Antropologia

MACAENSES EM PORTUGAL: IDENTIDADE, MORTE E FAMÍLIA
Um Modelo de Análise

Vanessa Cunha*

Cemitério de S. Miguel Arcanjo, Joaquim Castro.

1. ALGUMAS REFLEXÕES EM TORNO DA IDENTIDADE MACAENSE

"[...] a produção de identidades sociais implica a imbricação de dois processos: o processo pelo qual os actores sociais se integram em conjuntos mais vastos, de pertença ou de referência, com eles se fundindo de modo tendencial (processo de identificação); e o processo através do qual os agentes tendem a autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, fixando em relação a outros, distâncias e fronteiras mais ou menos rígidas (processo de identização) [...].

Todo este processo, feito de complementaridade, contradições e lutas não pode senão conduzir, numa lógica de jogo de espelhos, a identidades impuras, sincréticas e ambivalentes [...]. Procurando pôr agora a tónica no eixo das diacronias, o que interessa desde já dizer é que a construção da identidade se alimenta de trajectos sociais incorporados nos agentes, da posição ocupada por estes na estrutura social (na medida em que ela determina e configura contextos de sociabilidade e de socialização duráveis) e dos projectos que, em função das coordenadas estruturais antes referidas, são socialmente formuláveis em cada momento"1.

A razão de ser desta longa citação, da proposta de José Madureira Pinto sobre a conceptualização da identidade, funda-se na seguinte observação: muito do que se tem escrito acerca de Macau, prende-se com a especificidade da identidade macaense, com a dinâmica de identificações e identizações em relação às matrizes culturais hegemónicas em presença no Território (através da qual a identidade se constrói e reconstrói); e com esta espessura temporal da história de Macau, que tem a montante e a jusante, respectivamente, uma origem e um projecto comuns.

Muito se tem escrito, porque a identidade macaense é um campo aberto e em constante discussão. As diferentes teses sobre a origem do homem e da mulher macaenses, algumas delas conflituais2, encerram a contradição fundamental da identidade étnica e cultural macaense que, por isso mesmo, é problemática e sujeita a manipulações3.

Historicamente, a identidade macaense tem-se definido por identificação a uma matriz cultural portuguesa e por identização a uma matriz cultural chinesa.

Jorge Morbey defende que este facto radica no "domínio escrito e falado do português que, como qualquer idioma, é a chave do acesso a uma cultura e, simultaneamente, da sua difusão"4

João de Pina Cabral e Nelson Lourenço, para além da língua e da cultura portuguesas, identificam o catolicismo e a mestiçagem euro-asiática enquanto vectores de auto e hetero identificação dos macaenses enquanto grupo distintivo. Estes vectores constituem, portanto, o capital de portugalidade desta comunidade. Durante o período colonial (1846/1967), esta portugalidade constituía um monopólio étnico que conferia à comunidade macaense vantagens em relação à comunidade chinesa, nomeadamente junto da administração portuguesa do Território5.

A transmissão de referentes culturais de geração em geração no contexto dos casamentos luso-chineses decorre da estrutura interna dessas famílias, ou seja, da questão pacífica da liderança masculina no seio da família. Assim, no contexto de casamentos entre portugueses e chinesas, a matriz cultural que vingava era a portuguesa devido, em grande parte, à opção do ensino português. Mas, a "partir da segunda metade da passada década de 70, principalmente por ter cessado a vinda de contingentes militares portugueses para Macau, reduziu-se a frequência de casamentos interétnicos que fora regra nos decénios anteriores [...]. Simultaneamente produziu-se um facto novo, pelo menos em termos de frequência. Encontrando-se reduzida a oferta de portugueses com quem pudessem casar, as macaenses passaram a fazê-lo, em maior frequência, com homens chineses"6. Nestes casamentos, a posição liderante do homem inverteu as regras do jogo: a matriz cultural de referência passou a ser a cantonense, a qual está marcada "pelos valores mais caros à sociedade de Hong Kong"7.

Para João de Pina Cabral e Nelson Lourenço, esta abertura à comunidade chinesa é, mais do que uma necessidade de fazer face à redução do contingente português no mercado matrimonial macaense, uma estratégia de reposicionamento étnico e identitário, tendo em vista uma sobrevivência no território pós-19998. Segundo os autores, este processo encontra-se em marcha desde a Segunda Guerra Mundial, sendo mais intenso entre os acontecimentos do "1,2,3", em 1966, e o governo de Almeida e Costa, de 1981 a 1986.

Os vectores da portugalidade começam, então, a diluir-se no novo contexto do Território: o catolicismo perdeu a sua exclusividade no espaço do sagrado dos macaenses; a língua e a cultura portuguesas foram substituídas pelo universo cultural e linguístico cantonense nas gerações mais novas; as estratégias matrimoniais valorativas dos traços fenotípicos europeus perderam o seu significado.

Estamos face ao novo macaense, como defende Carlos Marreiros, que sintetiza as transformações acima referidas na seguinte frase: "O macaense vê os olhos a amendoarem-se, a sua barba a desvanecer, visita o mestre fông-sói aos Domingos [...], telefonia em cantonense e os filhos cada vez mais amorosamente chinesinhos"9.

É, portanto, um dado consensual que a identificação com a matriz cultural portuguesa e a identização com a chinesa está a inverter-se há algumas décadas a esta parte.

Mas o estudo que me proponho a realizar, não pretende dar conta da problemática da identidade macaense enquanto tal, ou seja, dar mais uma "colherada" neste campo já vastamente explorado. Pretende sim abordar a identidade macaense, mas enquanto manifestação de um domínio específico da vivência humana, o domínio da morte. A questão que se coloca é a de saber se a identificação dos macaenses com a matriz cultural portuguesa é consentânea com as suas atitudes face à morte: compreender a portugalidade na sua relação com a morte passa por perscrutar como falam da morte, como a ritualizam.

2. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A MORTE E O MORRER

Para Louis-Vincent Thomas, a morte é, por excelência, um momento forte da vida pessoal e colectiva e, como tal, é a eficácia simbólica do rito, o seu efeito "terapêutico", que permite restabelecer a ordem social que ela veio perturbar. Os rituais da morte correspondem a uma necessidade universal, de tal modo que nenhuma sociedade se priva de solenizar a sua passagem10.

A ritualização da morte é, então, o conjunto de condutas de evacuação, culturalmente determinadas, que enformam a nossa relação com a morte e às quais subjaz uma vocação simbólica. É este simbolismo que permite "arrumar a nossa casinha interior"11, ou seja, restabelecer a ordem pessoal (e social) que a morte inflige. É exactamente esta vocação simbólica que confere uma natureza ritual aos procedimentos da evacuação da morte.

Mas o nosso século está a conhecer uma profunda transformação na forma de relacionamento com a morte e os mortos. Alguns autores falam mesmo na crise12 e no tabu13 da morte dos nossos dias. Esta crise traduz-se numa desritualização da morte, ou seja, na perda de condutas tradicionais ou da sua vocação simbólica. Este processo é muito abrangente, manifestando-se em três momentos distintos14:

1° - No Morrer, com a hospitalização e a medicalização da morte.

Emergência, por um lado, do Hospital enquanto espaço privilegiado de uma morte profundamente alterada e, por outro, do protagonismo da figura do médico, subtraindo-se o doente ao espaço tradicional do morrer - o espaço doméstico - e retirando à família a função de acompanhamento dos seus moribundos.

2° - No Funeral, com a redução ao mínimo das operações necessárias à evacuação do cadáver.

A descaracterização dos rituais funerários e a adopção de práticas de evacuação mais expeditas, como é a cremação.

3° - No Luto, com a sua supressão.

Estigmatização dos enlutados por parte de uma sociedade que já não sabe lidar com a morte e rejeição de duas práticas tradicionais - o vestuário negro e o culto dos cemitérios.

Estes são, pois, os três momentos do processo de ocultação, de escamoteamento, da morte na sociedade ocidental contemporânea.

Em Portugal, no espaço urbano onde foi inscrita a minha investigação anterior15 - o distrito de Lisboa -, estamos a assistir a uma fase de mudança entre a resistência da tradição e a emergência da contemporaneidade nas atitudes e nas representações face à morte.

A "promiscuidade" entre o velho e o novo nas atitudes e nas práticas face à morte de um familiar querido não traz, uma solução de compromisso, antes uma profunda angústia social. O facto é que a morte e o morrer são fontes de grande perturbação: para uns, aqueles que encontram a via de apaziguamento na observância dos rituais tradicionais, na medida em que a descaracterização progressiva do palco da morte deixa um vazio de suportes morais e afectivos; para outros, porque a ocorrência da morte deve ser o mais incólume possível, pelo facto de as condutas tradicionais que subsistem (nomeadamente a evacuação do cadáver e o culto dos cemitérios) não apresentarem qualquer vocação simbólica.

O silêncio gerado em torno da morte na sociedade contemporânea leva a que, a sua ocorrência nos círculos mais íntimos, se transforme numa dura aventura solitária. Pelo que "o silêncio [afinal não] é de ouro", mas sim revelador de uma profunda angústia social na nossa relação com a morte16.

E a comunidade macaense, como ritualiza ela a morte dos seus entes queridos? Esta foi uma pergunta que coloquei a Ana Maria Amaro, que me falou da semelhança dos rituais da morte daquela comunidade em relação aos portugueses: "Católicos, puramente católicos: dia de finados, rezar a missa no dia do nascimento da pessoa, limpar a campa...".

Francisco Moita Flores refere-se a essa proximidade cultural, quando diz que "o cemitério português de S. Miguel Arcanjo é, na sua essência, uma reprodução fiel dos cemitérios românticos de Lisboa, no que respeita à sua concepção necrolátrica"17.

Mas o autor diz também o seguinte:"[...] estamos em crer que foi no campo da saúde, da prevenção sanitária, da necessidade de reacção aos processos nosológicos que conduzem à aceleração do fim da vida que a cultura ocidental mais influiu nos processos sociabilitários da sociedade macaense"18.

Com efeito, o racionalismo cientista - que na Europa de XIX transformara as atitudes do Homem face à vida e face à morte através da medicalização da sociedade - chega a Macau em meados do século XX pela mão da administração portuguesa do Território. Surge, assim, um novo contexto de enquadramento da ocorrência da morte.

A par do que vinha acontecendo em Portugal, nomeadamente pelo papel de homens como Ricardo Jorge e Miguel Bombarda, para citar apenas dois exemplos, também em Macau o conceito de Saúde Pública entrou definitivamente na esfera da acção política: o controlo das epidemias, as medidas profilácticas, a vacinação, a criação de estabelecimentos de saúde e hospitalares, as campanhas higienistas de sensibilização da população, a hospitalização do parto e a promoção dos cuidados materno-infantis foram algumas das medidas responsáveis pelo recuo da mortalidade no território, nomeadamente da mortalidade infantil.

Por outro lado, o hospital tornou-se, também aqui, o espaço privilegiado da ocorrência da morte. Como diz Moita Flores, "o hospital funcionando como o centro reprodutor da vida [...] [é nele que ocorrem todos os nascimentos em Macau] é também o lugar para a morte neste final de século"19.

Macau parece seguir o mesmo percurso da sociedade ocidental contemporânea no que respeita à medicalização da sociedade e à hospitalização da morte.

Com efeito, a casa já não é mais o local da ocorrência da morte, como tradicionalmente acontecia. Este fenómeno resulta não só da indisponibilidade que a vida citadina impõe - inserção das figuras femininas no mercado de trabalho, habitações reduzidas, famílias conjugais, quebra das solidariedades tradicionais20, mas também do "sentimento" generalizado de incapacidade de cuidar de um doente, pela ausência dos meios de tratamento adequados. De facto, essa "capacidade" é, hoje, monopólio das equipas médicas e esses "meios" concentram-se nas unidades hospitalares. Por conseguinte, o Hospital, local da eficácia científica e técnica, subtraiu à Família esse último acontecimento vital do ciclo de vida dos seus membros, que é a morte.

Em Macau, este movimento medicalista é, como diz Felícia Costa, "um traço de portugalidade em regiões desafectas às atitudes típicas das culturas ocidentais perante a vida e a morte [...]. [A] crescente complexização das estruturas institucionais preocupadas com o controlo social da população e a modernização dos aparelhos higieno-sanitários conduziram à ocidentalização de práticas num território marcado cultural e antropologicamente pelos traços fundamentais das civilizações do extremo oriente"21.

Como ficou claro nestas palavras, a atitude do Homem face à morte comporta um domínio instrumental - intervenção e definição técnica e científica; medicalização e hospitalização - e, em Macau, este revela contornos ocidentais. No entanto, comporta igualmente um domínio simbólico - o domínio das crenças e das superstições; da religiosidade e do sagrado - e este revela, neste espaço, traços orientais.

Por conseguinte, quando falamos das atitudes dos macaenses face à morte, precisamos de ter em conta outro factor, que é o sincretismo que está presente nas suas concepções da morte. Vários são os autores que chamam a atenção para este traço cultural ambíguo:

Na sua entrevista, Ana Maria Amaro relatou o caso de uma senhora macaense, sua amiga, que pediu auxílio à mãe já falecida - acendendo velas e rezando de joelhos junto ao seu retrato - para ajudar a encontrar um objecto perdido. Diz Ana Maria Amaro: "Esta é uma ideia chinesa, puramente chinesa, que os antepassados mortos, do Além, podem proteger a família, quando a família lhes presta culto. Portanto, eles [os macaenses] têm imbuída uma certa ideia para além da morte, apesar de ser profundamente religiosa (porque eles são profundamente católicos). É um catolicismo misturado, de certa forma, com o pensamento asiático, o pensamento chinês que a vida para além da morte perdura no Além, podendo os mortos proteger a família se, de facto, lhes rezar".

João de Pina Cabral e Nelson Lourenço dão conta deste sincretismo cultural na comemoração da memória dos mortos: "Como o Ching Meng [請明, Qing Ming, i. é, o Dia dos Antepassados no calendário chinês-N. E.] se celebra muito próximo do Dia dos Finados e como a Igreja Católica já não se opõe ao culto chinês dos antepassados, há uma certa ambiguidade nas práticas ligadas às visitas aos túmulos nesta época do ano [...]. Quem visitar cemitérios nessa temporada pode facilmente distinguir em cada caso se se trata de culto chinês ou não, pois nas campas das pessoas cujos descendentes definem como não-chineses só há flores, enquanto nas campas das pessoas cujos descendentes definem como chineses há ainda sinais de ofertas sacrificiais (comida, pivete e/ou cinzas de ofertas queimadas ritualmente).

A comemoração da memória das pessoas consoante as suas inserções religiosas pessoais é, na nossa opinião, sinal da natureza sincrética das práticas culturais macaenses - tratando-se, aliás, de uma atitude cuja aceitação é mais consentânea com a tradição cultural chinesa do que com o cristianismo ocidental"22.

E em Portugal, o que se passa com a comunidade macaense cá residente? Manifesta-se esse sincretismo nas atitudes face à morte, ou será a sua vivência ritual da morte consentânea com a sua portugalidade ?

3. O TERCEIRO VÉRTICE DO MODELO DE ANÁLISE: A FAMÍLIA

Neste modelo de análise, o triângulo da identidade e da morte fecha-se com a família, na medida em que este vértice se relaciona intimamente com os outros dois:

Com a identidade, porque as famílias constituem, no território de Macau, importantes nódulos de comunidades, isto é, "espaços/tempos que permitem o funcionamento e sistematização dessa grande rede de identificação interpessoal [...] que é a comunidade macaense"23. Embora as transformações recentes da família macaense24 tenham alterado as formas tradicionais de convívio e socialização doméstica, a família continua a desempenhar um importante papel na reprodução do projecto étnico macaense.

Cemitério de S. Miguel Arcanjo, Joaquim Castro.

As novas formas de sociabilidade familiar caracterizam-se pela realização de reuniões, que "constituem possivelmente um dos principais nódulos de comunidade da vivência étnica macaense dos nossos dias [...]. Como cada pessoa participa em vários ciclos de reuniões, ela vai encontrando em contextos de intimidade um número bastante alargado de parentes [...]. Desta forma se cria silenciosamente um ciclo de intimidade que cruza uma parte significativa da comunidade macaense"25.

Com a morte, porque é no seio da família que a experiência da morte é mais intensa.

Segundo Philippe Ariès, a privatização da morte é consentânea com a privatização da afectividade. Esta, que tradicionalmente se distribuía por uma rede alargada de parentes, vizinhos e amigos, passou a circunscrever-se ao interior doméstico, no momento em que a família se nuclearizou e, como diria Edward Shorter, ergueu" o muro da vida privada"26.

Simultaneamente, o recuo da mortalidade -e nomeadamente da mortalidade infantil - devido à medicalização da sociedade mas também ao incremento dos cuidados maternais, afastaram a morte - antes quotidiana e familiar - do quotidiano familiar (se me permitem o trocadilho).

De rotineira a excepcional, a morte na família tomou-se um acontecimento particularmente dramático na vida de cada indivíduo. A morte romântica - com o luto carregado, o culto dos mortos, as incursões ao cemitério... - é o momento alto, na História da Morte no Ocidente, da sua ritualização e da manifestação plena do sofrimento pela perda de um familiar querido.

Ora, a presença portuguesa em Macau deixou marcas profundas desta concepção romântica da morte na comunidade macaense, pelo que o Cemitério de S. Miguel Arcanjo é o retrato mais vivo dessa influência:

4. MACAENSES EM PORTUGAL: IDENTIDADE, MORTE E FAMÍLIA

Segundo o inquérito de 1990/1991 de Ana Maria Amaro, dos macaenses que pensam sair de Macau (70%), 63,5% têm Portugal como provável destino27. A estes dados acrescem os de Carlos Piteira, segundo o qual "a Comunidade Macaense residente na grande Lisboa [...] [poderá] oscilar entre as 300 e 500 famílias, não tendo em conta as fixações mais recentes, nomeadamente as concretizadas desde o início de 1990 até à data"28.

Estes números reflectem uma desconfiança política quanto ao futuro de Macau, o que constitui um fenómeno de certo modo regular no Território: "Um dos aspectos mais constantes do que se tem escrito sobre Macau de há cem anos a esta parte, a recorrência de frases em que se anuncia para breve o término da comunidade macaense, da forma de vida macaense ou do papel preponderante dos macaenses na vida social do Território. Esta 'morte anunciada' está associada a uma imagem de abandono: aquilo a que muitas vezes se tem chamado a 'diáspora macaense"2930.

E são as famílias tradicionais que "reagem mais frequentemente à confrontação com o espectro do abandono, emigrando. Há, portanto, algo de paradoxal no facto de serem precisamente as famílias que melhor simbolizam a relação histórica da comunidade macaense com o Território, que mais tendência têm a emigrar como resposta a mais um 'incidente"31 e 32.

Eu acrescentaria, um paradoxo apenas aparente, pois não será a sua vinda para Portugal, uma tentativa de salvação de um projecto étnico que se encontra ameaçado no contexto da transição? Não será uma recusa à 'morte anunciada' da comunidade macaense?

Ana Maria Amaro partilha desta opinião: "as famílias ditas principais e aquelas que mais se afastam dos padrões culturais chineses [...], foram saindo a pouco e pouco de Macau, à medida que a economia local e/ou a estabilidade política se sentiam ameaçadas"33.

Acerca destas famílias tradicionais e da sua relação com a matriz cultural portuguesa, dizem João de Pina Cabral e Nelson Lourenço: "Deve ser entendido [...] que aquelas pessoas e famílias que reúnem os três traços referidos [vectores do catolicismo, da língua e cultura portuguesas e da mestiçagem euro-asiática] e que, além disso, adquiriram um nível relativamente elevado de sucesso educacional e/ou económico, constituem um núcleo de famílias à volta do qual a identidade macaense se constrói a ela própria como comunidade - ou seja, um grupo de indivíduos que partilham um conjunto de instituições e trabalham em conjunto com vista à reprodução de um projecto étnico"34.

Deste conjunto de referências torna-se evidente que são os macaenses que se identificam com a matriz cultural portuguesa, aqueles que optam vir para Portugal no contexto da já breve transferência da administração do Território.

São, então, as famílias tradicionais aquelas que sustentam o projecto étnico macaense e que protagonizam a diáspora, através do fenómeno da emigração. São aquelas que, vindo para Portugal, defendem a sua identidade étnica do fenómeno da "hanização" do Território35, preservando a sua portugalidade ameaçada.

É na evocação da memória dos mortos na comunidade macaense em Portugal, que se pretende dar conta da valorização dessa portugalidade. Imortalizar os nossos mortos é construir uma memória, não só individual mas também histórica e colectiva: "[...] cada grupo nasce para ser imortal e que, por via disso, constrói um diálogo com o Eterno que não o levará à morte definitiva"36.

É este "diálogo com o Eterno" - a necessidade de manter viva a identidade de um povo - que se pretende confrontar com a construção das nossas memórias individuais: a necessidade de manter vivo o elo com os nossos entes queridos que já partiram.

N. E.-Investigação realizada no âmbito do IV Concurso

de Bolsas do I. C. M./Divisão de Estudos,

Investigação e Publicações.

Revisão de texto de Fátima Gomes.

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NOTAS

1Considerações Sobre a Produção Social de Identidade, "Revista Crítica de Ciências Sociais", n° 32, 1991, pp. 218-220.

2Ver, apenas para citar alguns exemplos: AMARO, Ana Maria, Filhos da Terra, "Revista de Cultura", n° 20, ICM, 1994; MORBEY, Jorge, Alguns Aspectos em Torno da Identidade Étnica dos Macaenses, "Revista de Cultura", n° 20, ICM, 1994; ESTORNINHO, Carlos A. G. "Identidade Cultural Macaense, Achegas De Um Filho Da Terra", Macaenses em Lisboa. Memórias do Oriente, Lisboa, Missão de Macau em Lisboa, 1992; TEIXEIRA, Monsenhor Manuel, Os Macaenses,"Revista de Cultura", n°20, ICM, 1994.

3CABRAL, João de Pina e LOURENÇO, Nelson, A Questão das Origens: Família e Etnicidade Macaenses, "Revista de Cultura", n° 16, ICM, 1991.

4Alguns Aspectos em Torno da Identidade Étnica dos Macaenses, "Revista de Cultura", n° 20, ICM, 1994, p.202.

5Op. cit..

6Jorge Morbey, op. cit., p. 203.

7Idem.

8Defende também esta tese Carlos Marreiros, Alianças para o Futuro, "Revista de Cultura", n° 20, ICM, 1994.

9Alianças para oFuturo, "Revista de Cultura", n° 20, ICM, 1994, p. 166.

10Rites de Mort: Pour la Paix des Vivants, Paris, Fayard, 1985.

11Como foi dito numa entrevista do meu trabalho anterior Histórias da Morte, Histórias da Vida. Sobre a Dessocialização Contemporânea da Morte, Dissertação de Licenciatura em Sociologia, Lisboa, ISCTE, 1995.

12Sobre a crise da morte ver Michel VOVELLE, La Mort et l'Occident: de 1300 à nos Jours, Paris, Éditions Gallimard et Pantheon Books, 1983; e Louis-Vincent THOMAS, op. cit.

13Sobre o tabu da morte ver Philippe ARIÈS, Sobre a História da Morte no Ocidente. Desde a Idade Média, Lisboa, Teorema, 1989; e também Geoffrey GORER, Death, Grief and Mourning in Contemporary Britain, London, The Cresset Press, 1965.

14Thomas, propôs dar conta deste fenómeno, em termos analíticos, em três momentos: "le moment de la mort"; "les funérailles"; "après les funérailles". Op. cit..

15Op. cit..

16Estas são algumas das conclusões da minha "Dissertação de Licenciatura em Sociologia", op. cit...

17Cemitérios de Lisboa: Entre o Real e o Imaginário, Lisboa, C. M. L., 1993, p. 154.

18A Construção da Imortalidade: o Controlo Social da Vida e da Morte em Macau, "Revista de Cultura", n°18, ICM, 1994, p. 75.

19Idem, Ibidem, p. 74.

20A que Macau não é alheia, com o acentuado crescimento económico das últimas décadas.

21"Nascer e Morrer em Macau", in Actas do Seminário Internacional sobre a População em Macau e no Delta do Rio das Pérolas, Macau, DSEC, 1993, pp. 299 e 291.

22Op. cit., p. 185.

23CABRAL, João de Pina e LOURENÇO, Nelson, Em Terra de Tufões - Dinâmicas da Etnicidade Macaense, Macau, ICM, 1993, p. 223.

24Referência de remissão para o Primeiro Relatório de Progressos, i. é, o relatório referente à la evolução deste trabalho (NE).

25CABRAL, João de Pina e LOURENÇO, Nelson, 1993, op. cit, p. 228.

26SHORTER Edward, Naissance de la Famille Moderne, Paris, Éditions du Seuil, 1977.

27Macaenses, uma Sociedade em Mudança: Resultados Preliminares dum Inquérito, "Revista de Cultura", n° 20, ICM, 1994.

28"Os Macaenses em Portugal Continental: uma Abordagem Exploratória sobre o Tema", Macaenses em Lisboa. Memórias do Oriente, Lisboa, Missão de Macau em Lisboa, 1992, p.46.

29João de Pina Cabral e Nelson Lourenço, 1993, op. cit, p. 24.

30Segundo Carlos Estorninho, actualmente os macaenses encontram-se na terceira e última diáspora. A primeira remonta ao século XIX, ao período pós-guerras do ópio, à fundação da colónia inglesa de Hong Kong e à abertura dos portos ao comércio internacional. E a segunda prende-se com a Segunda Grande Guerra, a ocupação japonesa e a implantação do regime comunista chinês: "Identidade Cultural Macaense, Achegas De Um Filho Da Terra", Macaenses em Lisboa. Memórias do Oriente, Lisboa, Missão de Macau em Lisboa, 1992.

31Idem, p. 225.

32Para perceber o conceito de "incidente" ver João de Pina Cabral e Nelson Lourenço, 1993, op. cit, pp.24-35.

33Macaenses, Uma Sociedade em Mudança: Resultados Preliminares dum Inquérito, "Revista de Cultura", n° 20, I. C. M., 1994, p. 213.

34Op. cit., pp. 22 e 23.

35Carlos Marreiros defende que a intensificação dos casamentos entre macaenses e chineses "vai eliminando a componente caucasiana e amplificando a mongólica do ramo Han [...]. Como reflexo da hanização do macaense novo, o seu sistema comportamental individual e gregário também se aproxima da realidade sínica". Alianças para o Futuro, "Revista de Cultura", n° 20, ICM, p. 166.

36Felícia Costa, 1993. Op. cit.: p. 290.

*Licenciada em Sociologia pelo ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa; membro do GREP - Grupo de Estudos de População do Departamento de Sociologia do ISCTE.

desde a p. 193
até a p.