, em 1835, o mapa era aparentemente uma cópia de um atlas feito no século XVII por um Teixeira (de facto, João Teixeira Albernaz II) e daqui os erros marcados por "sic".

O nome de Luca Antara é apresentado no mapa de Java, de Stamford Raffles, aplicado à ilha de Mavura, a nordeste de Java, mas, como essa ilha é perfeitamente identificada no mapa-múndi referido, torna-se evidente que não existe qualquer erro relacionado com o assunto.

E que o País delineado é, na verdade, a Austrália prova-o a segunda legenda, abaixo da anterior: "Terra descuberta pelos holandeses a quem chamaram Enduach (sic), ou Concórdia. Eendraghtland, como a conhecemos, foi o nome dado a um largo trato da costa oeste da Austrália, descoberta pelo navio holandês Eendraght, em 1616. Sendo este mapa uma cópia, pode objectar-se que a importante legenda, declarando a descoberta em 1601, possa ter sido uma espúria inserção ulterior.

O padrão de J. T. Albemaz, copiado de um original de Erédia, que deu origem ao "Mapa de Londres".

Mas, para justificar semelhante asserção, necessário seria fundamentar o motivo pelo qual se desejaria passar a honra da primeira e autêntica descoberta da Austrália da Holanda para Portugal. Desta forma, seria natural supor-se que o falsificador fosse português. A isto respondo que apesar de todas as indicações do mapa serem escritas em Português, a cópia foi feita por pessoa que não só não era portuguesa, como desconhecia a língua portuguesa. Por exemplo, a legenda referida, num texto tão pequeno, contém nada menos do que cinco erros, todos demonstrativos de desconhecimento da língua. Assim, escreve "Mano" "el" por Manoel, "Evédia" por Erédia, "de" por do, "Aives" por Aires, "Saldana" por Saldanha, sem o circunflexo (?) a implicar a abreviatura.

Além disso, se atribuirmos a tal suposta falsificação o objectivo de uma ulterior reinvindicação, por parte de Portugal, da prioridade na descoberta, então porque razão não foi apresentada essa reinvindicação?

O facto tornou-se conhecido apenas em 1861, e por meu intermédio, e mesmo aqueles que mais se interessam pelas antigas glórias da Nação Portuguesa ignoravam esta descoberta a qual é revelada pelo mapa referido.

Que o assunto nunca se tenha tornado notório pode explicar-se pela relativamente pequena importância que no tempo se concedeu à descoberta, e ainda ao facto de os portugueses se encontrarem, no momento, em fase de recessão, sem condições, portanto, para repetir a expedição àquele território, como os holandeses acabariam por fazer depois.

A especulação sobre o mapa pode ainda ser mais rebuscada, se admitirmos que a data da descoberta possa ter sido descuidadamente truncada, isto é, errȯneamente copiada fazendo 1601 de 1610.

Felizmente, a correcção da data pode ser provada, além de qualquer controvérsia. Está claramente referido que a viagem foi feita por ordem do vice-rei Aires de Saldanha, cujo período de governação na Índia foi de 1600 a 1604, anterior à primeira chegada dos holandeses, o que elimina, portanto, a hipótese do erro posto por suposição.

Além do mais, se a legenda em questão não é cópia genuína de um genuíno mapa mais antigo, como chegou o moderno falsificador a saber o nome do cosmógrafo real, que vivia em Goa, no período que condiz com o estado da descoberta geográfica representada no mapa, mas sem que algum dos manuscritos fosse impresso, ou inserisse a legenda espúria?

Penso que estes argumentos são conclusivos no estabelecimento da legitimidade da moderna cópia do antigo mapa.

Em relação ao descobridor, Manoel Godinho de Erédia (ou Herédia, como foi escrito por Barbosa Machado e por Figanière) encontrei o seguinte trabalho de sua autoria: História do Martírio de Luiz Monteiro Coutinho, que padeceu por ordem do rei Achem Raiamancor, no anno de 1588, e dedicado ao Ilustrissimo D. Aleixo de Menezes, Bispo de Braga, com dedicatória datada de Goa, aos 17 de Novembro de 1615, fls. ms. com várias ilustrações. Barbosa Machado chama-lhe distinto mathemático; e Figanière, "um cosmógrafo residente em Goa"(1)

Conclui-se, como mais provável, que o mapa original tenha sido feito por ele. A cópia veio de Madrid e foi comprada pelo Museu Britânico em 1848, ao senhor Michelena Roxas. É do maior interesse tentar descobrir-se, no futuro, a existência deste mapa original, esteja ele na Biblioteca de Madrid, ou em qualquer outra, para ser objecto de futura investigação."

Transcreve-se neste continuado, da Informação da Áurea Chersoneso, ou Peninsula e das Ilhas Auríferas, Carbúnculos e Aromáticas, ordenada por Manuel Godinho de Erédia, Cosmógrafo, o seguinte capítulo, que, por mais fácil de passar, e menos susceptível de erro de cópia, se tira, aqui, do próprio original, e não do extracto que dele fez Majar:

ILHA DO OURO

"Os pescadores lamacheres da Ilha Solor, estando eles na sua pescaria, lhes sobreveio um temporal tão grande que totalmente não puderam eles voltar, e por isso seguiram o ímpeto do temporal, que foi tal, que em cinco dias os levou à Ilha do Ouro, que está plantada no mar contra a costa, ou costa de fora de Timor, que propriamente se diz a costa meridional. E tanto que os pescadores chegaram à terra do ouro, pretenderam buscar mantimentos, por quanto eles não comeram naqueles dias de temporal. E foi afortuna deles tão feliz, e próspera, que estando eles escavando a terra para buscar inhames, e batatas, acharam tanto ouro que encheram a sua embarcação, até ela não poder sofrer mais carga. E depois da aguada feita com mantimentos necessários para voltar à sua natural pátria, esperaram por outro temporal em contrário, e com o tempo se apartaram da dita Ilha do Ouro, até chegar a Ende Grande, onde desembarcaram todo o seu ouro, que fez assaz inveja aos endes. E por isso os mesmos endes, com os pescadores lamacheres, quiseram secundar a viagem, e estando eles todos para partir, assim os endes, como os lamacheres, lhes sobreveio um receio tão grande, que não se atreveram, por ignorância, atravessar aquele mar de ouro.

E parece que aguarda Deus todo poderoso para o cometer Manuel Godinho de Erédia-Cosmógrafo, por ordem do felicíssimo senhor Conde Almirante e vice-rei da Índia, intra e extra Ganges, para o dito Erédia ser instrumento de poder acrescentar novos patrimónios à coroa de Portugal, e poder enriquecer ao dito senhor conde, a nação Lusitânica. E por isso devem todos agradecer este assinalado serviço, ao menos o dito senhor, pois do bom sucesso merecerá ser um dos mais felizes e ditosos do mundo, para glória de Portugal. Por onde em todo o caso por muitas razões deve ser bem provido o descobridor para a empresa do ouro.

Primeiro. Por causa da primeira posse para a coroa de Portugal.

Segundo. Pelafacilidade do descobrimento do ouro.

Terceiro Por causa das minas de ouro serem as maiores do mundo.

Quarto. Por o descobridor ser douto cosmógrafo.(2)

Quinto. Para de caminho averiguar as descrições das Ilhas Austrais.

Sexto. Por causa da cristandade.

Sétimo. Por o descobridor ser um astuto(2) capitão, que pretende fazer grandíssimos serviços a el-Rei de Portugal, e ao felicissimo Dom Francisco da Gama, almirante e vice rei das Indias intra e extra Ganges, e possuidor do ouro, carbúnculo e especiarias do Mar Oriental de Portugal."

"Muito pouco proveito se tirou ainda desta narrativa coeva da viagem-prossegue Major-a qual a descoberta seria pela primeira vez anunciada, por intermédio de um mapa -- facto que só dificilmente se poderia encontrar noutro documento, que não este.

Nele apresenta-se-nos Manuel Godinho de Erédia como cosmógrafo conhecedor, e experimentado navegador, que recebeu a missão especial de fazer a exploração de minas de ouro, e, ao mesmo tempo, de verificar as descrições das ilhas meridionais.

A ilha de ouro foi descrita como estando na "costa oposta, ou costa longínqua, de Timor, à qual propriamente se chama costa meridional".

É bastante provável que esta descrição corresponda a Luca Antara do mapa do Museu Britânico, localizada a sul da costa de Timor.

É ainda mais notável verificar que, pela força dos factos, o período de comissão cedido a Erédia seja correspondente à data da descoberta anunciada da Austrália. O vice-rei Francisco da Gama, que concedeu a provisão, foi o imediato predecessor de Aires de Saldanha. O período da sua governação estende-se apenas de 1597 a 1600, e a anunciada descoberta foi conseguida em 1601, não se sabendo, portanto, qual mês. Mais feliz confirmação de uma descoberta, apenas fixada num mapa, não podia haver.

Mas tudo, não obstante a sua importância, e estar longe de ser irrelevante, é uma diversão da maior importância da história narrada através de valiosos mapas manuscritos do século XVI.

Acontece, singularmente, que em sete mapas, cinco deles conservados em Inglaterra e dois em França, logo abaixo de Java e separada desta ilha por um estreito de pequena largura, se representa uma terra de largas proporções, distendida até aos limites espaciais das cartas. A primeira delas, na qual está fixada a data da sua execução, consta de dois mapas de um atlas, desenhado em 1542, por um francês chamado Jean Rotz, que o dedicou a Henrique vIII de Inglaterra (Nota: são os chamados mapas de Dieppe).(12)

Um outro, anónimo, e sem data, será provavelmente anterior, no tempo, embora as armas do Delfim que o enfeitam, possam sugerir ter sido desenhado durante o reinado de Francisco I, de quem o Delfim, depois Francisco II, era filho. Ambos, a carta e o atlas de Rotz, estão no Museu Britânico.

Como todos os restantes contam a mesma história, não se torna necessário fazer-lhes referência particular. Os dois selecionados são suficientes para a nossa consideração sobre quão grande era a terra delineada a sul de Java, quem foram os seus descobridores, e o período aproximado da sua descoberta.

No mapa do Delfim, essa grande terra é chamada Java a Grande, e no mapa de Rotz, "a terra de Java", distinguindo-se uma ilha mais pequena designada por Java Menor.

1 -- A primeira questão que naturalmente se levanta é a de que distância corresponde, em latitude/longitude e contornos, àquilo que conhecemos hoje por Austrália.

No que respeita à latitude: em todos os referidos mapas toma-se por correcta à latitude do norte de Java, a qual constitui um ponto de referência. A costa sul de Java Menor, apesar de separada de Java Maior por um estreito canal, não tem nome, interditando-se, assim, a respectiva identificação.

Os mapas mostram claramente que era desconhecida uma eventual conotação entre as duas. Felizmente o mapa de Rotz constitui uma excepção, em relação aos outros, num único aspecto: enquanto as outras associam uma vasta ilha a um grande continente, que ocupa toda a parte sul do globo, desde a Ilha do Fogo à terra chamada Magalhanica (Terra de Magalhães), o mapa de Rotz mostra os graus de latitude que era suposto limitarem as costas ocidental e oriental, e, pelas indicações nele referidas, é-se levado naturalmente a concluir que a descoberta pode ter ocorrido antes de 1542, data deste mapa.

Do lado ocidental da linha da costa, constata-se a latitude de 35°, no local exacto da ponta sudoeste [erro, é noroeste] da Austrália. Na costa oriental, para os portugueses a porção mais afastada da investigação, subsiste uma grande incerteza, terminando a linha da costa nos 16°, um paralelo que vai além do representado a sul, até mesmo da ponta mais a sul da Tasmânia, a qual está a 43° 35', havendo ainda razões para supor que a costa leste da Tasmânia esteja dentro desta linha.

Quanto à longitude, pode constatar-se que, não existindo outro país senão a Austrália, entre os mesmos paralelos e com a mesma extensão, entre a costa de África e a costa ocidental da América, conclui-se que é mesmo a Austrália que fica entre os mesmos meridianos, como grande massa de terra aqui fixada,

Existem ainda diversos pontos a considerar.

Relativamente à costa ocidental, um simples olhar é suficiente para detectar anomalias concretas. Do lado oriental, como poderia esperar-se, as discrepâncias são maiores, e dentre elas, nada maior do que o grande número de ilhas e rochedos existentes ao longo da costa nordeste, coincidentes com a Barreira dos Grandes Rochedos e com as ilhas de Cumberland e Northumberland, e outras, que bordam e protegem as praias desta parte da Austrália.

2 -- Sendo, portanto, indubitável que esta terra tão vasta seja a Austrália, haverá que determinar quem foram os seus descobridores.

Os mencionados mapas são todos franceses e todos se repetem, com ligeiras variações, a partir de uma mesma fonte, facto provado pelas inexactidões comuns a todos.

Todavia, apesar de franceses, existem diversas indicações portuguesas em alguns nomes, como Tierra Enregade, forma galaica de Tierra Anegada, isto é, terra submersa, ou baixios, Graçal e Cape Fremose. A questão que se levanta é: foram os franceses ou os portugueses os descobridores? Em resposta, apresento a seguinte declaração:

In limine, terei de apelar para a memória do leitor para o facto de em 1529 se ter realizado uma viagem a Sumatra, feita por Jean Parmentière, de Dieppe, durante a qual ele morreria. Parmentière era um poeta e académico clássico, navegador e hidrógrafo. Fez-se acompanhar nesta viagem pelo seu amigo íntimo, o poeta Pierre Crignon, que, no seu regresso a França, publicou, em 1531, os poemas de Parmentière com um prólogo contendo um necrológio, no qual se diz que "ele fora presumivelmente o primeiro francês a descobrir as Índias, até à Taprobana, e se não morresse tão prematuramente creio que teria chegado até perto das Molucas".

Este testemunho é decisivo na avaliação deste caso, vindo de um homem educado, e um companheiro de viagem e amigo de Parmentière. Portanto, o francês não esteve nos mares do Sul, para além de Sumatra, antes de 1529.

A data mais antiga dos nossos mapas não é inferior a 1535, ano em que Jacques Cartier descobriu a baía de S. Lourenço. Mas mesmo que supuséssemos que não ocorresse antes da data do mapa de Rotz, o qual tem a data de 1542, mesmo assim não seria possível localizar qualquer viagem de franceses aos mares do Sul entre os anos de 1529 e 1542.

Nem o abade Raymal, ou qualquer escritor moderno francês, nem mesmo outro anterior, ligados intimamente à história das primeiras explorações francesas, como por exemplo Mr. Leon Guérin, autor da História Marítima de França, Paris, 1843, e Os Navegadores Franceses, Paris 1847, demonstram, minimamente, que os franceses se tenham aventurado naqueles mares na primeira metade do século XVI. Na verdade, naquele tempo, a França era bastante pobre, e andava demasiado implicada em confusões políticas, para poder meter-se em extensas explorações marítimas.

Embora Luca Antara esteja bem colocada a NW entre 15 e 16 graus, e a SW entre 20 e 21 graus, esta carta, no seu conjunto, demonstra que Erédia a tinha debuxado por informações e não por observação directa.

Pudessem os franceses ter atingido a América do Norte e o Brasil e estes pertencer-lhes-iam hoje.

Sabemos, entretanto, por Barros e Galvão, que nos finais de 1511 Albuquerque mandou, partindo de Malaca, António de Abreu e Francisco Serrão, em três barcos, a Banda e Malucas. Estes navegadores passaram ao longo da costa leste de Sumatra para Java, e daqui por Madura, Bali, Sumatra, Solor, etc., até à Papua, ou Nova Guiné, seguindo, depois, para as Malucas e Amboino.

Sabemos hoje que parte destas ilhas estão incorporadas na porção norte de Java Maior, mas o que se sabia entre 1511 e 1529 era que as diversas explorações portuguesas, nas costas ocidental e oriental da região, eram todas conhecidas sob aquela designação.

Que esta indefinição era devida às apreensões ciumentas de que uma tão vasta porção de terra pudesse cair em mãos de poderosos rivais, em prejuízo dos primeiros descobridores, pode ser não só objecto de suspeita, mas inquestionável, sob o ponto de vista da evidência histórica.

Pelo que afirma Humboldt (História da Geografia do Novo Continente) autenticado pela autoridade da correspondência de Angelo Trevigiano, secretário de Domenico Pisano, embaixador de Veneza em Espanha, os reis de Portugal proibiam, sob pena de morte, a venda de qualquer carta geográfica que mostrasse a rota de Calicute. Encontramos em Ramúsio (Discurso sobre o Livro de Eduardo (Duarte) Barbosa, e no Sumário das Índias Orientais, a mesma prevenção.

Diz ele que estes livros "foram por muitos anos suspensos, e a sua publicação proibida, por razões de conveniência que não posso agora descrever."

Fala, igualmente, das grandes dificuldades que passou em procurar cópias, mesmo incompletas, em Lisboa.

"Tal era o poder do Príncipe" -- acrescentava.

Na mesma colecção -- numa passagem que tive ocasião de confirmar no livro Discurso de um Grande Capitão de Mar Francês, de Dieppe -- hoje conhecido como a viagem de Jean Parmentière a Sumatra em 1529, e com toda a probabilidade escrito por Pierre Crignon, lê-se: "A insolência e a avareza pautam exclusivamente o comportamento dos portugueses".

"Parece -- diz ele -- que se embebedaram com o pó do coração de Alexandre, porque pensam que Deus fez o mar e a Terra exclusivamente para eles e que se pudessem fechar o mar, desde o Cabo Finisterra até à Islândia, já o tinham feito há muito tempo".

Por essa altura, entretanto, sabemos que, antes de 1529, nas ilhas orientais da Índia, e a existência de nomes portugueses nas terras que mencionámos, como constando de mapas franceses, é testemunho da primazia da descoberta portuguesa, como aliás também isso se deduz, implicitamente, das enciumadas palavras do Prólogo de Crignon, circunstância que por isso impediria aos franceses de, não só, não reinvindicarem a descoberta, como não permitiriam que nomes portugueses fossem gratuitamente atribuídos a terras por eles próprios descobertas.

Apesar de não existirem quaisquer evidências de os franceses terem feito alguma descoberta original, nos mares do Sul, na primeira na metade do século XVI, sabemos, todavia, que dispunham de excelentes hidrógrafos. Crignon descreve Parmentière como um bom cosmógrafo e geógrafo, e diz que "foram por ele compostos vários mapas-múndi em globo e em planisfério, e cartas marítimas, pelos quais muitos tem navegado com segurança".

É perigoso extrair conclusões pela negativa; mas torna-se legítimo e desejável que se possa dar peso à evidência de uma alta probabilidade quando há razão para isso. Se todos os mapas franceses que referimos, como foi demonstrado, derivam de uma única fonte, desde que todos contêm os mesmos erros; e se Parmentière, que foi um bom hidrógrafo, foi o único navegador francês que sabemos ter navegado tão longe como Sumatra, antes da data dos mais antigos mapas; e se além disso, estes mapas transcrevem nomes portugueses em terras que ficavam além do ponto mais afastado atingido por Parmentière, pensamos ser razoável concluir que Parmentière possa ter recolhido dos mapas portugueses a informação, copiada, afinal, por todas as cartas que mencionámos, e que as descrições em volta da costa, que estão todas (como se pode claramente ver), com excepção daquelas que ostentam as armas de Portugal, traduzidas para o francês, foram escritas, naturalmente, por cartógrafos franceses, naquela língua. Podemos referir esta sugestão, apenas pelo que ela puder valer.

Apesar das laboriosas investigações, todas as evidências de que dispomos são insuficientes. Os nomes portugueses são poucos -- mas eles aí estão, e constituem uma prova irrefutável.

As nossas premissas, portanto, conduzem-nos à ideia provável de que a Austrália tenha sido descoberta pelos Portugueses, entre os anos de 1511 e 1529, ou, com um certeza demonstrável, pelo menos antes de 1542"(3).

Esta foi a primeira comunicação de Major. Que se diga onde, e em que extensão, é que aqui peca o historiador britânico.

Depois -- o desastre. Major toma conhecimento do manuscrito da Declaração de Malaca, onde o descobridor confessa, singela e ingenuamente, que, quando estava para ir ao descobrimento, foi mobilizado para a guerra contra os holandeses, o que não lhe permitiu naquela altura seguir para a Ilha do Ouro.

Esta situação inesperada, colocada a Major por M. Ruellens da Biblioteca de Bruxelas, é descrita pelo, depois, editor, em 1881, da Declaração de Malaca, Leon Janssen, nos seguintes termos, traduzidos e publicados por Oliveira Martins no seu livro Portugal nos Mares:

"A 1 de Março de 1861 Major, conservador da secção cartográfica do British Museum, informava a Academia de Ciências de Londres ter descoberto nas colecções do Museu Britânico um mapa-manuscrito, parecendo ser a cópia de outro mais antigo, atribuindo ao português Manuel Godinho de Erédia a descoberta da Austrália. Esta cópia maculada de erros devia ter sido feita por mão inexperiente; e Major formulava a esperança de que um dia a descoberta fosse corroborada por achado de outros documentos acerca de Erédia, o primeiro descobridor da Austrália.

Por outro lado, em 22 de Março de 1875, a Academia de Ciências do Instituto de França recebia do sr. dr. Mendes Leal, então ministro de Portugal em Paris, cópia de um documento achado pelos fins de 1874 nos arquivos de Lisboa. Este documento havia sido reproduzido com uma grande perfeição pelos eruditos portugueses. Era uma carta assinada por Manuel Godinho de Erédia, na qual este pedia a um personagem, porventura um dos vice-reis de Malaca [sic, por Índia] que o nomeasse para ir à descoberta da Ilha do Ouro.

Na Biblioteca Real de Bruxelas existia um documento de muito maior importância. Passara largo tempo despercebido, naturalmente por fazer parte de um tomo especial, e porventura também porque na lombada tinha esta menção: "F. Xavierii MS 1613".

Este manuscrito, que o sr. Ruellens, conservador da Biblioteca Real da Bélgica, tornou conhecido, encontrava-se entre os imensos materiais recolhidos pelos Bollangistas, para a redacção das Actas Santorum, e parece ter sido incluído nesses documentos pelos historiadores sagrados, por conter um curioso retrato de Francisco Xavier, com uma notícia relativa ao apostolado das Índias.

Em 1731 o manuscrito foi doado à Sociedade de Jesus pelo cónego De Haze, conforme o indica a inscrição da capa:

Sociedade Jesu Bruellensi, J. H. de Haze canonicos divoe Gudiliae donat Francisci Xavierii Indiarum apostoli gratia cujus sanctissimi viri imago cernituri fol. 47, 1732.

Em 1773, com a supressão da Ordem dos Jesuítas na Bélgica, o manuscrito passou às mãos do estado, e figura hoje entre os documentos mais interessantes que possui a Biblioteca Real.

Já em 1881, sendo ministro de Portugal em Bruxelas o sr. Dantas, se pensava em reproduzir o manuscrito, projecto que até agora ficou sem execução. Animado pelo sr. Conde de Tomar, pensei então eu fazer a reprodução da obra de Godinho de Erédia. Entendi dever acompanhar o manuscrito de Bruxelas com um facsímile da carta que existe nos arquivos de Lisboa, e uma cópia do mapa achado em Londres por Major. São estes os elementos para a reinvindicação dos direitos de Portugal à descoberta da Austrália. E para o estudo da figura interessante do descobridor Manuel Godinho de Erédia.

Vê-se, com efeito, do manuscrito de Bruxelas, que em 1601 Godinho de Erédia tivera conhecimento de uma terra que só em 1606 era encontrada pelo navio holandês Het Duifken; entretanto os holandeses reinvindicam para o seu navio a glória da descoberta da Austrália.

Os documentos publicados não servem só para discutir esta questão interessante para a História de Portugal, e para a ciência geográfica: mostram-nos em Godinho de Erédia um homem erudito e um cosmógrafo notável, e dão-nos, além disso, informações muito completas e interessantes sobre Malaca no princípio do século XVII".

Veja-se o teor da segunda comunicação de Major.

"No ano de 1861... fiz saber, pela primeira vez ao mundo, o aparentemente importante facto de que a grande ilha continental da Austrália tinha sido descoberta no ano de 1601, por um navegador português chamado Manuel Godinho de Erédia. Até aquela altura, a autêntica descoberta mais antiga de qualquer parte da grande terra do sul, tinha sido feita um pouco a ocidente e sul do Cabo York, pelo comandante do barco holandês Duyfhen, ou Dove, cerca do mês de Março de 1606. Deste modo, o suposto facto que anunciei em 1861 dava-nos a primeira e autêntica descoberta da Austrália, cinco anos antes do que tinha sido previamente aceite pela História, e transferia a honra da descoberta da Holanda para Portugal. O documento em que esta asserção foi baseada era um manuscrito existente no Museu Britânico, representando um mapa-múndi, no qual aparecia a noroeste uma terra que poderia passar, sem qualquer questão, pela Austrália, tendo uma legenda em português em que se dizia o seguinte: 'Luca Antara foi descoberta no ano de 1601 por Manuel Godinho de Erédia, por ordem do vice-rei Ayres de Saldanha'.

Pelo simples facto de ser uma cópia deixou ainda em aberto uma variedade de objecções, as quais fui capaz de rebater com argumentos que julgava irrefutáveis, que não repetirei aqui; do que necessito de meramente dizer é que tive a boa fortuna, nessa altura, de obter uma aparentemente feliz confirmação do que foi constatado no mapa, num pequeno trabalho impresso que descreve o descobridor como competente cosmógrafo e capitão, que recebeu a especial incumbência do vice-rei de Goa (sic) para fazer explorações de minas de ouro, e ao mesmo tempo verificar as descrições das ilhas do sul. O vice-rei acima mencionado fora o imediato predecessor de Aires de Saldanha, em cujo reinado o mapa declara ter a descoberta sido feita.

O mapa, como depois descobri de uma carta endereçada a Navarrete pelo Visconde de Santarém, em 1893, era uma cópia feita por segunda pessoa [by a foreign hand ]num atlas manuscrito do século XVII, da autoria de um Teixeira [de facto João Teixeira Albernaz II, como se verá adiante; cf. mapa p. 85].

O nome de Luca Antara existe num mapa de Java, da autoria de Sir Stamford Raffles, para designar a Terra de Madura, a nordeste de Java, mas, como essa ilha está perfeitamente reconhecida no mapa-múndi referido, parece claro que não houve qualquer equívoco nesta matéria; e que o país delineado era realmente a Austrália, provava-se pela segunda legenda em português, inscrita a seguir à inscrição antecedente, nos seguintes termos: "Terra descoberta pelos holandeses, os quais lhe chamam Endracht, ou Concórdia Eendraghtslandia" [cf. mapa p. 101]. Como sabemos, este foi o nome dado a um largo trato na costa oeste da Austrália, descoberta pelo navio holandês Eendraght, em 1616. Deste modo o leitor confirmará que em 1861 eu tinha diante de mim um mapa, (cujo original fora desenhado dois séculos e um quarto antes), acompanhado de clara e inequívoca declaração da descoberta de um país, que se identificava com a Austrália, feita por um homem que a história contemporânea descrevia como um distinto cosmógrafo, e numa altura que correspondia a um período de governação de dois vice-reis, respectivamente mencionados no documento impresso referido, bem como no mapa.

Esta carta comprova que Erédia tinha conhecimento de uma mancha de terra de 15 a 25 graus, mas representava-a como se a não tivesse ainda visto. N. A.: Para uma sua melhor interpretação, esta carta deve ser observada debaixo para cima. Timor fica a Norte, não a Sul.

O reinado do vice-rei Francisco da Gama, de quem Erédia havia recebido a primeira instrução para fazer as ditas explorações, estende-se de 1597 a 1600, e a anunciada descoberta era de 1601, no tempo do vice-rei Aires de Saldanha, sucessor de Gama.

Não me envergonho de ter aceite como boa aquela declaração. Esta seria igualmente aceite por quem tivesse diante de si a mesma evidência, e a reconhecesse como um documento histórico. Sendo reconhecida como tal, a óbvia conclusão era, como eu o deduzi, de que a primeira descoberta da Austrália por barco ou navegador conhecidos teria sido feita, não em 1606, mas em 1601, transferindo-se a honra da descoberta dos holandeses para os portugueses.

Deixava, entretanto, um voto formulado: o de que pudesse vir a ser encontrada, um dia, alguma informação original, que confirmasse esta descoberta.

Esse dia, por fim, chegou.

Em 1871, M. Ruellens, bibliotecário da Biblioteca Real de Bruxelas, descobriu entre os manuscritos ali existentes, uma comunicação original de Erédia ao Rei Filipe III, sobre os seus feitos nos mares do sul, e de que Sua Excelência, o Cavalheiro d'Antas, teve a gentileza de traduzir para mim a parte que estava relacionada com o meu trabalho. Não me debrucei logo sobre esta extensa comunicação, porque detectei logo o trabalho de um impostor, e como estava nos preparativos do meu livro As Primeiras Viagens à Terra Australis, a minha memória andava atafulhada de todos os detalhes relacionados com o assunto, só depois me foi possível não só avaliar os documentos, os quais, porque não sendo ele, na realidade, um verdadeiro descobridor, encheu de materiais à maneira de um descobridor no papel, como também os erros cometidos nesses documentos, de que me apercebi, mas que Erédia não podia ter deles consciência, porque, como andava enganado, foi claramente traído pela completa falsidade da sua comunicação.(4)

Acreditando, por razões que a seguir explicarei, que havia, a sul, países reais, que nunca antes tinham sido explorados, Erédia chamou a si o título oficial de "Descobridor" daquelas regiões, título ambíguo e enganador que implicava, por antecipação, o crédito devido ao êxito. A desilusão que a ambiguidade daquele título provocou, tornar-se-ia uma realidade quando vimos que sobre o mapa que chegou às minhas mãos em 1861, tinha a inscrição distinta e absoluta de que "Luca Antara foi descoberta no ano de 1601 por Manoel Godinho de Erédia" -- já que a referência à descoberta inscrita no documento não havia sido escrita por Erédia na sua "própria personna"(sic).

Antes de passar à tradução da Declaração de Erédia, desejaria recordar que o referido país a sul, sobre o qual discorre, foi por ele denominado Índia Meridional -- designação que prefiro à da Índia do Sul, para evitar confusões com este país ao qual pertence o primeiro nome.

Procurarei explicar como este país aparece referido nos mapas, tornando-se o objectivo das cogitações ambiciosas de Manuel Godinho de Erédia e, finalmente, identificado com a genuína Austrália da qual, de todo, ele não tinha qualquer conhecimento."(5)

CAP. DA ÍNDIA MERIDIONAL***

A Índia Meridional é aquela terra firme, que do promontório de Beach, província do ouro por 16 gr. de latitude meridional, se estende para o Capricórnio e Círculo Antártico, com muitas e muitas amplas províncias de Maletur e Lucach e outras incógnitas daquele mar, em que está plantada a ilha chamada Java menor, tão celebrada dos antigos, e tão desconhecida dos modernos, como outras ilhas adjacentes, como Petan, Necuran, Azania, e quase todas elas produzem muita quantidade de ouro, cravo, maça, nóz e sândalos, e a erva birco, e outras especiarias e ervas aromáticas não conhecidas nem vistas na Europa, como certifica Ptolomeu, na sua Tábua XII de Ásia, e Ludovico Vartomano, em seus escritos, e Marco Polo Veneto como testemunha de vista que habitou muito na dita Java menor, como ele escreve no lib. 3. cap. 13.

E é de notar que no tempo do P. P. Clemente IV, e Gregório X, no ano 1269, sendo Rei de Portugal Dom Afonso III, 231 anos antes do descobrimento das Indias Orientais, então Marco Polo Veneto, filho de Nicolau Polo, mercador do trato de Constatinopla em cuja companhia afim de ver mundo partiu de Veneza e de Constatinopla, e pela via da Pérsia e Zamarchand ou Turcesta, e deserto de Lop de Tartaria, passou à grande província de Catay, antigamente Atay de Plínio, corte do Imperador Cublay ou Grande Cam, e daí para a China Manzim, agora Chamada Naquim; do porto de. Chinsay se embarcou em um junco ou lorcha para a Java maior de Bantan e Sinda, donde pelo boqueirão e canais de Bale, por entre certas ilhas, Sondur e Condor, passou ao sul à província de Beach, terra de Ouro, onde há tanta quantidade deste metal que os naturais Jaos silvestres, por moeda usam de torrões de terra ou metais de ouro; e daí partiu para a ilha Petan aromático, e deixando os parceles de Maletur, terra de especiarias a Oeste, passou ao Sul até aportar na ilha da Java menor, terra fértil e fresca e cheia de bosques de cravo, massa nóz, e sândalos branco e colorado e muita copia de cânfora, e das outras aromáticas e especiarias nunca vistas na Europa, mormente a erva birco, a qual crescida a transplantam em terra por espaço de 3 anos, e depois a tornam a arrancar com a raiz. E nela se criam grandes elefantes, rinocerontes ou badas, e outros animais de estima e valor, e menos tão graciosos que parecem pessoas anãs.

E a ilha é governada por 8 Reis e satrapas; e Marco Polo Veneto esteve pessoalmente em 6 reinos seguintes: Ferlech, Basmam, Samara, Drazoian, Fanfur e Lambri, e a gente idólatra. Ainda que em Ferlech achou Mouros de que se colige ser franqueada aquela navegação da Índia Meridional e os habitantes da costa marítima são domésticos e tratáveis, mas não aqueles do sertão, por serem silvestres e antropófagos comedores de carne humana.

E mais ao sul estão plantadas as ilhas Necuran, Agania, abundantíssimas de cravo, massa nóz, e sândalos, e toda especiaria, e nela se acha a erva birco. E mais ao sul e sudueste e oeste, se estende a terra firme de Lucach, e deve ser a mesma do continente da península Beach, província de Ouro. E para o cidente estão plantadas as ilhas Anzaman maior e menor ou Lutambini de Mulheres, e Lucapiato despovoada. E posto que Marco Polo Veneto não nomeasse a precisão do grau da altura de Java Menor; todavia afirma não se poder ver a constelação de Ursa Menor do Ponto de Samara, em que mostra estar a Java Menor no Trópico de Capricórnio, pouco mais ou menos como se nota do lib. 3. cap. 16.

E também os Lontares e Anuais da Java maior, de Bantan e Sunda fazem menção da Índia Meridional e de seu comércio e tratos como se nota naqueles versos e cantos baioés e histórias do Império de Mataron, em que declara aquela antiga navegação da Java maior para Java menor. Onde era o maior empório do mundo por causa do ouro e especiarias, e não somente concorriam mercadores do Gram Catay naqueles portos, mas também da China Mansim e do Arquipélago Indostão e Egipto, como se nota naqueles Mouros do porto de Ferlech aportar muito antes da chegada de Marco Polo, no ano 1295.

E este trato e comércio se desfez depois por alterações de guerras que sobrevieram, com que ficou impedida aquela navegação da Java maior para Java Menor, por tempo de 331 anos, sem uns poderem comunicar com os outros até ao ano 1600.

No qual tempo, por justo juízo de Deus, acaso uma embarcação de Lucantara da Índia Meridional com temporal e correntes desgarrada, aportou em Arenan, e chegou ao porto de Balambuam da Java maior de Bantan da Sunda, onde el rei daquela costa marítima, em companhia de Portugueses que aí se achavam presentes, os receberam com bom tratamento e agasalhado. E estes Lucantaros estrangeiros, ainda que na forma do corpo e fisionomia, do resto eram como Jaos de Bantan, todavia diferentes na linguagem, em que mostravam ser Jaos de outra espécie. E esta novidade causou tanto alvoroço naqueles Jaos e satrapas de Balambuam mormente em Chiaymasiuro, Rei de Damuth, o qual por sua curiosidade sendo príncipe, se quiz aventurar para este descobrimento de Lucantara. E embarcado com alguns companheiros em um calelus ou embarcação de remo provido do necessário, partiu do porto de Balambuan para o sul, e com 12 dias de viagem chegou ao dito porto de Lucantara, península ou ilha de 600 léguas de âmbito e circunferência, onde o dito Chiaymasiuro, Rei de Damuth, foi bem recebido e hospedado do Xabandar, ou governador da terra, pelo Rei estar no rio do sertão, e o dito Chiaymasiuro, gozando da frescura da terra, notou a riqueza dela, onde veio muito ouro, cravo massanos, sândalos branco e colorado, e outras especiarias e aromáticas, e, com mostras de tudo, ao tempo da monção de ventos meridionais, voltou para sua pátria e porto de Balambuan, com feliz viagem, onde foi recebido daquele Rei em presença dos Portugueses e mormente de Pedro de Carvalhais, Vereador de Malaca, que deram fé de sua chegada e viagem de Lucantara para Balambuan, ano 1601. E conforme aquele roteiro de Chiaymasiuro deve ser Lucantara nome geral daquela península em que estão os portos dos Reinos de Beach e Maletur, porque de 16 gr. da altura de Beach, para 9 gr. de altura da Java maior de Balambuan, se entremetem de 8 gr. de distancia, que montam as 140 léguas espanholas de 18 dias de viagem de Chiaymasiuro de Balambuan para Lucantara. E por isso não deve ser esta Lucantara aquela Java menor de Marco Polo Veneto, por estar em maior altura, no trópico de Capricórnio em 23 gr. 30 m.

E para esta empresa, no mesmo tempo foi despachado e provido Manuel Godinho de Erédia no hábito De Cristo, e título de Adiantado da Índia Meridional, para passar ao sul com estas promessas, para efectuar os descobrimentos meridionais e tomar posse daquelas terras para a coroa de Portugal no dito ano de 1601. E não teve efeito, porque estando em Malaca, prestes para fazer a viagem da Índia Meridional, sobrevieram as guerras daquela fortaleza com os Malaios e holandeses que impediram os descobrimentos, por ser necessária gente para defender Malaca, sendo governador daquela fortaleza André Furtado de Mendonça."

Retoma-se a palavra de Major:

"Este é o relatório de Erédia. Seguido de uma carta sobre o mesmo acontecimento, escrita por Chiaymasiuro, rei de Damuth, ao rei de Pam, mas acrescentada de factos adicionais: o rei daquele país presenteou Chiaymasiuro com uma mão cheia de moedas de ouro iguais às de Veneza. Os nativos tinham cabelos compridos até aos ombros e a cabeça ornamentada com uma fita de ouro martelado. Usavam krees ornados de pedrarias, a modo do krees de Bale, à volta da cintura [do original de Erédia -- nota de M.]. O seu passatempo favorito era a luta de galos. Esta carta de Chiaymasiuro é seguida de uma certidão, corroborando todos estes factos, e assinada por Pedro de Carvalhaes, que declara tê-los ouvido da boca de Chiaymasiuro e seus companheiros, com os quais contactara em Surabaya. Esta certidão contém um esclarecimento adicional, o qual é: que Luca Antara tinha muitas cidades e vilas muito populosas.

No final deste documento, Carvalhaes jura em nome de Deus a verdade do conteúdo da sua certidão, e assina-a com o seu nome.

Acompanhando o extracto que recebi de Bruxelas, encontravam-se dois mapas, um de Luca Antara e ilhas vizinhas; e outro, um mapa-múndi no qual Luca Antara aparece localizada a NW daquela parte da grande terra sul, a qual, se fosse verdadeira a informação, apenas poderia corresponder àquilo que sabemos ser a Austrália.

Já não se requerem muitos conhecimentos de geografia para se constatar que a Luca Antara de Erédia, como nos foi descrita, não se identifica em nenhum aspecto com o que sabemos da Austrália.

Devia, entretanto, parar aqui; mas, quando reflicto nos muitos milhares de pessoas que se deixaram convencer pelas minhas erradas suposições, associando o nome de Erédia à primeira descoberta autêntica da Austrália, sinto que essas pessoas esperam de mim que complete toda a história.

Não sendo a Austrália, então o que seria Luca, ou Luca Antara?

Sabendo que no dialeto "sunda" e em Java, a palavra "Nusa" significa "ilhas", enquanto a leste e a norte, em vez de Nusa se utiliza o vocábulo "Pulo" para o mesmo significado, e recordando que Luca Antara era o nome alternativo para a ilha de Madura, a qual fica próximo da costa leste de Java, voltaria à descrição de Luca Antara dada pelo príncipe Chiaymasiuro e por P. Carvalhaes, descobrindo que esta corresponderia perfeitamente a Madura.

Os homens que de Luca Antara foram empurrados pela força do vento para o porto de Balambuam, são descritos pela sua figura, face e envergadura como semelhantes aos javaneses de Bantam, diferindo apenas na linguagem, de tal modo que outra coisa não pareciam senão javaneses de outra espécie de raça. Crawford, na sua História do Arquipélago Indiano, diz que a linguagem das duas ilhas dificilmente será mais do que dois dialetos da parte ocidental do arquipélago. O cabelo comprido sobre os ombros, a fita de ouro martelado, envolvendo a cabeça, o krees adornado de pedras preciosas à roda da cintura, a luta de galos, as especiarias e o pau sândalo, todos esses abundantes testemunhos conduzem a uma possível identificação com a ilha Madura.

A própria ilha descrita como tendo seiscentas léguas de perímetro, e contendo cidades e vilas bastante populosas, concorda com a verdadeira descrição de Madura, nem nós podemos encontrar qualquer outra ilha com os mesmos elementos de identidade.

E aqui encontramos a primeira grande inexactidão. O rei javanês afirma ter feito a sua viagem para sul, desde Balambuam, em doze dias, até dar com uma ilha cujo nome e descrição, em todas as suas particularidades, correspondem a uma ilha situada a norte de Balambuam.

A distância entre Balambuam até à costa, que se presume ter sido atingida pela rota do sul, isto é, a Austrália, será de cerca seiscentas milhas, e pelo percurso do norte, Madura não fica a mais de apenas noventa milhas, e o tempo justo de duração da viagem, isto é, doze dias, aproxima-se mais razoavelmente da primeira do que da última distância.(6)

A questão, pois, que naturalmente se levanta, é porque teria Erédia tomado a ilha de Madura, com o nome malaio pouco conhecido de Luca Antara, como fonte da qual colheu os elementos utilizados na descrição circunstanciada da sua memória ao rei Filipe III, associando esses descritivos a uma localidade que corresponde, como se vê no nosso mapa, a um país que, no caso de ser verdade o que disse, não podia ser outro senão a Austrália?

Um facto que ele totalmente ignorava, e que chegou ao meu conhecimento quando elaborava o meu livro As Primeiras Viagens à Terra Australi, para a Sociedade Hakluyt, em 1859, permitiu-me descobrir toda a maquinação do processo de logro deste impostor, e mostrou como, numa tentativa de enganar o seu rei, ele próprio se enganou com erros de outrem, antes dele. Os factos são os que se seguem. No sétimo capítulo do livro terceiro da obra Viagens de Marco Polo, lemos estas palavras:"Quando se deixa Java, e se navega ao longo de 700 milhas, numa rota entre sul e sueste, atingem-se duas ilhas, uma maior, outra mais pequena. Uma chama-se Sondur, e a outra Condur. E como ali nada há que valha a pena mencionar, e avançando-se quinhentas milhas por detrás de Sondur, encontrar-se-á outro país chamado Locach. Neste país existem pau-do-brasil, de que fazemos muito uso, assim como ouro em quantidades inacreditáveis. Tem elefantes, assim como outra caça. No reino apanham-se ainda conchas de porcelana, as quais são usadas em todas as regiões como objectos de pequenas trocas"..(7)

Agora, e a despeito de em todos os manuscritos e textos de Marco Polo, como se vê acima, indicarem "quando se deixa Java", Marsden mostrou que o ponto de partida deverá ter sido realmente Champa, nome aplicado, em tempos idos, pelos asiáticos ocidentais a um reino que abrangia toda a costa de Tonquim e do Cambodja, incluindo tudo o que se chama hoje Cochinchina. O coronel Yule demonstrou que o país mencionado por Locah era Lo-Kok, ou o Reino de Lo, o qual, antes do século XIV, constituía a parte sul do que é hoje o Sião. Sondur e Condur são as ilhas de Pulo Condore. A introdução da palavra Java no texto, em lugar de Champa, constitui uma diversão, cuja retenção conduziu inevitavelmente os geógrafos a colocarem o Locah no oceano meridional. Tanta coisa, pois, de que Erédia nada sabia, sobre o erro número um.

Frontispício da capa da Declaração de Malaca em1613.

Vejamos agora o erro número dois, em que ele igualmente incorreu por ignorância:

Na edição de 1532, de Basileia, do Livro de Marco Polo, uma gralha infeliz trocou o" L" por" B", e o primeiro"c" por um "e", por isso se alterando a palavra Locach por Boeach. De Boeach, por simplificação, passou-se a Beach, e o erro tipográfico foi repetido em livros e mapas subsequentes, tão à confiança, que o chegamos a encontrar no meio mapa-múndi que adorna o monumento em memória de Henry Saville, na Capela de Merton, em Oxford, e o mais estranho é ser esse o único nome ali inscrito. Como, entretanto, em outras edições do Livro de Marco Polo mantiveram a palavra Locach, e a citada designação de Beach, uma e outra acabaram por ser transportadas para mapas, e sendo o ponto de partida Java, os desenhadores de mapas, conforme a sua fonte, assim adoptaram cada uma destas referências, colocando estas regiões como fazendo parte de uma grande terra a sul, supostamente constituindo todo o hemisfério meridional do globo. Esta era, portanto, a Índia Meridional dos sonhos, e da ambição, de Erédia.

Observou-se que Luca Antara tinha sido atingida por Chiaymasiuro, depois de uma viagem de doze dias para sul de Java, e, em consequência, essa informação foi perfilhada por Erédia, que juntou na mesma terra Locach e Beach, ideia, como se viu, corrompida do texto de Marco Polo. Mas também se inventou que nesta Locach, errȯneamente transformada em Beach, havia ouro em quantidade considerável. E o resultado foi que Beach seria especialmente identificada, em diversos mapas daquele tempo, como província do ouro (Ilha do Ouro).

Vejamos agora qual foi o efeito que isto produziu na geografia de Erédia.

Em primeiro lugar ele utilizou ambos os termos, Locach e Beach, demonstrando, em comum com outros geógrafos, a ignorância do erro tipográfico. A isto adicionou Luca Antara, com uma elaboração e complexa demonstração, mesmo com montes e uma multidão minuciosa de sulcos, os quais receio que nunca tenha colhido da experiência constatada do seu amigo Chiaymasiuro mas da mesma forma como os Portugueses baptizaram as ilhas de Cabo Verde, onde não estiveram, do promontório assim, igualmente, sem nunca ter estado em Beach, daria ele o nome de Luca Veach a uma ilha que não conhecia.

Em Espanha e Portugal o "B" e o "V" são intermutáveis. "A Ilha -- diz Erédia -- é chamada Luca Veach, porque entre os nativos de Ende, Sabbo e Java, "Luca" significa "de ouro". O diabólico impressor de Basileia em 1532 mal sonhara que havia inventado uma palavra javanesa, e Crawford, a grande autoridade em assuntos malaios, corroboraria no que ele tinha feito. Por outro lado, de uma lista de todas as palavras que significam "ouro" através do arquipélago, nem uma só se aproxima o mais leve que seja, de Beach ou Veach. Não obstante, o capítulo seguinte da "Declaração" de Erédia consiste numa certidão do nosso amigo Pedro de Carvalhaes, capitão da fortaleza de Ende, na qual ele jura pelos santos evangelhos que tudo aquilo era verdade, subscrevendo-o com a sua assinatura, e data em Malaca, a 4 de Outubro de 1801. A mesma data da outra certidão.

Num dos capítulos da Declaração de Erédia, intitulada "Descoberta do Acaso", ele diz-nos que um barco de Malaca foi arrastado para sul pela corrente de Bali, entre Java e Bima, e descobriu a ilha de Luca Tambini.(8) habitada apenas por mulheres, como as Amazonas, que, com os seus arcos e setas impediam a qualquer um de ali desembarcar. "Estas mulheres -- diz ele -- deviam ter os seus maridos em outra ilha separada".

Toda a gente ouviu já falar desta fábula de ilhas de Homens e Mulheres. Existe desde tempos imemoriais, e foi repetida por Marco Polo, mas duvido que o nobre veneziano, investido em algumas funções oficiais locais, pudesse ter jurado sobre os santos evangelhos que um barco de Malaca lá tivesse estado.

No entanto, foi isto o que Pedro de Carvalhaes declarou na mencionada certidão, e sinto-me feliz que ele nos diga que depois da descoberta da Ilha das Mulheres (Pulo Tambini) tinham chegado à vista de Luca Veach.

Uma expressão merecia ser feita no mesmo sentido da outra. Não necessito de servir o leitor com outros detalhes das afirmações desta desprezível cumplicidade. Suficiente é que existam nelas demasiadas falsidades, construídas na base de mapas com porções de terra conjecturais e imaginárias, transformadas por Erédia em sólidas realidades, confirmadas por todas as circunstâncias do detalhe. Que Erédia recebeu a incumbência do vice-rei Aires de Saldanha para ir à descoberta das supostas ilhas a sul, é certo. O alvará, ou patente, assinado em 5 de Abril de 1601, acompanha a Declaração. Por ele, Erédia é constituído em governador-em-chefe de quaisquer ilhas existentes nos limites da Coroa de Portugal prometendo-se-lhe a Ordem de Cristo, e garantias de, em caso de morte, os privilégios concedidos passarem para a sua filha casada, a favor de quem seriam transmitidas as recompensas e honrarias pelos serviços e méritos do pai. Ele receberia igualmente a vigésima parte dos lucros da descoberta de minas nos seus reinos. Ficou bem claro que ele ocuparia uma posição de responsabilidade, e que era isso o que se esperava dele. Carvalhaes, em ambas as certidões utiliza a expressão "o descobridor Manuel Godinho de Erédia pediu-me esta informação para o feliz êxito da sua expedição, para honra e serviço do Rei".

Ficou, evidentemente estabelecido que ele era um descobridor no papel, mas os fados não lhe permitiram que fosse um descobridor do mar. No mapa-múndi que acompanha a sua Declaração, que é, por sua vez, uma contrafacção do mapa de Ortelius, escreve ele sobre as terras do sul: "Índia Meridional descoberta anno 1601". O desenhador de mapas que o acreditou, e dele copiou o mapa que em 1861 chegou às minhas mãos, tinha uma mente construtiva. Num país emblemado com uma legenda pela qual se provava que fosse a Austrália, ele, positivamente, e sem hesitação, juntava numa única declaração, uma alegada descoberta, a data, o nome de Erédia, e o nome do vice-rei: "Luca Antara foi descoberta em 1601 por Manoel Godinho de Erédia, por ordem do vice-rei Ayres de Saldanha".

Repito que não me sinto envergonhado por, não obstante a soma de evidências, que teria oportunidade de notar, acreditar nele; mas sinto-me muito feliz em pensar que, tão cedo quanto o campo de evidências se alargou, fui eu que, sozinho, assumi a responsabilidade da sua promulgação, que tive a boa fortuna de imediato detectar a impostura."

Assim termina a segunda comunicação de Major.

No que o primeiro texto se caracterizava por engenho, ponderação e naturalidade, para além da nuance de orgulho (por tão extraordinária descoberta!) jactância e entusiasmo, do seu autor, manifesta-se este pela confusão de sentido, repetição de ideias, malevolência e constrangimento analítico, que o retorismo falacioso e a artificialidade argumentativa mais acentuam. Toma-se penoso seguir a dissertação ladeada com que Major procura afanosamente ressarcir-se daquilo que ele considerou um desastre para a sua reputação e prestígio. Não me aprazará, decerto, evidenciar a extravagante preocupação de um homem sem humildade, que não consegue, ao longo de tantas laudas, libertar-se da banalização de um discurso atabalhoado, de estilo feio e desleal, sobretudo da ansiedade em preservar o exacerbado egocentrismo que moldava uma personalidade sem grandeza, isenta da mais pequena porção de ética. Diz-se que as águias mesmo que rastejem, se vê que são águias: mas os patos, mesmo que esvoacem, não são, nem parecem ser mais do que aquilo que, realmente, são. Major esvoaçou, grasnou, mas não voou mais alto do que o meio metro que era a altura da sua probidade.

Pode ser que eu esteja a proceder com a sua memória do mesmo modo como ele procedeu com Erédia, mas o vocabulário e a intenção manifesta com que anatemizou o pobre malaquiano não o tornam merecedor de melhor tratamento. Major está mais próximo de nós do que ele de Erédia. E se ele não perdoou ao cartógrafo alguns deslizes, fruto daqueles tempos, como se poderiam perdoar a sua verrina e contundência três séculos depois?

Julgando-se apanhado por uma armadilha propositadamente preparada por um destino cruel, e por um malaquiano perverso, mentiroso e impostor, ainda que já falecido -- abriu-se num mecanismo de defesa ensimesmado, criando, à má-fé, um eriçado esquema onde procurou empalar o pobre Erédia, cuja memória não foi poupada a nada que o léxico moderno dispõe para arrazar uma pessoa, só porque num traço ou outro da sua cartografia, numa palavra ou duas de uma informação deficiente, recolhida aqui e ali, em Marco Polo inclusivamente, que ele próprio, Major, por exemplo, nunca percebeu que tinha inventado as coisas do seu livro, este sim, que afinal se sabe hoje nunca ter estado na China e no oriente, -- o induzira a cometer uma gaffe monumental.

O surpreendente, entretanto, é que, por maior que seja o estendal de ressabiados argumentos usados contra Erédia, mais deste, uma realidade inescamoteável sobressai: Major não consegue, com efeito, convencer ninguém, nem a si próprio, ao que a sua escrita deixa compreender, que o malaquiano houvesse, por exemplo, descrito Madura que ficava, e fica, à vista de Java (Indonésia) em vez da Austrália, que ele coloca na sua cartografia na latitude exactíssima de 15°. Ou que as invencionices de Marco Polo (que nunca foi ao oriente) tiveram relevância (que não tiveram nenhuma) na questão fulcral do conhecimento, de ciência certa, do lugar de Luca Antara, ou seja, a Austrália, e da sua real existência.

Perdurou, infelizmente, no tempo, o efeito da amarga e imerecida denúncia de Major, na sua execrável palinódia, na má impressão e desdém pela pessoa e obra do luso-malaio, perfilhados, e passados depois adiante, por homens de grande gabarito, e idoneidade irrepreensível, que não podem ser classificados historiadores condicionados, ou desatentos.

O primeiro dos críticos nacionais a pôr de remissa o mérito, a capacidade técnica, e a idoneidade de Erédia, foi Oliveira Martins no seu livro Portugal nos Mares.

Nada mais constrange, ao autor deste trabalho, do que ter de referir e avaliar as considerações, entendidas e subentendidas, tecidas por Martins, num ampliado discurso, naturalmente sob forte influência da despautéria palinódia de Major, e depois de publicada, em Bruxelas, por C. Ruellens, a Declaração de Malaca e Índia Meridional com o Cathai. Com o pragmatismo que, não sem frequência, lhe enfeitava o estilo, e azedava a ideia, nem sempre isento de imparcialidade e rigor, à capa de uma cultura humanista, mais seguida do que sentida (várzea em que foi adverso do seu amigo Eça de Queiroz) quiz demonstrar à saciedade, e a seu modo, aquilo que, em boa verdade, não carecia de ser provado, isto é, que a certa altura, Erédia esteve para ir, e depois não foi, ao descobrimento da Austrália (pois que o próprio cartógrafo, por sua mão, honestamente, o deixara revelado).

Em termos históricos, nada de novo trouxe Oliveira Martins ao debate, e sob o ponto de vista epistemológico, um ângulo crítico que, de resto, tanto apaixonava todos os homens da sua geração -- e não cabe aqui avaliar com que força, e com que resultados -- às suas opiniões, as quais não tomamos por padrão unânime do que os seus companheiros de tertúlia, e do seu tempo, comungavam, faltaram despretensiosismo, e ausência de preconceitos.

Não viria, de algum modo, a propósito, trazer aqui as protervas anotações do autor de O Príncipe Perfeito, não fosse o caso de ter nelas introduzido, ao arrepio de qualquer fundamentação científica, e do próprio senso comum, o problema da mestiçagem. Transcrevendo, e subscrevendo, comentando na forma como o fez, o suelto de um tal dr. Ivan, Oliveira Martins, de rastos deixou a sua dignidade e o seu prestígio de homem de letras. Eis o famigerado texto tirado de um tratado da "degenerescência" daquele autor.

"Malaca conta aproximadamente 30.000 habitantes, população composta de portugueses, holandeses, ingleses e chineses. Entre os habitantes de origem europeia, os portugueses são os mais numerosos. São na máxima parte descendentes dos antigos conquistadores de Malaca. Seus avós foram os companheiros de Vasco da Gama e de Afonso de Albuquerque, mas, à maneira dos monumentos construídos por eles, e que coalham o solo com as suas ruínas, também os netos sofreram a degradação da idade. No meio da população malaia, à qual, por séculos tem estado aliados, os descendentes dos antigos portugueses são fisicamente horrendos e moralmente abjectos. Nem no porte, nem no aspecto, mostram a energia brava dos antepassados. Dir-se-ia, antes, que descendem de etíopes. As suas feições tem o quê de bestial, numa palavra, têm na face deprimida e azeitonada o sinal da degeneração moral. Não fazem a mais pequena ideia dos seus gloriosos antepassados. A tradição, essa saudade consoladora das raças decaídas, apagou-se-lhes da memória. A maior parte têm nomes ilustres, mas ignoram quem tivessem sido os seus avós, e que centelhas do passado iluminam a escuridão do presente."

O arrazoado, como conceito, e pelo descabelado vocabulário, além de generalizações inquinadas e maliciosas, de uma perversidade detectável a cem anos de distância, está abaixo de qualquer classificação, científica, moral ou literária.

Insistindo depreciativamente na classificação de Erédia,"metade malaio, metade português... tendo no sangue o génio dessa população (malaquiana) anfíbia", Martins torna-se incisivo (e ridículo), ao afirmar que "com a nau que levara os portugueses a Malaca, "teríamos descido" à condição de degenerados, poluindo o nosso sangue ariano,(9) esquecendo as nossas tradições europeias. Já se disse, com melancolia -- perorava, decerto, também melancȯlicamente -- que ainda hoje há portugueses em Malaca, mas que esses portugueses são como os orangbenuas (selvagens-primitivos). Em contacto com a caducidade venenosa do extremo-oriente, intoxicámo-nos. O sensualismo, dir-se-ia africano, do nosso temperamento não pôde recusar a taça de veneno da Malásia. Junte-se à carnalidade o génio sanguinário, o luxo, a superstição, e ter-se-á o conjunto de vícios e venenos que apodreciam os malaios, e nos fizeram a nós, descer à triste condição de degenerados dos dias de hoje".

Todas estas desconchavadas redundâncias, para corroborar uma ideia retrógrada, e menos inteligente, porque era moralmente injusta, e cientificamente espúria, em pleno século das luzes, sobre um homem cruzado, que havia cometido o mais grave de todos os delitos: induzir em erro, dois séculos e meio depois de morto, com palavras mal lidas, e pior compreendidas, por isso, banalizando, um homem de grande fama adquirida, respeitado no mundo da cultura, e que se tinha a si próprio em grande conta, mas não fora, afinal, senão um pedante e desacautelado académico, num momento de crucial desatenção.

Oliveira Martins não mostrou, neste caso particular, ofendendo tão gratuitamente um seu compatriota e, na generalidade, outros que tais, nem um raciocínio lúcido, nem isenção intelectual que nos induza a ter, hoje, pela sua memória de historiador, incondicional consideração.

O mapa que Major encontrou no Museu Britânico. Trata-se de uma cópia do padrão de João Teixeira Albemaz II-- que, por sua vez, a tirou de um original de Erédia.

A legenda em inglês incluída no mapa foi obviamente feita no Museu Britânico.

Não foi esta a primeira vez, (nem seria a última) que sobre Erédia pesou, como um anátema, a sua condição de mestiço, a meia casta desprezível, tomada tabú, que prevalecia, e prevaleceu, mesmo dentro dos padrões consuetudinários da nossa prática política ultramarina, de resto, tão profundamente expressa, em paralelo temporal, por exemplo, nas rivalidades ilegítimas e despropositadas entre reinóis e casados (ou residentes), isto é, entre os que chegavam do Reino, e os que já estavam fixados em qualquer ponto dos territórios do império. As próprias alcunhas, já de si, traduziam, desde logo, a animosidade e o sentido de afrontamento que, entre uns e outros, germinava. Com os mestiços a situação agravava-se, e Erédia, como outros, foi disso vítima, principalmente na sua expectativa de relacionamento com o arrogante e prepotente neto do Grande Almirante, Francisco da Gama, o qual não distinguiu os seus mandatos de governador da Ìndia pela competência, isenção e espírito de justiça. Mesmo em Lisboa, bem já dentro do nosso tempo, o mulato continuava a ser desprezado e mal aceite. O antigo cardeal patriarca de Lisboa, Dr. Manuel Gonçalves Cerejeira, no seu livro sobre Clenardo, descreveu os mestiços como "seres desorganizados, porque a influência de hereditariedades contrárias lhes dissolvia a moralidade e o carácter. Eram almas prontas, por óbvias razões, para todas as baixezas, e elemento nocivo para qualquer sociedade."(10)

Em grande conceito não o teve, e diversa leitura da obra de Erédia não fez também, o prestigiado Armando Cortesão, co-autor da Portugaliae Monumenta Cartográfica, que, ao lado de algumas afirmações não isentas de justiça, pondo em evidência aspectos incomuns, que os tinha, dos seus trabalhos de cartografia, não deixa, porém, de os entremear de incompatibilizadas reservas e limitações, conclusões algumas das quais são deixadas ao arbítrio de leitor menos desatento. Não se considerando Erédia mais do que pessoa "digna de interesse e simpatia", por contrapartida com a definição de "visionário de maneira (mente) confusa", ainda assim, dele se aproveita a Monumenta Cartográfica de nada menos do que setenta e uma cartas, e outros desenhos, dedicando-lhe dezoito páginas de texto. Em livro anterior, igualmente de grande valor, Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos séc. v a XVI -- obra, na verdade, da maior relevância, e ímpar na Historiografia Portuguesa, o autor da Declaração de Malaca não é mencionado no extenso rol de cartógrafos nacionais, embora ficasse uma nota de que seria referido mais tarde, num volume relativo ao século xvⅧ.

É verdade que toda a cartografia assinada, de Erédia é datada do século XVII, portanto, eventualmente fora dos limites temporais da crestomatia referida, mas o cartógrafo luso-malaio pertence ainda ao arrolamento do século XVI-- começando a "reformar -- como ele disse -- as antigas descrições do mapa-múndi... com a nova corografia do Cathai e da India Meridional", logo a partir de 1580, vinte anos antes do começo da nova centúria. De um modo geral, a ideia que Cortesão dele faz expressou-a do seguinte modo: "Os aspectos contraditórios de que se revestiu a vida de Erédia, e que se manifestam amplamente nos seus escritos, traduzem-se também nas suas obras cartográficas. A par de uma cartografia de interesse real, pelos elementos novos que contém, e pelos aperfeiçoamentos que revela no traçado de certas regiões, verifica-se a existência de uma outra eivada de congeminações eruditas, entrando frequentemente no domínio do absurdo. Neste aspecto, Erédia sai fora das tradições da Cartografia Portuguesa. E não admira que o vice-rei Rui Lourenço de Távora, em 1610, informasse mal a sua pretensão de ser provido do cargo de cosmógrafo-real do Estado da India."(11)(in Portugalia Monumenta Cartográfica). Nesse mesmo ano, entretanto, o mesmo vice-rei Lourenço de Távora, encarregaria Erédia de fazer uma relação de fortalezas para mandar ao Reino. (Ver ref. na Tábua Cronológica e planta na p. 105).

Seja como fôr, a ideia geral acima expressa é corroborada mais pela seguinte nota, igualmente publicada no Volume IV -- na qual não deixará de se perceber uma pequena nuance de contradição:

"De valor muito desigual, pois, por vezes, Erédia deixa-se arrastar por tendências histórico-geográficas, conduzindo a erros e absurdos, são de assinalar, contudo, entre as suas cartas, bastantes de real interesse, quer resultantes de levantamentos a que ele mesmo procedeu em várias regiões asiáticas, quer copiadas de modelos do seu tempo de que nalguns casos não restam outros testemunhos".

E quando o compara a Linschoten, o holandês que viveu em Goa (1583) autor do livro Itinerário (que muito serviu aos seus compatriotas para aprenderem os segredos de navegação da rota do Cabo e dos mares das Índias, e que foi um excelente desenhador, copiador de cartas dos nossos cartógrafos, a que teve acesso facilitado, por ser valido do bispo), citando planos da cidade de Goa, traçados por um e por outro. Cortesão afirma que "tendo submetido (o trabalho, anterior, de Erédia) a uma comparação com os mais antigos planos portugueses de Goa, verificamos que a maior beleza de pormenores do desenho de Linschoten esconde, na realidade, uma imperfeição de traçado, quer da cidade, quer sobretudo da ilha e regiões vizinhas, muito menos exacta do que na obra de Erédia".

E a esta nota, por semelhança, adiciona-se ainda este comentário: "Ainda que não se possa considerar como tendo ocupado um lugar de grande evidência, na história da Cartografia Portuguesa, há, na obra de Erédia, sempre que ele se consegue libertar do peso da erudição -- aspectos de real valor e interesse". (N. A.: mesmo assim, foi o cartógrafo português que maior número de cartas geográficas deixou, mais de 300).

"Além do levantamento de várias regiões asiáticas a que procedeu, e das quais nos deixou as mais antigas cartas particulares hoje conhecidas, Erédia copiou cartas do seu tempo de que não encontrámos outros exemplares, ou que aparecem pela primeira vez, em obras suas..."!

Não se põe em causa, de maneira alguma, as afirmações taxativas aqui expressas -- mas não deixa de ser difícil de compreender, e aceitar, a ideia de se denunciar um trabalho como contrafacção, quando se confessa não se conhecer o suposto objecto (original) dessa cópia, nem qualquer demonstração escrita curial que possa garantir, sem engano, uma suposição meramente aleatória.

Para além desse facto incontestável, subsiste, como apontamento verdadeiro, e de resto, mencionado nas notas precedentes, o facto de que, se assim considerado, poderia, inclusivamente obviar a condicionante com a qual se minimiza o cartógrafo: a de que ele mesmo procedera a "levantamentos em várias regiões asiáticas", que de resto ele, como asiático de natalidade, conheceria a palmo -- e, se o fez, é porque, naturalmente, tinha capacidade e saber para tanto. Nestas circunstâncias, torna-se difícil de aceitar, repete-se, o ênfase particular com que se sublinha a hipótese do espúrio decalque.

De resto, ao longo dos seus textos, não é infrequente encontrarem-se apartes como este:

"... no qual sítio, agora com experiência (isto é, com conhecimento pessoal, de visu, e de natureza, ou causa das coisas) achámos o contrário daquela opinião dos filósofos..."

Nada há, com efeito, nas suas "fantasiadas deambulações históricas e geográficas", por mais naturais e coerentes que possam ser entendidas algumas das informações expendidas, e muito menos nas "extravagâncias" repetidas, que cobrem, umas e outras um tão vasto território -- que traga a chancela da sua exclusiva responsabilidade Pessoal. Se a sua escrita carreia inexactidões, e faz eco de "fantasias absurdas", os responsáveis por isso lá têm escarrapachado o nome por inteiro, e o título das obras nas quais, originalmente, as veicularam. Uma coisa é, entretanto, clara, e significativa: Erédia conhecia bem, e a fundo, os seus clássicos, o que à partida, e contra o que desejariam alguns dos seus críticos, não desabonará da sua inteligência, e do suporte cultural que lhe conduzia a mão. E o facto de, com tanta frequência, e inegável propriedade, os citar, ou transcrever, circunstância muitas vezes entendida, e apontada, como exercício redundante, e de um pretensiosismo gratuito, leva, por outro lado, a admitir, sem custo, além de um substrato cultural óbvio que, repete-se, por detrás de tantas citações, tivesse havido um propósito deliberado, ou uma simples cautela, ainda que, algumas vezes, ingénua e campanuda, de alienar a responsabilidade do erro possível.

Tenho em muito respeito os conhecimentos técnicos e científicos que caracterizavam a inteligência e a competência de Armando Cortesão, a sua obra e, mais ainda, a sua extraordinária dedicação, e ia a dizer veneração, à História do nosso País, ligada aos descobrimentos e navegações. Mas, neste caso, isso não me constitui na obrigação de concordar com as suas asserções, ou reservas, não me satisfazendo, do mesmo modo, principalmente por se tratar de um homem de elevadíssimo gabarito intelectual, a sua gramática depreciativa no que diz respeito a Erédia, sobre quem, o que discorre, através de uma dialética que algumas subtilezas de semântica, muito mais constrangida, creio, do que intencional, não atenuam -- me parece revelarem um espírito de tendência (ou de influência "moral" de terceiros), e nos seus juízos uma observação por demais pragmática. Não gostaria de parecer que subestimo a capacidade crítica, e a isenção de Armando Cortesão, por quem, aliás como pelo seu irmão Jaime, nutri, desde sempre, incondicional admiração -- ou que estarei, premeditadamente a evidenciar-lhe uma eventual contradição, para justificar as minhas reservas às suas reservas relativas a Manuel Godinho de Erédia. De maneira nenhuma. Neste campo particular, estamos a falar de opiniões, não de pessoas.

A Erédia e à descoberta da Austràlia, e, por concomltância, à despautéria crítica de Major, diferente virtude mostrou Jaime Cortesão, que colocou o historiador britânico entre outros autores desse tempo, e incluindo no mesmo núcleo, o australiano George Collingridge, no quadro dos que admitiam, à-priori, terem sido os portugueses, de facto, os primeiros a pisarem o chão da Austrália. A um segundo contingente, que aceitava apenas a hipótese de ser a Ìndia Meridional previamente conhecida dos navegadores nacionais, associava Cortesão, entre outros, Oliveira Martins e Edgar Prestage. Especificando a posição do primeiro grupo, Jaime Cortesão classifica os seus fundamentos "de ordem exclusivamente cartográfica", portanto influenciados pelas cartas ou mapas da escola de Dieppe, e outras, que discrimina:

a) Cinco cartas francesas da escola de Dieppe: Delfim (1530), Jean Rotz (1542), três de Desceliers (de 1536 a 1569), todas de infuência, ou informações colhidas, em antigas cartas portuguesas;

b) Cartas holandesas, designadamente a de Mercator (1569), igualmente derivada de uma cartografia portuguesa anterior;

c) Carta (Cartas) de Manuel Godinho de Erédia, com a sua Declaração de Malaca e Ìndia Meridional com o Cathai.

"Das mencionadas na primeira alínea, todas as cartas apresentam contornos de um continente a sul, da Ilha de Sonda (Sunda) com o nome de Java Maior. Como particularidade comum a todas, excepcionada a de Rotz, que não vai além de 35ō de latitude sul, as costas ocidental e oriental alongam-se para limites não equivalentes à realidade hoje conhecida. Em todas, entretanto, a nomenclatura nelas inserida, nas costas ocidental e oriental, é de raiz portuguesa. Depois, em todo o caso, de as dar como provas insuficientes para, por si, justificar a primazia dos portugueses na descoberta daquela terra do sul, escreve Cortesão:

"Essas cartas adoecem de duas graves anomalias: o erro de posição, pois a terra de Java aparece situada com notável deslocação para o ocidente; e a singular conexão com a ilha de Java, da qual a terra continental aparece separada apenas por um estreito canal com o nome de Rio Grande. O silêncio dos cronistas sobre estas duas graves inexactidões são os principais argumentos invocados pelos historiadores que contradizem a identificação de Major".

A carta de Mercator caracteriza-se melhor do que as referidas por Ortelius, Linschoten, Plancius, Comelius de Jode, pelo alongamento do norte do depois identificado continente, até à latitude a que se encontra a Nova Guiné, e que Cortesão julga poderem corresponder a península de York, o estreito de Torres e Golfo de Carpentaria."

Refere, finalmente, Cortesão, os trabalhos de Erédia, aos quais não põe em causa, ainda que se possa considerar que também não invalida a opinião de Oliveira Martins, na parte em que este confirma, não os factos imputados ao cartógrafo português malaquiano, mas apenas, de que "era do conhecimento dos portugueses a existência de uma terra que haveria de chamar-se Austrália".

Com esta posição, concorda igualmente como vimos, Prestage, porém em termos que não se salvam de uma certa ambiguidade. Jaime Cortesão é muito conciso quando escreve, depois de mencionar específicas razões subjacentes ao tratado de Tordesilhas, de 1494, ter tido este (conhecimento prévio da existência da Ìndia Meridional) o seu complemento lógico, em 1529, com a celebração do Tratado de Saragoça, que virtualmente vedava aos espanhóis o acesso ao Ìndico, e aos mares da Indonésia, pelo lado do Pacífico.

"É indubitável que as estipulações deste último tratado, que deslocavam o meridiano divisório em 17ō equatoriais para leste das Malucas, e tendo como referência duas das ilhas do arquipélago das Carolinas, postulavam uma informação geográfica que deveria ter determinado, durante certo tempo, as explorações portuguesas na direcção do Pacifico ocidental. Precisamente, os dados geográficos conhecidos dos Portugueses durante o século xvi sobre a Austrália, isto é, a existência do Golfo da Carpentária e da península de York. Nas suas relações de proximidade com a Nova Guiné, situam-se a leste do meridiano das Malucas, e na estreita vizinhança com a linha divisória estipulada em Saragoça".

"CERCO DA FORTALEZA DO CUNHALE POR ANDRÉ FURTADO DE MENDONÇA."

in "André Furtado de Mendonça. Fala, que fez Diogo do Couto Guarda-Mor da Torre do Tombo da Ìndia, em nome da Camara de Goa, a André Furtado de Mendoça entrando por Governador da India, em Sucessão do Conde da Feyra Dom João Pereira.", BOXER, C. R. e VASCONCELOS, F. (eds.), Macau, F. O./Centro de Estudos Marítimos de Macau, 1989, p.24

A prova de que Erédia esteve na conquista do Cunhale, em 1600, baseia-se na informação detalhada do cerco à fortaleza, só possível a quem estivesse presente no local, e panticipasse da expedição.

Esta ideia de Cortesão desenvolve-se mais claramente, páginas adiante, quando acentua:

"Ora, tudo se passa como se de facto D. João III tivesse conhecido, antes de 1529, a existência não só das costas setentrionais da Austrália, mas do próprio estreito de Torres. O grave pleito que dividia as duas Coroas, termina pelo tratado de Saragoça, em 23 de Abril de 1529, pelo qual o imperador (Carlos V) não só abandonava a Portugal, mediante o pagamento (indemnizatório) de 350.000 ducados em ouro, como as suas pretensões ao arquipélago das Malucas, mas concedia que a linha do oriente, suposta pelo tratado de Tordesilhas, recuasse para lá das Malucas, na direcção NE 1/4 e E 19ō, a que correspondem escassos 17ō na equinocial, em que perfazem 297 léguas e meia no oriente das ilhas Malucas, dando 17,5 léguas a cada grau equinocial; no qual meridiano e rumo NE 1/4 estão situadas as ilhas das Velas e de S. Tomé, por onde passa a dita linha e semi-círculos."(13)

Portanto, este recuo da linha acertado em Tordesilhas, determinava agora que a península de York e o estreito de Torres ficavam"na parte correspondente ao "direito" português. O que não deixa de parecer significativo, se se relacionarem os precedentes factos com o acervo de conhecimentos sobre a nova Terra acumulados.

"As primeiras notías que os Portugueses tiveram da existência destas vastas terras austrais ao sul do arquipélago asiático, esclarece Cortesão, datam do mesmo ano de 1512, em que se descobriram as Malucas. Constam de um pequeno roteiro de viagem de Francisco Serrão àquele arquipélago, escrito por um dos seus companheiros... Aí se afirma que os pilotos malaios que dirigiam o navio no regresso, afirmavam que ao sul da ilha Ceram havia uma gente que utilizava para a sua navegação a estrela oposta ao norte, e o redactor do roteiro calculava, pelas indicações dos pilotos, que se tratava dos antípodas da Etiópia e da Sarmácia que se estendiam às outras regiões polares."

A segunda constatação da existência da ilha do Ouro, mencionada por Cortesão, refere-se à provinda do livro do português renegado João Afonso (Jean Alphonse) Voyages Aventureux, de 1527. No qual se escreve que "a terra do sul do estreito de Magalhães continua para oeste até à ilha de Orphie (Ende, Flores, ou Timor) situada a cerca de Java, e a sudoeste das Malucas, por 7ō de latitude austral; e daí essa costa, chamada costa de Java, segue para oeste e oes-sudoeste, até à altura de Sumatra, donde continua para sudoeste e su-sudoeste". João Afonso refere, além disso, a existência a 150 léguas a sudeste e su-sudeste das Malucas, de uma vasta Ilha de Homens Brancos, que se estende até ao Trópico de Capricórnio.

"A distância, a posição, e a extensão, --prossegue Cortesão -- sugeriam, desde logo, que se tratasse da Nova Guiné, se não fosse o obstáculo das suas proporções continentais, e a designação dos homens brancos. Mas uma tradição que pode seguir-se até aos começos do século xvII, afirma a continentalidade daquela ilha, e a existência de homens brancos na Nova Guiné. Por outro lado, aquela costa continental de Java filia-se na mesma concepção de Java Maior dos mapas de Dieppe. A latitude. setentrional extrema, a posição em relação à ilha de Sumatra, o nome de Java e a fusão com esta ilha filiam uma nas outras, ou numa grande fonte comum, esta descrição, e aquelas cartas geográficas."

Chamado à colação, não sem pertinência, por Jaime Cortesão, veja-se o que escreveu, na altura, o prestigiado historiador inglês Edgar Prestage, que muito se dedicou ao estudo dos descobrimentos Portugueses, e trouxe ao tema da descoberta da Austrália a figura de Gabriel Rebelo, o mesmo que na palavra de João de Barros foi "o primeiro dos portugueses a perder a sua vida na procura da Ilha do Ouro". Não deixará de parecer oportuno, depois das transcrições retro, trazer a este trabalho os pontos de vista de Prestage, que envolvem, ainda que de maneira pouco desenvolvida e profunda, a pessoa de Erédia, sobre quem não fez o mesmo juízo de Mills, de Spatte, ou de Major -- embora não deixe de expressar a opinião sobre o cartógrafo de ser "homem não destituído de mérito, mas com o defeito de confiar em demasia nas suas próprias forças" citação que, ou peca por defeito de tradução, ou não passa de uma banalidade sem sentido. Eis algumas passagens da sua escrita:

"R. H. Major reivindicou este descobrimento (da Austrália) para os portugueses no que foi apoiado por Mr. Collingridge, mas esta reivindicação não é confirmada pelas páginas dos mais antigos historiadores portugueses, e o mais que se pode dizer é que os portugueses conheciam a existência da ilha-continente. Em 1569 Gabriel Rebelo, que residiu nas Molucas, numa relação destas ilhas, impressa pela primeira vez em 1856, diz, ao falar do arquipélago Papua:" Segundo a informação que destas ilhas há, correm ao longo de uma grande terra, a qual parece ser a imaginada do sul, que por a banda do leste e a oeste vai ter ao estreito de Magalhães".

Por "terra imaginada do sul" -- continua Prestage -- quer-se claramente indicar o Continente Austral, marcado em muitos mapas do século xvi, baseado, provavelmente, na ideia de qu devia ali existir um continente para contrabalançar os do norte, e numa má compreensão das afirmações de Marco Polo. Parece que os cartógrafos encontraram confirmação desta ideia no descobrimento da Terra do Fogo por Femão de Magalhães, e, em harmonia com isto, desenharam uma larga faixa desde esta terra até à longitude da Austrália, e chamavam-lhes, umas vezes magalânica, e outras vezes Java, que se julgava ser a ilha maior do mundo.

O único testemunho existente de um descobrimento anterior à chegada dos holandeses é baseada em mapas, e ao passo que a região não figura nas cartas portuguesas de Francisco Rodrigues, que foi como piloto na expedição de António de Abreu, em 1511, e na de Pedro Reinei, em 1517; aparece nos mapas franceses feitos em Dieppe, como o enorme mapa do Delfim (1530), num de João Rotz (1542), ambos no Museu Britânico, e em três de Pedro Desceliers (1536,1546 e 1550) de que foram publicadas reproduções pelo conde de Crawford. Estes mapas contêm nomes portugueses misturados com franceses, o que faz pensar que são derivados de originais portugueses. Os mapas do Delfim e de Desceliers mostram uma terra continental cujas costas norte, noroeste e nordeste têm cabos, enseadas e nomes de lugares; mas as costas oriental e ocidental são levadas até à extremidade sul, e têm poucos, ou nenhuns pormenores. Este facto leva-nos a pensar que a extensão meridional é hipotética; além disso, nos mapas de Desceliers o interior está preenchido com desenhos de cabanas, castelos, idólatras e animais, que são claramente produto de fantasia. Rotz também desenha as costas norte, noroeste e nordeste, mas não prolonga as costas oriental e ocidental até ao fundo da carta, pelo que nos dá a entender que o descobrimento havia cessado num certo ponto. A costa ocidental traçada por Rotz termina em trinta e cinco graus, verdadeira altura do sudoeste da Austrália, e na ocidental está marcada uma "costa perigosa" que pode ser o Great Barrier Reef. Rotz segue o mapa do Delfim quando deixa o interior em branco, e indica uma ilha dos Gigantes. Por outro lado, leva a costa ocidental para o sul até sessenta graus, e como os outros cartógrafos, desenha uma grande ilha de Java, que separa o norte da Austrália apenas por um rio vindo de cada uma das extremidades, e chamado Rio Grande. curioso notar que no próprio ano em que Gabriel Rebelo escreveu sobre a existência da Austrália, Mercator publicou o seu mapa, que contém um esboço razoavelmente exacto da costa norte. Este cartógrafo separa a Austrália da Nova Guiné por um largo estreito como deve ser, e desenha o Golfo de Carpentária, aproximadamente no seu verdadeiro lugar e tamanho. Como é que os mapas erram de modo tão grave na delineação da costa norte, colocando Java onde devia estar o golfo? O Dr. J. A. Williamson, que liga uma importância especial ao mapa de Rotz, sugere a explicação seguinte. Pilotos portugueses renegados, dos quais havia alguns em França, teriam fomecido aos cartógrafos franceses cartas tanto da costa norte de Java, como de Sumbava, e da Austrália, e os franceses, supondo que elas representavam a mesma região, tê-las-iam combinado. Fosse como fosse, a nossa credulidade, ou incredulidade no descobrimento português da Austrália (pois os franceses não reinvindicam essa honra) baseada nestes mapas, dependerá em grande parte do facto de considerarmos, ou não, que a delineação das costas que neles figuram se parece suficientemente com a actual. O Dr. Williamson pensa que sim, pelo menos quanto à parte oriental, enquanto o Prof. Wood é de opinião contrária. Mesmo porém que aceitemos a semelhança, temos que encarar outras dificuldades.

O descobrimento da grande extensão de costa marcada nos mapas a que nos referimos só poderia ter sido feito numa série de viagens, e várias razões se podem aduzir contra a verosimilhança destas. Em primeiro lugar, não há menção de nenhuma viagem, quer em António Galvão, quer em Gabriel Rebelo, e não é possível atribuir este facto à política de sigilo; o continente austral já figurava em mapas, e António Galvão havia mencionado as viagens de Côrte Real e de outros. Em segundo lugar, como as viagens davam pequena esperança de lucro, e não tinham finalidade, havia pouca razão para se fazerem. Finalmente, os portugueses estavam demasiado ocupados em defender as Molucas contra os espanhóis, e em explorar as suas riquezas para dispensar navios que corressem os mares sem qualquer objectivo, que não fosse o da simples exploração. É verdade que a Ilha do Ouro se localizava em águas australianas, mas é muitíssimo improvável que os portugueses tivessem ido tão longe -- até sessenta graus para sul -- em demanda desta ilha. É muito verosímil que acidentalmente vissem a costa ocidental da Austrália, de viagem para as Molucas, e podiam ter visto a costa norte quando traficavam com Timor, e com a Nova Guiné. Isto é o máximo que se pode dizer, com segurança, no estado presente dos nossos conhecimentos.

O tracejado mostra, provavelmente, o percurso da viagem em 1601 de Chiaymasiuro. O mapa traz a data de 1610 mas é, seguramente, engano, conforme se pode compreender do exemplar de 1602, publicado adiante, demonstrativo de uma realidade geográfica diferenciada da carta abaixo, com os contornos NW australianos já projectados e definidos.

Quando publicou o seu trabalho sobre D. Henrique, o Navegador, Major deu notícia do descobrimento da Austrália em 1601 por Manuel Godinho de Erédia, apoiando-se num mapa do Museu Britânico, que reproduziu, e numa passagem do tratado Informação da Aurea Chersoneso que se refere à Ilha do Ouro, mas posteriormente abandonou a sua tese que hoje está, em geral, posta de parte. De futuras investigações nos arquivos públicos e particulares portugueses poderá resultar qualquer prova documental sobre este assunto..."

O resto da crónica de Prestage deixa de ter interesse para o este nosso trabalho. Pelo que se transcreve, podemos afirmar que, mesmo para a altura em que elaborou este texto, Prestage, que deixou memória de pessoa idónea e competente, não só não estava, sobre a matéria, bem informado, como tirou dos factos a que teve acesso, conclusões que não fazem sentido, em relação a aspectos que ele próprio põe em evidência, como, por exemplo, admitir que toda a cartografia da região do Pacífico sul era obra de especialistas portugueses do século XVI, para depois negar a prioridade da descoberta da Austrália aos navegadores portugueses. Uma cartografia sem terra descoberta, não faz o menor sentido, como, em relação a Erédia, não faz maior sentido, tirar ele a latitude de um lugar (Ilha do Ouro) sem ter visto, e localizado, esse lugar.

O mapa de Erédia com o tracejado de uma eventual viagem de Timor à Austrália. Vê-se que nesta altura (1602) LucaAntarajá não é identificada com a Ilha do Ouro. Esta conclusão (provável) e a própria carta, em si, levam a crer na viagem e o reconhecimento da Austrália, desta vez, de visu, por Erédia, em 1601.

De posse das mesmas informações, e ao mesmo tempo que Oliveira Martins, Sousa Viterbo, numa breve perspectiva inclusa no seu livro Estudos Náuticos, (1. ō vol., 1.a ed. pag. 153 e seg.) não pensa nem escreve da mesma maneira que o autor de Os Filhos de D. João, como veremos a seguir.

A inclusão deste texto serve, não só de contraponto à palinódia de Major, e à exautoração de Oliveira Martins, como, sobretudo, para relevar, com referências esclarecedoras, os seus livros mais significativos, já indicados na nota biográfica preambular.

HEREDIA (Manuel Godinho de) -- O nome de Manuel Godinho de Erédia era bem pouco conhecido, e o próprio Barbosa Machado, apesar de lhe chamar matemático insí ne, apenas cita dele a História do Martyrio de Luís Monteiro Coutinho, que ficou manuscrita, e que se conserva na Biblioteca Nacional de Lisboa. Nos princípios deste século, António Lourenzo Caminha deu ao prelo dois opúsculos seus, mas de limitada importância. Foi uma memória de Major, publicada em forma de carta no vol. xxxvIII da Archaelogia (1861) sob o título de Discovery of Australia by the Portuguese in 1601, five years before the earliest discovery hitherto recorded, que veio despertar a atenção do mundo científico sobre o nosso cosmógrafo. Pouco depois Major retratava-se, refutando-se a si próprio, mas o impulso estava dado, e as investigações prosseguiram. O senhor Ruelens, estimulado pela primeira memória de Major, escreveu-lhe, participando-lhe a existência de um manuscrito de Herédia na Biblioteca Real de Bruxelas. Outros trabalhos impediram o senhor Ruelens de aprofundar o estudo desse manuscrito, e só em 1871, no Congresso de Geografia de Anvers, é que ele apresentou uma nota impressa em 1872, intitulada "La Découvert de l'Australie, notice sur un manuscript de Ia Bibliotheque Royale de Bruxelles". Foi então que o senhor Major mudou de parecer. E de apologista de Herédia, passou a denominá-lo impostor. Esta variabilidade de pensamento, se pode considerar-se até certo ponto como um profundo respeito pela verdade histórica, suscita-nos, por outro lado, acentuadas dúvidas sobre a confiança que nos possam merecer as convicções daquele erudito. Ainda que acreditemos que Major não fez senão sacrificar a sua opinião no altar da ciência, sempre nos fica o direito de supor que ele foi tão leviano no primeiro caso, como demasiado severo no segundo. Em Junho de 1878, o sr. Dr. E. Hamy inseria no Boletim da Sociedade de Geografia de Paris um estudo biográfico e analítico sobre Herédia, baseado na memória de Major, na notícia do senhor Ruelens, e noutro manuscrito de Herédia existente na Biblioteca Nacional de Paris, sumário da sua vida. Em 1881, o senhor Leon Jansen reproduzia em Bruxelas, numa excelente edição, o manuscrito de Herédia, que possui a Biblioteca Real daquela cidade, e que é enriquecido de muitos desenhos, cartas, retratos, etc. Esta reprodução, feita com esmero e exactidão, era acompanhada de um folheto litográfico, em que editor tracejava a história do manuscrito. Em 1882, publicava o senhor Jansen a tradução francesa, antecedida de um erudito e bem redigido prefácio do senhor Ch. Ruelens, em que se estabelece com clareza o estado da questão, e em que se procura averiguar com imparcialidade o valor dos trabalhos de Herédia. Nele se analisam também com elevado critério as opiniões dos senhores Major e Hamy, que tinham interpretado errȯneamente, em alguns pontos, as empresas do nosso descobridor. Assim, o senhor Ruelens considera pouco séria a explicação de Major de que a expedição enviada por Godinho tivesse tocado, não na Nova Holanda, mas na ilha Madura. Refuta igualmente a opinião do senhor Hamy que afirma que a terra descoberta nas duas expedições de Godinho era a ilha de Sumba. O senhor Ruelens pondera que não havia necessidade de semelhante descoberta, pois já figura numa das cartas do navegante português no grupo das Flores, Solor e Timor, com o título de fortaleza de Ende Minor. O senhor Ruelens, embora não considere Godinho como figura proeminente e de intenso brilho na história da geografia, julga-o todavia curioso e interessante. Enquanto à sua obra, diz ele, data do tempo do descobrimento da Austrália, anuncia, faz presença, pelo menos, este acontecimento, quando não se queira admitir o que ela afirma. E acrescenta, terminando assim o seu prefácio: "Escripta na visinhança da quinta parte do mundo, dando pormenores geográficos sobre todo o arquipélago, tão rico e tão fértil, cadeia de ouro que prende o velho mundo à terra austral, a obra de Godinho encerra mais de uma informação de que a ciência tirará proveito, ou de que fará assunto dos seus debates".

Eis o parecer do senhor Ruelens, que se nos afigura digno de toda a consideração. Agora a descrição bibliográfica das obras que mais directamente se referem a Herédia.

Dr. E. T. Hamy -- Le Descobridor Godinho de Herédia, inserto no Boletim da Sociedade de Geografia de Paris, Junho de 1878 (publicado em separado).

Leon Janssen -- Godinho de Erédia, Malaca L'Inde Orientale et le Cathay. -- Facsímile du manuscript original autograph de la Bibliotheque Royale de Belgique. Bruxelas 1881. No fim o facsímile da carta (geográfica) encontrada por Major no Museu Britânico, e o facsímile de uma carta de Herédia encontrada na Torre do Tombo, e apresentada por Mendes Leal em 22 de Março de 1875 ao Instituto de França. Este é o título que se lê na capa, porque no interior o frontispício tem o seguinte dizer entre tarjas ornamentadas de flores e pássaros: Declaraçam: de: Malaca: e Ìndia: Meridional: com: o: Cathai: em: m Tract: Ordenada: por: Emanuel: Godinho: de: Erédia: dirigido: a: S: C: R: M: D: Phel: Rey de Espã: N: S:. Na tarja superior, o milésimo 1618.

Leon Janssen -- Notice sur le manuscript de Manuel Godinho de Erédia, apportement à la Bibliotheque Royale de Bruxelles, litografado, sem numeração, tendo no fim a data Julho de 1881.

Leon Janssen -- Malaca. L'Inde Meridionale et le Cathay. Manuscript originale autograph de Godinho de Erédia, apportment à la Bibliotheque Royale de Bruxelles -- Traduction de M. Leon Ruelens, conservateur à la Bibliotheque Rovale, membre du Comité de Ia Societé de Geographie de Bruxelles, Bruxelles, 1882. Foi o nosso amigo e ilustre consócio senhor Ramos Coelho quem descobriu na Torre do Tombo, e publicou no Jornal do Comércio de 24 de Julho de 1887, a carta de Herédia, que depois foi reproduzida pela fotogravura e apresentada, em 22 de Março de 1875, ao Instituto de França, por intermédio do sr. Rossingault. Esta carta, no momento de aparecer produziu grande celeuma, chegando a supor-se que a ilha do Ouro a que se referia Herédia era efectivamente a Austrália. A carta não tardou a ser apresentada à Sociedade de Geografia de Paris, e, devidamente examinada e comentada, ficou reduzida às suas devidas proporções. Ao mesmo ilustre senhor Ramos Coelho devemos a notícia de outros documentos existentes no Arquivo Nacional a respeito de Herédia. Assim, de uma carta de el-rei ao governo de Portugal, de 3 de Fevereiro de 1624, se vê que o Conselho de Estado remetera uma consulta sobre papéis de descobrimento que havia enviado Manuel Godinho de Herédia.

Nos depósitos documentais de Espanha devem arquivar-se ainda alguns dos requerimentos e papéis de Herédia. Na Biblioteca Nacional de Paris existe uma obra, que talvez seja alguma das relações que ele enviou ao rei de Espanha. Intitula-se Tratado Ophirico por Manuel Godinho de Erédia, dirigido a Dom Philipe, rey de Espanha, nosso senhor, anno 1616. O plano do autor era dividir o seu livro em cinco partes: A primeira, "do distrito de Tharsis e Ophir"; a segunda, "da navegação de Salomon"; a terceira, "de Arsanth"; a quarta, "da causa da agulha fixa ou móvel"; a quinta, "da enchente e vazante do mar".

Este exemplar que é autógrafo, assinado pelo autor e datado de Goa, de Dezembro de 1616, não contém das cinco partes indicadas senão as três primeiras. Em compensação, compreende uma lnformaçam da ã dia Meridional Descoberta por M. G. de Herédia, anno 1610, um Sumá io da Vida de M. G. Herédia, e 11 cartas. Foi deste Sumário que o senhor Hamy tirou os apontamentos biográficos de Herédia, que nasceu em Malaca, em 16 de Julho de 1563, tendo por conseguinte 60 anos quando faleceu. O Dr. Gusmão publicou no Instituto, de Coimbra, um artigo acerca do nosso navegador.

Qualquer que seja o juízo que se formula sobre Herédia é indubitável que o seu nome não é o de um insignificante, nem o de um impostor, e que bem faria a nossa Academia das Ciências, reunindo em um volume as suas obras, tanto a que foi publicada já pelo senhor Janssen, como as que estão disseminadas nas Bibliotecas nacionais de Paris e de Lisboa.

Considerando, hoje, tudo quanto sobre ele se escreveu, mais, para o mal, infelizmente, do que para o bem, uma abonação não pode deixar de ser outorgada a Sir Richard Henry Major.

Foi, afinal, graças às suas comunicações públicas, apologética a revelação, iconoclastas, a contrição e a denúncia, mesmo com o aparato e espectacularidade, distintivos do seu carácter, como o fez — que Manuel Godinho de Erédia se libertou da lei da morte.

Até então, com efeito, aquele pobre e humilde "mestiço", não obstante o verdadeiro mérito das suas faculdades, e o sentimento de genuína portugalidade que o levou a sempre distanciar-se do facto de ser súbdito do rei de Espanha -- nem ele, nem a sua obra haviam despertado qualquer ponta de interesse, e a menor simpatia pessoal, por parte, ao menos, da crí ica histórica nacional. Como muitos outros, que foram valorosos navegadores e diligentes servidores do estado, capitães, soldados e marinheiros, cronistas, feitores, e outros, que ficaram no olvido da história, também a Erédia estava destinado o fim inglório do anonimato, e do esquecimento.

Foi Major quem lhe salvou a memória. À custa, embora, de uma pouco digna e verrinosa, diga-se, contundência, que ele não merecera, até porque, ainda a tempo, emendou aquilo que, em determinado momento, um ingénuo orgulho o levara a antecipar a concretização de um projecto acalentado, depois adiado por circunstâncias que não previra. Poderia não o ter feito, intencionalmente, ou não, e nesse caso, o que ficaria a valer seria a primeira informação, e a proclamação de Major. Mas nele, prevaleceu a honestidade. E por isso foi exautorado.

Mesmo assim, e por mérito enjeitado de um crí ico britânico, quando, hoje, se fala da Austrália, não deixa de vir à colação a figura daquele cartógrafo português de Malaca, inclusive, quando o fazem com falsa piedade e desdenhosa complacência.

Até mesmo esse probo e digno historiador que é Kenneth Gordon Mclntyre, no seu esplêndido livro The Secret Discovery of Australia, refere Erédia escrevendo, a certo passo, num resumo da questão que o incauto conservador do Museu Britânico levantou:

"Erédia que era meio-português, meio macassariano, encheu a cabeça com sonhos da descoberta da Austrália. De forma confusa, conhecia as lendas de Marco Polo, as visitas dos portugueses à Ìndia Meridional, lendas malaias sobre viagens naquela direcção, e talvez algumas fantasias [some embroideries] da sua própria imaginação. A partir daqui, construiu um projecto [he had to built up a composite] que tinha alguma relação com a costa de Kimberley" (ibidem, pág. 3, edição em português, Macau, 1989).

E noutro passo afirma, pondo em contradita, penso, as suas anteriores observações:

"... um dos seus panfletos, ainda não publicado (Tratado Ophirico) demonstra categȯricamente (e correctamente) que Java se situa entre as latitudes 6ō e 8ō, e que a Ìndia Meridional se encontra na latitude de 16ō. " (Idem, ibidem, pag. 75).

E no seguimento deste parágrafo acrescenta, não sem alguma piedade:

"Devido à sua humildade, os historiadores tendem a subestimar esta evidência, tanto como (o próprio) cartógrafo..."

Ao menos, conceda-se a Erédia o mínimo dos menores favores, admitir que sabia determinar latitudes...

Admitir, mesmo como princípio, que soubesse determinar latitudes de um lugar (e isso só se consegue quando se conhece o lugar) e conceder que fosse capaz de projectar e desenhar cartas geográficas, implica, necessariamente, atribuir-se-lhe um cabedal de conhecimentos, capacidade de observação e de reflexão, que não se compatibilizariam com o perfil de Erédia que pretendem vender-nos: de um excêntrico, com um obliterado sentido das realidades, desprovido de razão, de decoro e de inteligência.

"O mapa Mota Alves. O mapa da esquerda foi descoberto pelo dr. Mota Alves e é comparado com um mapa actual (à direita). Luca Vea coincide com a Ilha Cartier e a Ilha de Ouro com a região de Brunswick Bay, na Austrália Ocidental."

(Mapa e legenda publicados por Mclntyre; elaborado a partir do original de Erédia. [v. atrás]).

Só um indivíduo nestas condições, com efeito, mal resistiria ao fascínio de se auto-intilular "descobridor" de uma terra onde, afinal, nunca fora, e não tinha por isso, razões para conhe-cer, senão através de sonhos, lendas fantásticas e absurdas, e vagas informações, perdidas no tempo, sopradas, provavel-mente, pelos ventos da monção...

Conheço muita gente de imaginação assaz viva, algumas de mente confusa, e outras de não tanto, iniciadas nas mais varidas lendas e superstições, versadas em histórias e ciências ocultas, etc. -- mas não tenho conhecimento de uma só ter desenhado numa folha de papel, uma carta geográfica, determinando nela, com rigor matemático, a posição de uma estrela no céu, ou uma ilha no mar desconhecido. Manuel Godinho de Erédia terá sido o primeiro, e até agora, ao que conste, único homem de quem tenho notí ia, a ter acertado, por imaginação e no assomo de alguma perturbação mental, com a localização de um ponto situado no meio do oceano -- onde nunca estivera antes, e do qual nunca vira, senão em visões, os respectivos contornos e outros acidentes corográficos, que reproduziria num papel, com razoável aproximação, como pode ver-se nos debuxos aqui deixados.

Acontece porém que Manuel Godinho de Erédia não era assim tão pacóvio, como quiseram fazer dele.

Não é este o certo lugar para desenvolver este ponto. Mas pode sempre dizer-se que a vasta cópia de conhecimentos e actividades a que se dedicou, em grande parte delas, a mando, e no interesse do estado, revelam, sem qualquer sombra de dúvida, que além de iniciado em matemáticas e filosofia, na gramática e nas artes, dominava o latim, e, se as frequentes citações assim o acreditam, o grego antigo. Tenha, ou não, concluído, no seminário dos jesuítas de Goa, os seus estudos -- de autodidacta bisonho e confuso é que eu nunca o acusaria. Pode ser, e é, certamente, autor de leitura difícil, mas não é mais rebuscado e retórico do que muitos, do seu tempo, e até dos nossos tempos. Diversos pequenos erros de sintaxe, um maior número de faltas de concordância, e alguns anacolutos, além da eventualidade, mais possível que provável, de uma deficiente decifração da sua caligrafia arredondada, sugerem, menos o homem incompetente e ignorante do que a desatenção circunstancial, e menos o trabalho acabado, do que o esboço, susceptível de aperfeiçoamento. Este pormenor será comprovado pelas várias versões de cartas que deixou traçadas, incluindo aquela em que se intitula descobrir.

Por outro lado, não pode deixar de se evidenciar o léxico rico e variado que patenteia, seja nas áreas das ciências naturais, seja no campo da terminologia, por exemplo, militar e naval. Subsistem, contudo, na sua escrita, as profusas citações referidas, "redundâncias de absurda erudição" apresentadas como prova cabal, não só de uma ingenuidade provinciana, como, principalmente, de uma deficiente, ou mesmo nula, consciência histórica. Não faria grande sentido, na verdade, naquela época esplêndida da renascença e dos descobrimentos, filiar-se o conhecimento nas teorias ultrapassadas da Bíblia ou de Ptolomeu e Plínio, de Heródoto, de Avincene e de Alfragamo, ou de Marco Polo...

E de resto, porque não acreditar, por exemplo, em Marco Polo, e nas suas "informações e descritivos" -- se, depois dele, e até bem aos nossos dias, nem as maiores sumidades em História e na ciência geográfica suspeitaram que não passavam de invencionices e mistificações de quem, como foi recentemente demonstrado, não passou do Egipto e Irão, e nunca esteve na China e no Oriente?

Aquelas foram as lições que lhe ensinaram nos colégios que frequentara. Talvez duvidasse já da sua eficácia cientí ica, mas elas constituíam um ponto de partida, ou de apoio, quem sabe de que iludidas intenções. É que, mesmo quando bajulava, e bajulou algumas vezes, (os vice-reis) nota-se, na sua atitude, uma nuance, nem sempre imperceptível, de mansa ironia, o que não se identificará, seguramente, com a imagem de um tolo acabado, como se pretendeu fazer do filho de Helena Vessiva.

Se ele duvidava das fontes e das frases, não duvidaria, certamente, de um virtual efeito que, do seu aproveitamento, pudesse, para ele, redundar num benefício. Ter-se-á enganado nisto, porque os vice-reis nunca foram para si complacentes, nem generosos, nem justos, duvido que fossem inteligentes bastante para perceberem que, na base do que invocava, Erédia poderia ter razão, não, porventura, sobre uma montanha de ouro, mas de um novo continente a descobrir, isto é, a investigar nas suas eventuais potencialidades.

E que o não era, comprovam-no as diversas aptidões, científicas e técnicas, e as multivárias actividades profissionalizantes em que se especializou, e empenhou, por conta do estado, ou por conta própria. Assim, como se viu, além da formação académica, concluída ou não, no seminário dos jesuítas de Goa, e iniciado nos Clássicos, conhecedor de línguas como o latim e grego antigo, e, naturalmente, dialetos regionais, designadamente os de Malaca e ilhas vizinhas, os de Goa, e do árabe, foi cartógrafo, cosmógrafo e técnico hidrográfico, agrimensor e topógrafo, prospector de minas, em Goa e Malaca, construtor militar (fortaleza de Muar), navegador (capitão de uma flotilha de setenta caleluzes para vigiar os mares de Singapura e Sabu), desenhador de construção civil (tendo, seguramente, praticado vários anos na oficina de arquitectura de João Baptista Cairato, deixando, como disso comprovante, a provável primeira representação da fortaleza de Mombaça), calígrafo versátil e imaginoso, e urbanista, sendo dele as primeiras plantas de cidades urbanizadas em blocos, como alguns dizem, à maneira italiana. Querem os mesmos que a adopção desta regra se ficou a dever a Cairato, mas desta hipótese não se conhece nenhuma representação. De Erédia, sim, e várias.

Um homem com este currículo não poderá ser considerado, de modo algum, como qualquer pobre diabo perdido nas brumas da fantasia e consumidor das absurdidades de lendas orientais. Não podia de modo algum, ser um mentiroso e um impostor.

Deste modo se volta à questão fundamental. Teria, Erédia, ido ou não ido a Luca Antara, não ao descobrimento, na interpretação, hoje, mais comum do termo, mas ao reconhecimento de uma terra já anteriormente visitada, e conhecida?

Não é que isto seja, hoje, muito importante, como o não será a questão da primazia do descobrimento. Sabe-se, hoje, com efeito, já se disse, que entre 1521 e 1523, uma armada sob o comando de Cristóvão de Mendonça, pesem as contestações, que as há, embora algumas sem fundamento credível, pelo menos não tão credíveis como os argumentos que sancionarão a tese, pois que a armada de Mendonça esteve na Austrália, onde deixou indícios, crê-se que insofismáveis, da sua presença.

Mas, em favor da reabilitação moral de Erédia, que a merece, não pode permitir-se que fique colado à sua memória o labéu de mentiroso e impostor, que não foi. À partida, porque, depois de se haver intitulado descobridor, da Luca Antara das suas esperanças, logo confessaria que não chegara a ir àquela descoberta, por motivos com que não contava. Fazendo-o, limpou-se do erro em que incorreu, sobretudo da intenção de enganar terceiros, e perverso e malsinante foi quem, depois disso, persistiu malevolamente em o acusar de má-fé, e de ignomínia.

Por outro lado, se, como se viu, ele, apenas, na altura em que elaborou a carta em que se intitulava descobridor, não foi ao descobrimento, pode muito bem ter ido, em ocasião, porventura, mais favorável, como foi dito, a um reconhecimento. É essa a nossa suposição, baseada em alguns indicadores, ou detalhes, no mínimo fiáveis e pertinentes. Não se desenvolverão neste lugar todas as considerações que o caso justificaria, mas noutra oportunidade o assunto não deixará de ser, novamente, chamado ao debate.

Que se faça, por ora, apenas uma demonstração da eventualidade sugerida, não antes, todavia, de se frisar que o General do Sul, André Furtado de Mendonça, figura importante nesta questão, o levou consigo quando foi à campanha do Cunhale (1600), dando-se como testemunho disso, a representação esquemática da fortaleza do pirata, bem como do plano de ataque concertado nos quatro cantos daquela fábrica [cf. mapa na p. 105]. Erédia seria, no ano seguinte, se o não foi antes, colocado no comando de uma flotilha de caleluzes, navios de vela e remo de pequeno calado, e mandado a vigiar os mares, naquela altura, batidos por uma esquadra holandesa, assim como para deter sublevados locais. Quando Mendonça, em 1601, parte para defender Amboino e Ternate, levando consigo novecentos homens distribuídos por diversos navios, incluindo caleluzes, parecerá curial admitir que Erédia o tenha acompanhado. Erédia informa na Declaração, que andou, nesse tempo, de vigilância, desde Singapura até Sabu, que ficará na periferia, a noroeste, da Austrália. Erédia era um navegador, e cosmógrafo, tinha meios, ou seja navios debaixo das suas ordens, tinha razões, não é improvável que haja alargado o raio das suas perscrutações no mar, até à região por ele designada Luca Antara, ou Ilha do Ouro. No seu discurso sobre a Ìndia Meridional existem algumas passagens que admitem essa possibilidade.

Mas o que mais releva a hipótese formulada, são dois documentos, cuja leitura conduz, embora indirectamente, a tal conclusão. A primeira é referida numa carta ao vice-rei Francisco da Gama, e apresenta um plano da viagem, traçado por quem, certamente, conhecia já, de experiência própria, o percurso a seguir. Veja-se o trecho:

"... Sendo eu provido nesta monção de Setembro, posso estar em Malaca todo o Novembro e princípios de Dezembro, fazer a viagem até chegar a Solor, donde posso partir para Timor, ou Ende, ou Sabbo, e invernar em qualquer destas ilhas, e nelas tomar a minha informação do Ouro. E por Agosto, ou Setembro, com o nome de Deus todo poderoso, cometer o descobrimento da felice Ilha do Ouro. E sendo eu provido na monção de Abril, então é necessário estar em Malaca Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro, e partir em Dezembro para Solor."

Poderá dizer-se que a duração deste percurso, de mais de dois meses de navegação efectiva, mal se compatibiliza com os doze dias que Chiaymasiuro levou de Java à Terra do Ouro. Todavia, uma viagem a descobrir como a que Erédia intencionava, com navios de porte, equipamento e pessoal, administrativo e técnico, por muitos poucos que fossem, exigia cautelas especiais, que justificariam um percurso exploratório mais demorado. De qualquer modo, se ele, até à data da supra citada carta, embora sabendo da existência da terra e o rumo para a alcançar -- não tivesse, realmente, conseguido, como não conseguiu, provisão indispensável para levar por diante o seu projecto, teria depois, durante a missão de que o encarregara Mendonça, ou seja, de bater os mares à procura dos holandeses, teria agora ocasião e meios para abrir o seu raio de acção, e procurar concretizar parte menor, embora, do seu objectivo.

Pensa-se perceber uma certa excitação quando se colhe a informação de que Chiaymasiuro levara apenas doze dias a fazer o trajecto da Ilha do Ouro a Java, o que poderia sugerir que Erédia, não só não conhecia aquela rota, como jamais havia feito tal viagem. Mas na sua colecção de mapas existem duas cartas que apresentam o tracejamento dos percursos referidos, uma das quais incluída por Mclntyre no seu citado livro. Uma delas, carreando a data de 1610, corresponde à rota eventualmente seguida por Chiaymasiuro [cf. mapa na p. 108]; e a segunda distingue, igualmente, pelo pontilhado, o rumo equivalente ao esquema indicado na carta ao vice-rei, em 1601, isto é, por Ende, Timor e Sabbu [cf. mapa na p. 109].

Seria levar demasiado longe uma simples conjectura extrair conclusões definitivas destes factos. Mas, como diria Major noutra circunstância, as cartas estão aqui, tire delas, quem quiser, as ilacções mais apropriadas. Por mim, penso que, pelo menos uma vez, e durante o tempo em que andou no mar a mando e à ordem de Furtado de Mendonça, Manuel Godinho esteve realmente na Austrália na segunda metade, mais provavelmente no terceiro quartel, do ano de 1601. Não será uma dedução aleatória, mas uma convicção, nascida, além do mais, primeiramente, da fixação acertada da latitude da costa ocidental de Luca Antara entre 15°/16°; e em segundo lugar, pela diferença real existente entre a sua cartografia até 1601, e a que se seguiu a essa data. A configuração nas primeiras cartas da costa australiana só muito pontualmente se aproxima da realidade que hoje conhecemos. Pelo contrário, o padrão que serviu de modelo à carta de João Teixeira Albemaz II, e esta, por sua vez, ao exemplar do Museu Britânico de que Major se aproveitou, apresenta já uma volumetria e contornos mais coincidentes com as características físicas verdadeiras daquele continente.

Isto pode significar, na minha, embora, não taxativa opinião, porque se ele foi, como quero presumir, não teria tempo de correr toda a costa ocidental, debuxada, e não apenas esse lado, — que Erédia, pelo menos uma vez, no período acima referido, em 1601, esteve efectivamente na Ilha do Ouro. Não a descobrir, como ele confessou em 1613, na Declaração de Malaca, mas numa mera viagem de observação e reconhecimento, durante a qual recolheu, in loco, informações diferentes daquelas de que até então dispusera e de que se servira para elaborar as suas primeiras cartas.

O trabalho vai longo -- e muita coisa de interesse, e importância, ficou ainda, desta vez, por dizer. De qualquer modo, o que se teve em vista com este trabalho, foi tentar, se possível, ajudar a redimir a memória de um homem a quem História, e os críticos, não prestaram a justiça que ele, verdadeiramente, merecia -- e merece.

Compilação do livro com o mesmo título a publicar

em breve por Edições Mar-Oceano, Macau.

Revisão de texto de Joaquim Leal.

NOTAS

(1)Nas Ordenações da Í dia do Senhor D. Manuel, de eterna memória, o seu autor, António Lourenço Caminha, Professor Régio de Rhetórica e Poética (Lisboa 1807) lê-se: Vida de Manuel Godinho de Erédia de Diogo Barbosa Machado para Inteligência do Leitor.

"Foi Manuel Godinho de Erédia insigne mathemático e assistente em Goa, cabeça do Império Asiático, escreveu a História do Martirio de Luiz Monteiro Coutinho, que foi morto por ordem do rei de Achem Raiamaneor no anno de 1588.

Dedicado ao Ilustríssimo D. Aleixo de Meneses, Arcebispo de Braga, cuja dedicatória foi feita em Goa a 11 de Novembro de 1615, fls. M 59, com várias estampas. A presente obra de que possuímos um antigo manuscrito, que reputamos hum Precioso Monumento da nossa Literatura, foi desconhecido do mesmo Barbosa, e dos que o precederam, donde o leitor ficará percebendo a sua raridade."

(2)1) douto, por capacitado; 2) astuto, por competente.

(3)Relativamente ao descobrimento, propriamente dito, ou, na linguagem coeva, ao seu achamento, pode hoje dizer-se que o capitão da primeira armada que cometeu essa proeza terá sido, repete-se, Cristóvão de Mendonça, em 1521-1522.

(4)Esta parte, como de resto, praticamente todo o texto, é tão confusa e emaranhada, que prefiro transcrevê-la no original, não vá eu, por erro de interpretação, atraiçoar o pensamento do autor. Assim: "I'no sooner looked into this more ample statement than I detected the work of an impostor, and as in the preparation of my work on Earl Voyages on Terra Australis, my memory had become charged with all the details of the subject, I was able to trace not only the documents which, as he was not a discovery in reality, supplied him with the materiais for being a discover on paper. But also blunders in those documents ofwhich I was cognizant, but he had not been, and which, as he has been himself deceived, clearly betrayed the utter falsity of his statement."

(5)Conhecimento da existência da Í dia Meridional era coisa que abonava Erédia que, inclusivamente além de outros detalhes igualmente significativos, a colocara no seu mapa à latitude certíssima de 16ō, como se viu.

(6)Jaime Cortesão afirma que a duração desta viagem é possível, e natural, em doze dias, como indicado na informação de Erédia. (Os Descobrimentos Portugueses)

(7)Hoje, sabe-se que os descritivos de Marco Polo foram fantasiados, e que o veneziano nunca esteve nem na China, nem em qualquer outra parte ao oriente.

(8)De acordo com E. Modigliani (autor italiano de L'Isola delle Donne -- Viaggio ad Engano: A Ilha das Mulheres -- Viagem do Engano), a ilha situada a sudoeste de Samatra que um português, Diogo Pacheco, chamou "do engano" em 1520, parece ter sido conhecida antes com o nome mais antigo de Ilha das Mulheres pelos habitantes de Sumatra. Autores italianos anteriores, que obtiveram a sua informação através dos árabes, colocavam a Ilha dos Homens e das Mulheres no oceano Í dico, perto da ilha de Socotorá.... Rottennest Island, perto de Perth, WA, era chamada de Meisjes Eyland (Ilha das Raparigas) nas antigas cartas holandesas, e Isle des Filies, nas cartas francesas. (Nota de Major).

(9)Sangue ariano, submetido, ao longo de séculos, ao cruzamento de milhões de sangues de povos que atravessaram a Península Ibérica!. Forma falaciosa de mistificar o leitor desprevenido com fórmulas pseudo-científicas...

(10)"Clenardo e a Sociedade Portuguesa do seu Tempo". Coimbra, 1949. Nicolau Clenardo (1494-1542). Pedagogo e humanista. Em Évora (1533-1538).

(11)Esta "informação" (de que, de resto, também não foi encontrada a respectiva carta original) apenas se deduz, em todo o caso aleatoriamente, na nossa opinião, de uma resposta da Corte ao vice-rei, onde se lê, concretamente: "Posto que, como dizeis, he desnecessário ho cargo de cosmógrafo real em que Manuel Godinho me pedia o provesse, e que das cousas que avisa (obviamente, da existência da ilha do Ouro) não há que fazer caso, pelas razões que dizeis, vos encomendo o trateis conforme a sua habilidade entretendo-o e experimentando-o no que houver logar, e ordenando se lhe não impida exercitar o seu talento; e descobrindo alguma cousa de novo, se me avisará disso."

A resposta sugere muito mais a ignorância (ou má vontade) de um vice-rei pouco atilado, sobre uma promissora terra de cuja existência se sabia desde há muito tempo, e nas costas da qual tinham andado, e andavam ainda, portugueses, espanhóis, e já holandeses, do que a ausência de probidade (profissional, e não só) de um cartógrafo com provas dadas, que parece querer evolar-se da insinuação crã ica. Que de falta de capacidade (habilidade e talento) não duvidava a Côrte... apesar da informação do vice-rei.

(12)Estes mapas franceses de Dieppe foram decalcados, segundo K. G. Mclntyre (A Descoberta Secreta da Austrália), de um padrão comum português, que ele designa por "Carta Anónima Portuguesa" de 1533, encontrada no museu alemão de Wallfunbetell. A ordem de precedência desta cartografia de Dieppe, baseada no protótipo português, é a seguinte:

1536 -- Delfim

1541 -- Desliens

1542 -- Rotz (planistério)

1542 -- Rotz (circular)

1543 -- Desceliers

1547 -- Vallard

1550 -- Desceliers

1556 -- Le Testu

1563 -- Desliens

1566 -- Desliens

(13)O espírito dos tratados e a definição dos limites, ou áreas de jurisdição entre as duas Coroas, marcaram de tal maneira as pessoas, que, até durante o período fÍ ipino, quando se poderia supor que isso não fizesse mais sentido, pelo contrário, ainda se cultivava, tanto de um lado como do outro, a concepção de um nacionalismo português autónomo, conforme se pode ver na seguinte passagem extraida do alvará de nomeação de Erédia, já nos finais do século "... hei (vice-rei) por bem e me praz que sendo caso que ele (Erédia) descubra alguma ilha, ou ilhas de ouro, (ainda) estando nos limites da Coroa de Portugal, lhe concedo, em nome de S. Magestade (D. Filipe III)... [etc.]."

*Investigação apoiada pelo Gabinete do Secretário-Adjunto para a Comunicação, Turismo e Cultura.

***A transcrição que se segue reproduz-se do original de Erédia, e não da tradução feita por Major (N. A.).

**Licenciado em História. Antigo docente na Faculdade de Letras de Lisboa e na U. A. O. (Univ. Macau).

desde a p. 81
até a p.