Linguística

HISTORIA E LITERATURA
Uma Tradição Comum

Maria Trigoso*

Na tradição chinesa, a História e a Literatura não podem ser compreendidas separadamente, como duas áreas distintas, uma vez que funcionam em conjunto, muito como um par de pólos opostos que se complementam. Duas são as razões que subjazem a esta complementaridade. Primeiro, a História foi sempre tradicionalmente considerada como um ramo da Literatura, em pé de igualdade com a Poesia, o outro ramo nobre da Literatura. A segunda razão prende-se com o facto de a História ter estado sempre presente na Literatura, quer através dos seus conteúdos, quer através do seu estilo. Tanto o conto como o romance tradicionais têm origem directa na dupla tradição da escrita da História - a História oficial e dinástica, e a chamada História marginal, que desde cedo correu paralela à primeira, constituída sobretudo pelo registo privado de episódios, que, pela sua anormalidade ou originalidade, eram sentidos como dignos de serem preservados, ainda que não no registo mais nobre da história dinástica. Por outro lado, a riquíssima literatura de tradição oral, a outra origem da ficção chinesa, era constituída, na sua maioria, por episódios da História. O romance tradicional, em língua coloquial, está assim, directamente ligado à tradição da historiografia.

No que se refere à tradição da prosa, tanto no chamado sanwen, como no guwen (em chinês clássico) tomavam, frequentemente, temas contemporâneos e episódios da vida real.

Também a poesia teve sempre tendência para permanecer ancorada no real, basta lembrarmo-nos de como a poesia chinesa é, em grande medida, uma poesia de circunstância. Para além disso, contudo, as duas obras fundadora da Poesia chinesa, o Shijing (J. Guerra, S. J., O Livro dos Cantares, 1979, Macau, Aidan Publicities & Printing/ICM) e o Chu Ci (Idem, Cantos de Chu) têm profundas raízes na História. É na primeira que encontramos grande parte da História e da mitologia histórica da fundação da nação, a epopeia das dinastias Shang e Zhou. Os Cantos de Chu, sobretudo o poema 'Li Sao' de Qu Yuan, por seu lado, pelo seu lado autobiográfico, têm uma forte ligação ao tempo e ao espaço histórico do(s) seu(s) autor(es).

A Literatura, por seu lado, está igualmente presente na História, através do estilo e das convenções literárias usadas pela narrativa histórica, nomeadamente o recurso frequente à poesia.

A poesia entra na escrita da História desde muito cedo e de duas maneiras. A obra conhecida por Zuozhuan (Trad.: Relação Auxiliar. Cf. J. Guerra, S. J., Quadras de Lu e Relação Auxiliar, 5 vols., 1981-83, I. C. M./Aidan Publ. & Printing, Macau), o mais famoso dos três comentários à crónica histórica Chunqiu (Trad. Guerra: Quadras de Lu, cf. acima)1, reproduz grande parte das falas entre os participantes de reuniões diplomáticas como uma troca de poemas, exactamente dos poemas do clássico Shijing. É interessante notar, a este respeito, que não foram os poemas conhecidos por daya, os que deliberadamente narram mitos e factos históricos, ( a épica chinesa, ou 'Weniad', do rei Wen, como lhe chama C. H. Wang2) que se tornaram na linguagem diplomática da dinastia Zhou, mas sim os chamados guofeng, que são os mais simples e mais líricos, de óbvia origem popular. O que em parte terá acontecido por motivos de ordem prática, uma vez que os daya eram demasiadamente longos para serem citados. Mas, não nos podemos esquecer que os guofeng, apesar da sua aparência lírica e ingénua, foram sempre lidos e interpretados de forma alegórica, como referindo-se, de forma camuflada, a factos políticos ou a personalidades contemporâneas. E esta tradição interpretativa não era, como não foi, senão um processo de situar, sistematicamente, os factos e as personagens literárias, na História.

Por outro lado, tal como acontece no romance chinês, em que a narrativa em prosa é frequentemente interrompida pela inclusão de poemas (nomeadamente para as descrições em geral) também a escrita da história mistura frequentemente a prosa com a poesia. Para os leitores de língua portuguesa, o melhor exemplo desta mistura entre a Literatura e a História, nomeadamente pelo recurso sistemático à poesia, na escrita duma crónica histórica, é a obra conhecida por Monografia de Macau, traduzida por Luís Gonzaga Gomes.

Relativamente à segunda antologia fundadora da poesia chinesa, o Chuci (ou Cantos de Chu), que instaura o filão do romantismo, (mas que deriva, ainda que em tempo e em local diferente, da primeira obra, realista, o Shijing), também a maior parte dos seus poemas têm raízes na História. Do Norte passamos para o Sul da China, sendo o contexto histórico dos poemas o reino de Chu e a expulsão dum histórico ministro virtuoso, o poeta Qu Yuan, o seu tema principal.

Podemos ainda evocar a relação directa entre a História e o género literário fu, que surge na continuação da poesia do Chuci. É um género literário, sem paralelo na tradição europeia, que alterna uma prosa rimada com poesia, e que deve o seu nome (fu quer dizer descrever) às suas descrições muito elaboradas e verbalmente exuberantes. Género literário ao serviço da glorificação do poder político, o fu pretendia, frequentemente, ao mesmo tempo que dava conta de históricas magnificências - desde a construção dum palácio, a realização duma caçada, até um sonho imperial, servia também para admoestar, e assim reformar, moralmente, o governante.

Poder-se-ia dizer que a História fez da Literatura o seu corpo, a sua substância, para viajar no tempo e no espaço, ( para, em todas as épocas, chegar a todas as classes) tal como a Literatura se serviu da História como sua fonte de inspiração permanente, tanto para os seus temas como para o estilo. E assim, na tradição chinesa, a História sempre teve tendência a ser uma forma de arte literária tal como a Literatura uma forma de arte histórica. Ao misturaram-se constantemente, foram-se transformando sempre uma na outra, de tal maneira que o seu sentido, enquanto formas de expressão de arte, apenas nos aparecer completo, quando observado em conjunto. Esse sentido histórico-literário, que advém da oposição complementar entre Literatura e História, poderia ser resumido como a tradição da interacção entre a "historicidade" e a "ficcionalidade".

LITERATURA ANTIGA: HISTÓRIA COMO FICÇÃO

A actividade inicial de "registar palavras"3, isto é, da escrita da História, nunca esteve completamente separada da actividade, muito mais tardia de, deliberadamente, as inventar. A Literatura, tanto histórica como de ficção, quer em vernáculo quer em chinês clássico, realista ou fantástica, foi sempre escrita e lida como algo profundamente enraízado na realidade, realidade que é, por sua vez, a fonte principal da História.

A existência desta não contradição entre a "literatura-como-ficção e a literatura-como-história", pode ser vista à luz do background da eterna discussão entre investigadores da nossa época acerca do direito de incluir, na Ficção, certos textos narrativos literários antigos, como por exemplo os do Shishuo Xinyu, (Talk of the World; New Conversations) 4.

Yoshikawa Kojiro levanta a questão de uma forma que funciona tanto no contexto tradicional chinês como na perspectiva ocidental dos estudos literários. Ele sugere uma forma de ultrapassar a contradição entre realidade e ficção, ao afirmar que a ficção pode ser definida de duas formas diferentes, e, no seu sentido mais lato, abrange tanto os textos conhecidos por zhiren (curtos registos de episódios interessantes efectivamente ocorridos a pessoas de algum destaque no mundo das letras), tal como eles aparecem no Shishuo Xinyu, como os registos de episódios de anomalias ou de encontros entre mortais e imortais ou outros seres sobrenaturais, os textos conhecidos como zhiguai5, cuja antologia mais conhecida é o Sou Shen Ji (In Search of Deities).

Kojiro escreve que os textos zhiren não constituem ficção se a ficção for definida como "uma construção imaginária de palavras sem base directa na realidade". Continua, no entanto, afirmando que são ficção, se a ficção for definida como "a reprodução imaginativa da realidade sentida, não obstante a historicidade dos factos descritos"6.

Também em termos de estilo da escrita, costuma ser levantada a relação intrínseca entre a Literatura e a História. O discurso directo, por exemplo, que será a forma mais natural (e talvez a única?) de representar o discurso real, é a característica formal mais evidente, que a escrita da ficção herdou da escrita da história. E, na tradição da escrita da história, o discurso directo, por vezes contestado como pouco histórico, em termos da veracidade histórica, vem da obra fundadora, um dos "Cinco Clássicos", o Shujing (Guerra: Escrituras Selectas).

Se, no campo da História, nos podemos sempre questionar sobre a verdade histórica -quem é que estava presente no momento da enunciação do discurso para registar as palavras que foram realmente pronunciadas, ali reproduzidas em (discurso) directo, na Literatura, pelo menos na perspectiva ocidental, esse não parece ser um problema. A preocupação, na e da Literatura, não será tanto o ser o texto verdadeiro (como na História), mas antes de o parecer. Este efeito de 'verosimilhança', numa literatura em que o diálogo é predominante, está intimamente ligado ao que poderíamos chamar de efeito de 'coloquialidade'. O que, se coloca com particular acuidade na tradição chinesa, uma vez que a esmagadora maioria das obras são escritas numa língua exclusivamente literária, que já não há vários séculos havia deixado de ser falada. Como é que esse 'efeito coloquial' pode ser criado numa língua morta, como é, na verdade, o chinês clássico, é a questão levantada por Richard Mather7, relativamente aos textos zhiren, tidos, tradicionalmente, como exemplares de diálogos, vivacidade e coloquialidade, ainda que escritos numa língua literária morta.

LITERATURA CLÁSSICA: FICÇÃO COMO HISTÓRIA

A grande diferença entre os contos conhecidos por chuanqi, da dinastia Tang8 e os anteriores zhiguai e zhiren, têm que ver com o facto de as histórias, terem passado a ser escritas como peças, por um lado deliberadamente literárias (e não mais simples e despojados registos marginais) e por outro, pela clara consciência dos seus autores de que estavam a criar, ou recriar, histórias e não mais a registar eventos. Contudo, a tradição da escrita da história, tem tal peso na escrita desta primeira literatura de ficção, que os seus autores recorrem a uma série de estratégias literárias visando criar, no leitor, o sentimento de estar a ler eventos da história. No seu comentário final, fazendo uma apreciação moral do que acaba de relatar, (muito na tradição da escrita do Zhuozhuan) o narrador costuma disfarçar a origem ficcional da sua história, declarando que se limitou a escrevê-la tal e qual como a ouviu a determinada pessoa que, nela tendo participado, é testemunha totalmente fiável da veracidade da mesma. Mais do que tentar produzir o efeito da verosimilhança, (tarefa eventualmente mais difícil para a parte importante do corpus que lida com temas do sobrenatural) os autores dos chuanqi pretendem criar o efeito de historicidade, fazendo-o tal como o romance histórico o virá a fazer mais tarde, durante o Romantismo, na Europa.

Nas imitações dos chuanqi Tang, que surgem na segunda metade da dinastia Ming, a História ainda se torna mais presente neste tipo de ficção, na medida em que a fonte inspiradora das histórias é agora a riquíssima literatura oral, aparecida na dinastia Song, em língua vernácula, e que se caracteriza pela predominância de temas históricos. O professor Liu Wu-chi9 escreve que os contadores de histórias eram "auto-didactas que interpretavam a história e as lendas em concordância total com o conceito de retribuição moral",. Um bom exemplo é o conto Ming The Loyal Citizens ( "Os Cidadãos Leais"), de Li Yu, mas que conta a luta do povo de Suzhou contra o tirano Wei Zhong-sian, na época anterior.

Por seu lado, o romance chinês, que só aparece na dinastia Ming, deve o seu nascimento à enorme difusão dos chamados huaben, inicialmente apenas os guiões usados pelos contadores de histórias e, posteriormente, contos já escritos em imitação deste modelo anterior. É o enorme desenvolvimento desta literatura, de inspiração oral e escrita em baihua (vernáculo)-em oposição ao tradicional yanwen (o chinês clássico que era a língua utilizada para a escrita da poesia, da prosa e da história)-que vai permitir o desenvolvimento do romance. Não é senão natural que no romance chinês, se possam encontrar, até ao início do nosso século, marcas estilísticas fortes dessa memória da oralidade das histórias. Tal como, a nível temático, o romance chinês vai herdar todo o repertório histórico que era o da literatura oral.

E assim, quando se esperaria que a Ficção se separasse naturalmente da História, (já que aparecia, pela primeira vez, escrita numa outra língua, destinada a outro público, e com outra função), a Ficção Chinesa volta-se novamente para a História.

Do conjunto de romances conhecido por Si Da Ming ("Os Quatro Grandes Ming"), todos, excepto o Jin Ping Mei, são textos que relatam ou referem, recriam, de uma forma ou de outra forma, acontecimentos da História chinesa. Além de exemplos da Ficção como reescrita da História, são também todos eles, simultaneamente, exemplos da reescrita literária, característica da literatura chinesa, por se tratarem de textos que recriam histórias anteriores.

Jin Ping Mei não é um exemplo da reescrita histórica (ainda que certos dos seus episódios sejam exemplo da reescrita literária). Como romance de costumes, ou de crítica social, é total a sua ancoragem na realidade social e política da época, (a pontos do seu autor ter decidido manter-se para sempre no anonimato) sendo tradicional, na crítica literária chinesa, o debate sobre 'quem era' na vida real o seu personagem principal. Talvez nunca venhamos a saber se Xi Menqing existiu na História, muito menos se foi alguma das pessoas com quem tem sido identificado. No entanto, o facto de a discussão se prolongar, neste romance como para outros, é a prova do hábito de olhar a Ficção mais como "imitação" ou recriação da História do que como criação de histórias. O mesmo vai acontecer, nos Qing, com o mais clássico de todos os romances chineses, o Hongloumeng (O Sonho do Pavilhão Vermelho), sempre lido como a recriação duma biografia ou, até, como uma autobiografia.

Xiyouji, (A Viagem ao Ocidente), exemplo do romance fantástico, que a crítica chinesa lê como uma profunda e esotérica alegoria religiosa, retoma a viagem do monge budista, da Dinastia Tang, à Índia em busca das escrituras budistas.

É no Shuihu Zhuan ["À Borda da Água"], exemplo do romance de heróis, que a relação com a História aparece mais complexa. De acordo, tanto com a história, como com a crítica literária tradicional, Liangshan, a montanha onde 'vivem' os "108 fora-da-lei", que são as personagens principais do romance, teria sido, de facto, a região onde se teriam refugiado alguns dos principais intervenientes da revolta dos camponeses, ocorrida na província de Shandong, no fim da dinastia Song. Todavia, para além desta identificação imediata, entre o local da ficção e o local da história, outras relações, decerto mais profundas, poderão existir, entre as duas realidades, já que certos estudiosos defendem que o romance é um exemplo único da literatura de propaganda política, no sentido em que alguns dos seus heróis teriam estado envolvidos não só nos factos históricos narrados, mas também na sua criação e difusão. A tese mais articulada vem de Phillip S. Y. Sun, que escreve que foram estes "desesperados", das milícias populares (que lutavam contra os Jurgens e Mongóis, no período entre a retirada para o sul da corte, da dinastia Song e a formação da dinastia Ming) que "contaram e escreveram mais contos sobre Liangshan, quer para difundir a causa, junto da população, quer para fornecer algum entretenimento às suas próprias fileiras, quer ainda para lhes servir como guia de acção "10.

Finalmente, aquele que é o primeiro do conjunto dos quatro grandes romances Ming, o San Guo Yanyi (História dos Três Reinos), um exemplo de romance histórico, representa como que uma radicalização da moda de utilizar a Ficção como veículo da História. Muita da escrita de ficção do início da dinastia Ming constitui uma espécie de reacção contra o que então se entende por a infidelidade histórica dos contadores de histórias, assente na consulta exclusiva de crónicas históricas oficiais. São diferentes as reacções ao San Guo Yanyi, consoante o ponto de vista que se tem sobre a arte da ficção. Feitas a partir de pontos de vista literários mais "puros", mais ou menos contemporâneos ao romance, há os que se queixam11 que o San Guo Yanyi " é pedante porque faz uma colagem demasiado próxima aos factos históricos". Críticos posteriores, como, por exemplo, Zhang Xuecheng, na dinastia Qing, consideram-no confuso por ainda comportar "três dezenas de ficção" misturadas com as suas "sete dezenas de factos".

LITERATURA E HISTÓRIA OU FICÇÃO E HISTÓRIA?

Só muito tarde, na história da Literatura Chinesa, é que a Ficção veio a ser reconhecida como parte da Literatura. Na tradição chinesa, a Literatura foi, durante séculos, apenas a História, enquanto registo de palavras e de acontecimentos, (na tradição do Shujing) e a Poesia, como expressão das emoções (na tradição de Shijing). Só a estes dois géneros literários se reconhecia a capacidade de elevar moralmente o leitor, pelo que a ficção, entendida como género para entretar, não fazia qualquer sentido neste corpus acima de tudo didáctico.

O que não quer dizer que, paralela à literatura oficial e funcional, não tenha existido sempre uma literatura pela literatura, rejeitada por não ser história oficial e denunciada como xiaoshuo (à letra: "conversa menor"). Xiaoshuo acabou por ser o nome que ficou a designar a Ficção, em geral. Na verdade, a parte da Literatura que no Ocidente designamos actualmente por Literatura, generalização não inteiramente possível na língua e cultura chinesas, no contexto das quais, por um lado, a palavra literatura, wenxue, dificilmente seria assimilável à ficção, xiaoshuo, e, por outro, o termo xiaoshuo, ficção, dificilmente seria usado para classificar textos obviamente de ficção, escritos em chinês clássico, antes da dinastia Tang, apenas porque neles nos é contada uma história. A famosa história de Tao Yuanming, (Tao Hua Yuan; ['A Nascente do Jardim dos Pessegueiros']), pese embora o seu óbvio conteúdo ficcional, é tradicionalmente apresentada como exemplo de guwen, prosa antiga, jamais como ficção.

Talvez possamos dizer que, nesta tradição, não é a História que é versus a Literatura mas antes a Literatura como História versus a Literatura como Ficção. Salientando necessariamente que se trata de ficção em prosa ou em verso. Pois só assim se consegue dar conta também do papel da Poesia, nomeadamente no teatro Song e Yuan (cujas falas alternam entre prosa, para declamar, e versos para cantar, e cujos temas são, também eles, predominantemente recriações de incidentes históricos), no enraizamento do passado em cada momento do presente, assim o mantendo vivo.

Uma vez por outra surgiram, do lado da História, denúncias aparentemente tardias, sobre a falta de verdade histórica em determinados episódios de consagradas peças de teatro. A reacção, do lado da literatura, foi, mais de uma vez, a de contra-argumentar que se o povo chinês tinha criado aqueles acontecimentos, no palco, há tanto tempo atrás, para satisfação de tantas gerações que os tinham vivido como verdadeiros, eles se tinham tornado, por direito literário, factos históricos. Se aceitamos que a História fez a Ficção, quem poderá negar que a Ficção também tenha feito a História?

N. E.- Texto traduzido do original inglês

por Ana Paula Cleto e revisto pela autora.

NOTAS

1Uma crónica histórica muito lacónica, do estado de Lu, cuja aura de santidade - é um dos clássicos - lhe vem da ideia de que teria sido organizada por Confúcio. Como se acreditava que Confúcio teria atribuído, às frases extremamente lacónicas da obra, sentidos morais ocultos, muitas gerações de letrados tentaram decifrar o sentido inviolável da maioria das máximas. Três comentários posteriores tentam fornecer o background dos acontecimentos mencionados na crónica Chunqiu [Lushi Chunqiu [jishi]: [Colectânea das] Crónica de Lu (e) Anaisda Primavera e do Outono].

2WANG considera que cinco dos poemas daya constituem "a substância de uma épica", muito semelhante à Eneida, tanto no conteúdo como no estilo, in From Ritual To Allegory - Seven Essays on Chinese Poetry, The Chinese University Press, Hong Kong, 1988, pp 74.

3A expressão vem do clássico Shujing, um registo meio místico meio histórico dos acontecimentos e proclamações, tida como pertencente à antiguidade mais remota.

4Compilação feita por Liu Yiqing (403-444 d. C.) de mais de mil historietas e registos de conversas, entre letrados.

5Zhiren e zhiguai são os nomes tradicionais dados a textos que constituem o corpus das chamadas biji ou "notas em prosa", opondo o registo de acontecimentos naturais e vulgares (com pessoas: ren), ao registo de fenómenos sobrenaturais e extraordinários (estranhos: guai).

6In The Shih-shuo hsin-yu e Six Dynasties Prose Style, "HarvardJoumalofAsiaticStudies", 18: 1.2, (Junho 1955 ); traduzido por Glen Baxter.

7The Fine Art of Conversation: The Yen-yu p `ien of the Shih-shuo hsin-yu, "Journal of the American Oriental Society", 91:2, ( Abril-Junho 1971).

8Contos, da dinastia Tang, escritos em chinês clássico.

9LIU Wu-chi, The Dream of the Red Chamber, Indiana University Press, Bloomington, 1972.

10The Seditious Art of the Water Margin - Misogynists or Desesperados?, in "Renditions", ChineseUniversity of Hong Kong, Hong Kong, Autumn,1973, pp 99-106.

11XIE Zhaoji, citado por Lu Xun, in A BriefHistory of Chinese Fiction, Foreign Languages Press, Beijing, 1987, p.158.

*Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Clássica de Lisboa e pós-graduada em Língua Chinesa pela Universidade de Macau e por instituições de ensino superior da República Popular da China.

desde a p. 201
até a p.