Retrato de Emmanuel Lévinas, por LI Zhi Yue. Lápis sobre papel,1997.
Ninguém tem o seu lar/ aqui, além, o único espaço/ é o mundo, o interior do mundo/ que
transportamos, passo a passo/ até às raízes silenciosas do céu (...). Helène Dorion
(Trad. de Fiama Hasse Pais Brandão)
1. INTRODUÇÃO
Proponho-me escrever sobre a questão do encontro de culturas ou diálogo de civilizações, sabendo que por um lado os encontros e os diálogos são muitos vezes desencontros e mal-emendidos, e por outro lado, que o mais importante não é a facticidade desses fenómenos históricos, mas, que, através dos seus equí ocos, podemos falar de questões colaterais, tais como: a identidade, a alteridade ou o enraizamento. E acima de tudo, porque o tema nos permite abordar, não tanto, a história de uma comunicabilidade mas a natureza profunda, do que no humano é incomunicável. Assim, interessa-me menos o discurso tradicional das ciências humanas sobre o diálogo de culturas e mais os fundamentos filosóficos, em que seja possí el descobrir a natureza dos equí ocos desse contacto. Não sendo irrelevante o diagnóstico que as ciências humanas fazem das incompreensões, patentes ou veladas em todos os fenómenos de contacto entre culturas e povos, é seguramente mais relevante discutir os pressupostos filosóficos, que enformam a relação do eu com o outro. Porque a filosofia, pela própria alteridade que a constitui, permite aproximar o problema da relação de ideais normativos. É que se as ciências fazem o diagnóstico do que o diálogo foi e é, a filosofia tem instrumentos para poder pensar o dever-ser desse contacto. No acto de pensar o dever-ser, a filosofia encontra o obstáculo que se lhe opôs; e no acto de pensar aquilo, que desde sempre bloqueou a abertura para o bem que o dever-ser procura, o pensamento abre-se ao dever-ser como destino. A ciência é do domí io do neutro, a filosofia é o único pensamento que pode ser ao mesmo tempo crí ico e prospectivo, realista e idealizante.
É neste contexto, de procura dos fundamentos éticos e metafí icos da relação do eu com o outro, que aparece inevitavelmente a obra de Emmanuel Lévinas, acordando plenamente com Simonne Plourde quando diz que, "Toda a obra de Emmanuel Lévinas se oferece, (...), como uma palavra inspirada mas provocadora que choca e agita o entorpecimento dos nossos espí itos, ao colocar de novo em questão o individualismo e as preocupações egoístas, preocupações existenciais estas que estão na origem de todas as atitudes oclusivas e guerreiras" 1.
O que me motivou à elaboração deste texto foi, no fundo, a própria história contemporânea e a consciência de que a nossa autocompreensão exige a compreensão dos factos, que vamos vivendo directa ou indirectamente. Os totalitarismos, os fundamentalismos étnicos e religiosos, o recrudescimento do racismo, assim como as práticas de intolerância e violência que lhes estão associados, constituem um quadro global de barbarismo onde se arruina toda uma escatologia optimista da modernidade. A teleologia do progresso sucumbe dentro deste "castelo do barba azul", à beira da última porta de que entretanto perdemos a chave.
Aconteceu-me certamente o que aconteceu e acontece a muitos de vós: a violência dos factos deixa-nos à mercê do nihilismo, uma espécie de tracção que, como nos materiais menos dúcteis, acaba por conduzir à ruptura brusca. O conjunto da obra de Emmanuel Lévinas constitui hoje o grande escudo de protecção contra esse nihilismo, que aliás muita da reflexão contemporânea estimula e alimenta. O pensamento de Lévinas favorece ao mesmo tempo um esforço de tipo diferente: uma espécie de torsão do olhar, um obrigar a olhar noutra direcção: não para os efeitos, mas para as causas, e não para as causas próximas que imediatamente se articulam com os efeitos que desencadeiam, mas para um horizonte mais distante à procura de causas que não se oferecem à inquietação próxima da ciência, mas antes a um tipo de inquietação que tem o além como resposta, inquietação, essa, a que só podemos chamar metafísica. Em boa verdade, é desta torsão que eu gostaria de falar. E sendo assim, este texto teria que se tomar naquilo em que, como veremos, se tomou: uma iniciação ao pensamento de Emmanuel Lévinas, quer dizer, uma introdução ao pensamento da alteridade.
As preocupações que acabámos de referir nasceram, não tanto no confronto com os livros, mas, essencialmente no confronto, muitas vezes doloroso, com a realidade. Retiro-me à realidade próxima, com que convivemos quotidianamente, de uma sociedade profundamente desumanizada e egoísta e onde valores como a solidariedade e o amor pelo próximo adquiriram contornos patéticos para a maioria; e à realidade mais distante, que o progresso das comunicações tornou íntima e no fim de contas próxima. Nasceram estas preocupações de desilusões sucessivas, pessoais e colectivas, sentimentais, históricas e ideológicas. Desilusões que são as de toda uma geração que assistiu à falência simultânea, da história, do progresso e do socialismo. Esperanças e desilusões bem sintetizadas por Finkielkraut quando justamente a propósito de Lévinas diz: "Envolvidos pelo sentido da história ou mergulhados na urgência revolucionária, consideràmos durante muito tempo fora de moda esta meditação inactual sobre a responsabilidade relativamente ao próximo, (...) A recessão do marxismo levantou o obstáculo: descobre-se hoje Lévinas, e, o que significa o mesmo, a gravidade da preocupação ética"2. Quando a máscara de todas as ilusões históricas e revolucionárias caiu ficámos de repente diante da miséria do mundo, que é sempre, mais do que a nossa própria miséria, a miséria do outro. Esse outro com quem, durante muito tempo, sabiamente não nos preocupámos, porque a história o faria por nós.
E foi neste contexto que o discurso das ciências humanas se mostrou impotente. O logos que sustenta as ciências humanas é o mesmo que sustenta todas as ciências e grande parte da filosofia ocidental. Ele gravita em torno de uma racionalidade totalitária, mesmo quando a critica, e por isso a sua má consciência se limita a exorcizar, através de brilhantes exercícios de estilo, um mal que não está no modo de proceder mas antes no modo de pensar. Dito de outra maneira: os totalitarismos de direita e de esquerda, os fundamentalismos étnicos ou religiosos, o esvaziamento ético levado a cabo pelo materialismo mercantil, não são perversões de uma racionalidade desviada do seu bom uso, mas consequências de uma mesma perversão centrada na ontologia ocidental e para a qual Lévinas encontrou, glosando Heidegger, a expressão adequada: "O esquecimento do outro".
O encontro com Lévinas é assim o encontro com um pensamento, que vem responder, de uma forma elaborada e por vezes violenta, a vagas aspirações sentimentais que a violência contemporânea exacerbou. O nosso tempo precisava de um pensamento que atacasse o fundamento mais sólido da intolerância e da violência, ou seja o ódio pelo outro homem, ponto de partida de todas as lutas fratricidas (e todas as lutas e guerras são e foram fratricidas). Por outro lado a filosofia levinasiana removeu, em minha opinião definitivamente, para o lado, as questões académicas erguidas, em tomo da alteridade, pela generalidade das ciências humanas e que culminaram na alternativa entre a tentativa de apropriação do outro ou o seu abandono. A ética está à priori, senão afastada desta alternativa, pelo menos postergada para segundo plano. A ética é pelo contrário o centro do pensamento de Lévinas (para Lévinas a filosofia é a ética), ética que, partindo do sentimento e da emoção, desloca para o lugar de onde nunca devia ter saído o problema do outro. O que pretendemos dizer é o que Plourde disse por outras palavras: "Lévinas conduziu até ao fim uma «saída do conceito» e procurou na sensibilidade o suporte da racionalidade"3. Tivemos, embora vagamente, essa intuição, quando recentemente afirmámos: "(...) o problema do outro conduziu a sucessivos impasses porque foi transferido do seu habitat natural: o sentimento e a emotividade, para um habitat em que se sente, se não deslocado, pelo menos pouco à vontade: a razão. O problema da alteridade é mais assunto do coração que do logos"4.
Outros assuntos ocorrerão na economia da nossa exposição porque lhe são correlatos: o problema da identidade individual e colectiva, o egoísmo do amor de si, «la place au soleil de chacun», os nacionalismos como forma transposta para um plano colectivo deste amor próprio ensimesmado e ainda todas as formas de enraizamento hostis à figura, sempre perturbante, do estrangeiro. O outro, o estrangeiro, o estranho são modulações de uma mesma perturbação: a inopinada aparição de um nada que pela materialização empírica da sua exterioridade, se presentifica. Por isso o nada exige a presença do outro para que a exterioridade deste presentifique o nada como separação. O outro é assim entendido como o perigo. A sua aparição faz tocar o alarme. É necessário que um pensamento venha fazer dessa exterioridade radical uma alavanca positiva pela via da transcendência metafísica, e mostrar que o outro não representa um perigo, até porque em vez de anunciar o nada que eu temo, me anuncia o absoluto e o sublime do bem a que me devo elevar.
A filosofia de Lévinas é simultaneamente uma filosofia da alteridade e uma filosofia do desenraizamento e neste sentido um libelo contra todas as formas de violência racista. desta filosofia, que coloca no lugar mais alto, intocável e sagrado, o outro, que vamos tentar traçar as linhas de força.
2. IPSEIDADE, MESMIDADE E IMANÊNCIA
"(...). É perverso e injusto o Eu que se fecha à interpelação do «outro-aí» e, pelo contrário, procura assimilá-lo; é violenta e alienante a Totalidade que recusa a priori a irrupção anárquica do Infinito. Na raiz de tudo isto aparece o egocentrismo, esta propensão tão característica e natural do Eu que o conduz a englobar tudo na sua própria suficiência: «O Mesmo é essencialmente identificação dentro da diversidade ou história, ou sistema. Esta possibilidade que o pensamento tem de compreender tudo e tudo identificar conduziu-o a desejar a morte e a eliminação de tudo o que ameaça a sua auto-satisfação; (...)". Guibal, 1980, p. 85.
O ponto de partida deste pensamento é a constatação de que o Eu é o fundamento primeiro da própria identidade5, "é porque eu sou imediatamente o mesmo -- me ipse -- uma ipseidade -- que eu posso identificar qualquer objecto, qualquer traço de carácter e qualquer ser"6. O que é exterior ao eu advém ao eu e não põe em causa a sua identidade, justamente por que se oferece a um conhecimento. esse conhecimento, que desocultando o outro, arrancando-o ao lugar em que fulgurava na sua luz própria, lhe faz perder a sua alteridade. A filosofia ocidental é, desde os seus primórdios, esta alergia pelo outro, enquanto outro, ou, se quisermos, este «esquecimento do outro». Identidade e autonomia são assim as duas faces de uma filosofia da alergia pelo outro. Neste entendimento da questão, todos os discursos identitários não acrescentam nada, ao que, desde o princípio, caracteriza o pensamento ocidental. Neste entendimento, os discursos identitários não passam de tautologias, que explicitam, de modo apenas mais agressivo, o sentido geral da nossa específica relação com o transcendente. A tautologia é desnecessária, só o oportunismo político a justifica. A consciência ocidental nunca deixou de, através de todas as suas aventuras, regressar a casa, tal como Ulisses que, através de todas as suas «peregrinações», não foi senão em direcção à sua própria ilha. Este é o sentido que melhor caracteriza, em termos de aventura histórica, a cultura ocidental: sedentária apesar das diásporas intermitentes, enraizada apesar de algumas formas conjunturais de desenraizamento7.
Lévinas parte da constatação de duas tendências, divergentes e mesmo antagónicas, na filosofia ocidental: uma identificando a ideia de totalidade com o racional e o ser e outra que manifesta a inquietude da transcendência8. Uma tendência, a primeira, em que o saber é definido na sua relação do mesmo com o outro (inevitavelmente que o por-saber é sempre um outro), mas em que o outro acaba incluído no mesmo, reduzido ao mesmo, e perdendo nessa redução e anulação a sua estranheza. Uma tendência, portanto, em que "o pensamento se refere ao outro, mas onde o outro já não é outro enquanto tal, mas já próprio, já meu"9. E uma segunda tendência, em que a preocupação maior passa por um respeito da transcendência enquanto tal, ao reconhecer a alteridade da metafísica como o contrário da imanência ontológica. Lévinas irá ao encontro desta frágil tradição propondo uma nova intriga espiritual, que possa compreender e respeitar aquilo a que ele chama a alteridade da metafísica. Uma intriga que como já dissémos desloque para o lado da sensibilidade, através do conceito nuclear em Lévinas de não-indiferença, a questão da alteridade10.
A primeira tendência domina inteiramente a tradição intelectual do ocidente, e esse domínio ocorre dentro da disciplina, onde, pela sua natureza, não deveria ocorrer: a metafísica. Nietzsche terá sido o primeiro grande filósofo a fazer a etiologia dessa doença, chamando-lhe «vontade de poder»11, esta desmedida pretensão do logos para se apropriar do que o transcende. Mais recentemente Foucault diagnosticou, chamando-lhe «vontade de verdade», esta tara do pensamento que não se detem perante o que, a priori, deveria exceder os seus poderes. «Vontade de verdade» é uma expressão mais feliz, porque mostra de modo mais radical o núcleo duro, onde o pensamento se reapropria da transcendência, para a articular ao discurso do mesmo, ou seja, para a trazer ao caudal doméstico da imanência, e às águas calmas onde o estranho se dissolve. Para o conseguir o logos ocidental tem utilizado com propriedade os cânones da narrativa, da tematização e da conceptualização. Mas é através das categorias de razão, verdade e liberdade, onde a verdade funciona como elemento motor, que o pensamento trabalha na remoção do que lhe é outro e diverso. E isso mais do que um conhecimento é uma apropriação e um poder, ou melhor, esta forma de conhecimento é ao mesmo tempo uma apropriação e um poder. É neste sentido que a «vontade de poder» é uma forma de vontade, contida na vontade mais ampla, mais imperialista e totalitária, que é a «vontade de verdade».
Pelo que acabámos de expôr, outro conceito que Lévinas teria que dessacralizar, tendo em vista a construção de uma filosofia da alteridade era o conceito de liberdade. Uma vez desencadeado o ataque ao logos (razão) e à verdade, era inevitável concentrar-se na liberdade, até por ser ele o que a nível individual suporta e corre os riscos de uma política intelectual voluntarista. É que a liberdade é indissociável da autarcia e da autonomia do eu, e são a autarcia e a autonomia quem fundamenta uma aventura intelectual, onde nada possa limitar o pensamento, e onde, pelo contrário, todos os objectos estranhos, susceptíveis de contaminar essa autonomia e essa autarcia, sejam deslocados da sua posição refractária, para alimentarem o caudal do mesmo, a totalidade onde convergem a tranquilidade e a segurança.
O pensador é aquele que procura a verdade. Tudo aquilo que é exterior, e de algum modo enigmático, designa-se imediatamente como outro e além. Pensá-lo é removê-lo, trazê-lo a mim e aqui. A liberdade, a minha liberdade, está em causa quando alguma coisa do exterior perturba a minha autarcia12. A verdade, ou melhor, um discurso de verdade, é o meu modo de trazer ao domí io o que me era excêntrico, e assim preservar a minha autonomia momentaneamente abalada. o que quer dizer a frase de Lévinas: "A liberdade do pensador sobre o qual não pesa nenhum constrangimento, exprime-se através da verdade", porque a liberdade é persistência na identidade, e portanto "recusa, da parte daquele que pensa, em se alienar na adesão"13. Portanto, sendo a liberdade a conservação da natureza do eu e da sua identidade, ela é fundamental na estratégia de quem procura, em última instância, não se perder e regressar às águas tranquilas do mesmo, ainda que pelo pensamento, possa ter sido atirado para terras desconhecidas, estranhas, e por isso mesmo perigosas. Regressar ao mesmo é perseverar no seu ser. Ipseidade e mesmidade são convergentes. Regressar ao mesmo é no fundo igual a permanecer o mesmo.
A filosofia, neste sentido, especializou-se no esforço de redução ao mesmo, de tudo aquilo que, pelo caminho, lhe apareceu como outro. O ser estrangeiro, em vez de se manter na inexpugnável fortaleza da sua singularidade, em vez de"fazer face, torna-se tema, objecto e história. Ora a rendição das coisas exteriores e estrangeiras, através da categoria da generalidade14 que faz delas objectos, tema ou história, não implica nem significa somente, em toda a sua inocência, a sua compreensão, mas significa também a sua prisão, a sua domesticação e a sua posse. E é a partir daqui que se percebe o sentido da liberdade em Lévinas: "manter-se em si contra o outro, assegurar a autarcia do eu", um ser «maitre de soi». "A tematização e a conceptualização, aliás inseparáveis, não são a paz com o outro, mas a sua supressão ou posse. A posse com efeito afirma o outro mas no quadro de uma negação da sua independência. «Eu penso»transforma-se em «eu posso»".15. É o carácter terrível da alteridade que me conduz à tematização e à conceptualização. Pensar é lutar contra a angústia que a alteridade provoca.
Exprimir a verdade é, então, reconduzir à imanência os obstáculos estranhos, quer dizer outros, ou melhor ainda, anular tudo aquilo que é expressão de transcendência e da transcendência.
Exprimir a verdade é domesticar a hetero-nomia onde por momentos se habita e ir de novo em direcção a uma auto-nomia, "em direcção a um estádio em que nada de irreductível possa vir ainda limitar o pensamento, e onde como consequência, uma vez não limitado, o pensamento seja livre"16. Percebe-se o sentido da liberdade, percebe-se que a liberdade seja "uma recusa para o ser pensante em se alienar na adesão, senão mesmo a conservação da sua natureza, da sua identidade,"17 ou, e agora claramente "o facto de permanecer o mesmo apesar das terras desconhecidas onde parece que o pensamento conduziu"18. No fundo, e mais uma vez, a metáfora da odisseia: parte-se de um mundo familiar e íntimo para as águas turvas onde aparece a irregularidade, e é isso por excelência a filosofia, para no entanto se regressar a casa, marchando através da heteronomia em direcção às águas calmas da auto-nomia, conceptualizando, organizando os objectos novos num discurso coerente e lógico, ou seja racional19. Dito de outro modo: O eu autárquico e livre recupera o equilíbrio, identificando o diverso, reduzindo ao mesmo o que lhe aparece como outro, fazendo de acontecimentos anómalos e estranhos uma história restituindo à filosofia o estatuto que lhe é no fim de contas próprio: a grande saga da anexação -- algumas vezes violenta -- de todos os inimigos, a grande conquista do Ser pelo homem através da história.
Será no entanto no quadro de outras questões, que este pôr em causa da liberdade se tornará pregnante, no pensamento de Lévinas. Será na sua dimensão propriamente transcendente, e aí através das notáveis considerações feitas em torno do outro e do rosto, e do imperativo ético que eles desenham e determinam. A perda de liberdade é a contrapartida da transcendência e do seu carácter ético e divino.
Quando, um pouco acima, dizíamos que duas tendências divergentes se desenhavam na história da filosofia ocidental: uma identificando a ideia de totalidade com o racional e o ser e da qual traçàmos as consequências, e uma outra que manifesta a inquietude da transcendência, percebemos facilmente que seja esta que serve os desígnios de uma filosofia da alteridade tal como Lévinas a entende: isto é um pensamento em que o outro não seja jamais reconduzido através da ontologia ou da história ao «discurso do mesmo». Uma filosofia do outro em que o outro se mantenha inapropriável.
A aventura do pensamento é, em si mesma, un confronto com o que lhe é, a priori, estranho, um "além" segundo a linguagem de Platão. Mas essa aventura foi vivida como uma odisseia ou seja com a preocupação central de regressar a casa. A preservação de uma identidade, que é a autonomia do eu e a perseveração egoísta do ser, são os dois elementos constitutivos desta aventura que se pretende livre, isto é capaz de se preservar do outro através da verdade. E uma vez que a verdade é a expressão dessa liberdade -- já que constitui a forma de remover o obstáculo estranho e perturabador, anexando-o a um discurso e formas de saber, onde ele ganharia um lugar, perdendo no entanto a sua singularidade e perdendo portanto o seu lugar -- o discurso novo centrado na alteridade terá que inverter o sentido tradicional da gnose ocidental e da ideia de liberdade. A uma gnose centrada na ideia de verdade opôr-se-á uma gnose centrada na sensibilidade e no reconhecimento de uma transcendência irredutível. A uma ideia de liberdade centrada na autarcia do eu, opôr-se-á uma ideia de liberdade centrada na responsabilidade ética pelo próximo que no limite é sujeição. Em boa verdade a minha liberdade é, dentro da tradição, a perda de liberdade do outro e a minha identidade é a alienação do outro. Como acentua Lévinas: "a filosofia aplicar-se-ia a reduzir ao Mesmo tudo o que se opõe a ela como Outro"20. Estão implícitas questões de segurança, e a metafísica ocidental procurou sempre essa segurança, e questões de poder, e a história ocidental, que a metafísica sempre tutelou, determinou-se sempre na guerra pelo reconhecimento. Esta procura do reconhecimento, culminou na ontologia heideggeriana que, subordinando a relação com o outro à relação com o neutro que é o Ser, continuou, apenas menos dramaticamente, a exaltar a vontade de poder, agora liberta da má consciência que só o Outro poderia avivar.
É um pouco marginalmente também que chamamos aqui a atenção para o papel que a ontologia, através da categoria da totalidade e portanto da sua natural hostilidade ao outro, desempenhou na consolidação de regimes políticos e formas de pensamento centrados na ligação à terra e ao sangue. Lévinas pensou aquilo que na obra de Pascal estava já exposto de modo claro ou seja o facto de que «o meu lugar ao sol» é já dominação, apropriação indevida e, no limite, violência. O triunfo do Nacional Socialismo, por exemplo, repousa sobre um enraizamento, a que uma existência que se aceita natural dá plena significação. Um enraizamento natural que autentica como natural o "lugar ao Sol" e ao solo, berços de todas formas de exclusão. Vale a pena transcrever o texto de Lévinas, onde esta relação entre a ontologia e o poder, permite ver o alcance político da crítica levinasiana dos enraizamentos:
"A ontologia heideggeriana subordina a relação com o Outro à relação com o Neutro que é o Ser e, desse modo, continua a exaltar a vontade de poder, da qual só o Outro pode ameaçar a legitimidade e perturbar assim a boa consciência. Quando Heidegger assinala o esquecimento do ser ocultado pelas diversas realidades que ele ilumina, esquecimento do qual seria culpável a filosofia saída de Sócrates, logo que ele deplora a orientação da inteligência na direcção da técnica, ele mantem um regime de poder mais inumano que o maquinismo e que não tem talvez a mesma fonte que ele. Não é certo que o nacional-socialismo provenha da reificação mecanicista dos homens e não repouse, pelo contrário, num enraizamento camponês e uma adoração feudal de homens escravizados pelos senhores e patrões que os dominam". Trata-se de uma existência que se aceita como natural, para quem o lugar ao so121, o solo, o lugar, conferem todo o significado. Trata-se de um existir pagão. O Ser ordena-lhe que seja construtor e agricultor, no seio de uma paisagem familiar, numa terra maternal. Anónima. Neutra, ordena-lhe que seja eticamente indiferente e liberdade heróica, estranho a toda a culpabilidade relativamente ao «outro-aí»22. O dispositivo de enraizamento centrado na terra e na sua condição de mãe, e enriquecido com outros vocábulos, curiosamente também escritos no feminino, como sejam raça, pátria, memória etc; está na história do ocidente intimamente ligado à exploração, à violência e à guerra. A este pensamento poderemos algumas vezes responder com humor como faz Blumenberg: "(...) O homem é cada vez mais independente do solo onde vive. Quando noutros tempos um homem encontrava um pântano era o homem que desaparecia. Hoje é o pântano"23. Mas certamente que o humor não obsta à necessidade de opôr ao enraizamento uma resistência ética e metafísica. É o que faz Lévinas.
Em suma, as teses conhecidas da filosofia heideggeriana: a superioridade do ser relativamente ao ente, da ontologia em relação à metafísica completam uma tradição onde o Mesmo domina o Outro, onde a liberdade precede a justiça. Mas a justiça não consistirá pelo contrário em colocar as obrigações relativamente a si depois das obrigações em relação ao outro e o outro antes do mesmo?24. Simplesmente, esta inversão exige que o outro seja colocado numa altura e distância, que o tornem inalcançável. Esta inversão exige a ideia de infinito, única ideia que respeita a transcendência do outro enquanto transcendência.
3. INFINITO E TRANSCENDÊNCIA
"Esta relação do Mesmo com o Outro, sem que a transcendência da relação corte os laços que implicam uma relação, mas sem os unir num todo, está fixada, com efeito, na situação descrita por Descartes onde o «eu penso» entretém com o infinito, que não pode conter de modo algum e do qual está separado, uma relação chamada «a ideia do infinito»". Lévinas, 1971, p. 40.
E, portanto, na ideia de infinito, e através dela, que Lévinas concentra a sua defesa relativamente às pretensões totalitárias do pensamento ocidental. Se a razão, que reduz o outro, é uma apropriação e um poder, o que Nietzsche e Foucault disseram a seu modo, embora de modo diferente sobretudo no plano ético, e se todo o pensamento ocidental é, através da verdade e da liberdade, esta odisseia de trazer ao domínio o que lhe aparece como estranho e diverso; então era inevitável que Lévinas procurasse uma ideia absolutamente esquiva à conceptualização e à apropriação, uma ideia em que a liberdade do pensador, sobre o qual não pesa nenhum constrangimento, não possa agora exprimir-se através de um discurso de verdade. É portanto necessário um pensamento que resista ao processo de imanentização, ou muito simplesmente um pensamento da exterioridade absoluta que, desse modo resistente à imanência, se possa tornar no abrigo onde a transcendência se possa resguardar. Se, como já vimos, a filosofia se especializou, nesse esforço de redução ao mesmo, de tudo aquilo que, pelo caminho, lhe apareceu como outro; era absolutamente necessário ao pensamento de Lévinas uma ideia, que, pela sua natureza, postergasse ad infinitum essa posse, e mantivesse a relação do mesmo com o outro, sem que a transcendência da relação cortasse os laços e sem que, ao mesmo tempo, desaparecesse num todo. Era portanto necessário que uma ideia não transformasse o «eu penso» num «eu posso». Essa ideia é a ideia de infinito. É necessário, no entanto, que à ideia de infinito se associem imediatamente duas preocupações, para que a ideia possa ser um instrumento fenomenológico ao serviço de uma fenomenologia do outro. A saber: que ela abandone as alturas abstractas em que a situou Descartes, porque aí não serviria uma filosofia da alteridade concreta, ou seja, uma filosofia do sensível e da emotividade, que em Lévinas, inevitavelmente, se prende, sempre, com a concretude came-e-osso do outro-aí, quer dizer, com o próximo. E era necessário impedir, por outro lado, que a ideia de infinito se transformasse em mais uma categoria do espírito, o que a levaria, mais tarde ou mais cedo, a entrar no acervo de conceitos que pela tematização e pela narrativa destroem a transcendência. Daí vem a opção temerária de manter o infinito no âmbito de uma fenomenologia. E daí a opção pelo rosto. O infinito é rosto, ou melhor, o infinito é o que no rosto momentaneamente interrompe uma fenomenologia, ao tornar-se ausente. O infinito é assim a presença no rosto sempre a ausentar-se, e desse modo único, a fenomenologia a que se presta, é uma fenomenologia da interrupção de uma outra fenomenologia. Esta outra fenomenologia, facilmente se percebe, exporia o rosto do outro ao desgaste, que é o que acontece: ao «dizer», sempre que, pela narrativa, se converte em dito; e ao crime, que é no que a totalização se transforma, quando deixa de ser um conceito dentro de uma ontologia, na aparência neutra, para ocupar o lugar que estava subentendido e portanto lhe estava destinado num pensamento político. Referimo-nos, claro, ao pensamento político que dilui a pessoa na totalidade, ou seja, no fluxo sanguíneo (e sanguinário) da raça, e nesse complexo património (totalitário), onde se ouvem as misteriosas vozes dos antepassados. A sopa eterna de que falava Thomas Mann.
O pensamento do infinito serve, de dois modos, uma filosofia da alteridade e da transcendência: Por um lado, o facto da ideia de infinito conter mais do que ela pode conter, o facto de ser uma ideia de algo maior que a sua capacidade de conhecimento, e nesse sentido resistente em absoluto ao esforço de redução da consciência, no seu trabalho, permanente, de tematização e reconversão. E, por outro lado, também, porque sendo pensamento do absoluto que não pode ser atingido, é a única ideia que não se presta à finitude e à finalidade. Esta sua falta de finalidade faz dela uma ideia completamente des-inter-essada, estabelecendo com a consciência uma relação sem influência sobre o ser, e portanto sem subordinação ao jugo tirânico do «conatus essendi» ou ao «amor de si», no que é contrária ao objectivo pragmático (no sentido de instrumental, de estar ao serviço de) do saber e da percepção. Em resumo, um pensamento que, como salienta Lévinas, "não é mais nem visado, nem visão, nem vontade nem intenção"25.
Ora o que a ideia de infinito tem de excepcional é o facto de que o seu ideatum ultrapassa a sua ideia, o facto de que a ideia de infinito visa o que não pode abraçar, ou seja o infinito. Deste modo a alteridade que o infinito é e significa não é anulável, não é domesticável através do acto que a pensa. Ao pensar o infinito, o eu pensa imediatamente mais do que aquilo que pode, porque o infinito não entra na ideia de infinito, porque a ideia de infinito não agarra, não prende, não aprisiona o infinito, enfim, não se apropria do infinito ele-mesmo que por isso mesmo prevalece estranho, incomodativo, excedentário, como aquilo que oferece uma resistência ao pensamento que o pensamento não logra vencer. O infinito é esquivo, mesmo, a todos os estratagemas de mediatização, como é o caso do estratagema heideggeriano, onde, para subordinar a relação com o outro ao totalitarismo do mesmo se subordina essa relação através da relação com o neutro que é o ser ( o ser é inseparável da compreensão do ser, e este círculo vicioso hermenêutico entretem e amortece a relação do eu com o outro, entretem a eventual violência que é a alteridade). Pelo contrário, o infinito é o absolutamente outro, retomando a expressão de lankélévitch.
É neste sentido, que a ideia de infinito oferece ao pensamento aquilo que o transcende, não lhe oferecendo a possibilidade de se apropriar desse transcendente, e é nesse sentido que a ideia de infinito é alteridade e transcendência, porque traduz uma relação com o que ao eu é exterior, com o outro, sem que esta exterioridade possa ser integrada,-trazida ao mesmo. Como diz Lévinas: "O pensador que tem a ideia de infinito é mais que ele-mesmo, (...). (...), a ideia de infinito é a única que ensina o que se ignora. Ela foi colocada em nós"26.
4. INTELIGIBILIDADE DO INFINITO: O ROSTO
"(...) Sobre o estrangeiro de todos os tempos pesava a suspeita de ter fornecido aos deuses o pretexto para todas as pestilências". Blumenberg, 1990, p.15.
O infinito só é relevante se for inteligível, simplesmente a sua inteligibilidade, não cabe nos quadros tradicionais da gnose tradicional ou da ontologia, mas no domínio de uma fenomenologia, que mostre os seus poderes metafísicos através da sua capacidade expressiva. A ideia de infinito seria um conceito inoperante se a sua inteligibilidade se traduzisse na sua neutralização, enquanto conceito da alteridade que se esquiva a todos os poderes da apropriação e da redução ao mesmo. Mas ele é o conceito em que aquilo que pretende significar é maior que ele próprio, e é aqui que ele se presta a uma fenomenologia da transcendência ética, porque estimula por um lado o desinteresse (ausência de finalidade) e por outro lado o desejo (ânsia de perfeição e bondade) e ainda porque a sua desmesura determina em mim um sair para fora, que em si mesmo é fundamento de transcendência, de generosidade e de abertura ao sublime.
No âmbito de uma ontologia, as suas possibilidades heurísticas seriam desfiguradas, e a sua qualidade de nos oferecer a resistência do outro, seria anulada, através da anulação da sua transcendência, o que anularia a sua dimensão de alteridade absoluta. Só através de uma fenomenologia que evidencie os seus poderes, pode a ideia de infinito cumprir o destino de ser, não uma categoria estática encerrada num jogo de efeitos especulares, mas uma categoria dialógica, que pela sua natureza, mostre a autenticidade incorruptível do outro. E os poderes do infinito, ou melhor da ideia de infinito em nós, são justamente o facto de ser maior do que nós, de permitir dizer mais do que é logicamente permitido dizer, numa palavra, porque a ideia de infinito arrasta o ego para fora de si mesmo, para um além que, no entanto, se dá a ver no outro através do rosto.
Arrastar para fora de si prende-se com a saída do insensato «il y a» e com o desinteresse, condições sine qua non para que a relação com o outro seja, não egoísta, mas pelo contrário explicite uma real dignidade ética, ao mesmo tempo que seja vivida como libertação e não como sacrifício. Interessa portanto ver como se dá a relação entre infinito e rosto.
Todo o enfoque do pensamento de Lévinas se dirige ao outro, não enquanto fait-divers, distracção, mas enquanto apelo ético e transcendente. Algumas expressões tipicamente levinasianas dão-nos de imediato o alcance metafísico e ético do encontro:
"(...) o seu rosto é o que me ordena de o servir (...) o rosto é o pobre pelo qual eu posso tudo e a quem eu devo tudo (...) sujeição como se o eu fosse culpado, como se houvesse uma dívida (...) responsável pela sua miséria, pelo seu sofrimento pela sua morte (...) o rosto do outro-aí tomou-se o núcleo duro, o fundamento sobre o qual apoiar uma exigência ética (...) a relação com o outro é responsabilidade. O outro é aquele a quem e por quem eu devo responder.... Eu estou em dívida para com ele (...) na minha sujeição, é que se funda a minha dignidade (...). A responsabilidade por todos vai até à substituição. O sujeito é refém"27, etc. Através desta composição de citações, percorremos um longo itinerário na obra de Lévinas, que vai desde o imperativo que o rosto é até ao estatuto de refém, que não podemos deixar de ter, face ao mandamento que ele exprime, passando naturalmente pelos temas recorrentes, tais como, a responsabilidade, a sujeição e a substituição.
O apelo do outro e para o outro é a única forma possível do ente sair do ser, ou seja, um outro-modo-de-ser-para-além-da-essência. Acontece, no entanto, que para Lévinas, sair do ser não significa alienação e queda, mas antes pelo contrário e como espero mostrar, possibilidade de sentido e elevação espiritual e moral. E isto porque a essência é sempre persistência no ser, e persistência no ser é egoísmo28: «esse é interesse» sempre. O interesse que é conatus, é perseveração no ser e por aí egoísmo e guerra: "A guerra é a gesta ou o drama do interesse da essência"29. Tudo isto se passa num quadro reflexivo em que o não-ser não entra, porque, como salienta Finkielkraut a partir de Lévinas e, de modo notável, a partir das análises fenomenológicas centradas na figura de Oblomov, quando se acentua a negação do ser, ainda a persiste o «il y a», ocupando esse vazio que a retirada aparente do ser, deixou atrás de si. O «il y a» é a forma anónima do ser, rumor inevitável que não pára nunca30. Mas o outro é a transcendência e a transcendência é, no sentido textual, um para além da essência, e portanto o outro aparece nesta intriga como a única alternativa ao «il y a». Lévinas sabe, no entanto, que o ser está fortemente ancorado na sua própria essência, para que de ânimo leve a abandone. Algo de excepcional deverá advir para que o eu se liberte desta prisão infernal, algo que o liberte para o outro, para o amor e a socialidade desinteressada e que ao mesmo tempo o liberte de si mesmo, desta servidão que o seu ser lhe prescreveu como condição, até porque como Lévinas não pode deixar de concluir: "Esta impossibilidade para o mim de não ser si marca a condição trágica intrínseca e inerente ao eu, o facto de que ele está ancorado no seu ser"31. Ora, é neste quadro que o outro aparece como chance e não como perigo, como fonte de salvação e não como domínio. O cativeiro por excelência é a identidade em que o eu se encontra enclausurado, e à qual sempre regressa. "Mais profundo e mais determinante talvez que o desejo de ser em-si, de se encontrar, de se purificar das escórias estrangeiras, há o sonho de ser separado desse em-si, e por aí escapar à fatalidade do retorno a si-mesmo"32.
Ah! não ser eu toda a gente e toda a parte, exclamava o poeta. O outro, o estrangeiro, perderá neste processo os prestígios negativos, que sempre manteve no pensamento ocidental. No nosso século servem, como exemplo, as reflexões de Sartre33, onde o aparecimento do outro significa, no mínimo, perturbação e mal-estar. Sartre, partindo de Hegel abandona no entanto a intriga conflituosa dos "Senhores e Escravos" e a perspectiva da guerra pelo reconhecimento até à morte, rompendo assim com uma tradição que vem no mínimo desde o «mimos» platónico, mas não deixa de salientar o perigo que o outro representa, contra a «minha» identidade e o conflito que daí naturalmente decorre: "Tudo o que vale para mim vale para o outro. Enquanto eu me tento libertar da influência do outro, o outro tenta libertar-se da minha influência; enquanto eu procuro dominar o outro, ele procura pelo seu lado dominar-me. De modo nenhum estão aqui em jogo relações unilaterais com um objecto-em-si, mas relações, recíprocas e móveis. As descrições que se seguem devem ser entendidas na perspectiva do conflito. O conflito constitui o sentido original do ser-para-outrem"34. E portanto face ao outro que me vê como eu nunca o verei eu sou projecto de recuperação do meu ser.
Em Lévinas tudo se passa ao contrário, isto é, o outro não representa o perigo mas a possibilidade que se me oferece para sair da cadeia infernal que me acorrenta ao ser, cadeia do eu a si-mesmo, ao horror de ser de que o "il y a" é a apenas a forma aguda e mais lúcida. Para sair do «il y a» é necessária uma deposição (ser-se deposto). "Esta deposição da soberania do eu pelo eu é a relação social com outrem, a relação desinteressada, (...) a responsabilidade pelo outro, o ser-para-outro, pareceu-me desde então ser a forma de parar o ruído anónimo e insensato do ser"35.
O campo para a entrada do outro está desbravado. O «il y a» é o conceito charneira para que a responsabilidade-sujeição pelo/ao outro não seja uma alienação mas libertação, libertação que tem os contornos de uma grande aventura, de uma grande experiência. De facto a experiência, no sentido radical que encerra enquanto relação com o desconhecido, enquanto diáspora sem regresso ao mesmo, vivência, portanto, da completa exterioridade que é o infinito, e que por isso não pode conter-se, celebra-se apenas através da relação com o outro, que é abordagem da exterioridade absoluta e resistente à apropriação. Inapropriável porque infinito o outro não será para o sujeito o equivalente de um objecto, de um saber, de um tema ou de uma narrativa e daí que também não possa transformar-se para o sujeito em propriedade ou espólio, ou presa, ou vítima. E é justamente esta impossibilidade de reduzir, converter, anular em suma, que faz da aventura da alteridade uma aventura no sentido romanesco tradicional mas não uma odisseia porque aí sempre se regressa a casa. A grande experiência é a aventura infinita, sem regresso possível. A relação com o transcendente tem esta natureza poética feita de incerteza, perigo e diáspora.
5. ROSTO: MANDAMENTO E RESPONSABILIDADE
"A exterioridade do ser infinito manifesta-se na resistência absoluta que pela aparição e epifania opõe a todos os meus poderes"36, porque a sua epifania não é "simplesmente a aparição de uma forma à luz, sensível ou inteligível, mas desde logo, imediatamente, este não lançado aos poderes. O seu logos é: «Tu não matarás»". E este «não matarás», sendo uma ordem, significa que na aparição do rosto, imediatamente, se inscreve um mandamento. O outro, através do rosto, ordena-me de o servir, aliás é essa a mais importante senão a única significação do rosto: a sua interpelação, a sua fragilidade que implora, é no entanto pelo imperativo ético que desencadeia uma ordem. Uma ordem à qual devo obedecer porque eu sou culpado. Lévinas diz citando Dostoievski: nós somos todos culpados de tudo e de todos e eu mais do que ninguém.
O outro, enquanto infinito, não está ao alcance dos meus poderes, pelo contrário opõe-se ao meu poder e a mim para lá de toda a medida, porque ele é justamente a medida dessa desmedida. A sua exposição, o seu desamparo, a nudez total dos seus olhos sem defesa, a sua integridade, a franqueza absoluta do seu olhar, a equidade que o seu rosto exprime pela altura, pela direiteza etc. são a fenomenologia possível de um mandamento.
É verdade que o rosto do outro está exposto, ameaçado, como se nos convidasse a um acto de violência, mas ao mesmo tempo o rosto é o que nos impede de matar. O acesso ao rosto é imediatamente ético. O rosto presta-se à fenomenologia porque ele é sempre um aparecimento e o seu aparecimento só tem um significado ético: de cada vez o rosto profere o mesmo imperativo (mandamento): «não matarás». Mas essa ordem que de cada vez o rosto profere é sinal, mas não signo, de um rasto de que o rosto é epifenómeno, se assim podemos dizer. É o infinito que se mostra de cada vez que um rosto aparece e através dele a transcendência do divino. O ético e o metafísico convergem no rosto, ou melhor, no rasto que o rosto anuncia já como retirada, "sempre em diacronia e sempre exigência de diaconia. Já que o rosto arrasta consigo, através da sua fenomenologia, um testemunho que é gnoseológico, embora de uma outra gnose, o rosto oferece a verdade e oferece-se à verdade através da expressão e não através de um discurso de verdade. O rosto traz a verdade consigo. Ele é, no seu aparecimento, a verdade, e ao mesmo tempo o testemunho dessa verdade que perpassa nele como um rasto. O rosto fala e ao falar deixa de ser tema para se tornar discurso, mas não discurso no sentido do dito, que é narrativa e cristalização no mesmo, mas discurso diacrónico, permanente dizer. Como diz Lévinas: "O conteúdo primeiro da expressão é a expressão ela-mesma. Abordar outrem pelo discurso é acolher a sua expressão onde ele a todo o instante excede a ideia que dele se apropriaria um pensamento"37. Dito por outras palavras: Como é através da lógica do pensamento logocêntrico e da vontade de verdade que o mesmo se apropria do outro, o rosto dá-se enquanto pura expressão, e expressão é modo de dizer o lugar, onde o outro excede permanentemente a possibilidade dessa apropriação. O que significa que, acolher o outro através do rosto e despojar-me nessa contemplação de todos os meus poderes, significa acolher o outro para lá da capacidade do eu, o que significa ainda ter a ideia de infinito em mim, mas infinito que me chega através do rosto do outro. Deste modo acolho o outro naquela intimidade minha que me excede intelectualmente de tal modo que não posso tematizar, generalizar, reduzir a sua alteridade para assim dele me apropriar. Acolher o outro, portanto, é já imediatamente ser subjugação e antes da deposição dos meus poderes o rosto determina uma pré-deposição, uma fragilidade, uma subserviência, que antecede a possibilidade da vontade. De facto, tudo se passa à margem da minha vontade e é anterior a qualquer deliberação mesmo sentimental ou ética. É dum domínio outro que não o das deliberações. A minha posição resulta do facto de o outro me fazer face, e o rosto com que me visa ser imediatamente ético em si mesmo, porque me atinge no lugar, a partir do qual só posso responder em termos éticos ao imperativo do seu mandamento. Quer dizer que ele me oferece através da rectidão do seu rosto uma transcendência (e nunca é demais dizer que se trata da transcendência do infinito, ou seja, como veremos, do divino) à qual eu só posso responder, também, de modo transcendente.
A verdadeira exterioridade e, portanto, o infinito, está nesse olhar que me interdita toda e qualquer conquista."(...). Aqui estabelece-se uma relação, não com uma resistência grande mas com o absolutamente Outro -- com a resistência do que não tem resistência -- com a resistência ética. É ela que abre a própria dimensão do infinito e que trava o imperialismo irresistível do mesmo e do eu. Chamamos rosto à epifania do que pode apresentar-se tão frontalmente a um eu e ao mesmo tempo tão exteriormente"38.
Se a resistência ética é a presença do infinito, através do rosto, a ética, propriamente, está na ruptura da essência, ou seja, num desdobramento que se dá no sujeito e que se traduz, por um lado por uma ruptura da identidade que se abre como se fosse uma ferida, ferida aberta pelo trabalho da sensibilidade, e por outro lado, num deslocamento para o outro, em direcção a um diferente modo de ser. Dá-se um processo de substituição. Em entrevista a Augusto Ponzio Lévinas precisa o sentido da sua noção de substituição. Vamos passar a sua resposta na íntegra: "A noção de substituição está para mim ligada à noção de responsabilidade. Substituir-se não significa colocar-se no lugar de outro homem para sentir o que ele sente. (...) Substituir-se, é desde logo oferecer uma consolação associando-se à fragilidade e finitude essenciais do outro."É imediatamente suportar o seu peso sacrificando nesse acto o meu interesse a minha satisfação que se transformam em responsabilidade pelo outro-aí.
Mas foi o desinteresse (des-inter-esse) que suspendeu a essência e desse modo abriu uma brecha na cintura muralhada da identidade, do «amour de soi» egoísta, do «conatus essendi». Por essa brecha deu-se a abertura à exterioridade e ao infinito que é o rosto. O desinteresse é, justamente, o que se apura no confronto com o rosto do outro (confronto é parcialmente incorrecto porque o face a face não é nem declaração de guerra nem diálogo de orgulhos mas antes sujeição). "O eu suspende a sua persistência no ser (o seu egoísmo), num sujeitar-se ao outro, como se o eu fosse culpado relativamente ao outro"39. O desinteresse, como resposta ao problema do «il y a», é um dos conceitos-chave da hermenêutica fenomenológica de Lévinas.
A nudez do rosto é miséria e daí logo súplica na rectidão (exigência de justiça) com que me visa. Mas esta súplica é uma exigência. No rosto unem-se, assim, humildade e sublime. E é nesta convergência que se manifesta como um anúncio a dimensão ética da visita. A minha coincidência comigo mesmo, a minha ipseidade, o «conatus essendi» onde estou mergulhado enquanto simples ser vivo, fica perturbado por este apelo desmedido que é mais do que imperativo, sendo mandamento. A desmesura que ele significa, essa forma do mais, dentro do menos que é o meu ego, e que não obedece à lógica da necessidade porque não obedece à lógica da satisfação é o infinito em mim que se manifesta através do desejo. É o tal pensar mais do que se pode pensar e única forma de sair da tirania do «il y a». É no fim de contas a transcendência da alteridade que escapa aos poderes da minha consciência, até porque como diz Lévinas: a própria subjectividade do sujeito está na sua libertação de si e no facto de temer pelo outro.
É como se coabitassem, e eventualmente em conflito, duas vocações: uma centrada na perseveração do ser, egoísta e identitária e uma outra capaz de romper com esta autarcia, centrando-se no outro-aí, na sua existência de ser-para-a-morte. É desta nova intriga que falava há pouco Lévinas, querendo dizer que algo advem a mim que é mais importante do que eu, a sua morte mais relevante que a minha morte, o seu destino a ocupar o centro da minha responsabilidade e preocupação: "a aventura existencial do próximo importa neste caso antes da minha, o que quer dizer que coloca o eu imediatamente como responsável desta alteridade na sua dor, como se o surgimento do humano na economia do ser invertesse o sentido e a intriga da ontologia. Toda a cultura do Humano parece-me orientada para a nova «intriga» onde o em-si do ser-que-persiste-no-ser se ultrapassa através da gratuitidade do fora-de-si para o outro, no sacrifício ou na possibilidade do sacrifício, na santidade"40.
6. INFINITO E DESEJO
É na articulação do infinito enquanto transcendência, e do infinito enquanto pulsão pelo bem, que se estrutura a originalidade do pensamento levinasiano. O além estava já em Platão e o infinito em Descartes. Interessava descobrir uma estrutura mundana, na qual a convergência entre as duas instâncias do pensamento se pudesse realizar. Essa estrutura é, enquanto sentimento, o desejo, e, enquanto realidade, o outro. O des-inter-esse só tem na intriga do pensamento de Lévinas um desenlace consequente, porque pressupõe que o além, em que se possa fixar, não seja abstracto, embora permaneça transcendente. O rosto é o palco em que essa intriga se toma humana.
"O infinito não está ao alcance do pensamento que o pensa. A ideia de infinito é um pensamento que permanentemente pensa mais do que pode pensar. Um pensamento que pensa mais do que pode é desejo. O desejo mede a infinidade do infinito"41.
O tipo de desejo de que aqui se fala não é da família dos desejos que se podem satisfazer, o que já limitaria a sua infinitude e infinidade, assim como a transcendência do desejado. O verdadeiro Desejo é aquele em que o desejado não preenche mas esvazia. Ele é bondade. Pela sua natureza não pode ser saciado. Por isso não é desejo de uma pátria ou de uma plenitude perdidas, de paraísos perdidos ou a encontrar o que sempre provocaria a sua limitação. Não é portanto nostalgia passadista, escatologia salvífica e muito menos utopia42. É antes da natureza do imemorial. Este imemorial que se oferece como desejo e que na sua insatisfação permanece desiderato perseguido e nunca alcançado, é liturgia43, liturgia onde as dimensões anárquica e diacrónica o consubstanciam como prática e experiência, irredutível à fixação num corpus conceptual. Liturgia porque esta é justamente a prática que se alimenta apenas de si mesma. Liturgia que se alimenta de uma insatisfação que, e é esse o paradoxo, realiza e simultaneamente irrealiza. Pode talvez definir-se esse desejo sempre a realizar-se e sempre irrealizado como uma falta no ser a que nada falta, como em Platão onde o amor é filho da abundância e da pobreza. Não podemos mais uma vez deixar de pensar no nosso sentimento saudoso, que é muitas vezes essa carência, esse sentimento de falta a quem nada falta.
O desejo do bem é expressão de precaridade e insatisfação mas também confissão de injustiça. O rosto do outro é a revelação da injustiça da vontade (da minha vontade, que é sempre vontade de poder e de domínio). A consciência da minha injustiça acontece, justamente porque o outro-aí me oferece, através da nudez desarmada do seu rosto, o infinito do bem e da bondade. O outro-aí aparece-me através do seu rosto, não como um obstáculo, nem como uma ameaça que eu avalio, mas como aquilo que me avalia. É preciso, para me sentir injusto, que eu me confronte com o infinito. É preciso ter a ideia de infinito, que é também a ideia de perfeição, para conhecer a minha própria imperfeição; daí que a minha relação com o outro, mediatizada pelo infinito do rosto, seja imediatamente, para mim, uma sujeição, a assunção de uma humildade, a confissão de uma pobreza essencial. "O infinito não me trava através de uma força que faz fracassar a minha, mas porque ela põe em questão o direito naive dos meus poderes, a minha gloriosa espontaneidade de ser vivo, de «força que vai»"44. Face ao infinito eu sinto o quanto o eu é odioso, para citar Pascal. Face ao rosto do outro homem eu sinto a injustiça do meu egoísmo.
A estrutura da vontade livre ao tornar-se bondade não se assemelha mais a essa expontaneidade gloriosa e autosuficiente do ego, até porque a consciência moral é por sua própria natureza insatisfeita. Como vimos é da natureza do infinito pensar mais do que pode dando lugar ao desejo. da natureza deste Desejo ser Éinsaciável, não pela insaciedade do desejante mas pela não atingibilidade do desejado. A consciência moral que se forma é, assim, fruto de uma bondade, que é por sua vez desejo insatisfeito. Ou como diz Lévinas: o infinito no finito, o mais no menos que se realiza pela ideia de infinito, produz-se como Desejo, desejo desinteressado ou seja bondade. E esse desejo é a nossa própria socialidade.
Iremos ver no entanto que o aparecimento do rosto, ele - próprio, significa também mais do que o próprio rosto pode significar. O rosto fala, mas o seu modo de falar ultrapassa a sua capacidade de dizer. O rosto é expressão. O rosto é concretude, atravessada permanentemente por uma presença que se ausenta, para não ser do mundo e assim dominada. Neste sentido o rosto tem o significado de um lugar de Visitação. Algo me visita através do rosto que me visita. Significa isto que o rosto é epifania e que a epifania do rosto é Visitação, o que quer dizer ainda, que a epifania do Outro também é rosto, ou ainda mais, que o Outro escolheu como forma de entrar no mundo a fenomenologia do rosto. Seja de que modo for o rosto é entrada, aparecimento do sagrado no mundo.
Agora penso que se percebe o motivo pelo qual a nudez do rosto é, na rectidão que me visa, penúria e ao mesmo tempo súplica. E ainda porque é que esta súplica é uma exigência, um mandamento. Lévinas chega a dizer na entrevista a Philippe Nemo que a significação do rosto não é senão essa ordem. O rosto não é um signo que tenha uma ordem como significado, o rosto é só essa ordem, essa é a sua razão de ser. porque no rosto convergem a humildade e o sublime, e por aí passa e se anuncia a dimensão ética da visita, que eu não posso deixar de dizer que o rosto é perante mim uma imposição. Essa imposição determina a deposição dos meus poderes e exige o sentido da minha responsabilidade, nesse sentido em que o seu apelo e imperativo fazem com que eu não possa deixar de me sentir responsável pela sua miséria. "A consciência, assim, perde claramente a sua prevalência, porque a presença do rosto significa uma ordem irrecusável que põe termo à disponibilidade da consciência. A consciência é posta em causa pelo rosto. E este pôr em questão não dá lugar à tomada de consciência deste pôr em questão. O absolutamente outro não se reflecte na consciência, isto é, resiste de tal modo, que mesmo a sua resistência não se converte em conteúdo da consciência. A Visitação consiste em perturbar o egoísmo próprio do eu. O rosto desconcerta a intencionalidade que o visa"45. Perante a exigência de outrem o eu é expulso do repouso em que se encontrava (o repouso da boa consciência). A sua interpelação deixa-me desamparado e completamente trespassado pela nudez desprotegida do rosto e, acolher o absolutamente outro, traduz-se nesta miséria que faço minha.
A minha solidariedade é responsabilidade por tudo. Todo o edifício da criação repousa sobre os meus ombros...; e é este excesso, ou por este excesso, que se designa infinita a relação do eu com o outro.
7. O RASTO DO OUTRO
Como é que a transcendência que o outro é, e significa, escapa aos poderes da intencionalidade fenomenológica. Como é que o «outro» não se converte em «mesmo». Dizer que o outro se manifesta através do rosto não protege dessa possibilidade, que, vimos, tutela toda a tradição do nosso pensamento e que consiste liminarmente na inversão da transcendência em imanência. Ou citando textualmente Lévinas: "Como é que a chegada do outro a partir do absoluto e na Visitação do rosto pode não se converter de modo nenhum em revelação? como é que o rosto não é simplemente a representação verdadeira onde o outro renuncia à sua alteridade?"46. Porque o rosto é a única abertura onde o significado do transcendente não anula o transcendente para o fazer entrar na ordem imanente, mas onde pelo contrário, a transcendência se mantém como transcendência sempre revoluta do transcendente, e também por aí inapropriável. Inapropriável porque sempre revoluta.
Para compreendermos isso é necessário compreender que o rosto se oferece a uma fenomenologia outra, e é sobretudo necessário que se compreenda, que essa fenomenologia, pela sua natureza, bloqueia a, tão referida, tendência neutralizadora. ainda de uma fenomenologia do rosto que se trata, mas que visa o que, no rosto, a todo o instante se ausenta dele. O rosto vem de um além absoluto e imemorial. Esse além autosignifica-se através. do rosto como (enquanto) um rasto47, vestígio que ficou no acto do seu ausentar-se do rosto. E desse modo "o rosto significa como um rasto"48. O rasto não se oferecendo pela sua natureza à fenomenologia transcendental, interrompe no rosto essa fenomenologia, mas oferece-se a uma fenomenologia que Lévinas pratica: poderei chamar-lhe fenomenologia transcendente (e não transcendental), ou talvez, hermenêutica fenomenológica.
O maior mérito, passe o termo, do rasto, é então, o de interromper uma fenomenologia, o de interromper um processo, que nos seus desenvolvimentos cognitivos poderia oferecer o rosto aos poderes totalitários da ontologia. É a ausência que o rasto denuncia que dá ao rosto o seu sentido ético (porque não se obedece a nada de concreto, mas ao apelo da bondade. E é a bondade pela bondade que é desinteresse) e é a interrupção fenomenológica que o rasto assinala que dá ao rosto o seu sentido propriamente metafísico, ou seja, transcendente (porque jamais apropriável). "A sua superioridade não reside numa presença ao mundo mas numa transcendência irreversível"49.
Rasto, pegada e vestígio não nos dão a mesma imagem que a palavra francesa utilizada por Lévinas: «trace»; «trace» onde rasto é, ao mesmo tempo que vestígio ou pegada, um traço intencional, uma marca traçada. Isto leva-me a não entender muito bem a ideia de Lévinas, quando ele fala em apagar «les traces». Se é próprio de um ser transcendente deixar marcas, é próprio dele, que esses vestígios sejam intencionais e deliberados. Ele oferece através desse sinal uma chance; e ir para ele através dos outros, do outro homem, do Outro-aí signifca também responder a um apelo. Apelo velado, frágil, débil, como quem apela simplesmente a partir de exemplos ou sinais. Ir mais longe significaria antropomorfizar a «ileidade» que Deus representa e, deste modo, roubar-lhe a transcendência que lhe é própria. Apontar claramente um sentido seria já ontologizar o sentido, conferir-lhe uma dimensão temática e portanto reduzi-lo a conceito na economia de um discurso de verdade. Deus não se dá assim à apropriação, pelo contrário oferece-se de um modo absolutamente fugidio e esquivo (e oferece-se apenas como possibilidade do bem). Deus não se oferece aos meus poderes de tematização ou narratividade. Ele é epifania reiterada mas imediatamente ausente, fulgurante na pobreza e «droiture» do rosto, mas que imediatamente se apaga. Aparecimento que desaparece; à semelhança do clarão intenso que persiste quando desapareceu aquilo que o provocou. O rosto tem esse mistério dos lugares abandonados, onde a sensação de habitação prevalece. O rosto é esse rasto que ficou do que está sempre a abandoná-lo.
É neste sentido que ganha agora total expressividade a ideia de Visitação. agora que, penso, a ideia de Visitação, de imemorial e liturgia ganham uma luz própria. O significado último de Visitação é de uma aparição que desaparece. A persistência continuada dessa aparição expunha-se à tematização através da sua entrada no domínio da imanência. Através do rosto Ele faz uma entrada. Através dessa entrada, ele introduz na plasticidade dissimulada onde o ente se resguarda um rasgão. Como um "ser que abre uma janela onde no entanto a sua figura se desenha. A sua presença consiste em despir-se momentaneamente da forma que contudo o manifesta". Daí a perplexidade que um rosto provoca, o abismo a que nos convida, porque o que o rosto quer dizer chega "por detrás da sua aparência, detrás da sua forma como uma abertura dentro da abertura" 50.
Ir para Ele não é seguir este rasto; é ir para os outros que habitam o rasto, é virar o rosto na direcção do rosto dos outros onde o rasto mostra a maior visibilidade da ausência, ausência sempre a ausentar-se, presença instantânea do imemorial e ausência sempre definitiva.
ALGUMAS INFORMAÇÕES RELEVANTES SOBRE A VIDA E A OBRA DE EMMANUEL LÉVINAS
Emmanuel Lévinas nasce em Kovno, na Lituânia a 12 de Janeiro de 1906. A sua família emigra para Kharkhov, na Ucrânia, durante a 1a Grande Guerra mundial. Emmanuel Lévinas assistirá na Ucrânia à deflagração e consumação da Revolução Bolchevista de 1917. Entretanto, durante a sua juventude, desempenham papel de relevo, na sua formação intelectual, a Bíblia e o estudo do hebreu, mas também uma sólida formação clássica, onde devem destacar-se autores como Shakespeare, Pushkin e Dostoievski. Em 1923 parte para França, país a que ficará para sempre ligado, para estudar filosofia em Estrasburgo, onde conhece Maurice Blanchot. A amizade com Blanchot será outra das aquisições definitivas da sua vida. Nos anos de 1928 e 1929 ausenta-se de França para seguir em Friburgo, na Alemanha, os cursos de Husserl e Heidegger. O resultado deste contacto fará de Lévinas um dos primeiros especialistas em fenomenologia e na filosofia de Husserl. De ambos se tomará o introdutor em França, país a que regressa, imediatamente após os cursos de Friburgo, para apresentar a sua tese de doutoramento de terceiro ciclo, em 1930, subordinada ao tema: "La Théorie de l'Intuition dans la Phénoménologie de Husserl"e também para adquirir a cidadania francesa. Entretanto muda-se para Paris onde contacta com Brunschvicg, Kojève, Gabriel Marcel entre muitos outros filósofos e intelectuais e, em 1936, publica De 1'Évasion, obra profundamente marcada pelo pressentimento do «horror nazi». Em 1939 é mobilizado para "fazer a guerra" sendo entretanto feito prisioneiro em 1940. Durante o tempo em que permaneceu prisioneiro, num campo para oficiais, na Alemanha, quase toda a sua família era exterminada na Lituânia pelos nazis. Na época que se segue à libertação de Paris, Lévinas frequentará os célebres colóquios animados por Jean Wahl, no âmbito do denominado Colégio Filosófico da rua Montagne-Sainte-Geneviève. Aqui pronunciará conferências mais tarde publicadas com o título Le Temps et 1'Autre. Em 1947 publica De 1'Existence à 1'Existant uma das suas obras mais importantes e onde coloca magistralmente em questão a tese tradicional de que o mal é falta, carência, deficiência, no limite ausência de ser (nada), para propôr a inevitabilidade do ser, a inevitável persistência do ser através do «il y a»; esse fundo que persiste depois de toda a negatividade e nulificação; propondo ainda a tese de que é o ser na sua positividade que comporta o mal. E notável sobretudo o estudo fenomenológico acerca de Oblomoff, célebre personagem do romancista russo Gontcharov e onde â preguiça aparece como sinónimo do trágico que comporta a existência. A experiência ontológica de Oblomoff mostra que o existente está encurralado na existência, ou que o ente está fechado para sempre no ser. O ser prevalece, o nada é ficção. A saída não é para o nada mas antes para o sublime e para o absoluto. E por isso é aqui que o autor proporá, de modo ainda incipiente, a saída da essência para o outro, como forma de superação do «horror do il y a».
A partir de 1957 destaca-se, na sua biografia, a participação regular no colóquio dos intelectuais judeus de língua francesa. Desta colaboração regular resultarão as lições talmúdicas que o autor publicará entre 1968 e 1988: "À 1'Heure des Nations", "Du Sacré au Saint. Cinq Nouvelles Lectures Talmudiques" "L'au delà du Verset. Lectures et Discours Talmudiques" e "Quatre Lectures Talmudiques"
Em 1961 Emmanuel Lévinas é nomeado professor na Universidade de Poitiers após a publicação da sua tese de doutoramento, Totalidade e Infinito. Ensaio sobre a Exterioridade, e um dos textos maiores da filosofia do século XX. Nesta obra, o autor concentra a sua crítica no conceito de totalidade opondo-lhe, no seu pensamento, o infinito que, através do rosto do outro, pressupõe a relação e o frente-a-frente. Em 1967 é nomeado professor em Nanterre e em 1973 entrará para os quadros da Sorbonne (Paris IV) de onde sairá para a reforma em 1976.
Entretanto em 1974 publica aquela que é considerada a sua obra-prima: Autrement qu 'Être ou Au-delà de 1'Essence e onde se fecha a problemática aberta com o De 1'Existence à l 'Exista-ní através da saída do «il y a» pelas portas da transcendência, da responsabilidade e da ética.
Desde 76 até à sua morte, em 1996, o filósofo continuará a publicar e a prosseguir uma carregada carreira de conferencista, em França e no estrangeiro, ao mesmo tempo que a sua obra ganha progressivo reconhecimento e notoriedade, pelo que se assiste à multiplicação de entrevistas e ao aparecimento cada vez maior de trabalhos de reflexão sobre a sua obra. Uma destas conferências originou o notável texto de síntese e de sedimentação de alguns conceitos chaves na obra do autor: Transcendance et Intelligibilité. Uma das entrevistas fixou-se em livro com o título: Éthique et Infini onde, conduzido por Philippe Nemo, o filósofo passará em revista as grandes linhas da sua aventura intelectual. Esta obra constitui, de facto, uma notável introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas feita, no fim de contas, por ele-mesmo.
Revisão final de texto de Fátima Gomes
BIBLIOGRAFIA
COSTA, Manuel Afonso, O Problema do Outro (...), in: "Revista da Administração de Macau",1997.
BLUMENBERG, Hans, Le Souci Traverse le Fleuve, Paris, L'arche, 1990.
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NOTAS
1 Plourde, 1996, p. 149.
2 Finkielkraut, 1984, p. 18.
3 Plourde, 1996, p. 150. Neste ponto recuperando uma tendência da filosofia moral, que no século XVIII conduziu a brilhantes excursos filosóficos, como são exemplo, nomeadamente, as obras de Hutcheson e Shaftesbury.
4 Afonso Costa, 1997.
5 Pode cotejar-se, com interesse, o pensamento de Lévinas com o pensamento de Buber, Ricoeur e Rosenzweig relativamente a esta questão através das obras referidas na bibliografia: Em Buber a relação permanece fechada numa dimensão dialógica estrita, em Ricceur é interessante a problemática da passagem do fechamento para a abertura, e em particular, aquilo que o autor diz sobre o carácter, sobre a felicidade e sobre o respeito. No entanto a alteridade desempenha aqui um papel claramente menor. A passagem do estreitamento egoísta do carácter ao sentido da abertura que culmina no respeito passa pelo alargamento dos centros de perspectiva engendrados pela procura do bem através da felicidade. O que significa que o mesmo é fundamento último tanto do estreitamento egoísta como como da abertura. E é em Rosenzweig que encontramos conceitos percursores do pensamento de Lévinas como é o caso do conceito de diferença não-indiferente.
6 Lévinas, 1988, p. 187.
7 Apesar de remanescente relativamente ao corpo deste pequeno trabalho, gostaria de adiantar que a cultura portuguesa representa, apesar de tudo, aquilo que a cultura ocidental realizou de mais próximo relativamente aos valores que estão subentendidos na obra de Lévinas (como veremos a seu tempo): ou seja, a epopeia do homem desenraizado, da tra-ducção que se opõe à vegetalização do homem enraizado e vertical. Esse desenraizamento pressupõe "alienação" e altruísmo, transversalidade através das línguas e das culturas, despojamento e sacrifício da identidade. Este desenraizamento pressupõe a saga de uma humanidade que se ergue desde o baldio da terra e que não procura uma pátria até porque a pátria estará sempre noutro lugar: um lugar nunca presente. Pode dizer-se que a experiência portuguesa, histórica e cultural, é, em minha opinião, o exemplo mais flagrante de abertura ao outro tal como o problema aparece centrado na obra de Emmanuel Lévinas. Espero vir a poder mostrar, num outro texto, que, desde os seus fundamentos remotos até aos tempos que correm, a diáspora portuguesa responde ao apelo multiforme da heteronomia, tão bem expresso em termos poéticos e dramáticos na obra de Fernando Pessoa, e que a abertura existencial ao mundo é e foi sempre para os portugueses a epopeia de uma alienação, subordinada à consciência de uma liberdade, abandonada à sua contingência e à sua finitude irreductíveis. Esta consciência, que a saudade portuguesa exprime mais do que qualquer outra coisa, está cheia de uma juventude sempre nova e de uma sede de absoluto que jamais os factos da história, domínio do dito e da narrativa que o cristaliza, poderão saciar. Porque a mais autêntica expressão da alma portuguesa é permanente dizer, isto é dar testemunho, e não de uma certeza ou de uma convicção mas, pelo contrário, de uma dúvida dilarecante que só na procura do outro encontra sossego. Porque a cultura portuguesa foi e é alimentada por uma curiosidade insaciável, um Desejo, e por isso também uma procura que não é vontade de poder que no poder se realizaria esgotando-se mas procura que jamais será satisfeita porque é procura do mais dentro do menos. E isso é Desejo e Infinito.
Eu diria que a aventura espiritual portuguesa, desde as cantigas de amigo até à saga marítima, continuada depois por abundante poética, até aos nossos dias, é a expressão mais pura que se conhece na história das nações, de um desejo e de uma insatisfação animados pela sede de infinito. Ora o infinito é segundo Lévinas em última instância o divino e o divino, Esse, dá-se permanentemente através da epifania do outro.
A cultura portuguesa é, assim, o grande exemplo de uma cultura europeia da alteridade. Deve-o ao facto de o seu conceito nuclear ser a saudade e porque a saudade é o resultado do facto de se saber o Outro inacessível na sua condição de inapropriável e sublimidade única. Daí que a saudade seja a expressão de uma energia infinita da nostalgia. Daí que a saudade seja de facto a própria nostalgia do infinito. E é enquanto desejo de infinito que a saudade como conceito pode aspirar à transcendência. Nem desejo do passado, nem desejo do futuro, nem paraísos perdidos ou utopias. A saudade é um conceito transcendente, que exprime um desejo de transcendência e a alma saudosa só encontra uma paz momentânea calcorreando os caminhos do mundo à procura do infinito. O sentimento saudoso não pode confundir-se com a angústia, porque esta é relação com o nada e a morte própria. O sentimento saudoso não procura aquietar uma qualquer forma de sofrimento ou de dôr, porque ele é a sua própria dôr e só de si mesmo se alimenta, porque ele é na sua sede de infinito o seu próprio sofrimento, sofrimento infinito e inexplicável. Anular a saudade pela satisfação do que se deseja seria equivalente a anular a transcendência do infinito. Aquilo que constitui a dominante maior da filosofia ocidental: apropriação/satisfação, nunca penetrou os cânones temáticos da grande poesia portuguesa. Daí que Portugal seja um nação sem filosofia e com uma enorme tradição poética. Porque é a poesia a forma por excelência de cantar o infinito.
E é também, e ainda, a consciência, desta impotência em reduzir ao mesmo o que é por natureza outro, que toma uma coerente filosofia da saudade incompatível com qualquer forma de paganismo. O resultado deste despojamento é e conduz à dessacralização do mundo natural, ao silenciar dos «espíritos dos bosques» tão caros ao romantismo alemão e ao nosso poeta Pascoaes e pelo contrário implica e impõe a pobreza de uma esperança pura, (…) a força de um desejo que nada de finito pode satisfazer. Este Desejo maiúsculo é a substância do espírito saudoso. E, volto a repetir, este desejo não é desejo de posse, ele é antes pelo contrário desejo infinito de exposição ao outro até porque o que o anima é apagamento do ego e humildade absoluta e um tal desejo não pode abrir-se à presença negativa do absoluto se não começar por ser a prova e a experiência da sua ausência. A seu tempo perceber-se-á a força simbólica mas ao mesmo tempo real e mundana desta ausência. Ausência como sinal mas sobretudo como acontecimento impenetrável pelo logos.
Neste plano em que me situo Pascoaes é o anti-pensador da saudade. A saudade em Pascoaes articula-se num pensamento que a neutraliza por completo. Isso será, no entanto, assunto de uma outra reflexão.
8 Lévinas, 1995, p. 59.
9 Lévinas, 1984, p. 12.
10 Lévinas, 1984, p. 14.
11 Nietzsche não denuncia a doença, refere-se-lhe, pelo contrário, como sendo o antídoto para a doença por excelência que é a metafísica. Neste ponto particular, e que no entanto comporta todo o essencial das duas propostas, Lévinas é o anti-Nietzsche e a filosofia da alteridade de Lévinas é a fraqueza total. Dupla fraqueza porque é a minha fraqueza (ética e ôntica) face ao outro que é fraco, ou relativamente eu deveria ser forte e opôr à sua fraqueza a minha vontade de poder. O que eu ofereço ao outro é a face de quem desistiu de todos os poderes. É no limite sujeição e substituição.
12 É o sentido de toda a terceira parte, «Le Pour-Autrui», de L 'Être et le Néant de Sartre.
13 Lévinas, 1995.
14 A categoria da generalidade é, de facto decisiva, no processo do conhecimento em que o ocidente se especializou, tanto através da filosofia como através da ciência. De facto a realidade aparece sempre fragmentada revelando-se através da multiplicidade dos fenómenos. A multiplicidade dos fenómenos corresponde em nós a uma multiplicidade de perspectivas. Ficar por aí significaria desistir da possibilidade de conhecer o todo de que a multiplicidade é avatar. Mas parte-se do princípio que a totalidade se manifesta através da multiplicidade, que é mesmo próprio da sua natureza ou até da sua essência, o facto de se dar através da multiplicidade, de Abschattungen, "porque cada aparência da coisa possui de algum modo toda a coisa", ou dito de outro modo: " Na visão de um lado do objecto o todo do objecto é anunciado como qualquer coisa que se coloca como «unidade temporal das propriedades que permanecem ou mudam»" (Lévinas, 1963, pp. 24 e 25). Portanto o que é dado na percepção serve para determinar a transcendência que por esse motivo deixa de o ser. A verdadeira função do pensamento totalizante não consiste em olhar o ser, mas em determiná-lo organizando-o. É neste sentido que o pensamento totalizante é totalitário. Em Hegel o elemento que realiza a totalização é a própria história. Em Husserl é a intuição transcendental, etc..
15 Lévinas, 1971, p. 37.
16 Lévinas, 1988, p. 166.
17 Lévinas, 1988, p. 166.
18 Lévinas, 1988, p. 166.
19 Esta vertigem do logos ocidental para rejeitar aquilo que lhe é estranho e exterior tem, apesar de tudo, no pensamento ocidental contemporâneo uma contra-genealogia: "o contacto com e a inserção no mundo oriental (Schopenhauer), a redescoberta do elemento trágico e do arcaico em geral (Nietzsche), a penetração na esfera dos sonhos (Freud) e das proibições arcaicas (Bataille) e finalmente a história da loucura em Foucault". (Habermas; "As Ciências Humanas Desmascaradas pela Crítica da Razão: Foucault", in O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas, 1990, pp. 225 a 249). Em Foucault é a "vontade de verdade" a chave da relação interna que existe entre o saber e o poder. E neste ponto nos aproximamos de Lévinas, mas "desde Fichte que o eu faz, como sujeito que reflecte, a dupla experiência, de por um lado, se encontrar sempre no mundo já como algo de opaco, algo que se tomou contingente, mas que, por outro lado, se presta por esta mesma reflexão a tornar transparente aquele em-si e a elevá-lo a consciente para-si" (Habermas, 1990, p. 247). O que na linguagem de Lévinas se traduz pelo facto de que a verdade é o não constrangimento em que a liberdade se exprime. Mas esta liberdade é a vontade de poder, é a vontade de razão, ou, se se quiser, é a prepotência prévia que imediatamente delimita a exterioridade absoluta do transcendente à possibilidade de um objecto que se oferece ao poder da razão para ser reduzido, domesticado e aprisionado numa trama discursiva, conceptual e compreensiva, isto é totalizadora, para assim trazer à imanência o que ao eu cognoscente (consciência totalizadora) se ofereceu como sendo transcendente e outro. O esquema de Habermas a propósito de Fichte corresponde ao esquema de Lévinas: A passagem da opacidade à transparência é a passagem do outro ao mesmo, é a passagem da transcendência à imanência, processo autofágico através do qual o logos ocidental absorve, e elimina o que no seu processo de normalização/conservação lhe aparece pelo caminho. É isso que Lévinas quer dizer quando diz numa linguagem menos agressiva que a de Habermas ao falar de Foucault:"(...) as diligências do saber restabelecem a presença na eternidade duma presença ideal"; e onde o objecto reduzido a ser mundo se torna passivamente um aparecer e um oferecer-se à captura, à apropriação e ao poder, "(...) é talvez esta adequação do saber ao ser que nos leva a dizer que não se aprende senão o que já se sabe, que nada de absolutamente novo, que nada de outro, que nada de estranho (estrangeiro), que nada de transcendente poderá afectar ou verdadeiramente alargar um espírito prometido a contemplar tudo ou que como pretende o Timeu, o «círculo do Mesmo envolve o círculo do Outro». Um discurso é capaz de colocar em conjunto, à maneira de «espírito objectivo» pensamentos contraditórios apesar das dispersões e exclusões. E o verbo cogito na primeira pessoa do presente do indicativo significa já -- e talvez antes de tudo o mais -- a apercepção transcendental que engloba o pensável na sua totalidade e, assim, constitui a autonomia do saber que se basta a si próprio e se concentra na unidade sistemática à qual se presta a consciência de um eu." Lévinas, 1984, pp. 13 e 14.
Nietzschejá havia dito que «a razão apenas constitui a sua estrutura pela via da exclusão dos elementos heterogéneos e da concentração monádica sobre si mesma». Habermas, 1990, p. 227, nota 3.
20 Lévinas, 1988, p. 166.
21 Lévinas gosta de citar o pensamento de Pascal que sustenta esta expressão: "talvez que o humilde «lugar ao sol» seja já indício de dominação e violência: de usurpação em suma" (Nota do autor).
22 Aproveitamos aqui a indicação que nos parece muito sugestiva de Félix Duque para traduzir «autrui» por «outro-aí». A explicação que dá Duque parece-nos pertinente já que grande parte da obra de Lévinas é um diálogo cerrado com Heidegger. Assim: " Mi propuesta de traducción compuesta no es inocente: pretende sugerir que «otro-ahí» es la respuesta contundente de Lévinas al heideggeriano «ser-ahí» (être-là, como se dice en francés, por más que esta versión de Dasein sea incorrecta). «Ahí» es un extraño adverbio de lugar: no se refiere ni a la posición del que habla («aquí») ni a la del que escucha («allí»), sino a un «tercer lugar» intermediario, un lugar próximo a la vez a «mí» y a «ti»: el lugar del prójimo, de una tercera persona interpuesta y que está fuera de juego, privada de palabra. Non un alter ego como el estudiado por Husserl en su quinta Meditación Cartesiana, no «uno de dos», sino «uno entre dos», al margen de la relação dialógica, al margen del diálogo (de ahí las críticas de Lévinas a la relación buberiana del Yo y el Tú).
Referência à obra de Martin Buber: Le Je et le Tu; Buber,1969, p.78.
23 Blumenberg, 1990, p. 126.
24 Lévinas, 1988, pp. 170 e 171.
25 Lévinas, 1984, p. 26.
26 Lévinas, 1988, p. 172.
27 Todas as citações estão contidas nas obras de Lévinas referidas nestas Notas ou na bibliografia recorrente.
28 Lévinas, 1974, p. 15.
29 Lévinas, 1974, p. 15.
30 Finkielkraut, 1984, pp. 22, 23 e 24.
31 Lévinas, 1986, p. 142.
32 Finkielkraut, 1984, p. 25.
33 " O outro, pelo contrário, apresenta-se, num certo sentido, como a negação radical da minha experiência, uma vez que ele é aquele para quem eu sou não sujeito mas objecto. Eu esforço-me então, enquanto sujeito de conhecimento, em determinar como objecto o sujeito que nega o meu carácter de sujeito e se determina em mim ele-próprio como objecto. (...) o outro é para mim ao mesmo tempo aquele que me roubou o ser, e aquele que faz com que haja um ser que é o meu ser".
34 Sartre, 1943, p.413.
35 Lévinas, 1982, p. 42.
36 Lévinas,1988, pp. 172, 173.
37 Lévinas, 1971, p. 43.
38 Lévinas, 1988, p. 173.
39 Ponzio, 1996, p. 144.
40 Ponzio, 1996, p. 143.
41 Lévinas, 1988, p. 174.
42 As escatologias são apesar de tudo formas de adiamento da responsabilidade. A relação com o outro não pode ser deslocada no futuro ou no passado por que aí é o lugar de todas as conversões e totalizações. Ela é só presente ou seja dizer e liturgia. Nem dito, nem narrativa nem anúncio. Lugar do evento e da fenomenologia.
43 A liturgia é um ofício, senão completamente gratuito, pelo menos requerente da parte daquele que o exerce de um investimento perdido, o que reforça a ideia de desinteresse. A liturgia, culto da paciência, é a própria ética (Lévinas, 1988, p. 192).
44 Lévinas, 1988, p. 176.
45 Lévinas, 1988, pp. 195 e 196.
46 Lévinas, 1988, p. 195.
47 Esta construção em que tivemos que mostrar a dificuldade em optar entre a palavra "como" ou "enquanto", evidencia a ambiguidade própria do rosto. Ele é expressão de transcendência enquanto simples rasto. O rosto é um rasto. Ele é no entanto a concretude desse além absoluto, desse transcendente que aí se toma humano mas sempre revoluto. O além deixa um rasto no rosto.
48 Lévinas, 1988, p. 198.
49 Lévinas, 1988, p. 201. São inúmeras as expressões através das quais Lévinas nos procura mostrar a conexão estreita e indissolúvel (constitutiva) entre o humano e o sagrado: "Visitação da transcendência sob a forma sempre repetida de um abandono, de uma luz que se apagou (...). Esta terceira pessoa que logo já se retirou do rosto. Este além, esta transcendência é toda a enormidade, toda a desmesura, todo o infinito do absolutamente outro escapando à ontologia.", etc..
Lévinas, 1988, p. 194.
*Licenciaturas em Engenharia, pelo I. S. T. (Lisboa), e em História, pela Fac. de Letras da Universidade Clássica de Lisboa. Mestre em História Cultural e Polí ica (Faculdade C. S. e H. da Universidade Nova de Lisboa). Prepara Doutoramento em área do domínio da História das Ideias. Publicações dispersas em revistas sobre temas de Filosofia e História.
desde a p. 135
até a p.